Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
545/20.6GFSTB.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: RECURSO PER SALTUM
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 10/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I - São pressupostos cumulativos do recurso direto para o STJ: a aplicação de pena superior a 5 anos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo; que o recurso vise exclusivamente o reexame da matéria de direito, ou seja interposto com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3, do artigo 410.º, do CPP

II – O STJ tem entendido que, em matéria de revista sobre a medida concreta da pena, a sindicabilidade abrange a correção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de fatores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, mas não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado.

III - Valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto todos os factos em presença, a sua relacionação com a personalidade do recorrente neles documentada e os fins das penas, não deixando de ter presente o referente jurisprudencial deste STJ para casos com alguma similitude, dentro da moldura abstrata aplicável à pena do cúmulo – prisão de 7 anos a 6 meses a 15 anos -, não se surpreendem elementos que permitam justificar um juízo de discordância relativamente à pena única de 10 anos de prisão aplicada, razão por que se entende não ser de efetuar qualquer intervenção corretiva na sua medida, que não peca por excessiva nem por desproporcionada.

Decisão Texto Integral:

RECURSO n.º 545/20.6GFSTB.L1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO

1. AA, com os sinais dos autos, foi condenado, por acórdão do Juízo Central Criminal de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, por dois crimes de abuso sexual de criança agravados previstos nos artigos 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º1, a), do Código Penal, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão por cada um e, em cúmulo jurídico, na pena única de 10 anos de prisão.

Mais foi condenado nas penas acessórias previstas nos artigos 69.º-B, n.º2 e 69.º-C, n.º2 e n.º3, do Código Penal, de proibição de exercer função, emprego, profissões ou atividades públicas ou privadas cujo exercício envolva contacto regular com menores, proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 10 anos.

2. O referido arguido interpôs recurso direto do referido acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça (doravante, STJ), formulando as seguintes conclusões (transcrição):

a) O Recorrente AA vem condenado:

Pela prática de dois crimes de abuso sexual de criança agravados previsto nos artigos 171º, nº 1 e nº2 e 177º, nº1, a) do Código Penal, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão por cada um;

Operado o cúmulo jurídico, condenado na pena unitária global de 10 anos de prisão

b) O Recorrente não admitiu a prática dos ilícitos criminais pelos quais vinha e veio a ser condenado;

c) Não podendo, no entanto, o Tribunal a quo considerar o choro do Recorrente como uma confissão.

d) O Recorrente mostra-se social e familiarmente inserido.

e) O Recorrente está familiar e socialmente integrado não existindo na comunidade local, atitudes de rejeição ou animosidade face à pessoa d arguido, demonstrando a ausência de antecedentes criminais uma vida fiel ao direito e encontrava-se a trabalhar à data em que foi submetido à prisão preventiva.

f) Importa, ainda, o facto de o Recorrente não ter antecedentes criminais, o que também milita a seu favor.

g) A moldura penal aplicável pelo crime de abuso sexual de crianças agravado (agravado de 1/3 nos seus limites mínimo e máximo –art. 177.º, nº 1 alínea a) do C.P) é de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão.

h) Na determinação da medida concreta da pena decidiu o Tribunal “a quo” aplicar ao Recorrente a pena concreta de 7 anos e 6 meses de prisão por cada um dos crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos art. 171.º n.º 1 e 177.º, nº 1 al. a) do C. Penal;

i) A medida parcial de 7 anos e 6 meses de prisão mostra-se desajustada, excedendo a medida da culpa.

j) E, por esse motivo, o Recorrente entende que a condenação não poderia ter dado lugar a condenação tão grave como deu na pena de (10) dez anos de prisão efectiva.

k) Sendo justa e suficiente a aplicação de pena única (em cúmulo jurídico) não superior a 6 anos.

l) A determinação da medida da pena obedece ao critério geral que consta do artigo 71.º n.º 1 do Código Penal: «A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».

m) A aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal).

n) Na determinação da medida concreta da pena ter-se-á ainda em conta o disposto no artigo 71.º n.º 2 do Código Penal, ou seja, o Tribunal deve atender a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente, abstendo-se, no entanto, de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido.

A medida da pena concreta aplicada pelo Tribunal “a quo” ao Arguido afigura-se excessiva perante o quadro de circunstâncias tidas em conta, em clara violação com o disposto nos artigos 40.º, 70.º, 71.º, do C.P. bem como o nº 2 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa.

Assim e por todo o exposto deverão V. Exas conceder provimento ao presente recurso sendo, por efeito do mesmo, substituído o Douto Acórdão recorrido por um outro nos termos da antecedente motivação, sendo aplicado ao Recorrido a pena única de 6 (seis) anos de prisão.

3. O Ministério Público, junto da 1.ª instância, respondeu ao recurso, pronunciando-se no sentido do seu não provimento.

4. Neste STJ, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de CPP), emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, devendo, em consequência, ser confirmado o acórdão recorrido.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do CPP, não foi apresentada resposta ao parecer. Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido, constituindo entendimento constante e pacífico que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, as questões que se suscitam são as seguintes:

- determinação da medida das penas – parcelares e única.

2. Do acórdão recorrido

2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

1. BB nasceu em ... de ... de 2007 e é filha de CC e de AA, o arguido nestes autos.

2. A ofendida BB vivia com a mãe e, em data situada no ano de 2016, começou a passar fins-de-semana com o arguido, seu pai, que, nessa altura, vivia sozinho na residência sita na Estrada ....

3. Em data situada nesse ano de 2016, o arguido decidiu aproveitar os momentos em que a sua filha, à data com nove anos de idade, se encontrava sozinha consigo, na sua casa, para praticar com ela atos de natureza sexual e assim satisfazer os seus instintos libidinosos.

4. A partir de então, durante a noite e sempre que a BB se encontrava a dormir na sua própria cama, no seu quarto, na cama do arguido ou no sofá da sala, este retirava-lhe as calças de pijama e as cuecas.

5. E, despido, colocava-se em cima da BB e introduzia repetidamente o seu pénis ereto umas vezes na vagina da menor e também, o que ocorreu cerca de duas vezes, no seu ânus.

6. O arguido não usava preservativo e ejaculava no interior do corpo da BB.

7. Numa dessas ocasiões, em consequência a ação do arguido, a ofendida, então com dez anos de idade, sangrou.

8. Nas descritas ocasiões, o arguido introduzia também os seus dedos na vagina da BB e acariciava-a nos seios, vagina e nádegas e dava-lhe beijos na boca.

9. Posteriormente, o arguido mandava a BB tomar banho e dizia-lhe: não contes a ninguém o que se passou.

10. Frequentemente, a ofendida, por sentir dores, desconforto e vergonha, chorava e pedia ao arguido que cessasse tal comportamento, porém o arguido prosseguia a descrita ação e se ela persistisse no choro, mandava-a calar.

11. Em março de 2020, com o início do confinamento determinado em consequência da pandemia da Covid 19, BB interrompeu as deslocações à residência do arguido aos fins de semana, pelo que este cessou as descritas condutas.

12. Anteriormente ao início da descrita ação o arguido, a ofendida BB nunca mantivera relações sexuais.

13. À data da realização do exame pericial de natureza sexual, a ofendida BB apresentava hímen com solução de continuidade cicatrizada às 5h (>75% da altura), resultante de penetração vaginal praticada pelo arguido nos termos descritos.

14. Em consequência da ação do arguido, a ofendida BB sentiu-se envergonhada e infeliz e receou que aquele repetisse o descrito comportamento.

15. O arguido quis satisfazer a sua necessidade de manter praticar atos de natureza sexual com a ofendida BB, ciente da sua idade e bem sabendo que era a sua própria filha.

16. Sabia o arguido que os seus atos ofendiam gravemente o sentimento de pudor e a liberdade sexual da ofendida BB, prejudicando o seu desenvolvimento.

17. Agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei, ciente da reprovabilidade e censurabilidade da mesma.

*

(Do relatório pericial de avaliação psicológica

18. BB mantém uma interação adequada com a perita colaborando com empenho e interesse na execução de todas atividades propostas. O contacto é adequado observando-se uma acentuada inibição quando se abordam, em contexto de entrevista, os factos que desencadearam o inquérito em curso. O seu discurso é espontâneo e adequado à fase de desenvolvimento em que se encontra quando questionada sobre a vida escolar, relações com pares e atividades de lazer. Humor deprimido associado à matéria dos autos. Apresenta-se orientada no tempo e no espaço e demonstra estar adaptada à realidade. Evidencia capacidade simbólica. Não se observam alterações ao nível do pensamento ou da atenção e concentração. A memória a curto e a longo prazo está mantida. Não apresenta alterações no comportamento psicomotor, com motricidade geral e fina harmoniosas.

19. (…) Nos testes das Matrizes Progressivas de Raven (…) o resultado obtido pela examinanda, igual ou inferior ao percentil 25, permite classificá-la no nível inferior no que concerne à capacidade intelectual (grau IV).

20. (…) Na avaliação da Dinâmica Familiar e da Qualidade das Relações - Security Scale A Security Scale, a pontuação total obtida para a vinculação à mãe é de 30 pontos, com um valor médio de 2. A pontuação total obtida para a vinculação ao pai é de 26 pontos, com um valor médio de 1,46. Considerando que o ponto de corte para a vinculação segura é de 45 pontos, conclui-se que BB apresenta uma vinculação insegura relativamente a ambos os progenitores.

21. (…) No Questionário de Capacidades e de Dificuldades (SDQ) (…), os resultados obtidos (…) pela examinanda permitem concluir que para o total das dificuldades integra a categoria anormal (22 pontos). As pontuações obtidas são anormais nas escalas: sintomas emocionais (7 pontos) e problemas de relacionamento com os colegas (6 pontos). A pontuação na escala hiperatividade (6 pontos) é limítrofe. Nas escalas problemas de comportamento (3 pontos) e comportamento pró-social (10 pontos) os resultados são normais.

22. (…) No Children’s Depression Inventory (CDI) - Inventário de Depressão para Crianças (…) o resultado obtido pela examinanda é de 24 pontos, o que permite concluir que BB apresenta sintomatologia depressiva (ponto de corte 15).

23. (…) O inventário de Medos para Crianças (FSSC-R) (…) Fornece um resultado total de medo e o resultado de cinco factores: medo de insucessos e críticas (F1), medo do desconhecido (F=2), medo de acidentes e pequenos animais (F=3), medo de perigo e da morte (F=4) e, medos médicos (F=5). BB obtém a seguintes notas F1=38, F2=25, F3=32, F4=20 e, F5=11. Estes resultados são clinicamente significativos para medos médicos.

24. (…) A escala de Sintomas de Pós-Stress Traumático para Crianças (Duarte Costa & Sani, 2006) permite a avaliação da incidência de sintomatologia de pós-stress traumático. (…) O resultado obtido, 45 pontos, permite concluir que a jovem apresenta critérios de diagnóstico clínico para a perturbação pós-stresse traumático associado às experiências de natureza sexual de que terá sido vítima (ponto de corte 15).

25. (…) Apresenta (…) competências suficientes para percecionar e interpretar acontecimentos bem como aptidões mnésicas que lhe permitem evocar experiências por si vividas. Não se observam, à data da avaliação, indicadores de tendência para fantasiar sobre os relatos efetuados.

26. (…) Ao nível de sintomatologia observam-se indicadores de depressão, ansiedade associada a medos médicos e perturbação de stresse pós-traumático (decorrente das experiências de natureza sexual de que terá sido vítima).

(Do pedido de indemnização):

27. A menor BB sofreu, durante um período de cerca de quatro anos, dores físicas e psicológicas, em elevadíssimo grau, tristeza, vergonha e medo e perturbação do desenvolvimento da sua sexualidade, em consequência da ação do arguido/demandado tal como descrita nos factos assentes.

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(Do certificado de registo criminal):

28. Do certificado de registo criminal do arguido não constam condenações.

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(Do relatório social):

29. À data dos factos de que vem acusado no presente processo, AA vivia sozinho, após ter terminado a relação amorosa com a mãe da sua filha BB, ofendida nos presentes autos.

30. (…) A filha do arguido passava consigo alguns fins de semana, condição estabelecida em sede de regulação das responsabilidades parentais.

31. Atualmente, AA continua a viver sozinho, mas desde a data dos alegados factos voltou a estabelecer uma relação amorosa, com nova companheira, com a qual teve um filho.

32. (…) As dinâmicas entre o casal eram disfuncionais, com consequências negativas ao nível dos cuidados prestados ao filho, tendo-se registado uma intervenção, por parte do sistema de proteção de menores, com retirada do mesmo e consequente entrega aos cuidados de outro familiar.

33. Este episódio foi descrito pelo arguido como tendo sido determinante para a rutura relacional com esta companheira.

34. A aparente incapacidade evidenciada por AA para manter uma relação amorosa estável poderá não ser alheia a algumas circunstâncias da história de vida do arguido.

35. (…) AA provém de uma família numerosa, que vivia em condições de carência económica e habitacional muito significativa.

36. As dinâmicas eram disfuncionais, com frequentes episódios de violência conjugal, sendo também negligenciadas as rotinas educativas e a transmissão de conhecimentos sobre diversas temáticas, onde se inclui a sexualidade.

37. AA veio a adquirir a generalidade dos conhecimentos sobre a sexualidade humana, por meios pouco convencionais, aparentemente em idade tardia, relativamente aos seus pares, tendo tido a sua primeira relação sexual já na idade adulta, com a mãe da sua filha BB.

38. No plano laboral, à data dos alegados factos, o arguido não exercia atividade profissional regular, providenciando o seu sustento através do subsídio de desemprego (…).

39. Porém, AA aceitava pequenos biscates, no ramo da construção civil, que lhe permitiam algum acréscimo orçamental.

40. O arguido vivia numa casa arrendada, na zona do ..., concelho do ..., pela qual pagava cerca de 200€ mensais.

41. Atualmente, o arguido trabalha, com funções não qualificadas, no ramo da construção civil, com contrato firmado com a empresa “...Construções... Lda”, com um vencimento líquido de aproximadamente 850,00 € mensais.

42. Em termos habitacionais, o arguido ocupa, atualmente, uma casa que pertencia aos seus avós, na zona do ..., concelho do ... (..) uma moradia térrea, numa zona rural, que originalmente era uma casa abarracada, de madeira, mas que o arguido e respetiva família de origem têm vindo a melhorar, no decorrer dos anos.

43. O arguido não tem quaisquer encargos com esta situação habitacional, não tendo o mesmo sido capaz de identificar as despesas fixas mensais com o seu sustento.

44. AA tem uma baixa qualificação académica, tendo abandonado os estudos aos 18 anos, apenas com o 6º ano completo, num percurso onde se destacam as dificuldades de aprendizagem e as reduzidas expectativas quanto à utilidade da aprendizagem formal.

45. Apesar do trajeto irregular e pouco produtivo, o arguido classificou o mesmo como “normal” (sic).

46. No início da idade adulta, o arguido frequentou algumas ações de formação profissional, mas não veio a tirar proveito das mesmas.

47. No que respeita à socialização, não foram identificadas, pelo arguido, quaisquer envolvimentos em atividades estruturadas, para ocupação dos tempos livres, ou participação na vida comunitária. (…) Os seus hábitos de convívio resumem-se aos relacionamentos com pessoas com quem trabalha.

48. Ambos os progenitores já faleceram, tendo sido possível apurar que o arguido tinha um relacionamento conflituoso com a mãe.

49. Dois dos seus irmãos residem perto do arguido, mas não foi possível aferir sobre a qualidade dos laços que com eles mantém.

50. Não foram apurados problemas de saúde suscetíveis de poder condicionar o ajustamento social do arguido.

51. AA tem uma adequada noção da sua atual situação jurídico-penal e reconhece as possíveis consequências da mesma, caso venha a ser condenado.

52. Não obstante, o arguido evidenciou uma séria dificuldade na reflexão sobre os potenciais danos provocados nas vítimas, em situações abstratas de crimes contra a autodeterminação sexual, praticados contra crianças e menores de idade.

53. No mesmo sentido, o arguido manifestou sentimentos de repulsa perante a prática de atos sexuais instrumentalizados (prostituição) e entre indivíduos do mesmo género.

54. Porém, a mesma reação não se verificou perante eventuais práticas de atos sexuais entre adultos e crianças.

2.2. O tribunal recorrido deu como não provados os seguintes factos (transcrição):

Não se provou (com relevo para a decisão):

1. A ofendida BB, desde 2016, passou praticamente todos os fins de semana (conclusivo) com o arguido em casa deste.

2. O arguido tenha introduzido o seu pénis ereto cerca de três vezes no ânus

2.3. Considerou-se, assim, na fundamentação de facto do acórdão recorrido (transcrição):

«O tribunal apreciou o conjunto da prova produzida, nos termos do disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal que, ressalvados os casos de prova vinculada, confere ao julgador poderes de livre apreciação, o que quer dizer que esta é avaliada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção de quem decide.

O artigo 374º do Código de Processo Penal estabelece os requisitos da sentença/acórdão, entre os quais a fundamentação que, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, consiste na exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Este exame crítico «consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (…). O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte» (Acórdão do STJ de 25-01-2006 (processo n.º 05P3460), disponível em http://www.dgsi.pt.).

*

Justifica-se um breve enquadramento dos princípios que regem a prova e sua apreciação em processo penal.

O artigo 127º do Código Processo Penal estabelece, relativamente à valoração da prova, três tipos de critérios: uma avaliação da prova inteiramente objetiva quando a lei assim o determinar; outra também objetiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, eminentemente subjetiva, que resulte da livre convicção do julgador.

A convicção resultante da livre convicção do julgador pode ser motivada e fundamentada, mas, neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjetivos, embora explicitados para serem objeto de compreensão” (Ac STJ de 18/1/2001, proc nº 3105/00-5ª, SASTJ, nº 47,88).

Tal como diz o Prof Germano Marques da Silva, no Curso de Processo Penal, Vol II, pág. 131 “... a liberdade que aqui importa é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objetiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objetiva”.

Ou seja, a livre apreciação da prova realiza-se de acordo com critérios lógicos e objetivos.

Sobre a livre convicção refere o Professor Cavaleiro de Ferreira que esta «é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade» -Cfr. "Curso de Processo Penal", Vol. II, pág.30. Por outras palavras, diz o Prof. Figueiredo Dias que a convicção do juiz é "... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. (…) uma tal convicção existirá quando e só quando … o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável" (in Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Editora, Reimpressão, 1984, páginas 203 a 205).

O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no artigo 355º do Código de Processo Penal. É aí que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na receção direta de prova.

Nas palavras do Prof. Germano Marques da Silva "... a oralidade permite que as relações entre os participantes no processo sejam mais vivas e mais directas, facilitando o contraditório e, por isso, a defesa, e contribuindo para alcançar a verdade material através de um sistema de prova objetiva, atípica, e de valoração pela intima convicção do julgador (prova moral), gerada em face do material probatório e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens". -Cfr. "Do Processo Penal Preliminar", Lisboa, 1990, pág. 68”.

Ainda relativamente ao conceito de livre apreciação da prova, ensinou o Professor Figueiredo Dias: “Uma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável e, portanto, arbitrária – da prova produzida. (...)

(...) a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” – de tal sorte que a apreciação há de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e ao controlo efetivos.

(...) Do mesmo modo, a “livre” ou “íntima” convicção do juiz, de que se fala a este propósito, não poderá ser uma convicção puramente subjetiva, emocional e, portanto, imotivável.

Uma tal convicção existirá quando e só quando – parece-nos adequado este um critério prático, de se tem servido com êxito a jurisprudência anglo-americana – o tribunal tiver logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.”.

No mesmo sentido de pronunciou o Tribunal Constitucional (Ac. TC 1166/96 de 19-11-1996, in D.R., II, 06-02-97, debruçando-se sobre o artigo 127º do Código de Processo Penal, concluiu que "a regra da livre apreciação de prova em processo penal não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável. O julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância às regras da experiência comum utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controle".

Por último, importa referir o princípio constitucionalmente garantido do in dubio pro reo, nos termos do qual, na decisão de factos incertos, a dúvida deve ser resolvida em favor do arguido.

*

O arguido prestou declarações, sendo que, antes de proferir qualquer palavra, chorou convulsivamente, facto que o tribunal, nesse momento, entendeu como revelador de confissão e contrição; Porém o arguido, imediatamente, negou a prática dos factos, dizendo: é tudo mentira, e, mais à frente, afirmou que a ofendida é mentirosa. Mais adiante, também viria a explicar as suas lágrimas, dizendo que foi dos nervos.

No entanto, o arguido admitiu que tomava banho com a ofendida, sua filha, afirmando que era a mãe desta que permitia e incentivava tal prática, dizendo que, se não o fizesse não deixaria a filha ir a sua casa, o que, obviamente, a testemunha CC, mãe da ofendida, não confirmou, e, aliás, se mostra pouco razoável à luz das regras de experiência comum.

Também admitiu que a BB dormia na sua cama porque só no seu quarto estava instalado um aparelho de televisão.

E admitiu que, quando já coabitava com a nova companheira, saía várias vezes da cama do casal para ir dormir com a sua filha, a ofendida BB e também chegou a dormir na sala e até no carro, para escapar às constantes solicitações de sexo por parte da companheira, o que se estranha, desde logo à luz das regras de experiência comum, sendo que a testemunha DD, a ex-companheira negou, de forma veemente e credível, tal versão.

Vai mais longe ainda o contributo da testemunha DD para a descoberta da verdade, infirmando a versão do arguido, tendo começado por referir que, após alguns constrangimentos iniciais, que são compreensíveis à luz das regras de experiência comum, manteve uma boa relação com a ofendida BB, o que esta confirmou.

Afirmou que o arguido se levantava muitas vezes de noite para ir dormir com a ofendida e que esta, muitas vezes, durante a noite ia à casa de banho lavar-se, o que, à luz das regras de experiência comum, permite concluir pela prática, nessas ocasiões, pelo arguido, com a ofendida de atos de natureza sexual, sustentando a afirmação da ofendida BB de que, após os factos, o arguido mandava-a tomar banho e dizia-lhe para não contar a ninguém.

Neste ponto, é de referir que o tribunal não considerou o segmento constante da acusação: senão nunca mais via ninguém, por ser essencialmente vago, caso contrário, estaria claramente configurado mais um ilícito, concretamente, coação.

Também referiu o arguido que, diante da sua companheira, que era muito magra, elogiava a sua filha BB, por ser esta mais cheiinha, gorda, dizendo que esta era muito mais mulher do que aquela, o que a testemunha DD, confirmou.

Questionado o arguido sobre a natureza censurável deste tipo de comparação, esclareceu que era uma forma de incentivar a sua companheira a comer mais, explicação que não se aceita, por ser desprovida de razoabilidade, desde logo à luz das regras de experiência comum.

Negou, no mais, todos os factos imputados e perante tal, foi questionado sobre as razões da ofendida para apresentar a queixa e disse que a BB inventou os factos porque tinha ciúmes da sua companheira, queria o pai só para ela; e, confrontado com o facto de a queixa ter sido apresentada quando a relação com a companheira já tinha terminado, não logrou adiantar outra explicação.

*

Relevam especialmente as declarações da ofendida/demandante, registadas para memória futura e transcritas a folhas 301 e seguintes, claras, sinceras, rigorosas, coerentes e isentas de incongruências ou contradições suscetíveis de abalar a sua credibilidade, confirmando inequivocamente, de forma circunstanciada e contextualizada, com detalhes realistas, mencionando, além do mais, a roupa que ela e o arguido usavam na ocasião, referindo que os pijamas que usava eram sempre largos porque tinham sido oferecidos, usados, sendo a linguagem adequada à idade e à sua perceção dos acontecimentos, os factos descritos na acusação. Apenas não logrou estabelecer com rigor o número de vezes em que ocorreram tais factos, esclarecendo que não passava todos os fins de semana em casa do pai, porque, nas semanas em que tinha testes, ficava em casa a estudar, pelo que não é possível fazer corresponder o número de atos praticados pelo arguido ao número de fins de semana do período temporal a que se reporta a acusação (facto não provado 1).

Também relativamente à introdução, pelo arguido, do seu pénis ereto no ânus da ofendida, esta não conseguiu estabelecer com segurança o número de vezes em que tal ocorreu, não se mostrando segura na referência a duas ou três, pelo que, ponderando o princípio in dubio pro reo, necessariamente na decisão de factos incertos, a dúvida deve ser resolvida a favor do arguido, justificando-se fixar esses atos em número em dois (facto não provado 2).

No tom da narrativa da ofendida é ainda claramente percetível a emoção, a repulsa e o sofrimento para si resultante da conduta do arguido, que resulta da prova pericial consubstanciada no relatório de exame médico-legal da especialidade de psicologia junto a folhas 263 e seguintes, que conclui, além do mais, pela verificação de sintomatologia depressiva e stress pós-traumático associado às experiências de natureza sexual a que foi submetida.

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Releva ainda, sustentando a factualidade assente, o relatório pericial médico-legal de natureza sexual junto a folhas 384 e seguintes, do qual resulta que a ofendida BB apresentava, à data do exame, hímen com solução de continuidade cicatrizada às 5h (>75% da altura), compatível com a ação de penetração vaginal descrita na acusação.

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Ainda relativamente à credibilidade do depoimento da menor ofendida, releva também o referido relatório de exame médico-legal da especialidade de psicologia, que conclui que a BB apresenta (…) competências suficientes para percecionar e interpretar acontecimentos bem como aptidões mnésicas que lhe permitem evocar experiências por si vividas. Não se observam, à data da avaliação, indicadores de tendência para fantasiar sobre os relatos efetuados.

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A factualidade assente relativamente ao pedido de indemnização civil resulta do já mencionado relatório de perícia médico-legal psicológica, conjugado com as declarações da ofendida e da sua mãe, CC, esta com conhecimento direto da personalidade e evolução daquela, mostrando-se particularmente reveladora a reação da menor à notícia de que, findo o confinamento, poderia retomar as visitas ao pai, chorando convulsivamente, após o que acabou por, finalmente, contar à mãe os factos, começando por dizer: o meu pai fez-me mal, sendo que já antes observara na filha uma maior sensibilidade, reatividade e tendência para chorar por qualquer motivo. CC concluiu as suas declarações de forma assertiva, dizendo que a filha morreu por dentro.

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A idade e filiação da ofendida/demandante resultam do teor da certidão do assento de nascimento junta a folhas 77.

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Releva o certificado de registo criminal junto aos autos (folhas 432, verso) relativamente à inexistência de condenações anteriores.

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A factualidade respeitante às condições pessoais, resulta do teor do relatório social de folhas 449 e seguintes, que outra prova não infirmou.

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Os meios de prova que não foram especificados nesta motivação, não assumiram, em nosso entender, relevância para a descoberta da verdade.»

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3. Apreciando

3.1. O presente recurso direto para o STJ tem por objeto o acórdão proferido pelo tribunal coletivo que condenou o arguido/recorrente nos termos supra indicados.

Dispõe o artigo 432.º, sob a epígrafe “Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”:

«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;

d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.

2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º»

São pressupostos cumulativos do recurso direto para o STJ:

- A aplicação de pena superior a 5 anos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo;

- Que o recurso vise exclusivamente o reexame da matéria de direito, ou seja interposto com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.

Nos termos do AFJ n.º 5/2017 (Diário da República n.º 120/2017, Série I de 2017-06-23, páginas 3170 – 3187):

«A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas.»

No caso em apreço, o objeto do recurso é um acórdão condenatório, proferido por um tribunal coletivo, em que foi aplicada ao recorrente uma pena única de 10 (dez) anos de prisão, resultante do cúmulo jurídico de duas penas parcelares superiores a 5 (cinco) anos (in casu, duas penas de 7 anos e 6 meses).

Por conseguinte, o recurso circunscreve-se ao reexame de matéria de direito, da competência do STJ [artigos 432.º, n.ºs 1, al. c), e 2, e 434.º do CPP], sem prejuízo do disposto na parte final da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, segundo o qual se pode recorrer com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, que não foram invocados pelo recorrente e que, a partir da decisão de facto e da respetiva motivação, também não se evidenciam.

3.2. O tribunal recorrido operou a alteração da qualificação jurídica, passando a imputar ao arguido, não 198, mas dois crimes de abuso sexual de criança agravados, previstos nos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, afastando a imputação da agravação prevista na alínea c) e determinando a aplicabilidade das sanções acessórias previstas nos artigos 69.º-B, n.º2 e 69.º-C, n.ºs 2 e 3 do Código Penal, tendo condenado o arguido por dois crimes de abuso sexual de criança agravados, previstos nos mencionados artigos, nas penas de 7 anos e 6 meses de prisão por cada um e, em cúmulo jurídico, a pena única de 10 anos de prisão.

O arguido-recorrente não questiona a subsunção jurídico-penal dos factos, com a qual o Ministério Público também se conformou.

A dita subsunção, no que concerne ao número de crimes cometidos, pode ser questionável.

Lê-se no acórdão recorrido:

«Está imputada ao arguido a prática de 198 crimes de abuso sexual de criança agravados.

Não resulta claramente da redação da acusação o critério ou cálculo para a determinação de tal número, para além da ponderação de todos os fins de semana durante o período temporal a que alude a mesma acusação, sendo que não se trata de um cálculo rigoroso, uma vez que o Ministério Público situou o início da ação em meados de 2016, e não numa data concreta situada nesse ano.

Por outro lado, não ficou demonstrado que a ofendida tenha passado todos os fins de semana com o arguido, porém também não se apurou quantos passou com a mãe.

Assim, obviamente, não é razoável concluir que o arguido tenha praticado os factos imputados 198 vezes, nem é possível estabelecer, com rigor, qualquer outro número.

A jurisprudência maioritária, relativamente aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, tem afastado a aplicação da figura do crime unitário em trato sucessivo. Neste sentido, o acórdão do STJ de 414/12.3TAMCN.S1, de 14/01/2016, Relator: Manuel Augusto de Matos, disponível em www.dgsi.pt., a eventual admissão da unificação de uma pluralidade de condutas essencialmente homogéneas, através da figura do crime de trato sucessivo, no âmbito do tipo penal de abuso sexual de crianças, poderia redundar num resultado que o legislador claramente quis afastar – ainda que por referência à figura do crime continuado – com a alteração ao n.º 3 do art. 30.º do CP realizada pela Lei 40/2010, de 03-09, que exclui expressamente a admissibilidade da possibilidade de unificação de uma pluralidade de condutas na figura do crime continuado, quando estejam em causa bens eminentemente pessoais.

No Acórdão do STJ de 20/04/2016, Relator Cons. Helena Moniz, disponível em www.dgsi.pt, pode ler-se: “é com base nesta ideia de sucessão de crimes idênticos contra a mesma vítima, e num certo e delimitado período temporal, que o Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que estamos perante o que vem designando de “crime de trato sucessivo”.

Isto é, considerando que, perante uma execução repetida ao longo do tempo de tempo se torna “arbitrária qualquer contagem”, tem considerado que estamos perante “crimes prolongados, protelados. protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime — apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime — tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido”. E nestes “crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta”.

Para que este “crime prolongado ou de trato sucessivo” exista, exige a jurisprudência “uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução»”— “deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma” (transcrições do acórdão do STJ, de 29.11.2012, proc. n.º 862/11.6TAPFR.S1, relator: Cons. Santos Carvalho).

Ou seja, a jurisprudência, seguindo as pisadas da jurisprudência alemã que construiu o crime continuado por dificuldade de prova, acaba por unificar, à margem da lei, várias condutas numa única, considerando que há uma unidade de resolução (que abarca todas as resoluções parcelares que ocorrem aquando da prática de cada sucessivo ato integrador de um tipo legal de crime), mas em que, à medida que se prolonga no tempo, produz uma agravação da culpa do agente.

É esta conduta prolongada, protraída, no tempo que levou à sua designação como crime prolongado, embora a caracterização do crime como prolongado dependa de a conduta legal e tipicamente descrita se poder considerar como sendo uma conduta prolongada — ora, a conduta, por exemplo, do crime de violação, ainda que este seja repetidos inúmeras vezes, está limitada temporalmente; os atos integrantes de um crime de violação ocorrem num certo período e quando sucessivamente repetidos constituem novo crime.

E a ideia de sucessão de condutas que parece querer-se atingir com a designação de “trato sucessivo” implica necessariamente que haja uma sucessão de tipos legais de crime preenchidos e, portanto, uma punição em sede de concurso de crimes.

Aliás, encontramos uma definição jurídica concreta e precisa de “trato sucessivo” no artigo 34º do Código de Registo Predial, pretendendo-se documentar o trato, a traditio da coisa, sucessivamente; ora, no âmbito dos crimes sexuais, não é possível configurar o conceito de traditio.

Já o crime exaurido ou consumido reporta-se às situações em que se consuma, tornando irrelevantes os atos sucessivos, o que assume importância quando, após a consumação, ocorre a terminação do crime, sendo relevante a desistência da tentativa entre um e outro momento.

Porém, a prática de um crime sexual seguida de outros crimes sexuais não impede a consumação de um crime sexual em cada um dos atos sucessivos. (…)

O entendimento de um crime como sendo crime habitual tem necessariamente que decorrer, atento o princípio constitucional da legalidade criminal (artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), do tipo legal de crime previsto na legislação. E nenhum crime sexual é previsto na lei como crime habitual.

Unificar várias condutas integradoras de tipos legais de crimes sexuais num único crime constitui uma clara violação do princípio da legalidade. Na verdade, ainda que as condutas criminosas estejam próximas temporalmente, ou sejam sucessivas, não podemos considerar estarmos perante um único crime. A punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas decorre da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime. Ora, unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação constitui uma clara violação do princípio da legalidade, e, portanto, uma interpretação inconstitucional do disposto no artigo 164.º, do Código Penal.”

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Assim, no caso em apreço, há que considerar diversos crimes de abuso sexual de criança agravados, em número não concretizado, praticados entre meados de 2016 e março de 2020.

Existindo incerteza quanto ao número de crimes cometidos, importa identificar, se possível, os atos lesivos, ainda que por referência a outros elementos e/ou períodos temporais.

Sabemos, sem sombra de dúvida, que é mais do que um e não menos que dois, considerando, além do mais, o elemento objetivo decorrente da factualidade assente relativamente ao número de vezes em que o arguido submeteu a ofendida à prática de coito anal, pelo que é razoável condenar o arguido pela prática, em concurso real, de dois crimes de abuso sexual de criança agravados, previstos nos artigos 171º, nº1 e 2 e 177º, nº1, a) do Código Penal, puníveis com pena de prisão de 3 a 10 anos agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo, isto é, com pena de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão, operando-se, também nesta sede, alteração da qualificação jurídica (artigo 358º, nº1 e 3 do Código de Processo Penal).»

A decisão de facto refere que o arguido, em data situada no ano de 2016, decidiu aproveitar os momentos em que a sua filha, à data com nove anos de idade, se encontrava sozinha consigo, na sua casa, para praticar com ela atos de natureza sexual e assim satisfazer os seus instintos libidinosos.

Diz-se que, a partir de então, durante a noite e sempre que a BB se encontrava a dormir na sua própria cama, no seu quarto, na cama do arguido ou no sofá da sala, este retirava-lhe as calças de pijama e as cuecas e, despido, colocava-se em cima da BB e introduzia repetidamente o seu pénis ereto umas vezes na vagina da menor e também, o que ocorreu cerca de duas vezes, no seu ânus. O arguido não usava preservativo e ejaculava no interior do corpo da BB. Numa dessas ocasiões, em consequência da ação do arguido, a ofendida, então com dez anos de idade, sangrou. Nas descritas ocasiões, o arguido introduzia também os seus dedos na vagina da BB e acariciava-a nos seios, vagina e nádegas e dava-lhe beijos na boca. Posteriormente, o arguido mandava a BB tomar banho e dizia-lhe: não contes a ninguém o que se passou. Frequentemente, a ofendida, por sentir dores, desconforto e vergonha, chorava e pedia ao arguido que cessasse tal comportamento, porém o arguido prosseguia a descrita ação e se ela persistisse no choro, mandava-a calar.

A forma como as condutas estão descritas inculca que estamos perante factos que ocorreram diversas vezes, ao longo de determinado lapso temporal – entre 2016 e março de 2020.

É o que se extrai da circunstância de se dizer que, “a partir de então, durante a noite e sempre que a BB se encontrava a dormir na sua própria cama, no seu quarto, na cama do arguido ou no sofá da sala, este retirava-lhe as calças de pijama e as cuecas” e que “frequentemente, a ofendida, por sentir dores, desconforto e vergonha, chorava e pedia ao arguido que cessasse tal comportamento, porém o arguido prosseguia a descrita ação e se ela persistisse no choro, mandava-a calar”.

Tais expressões não parecem, numa primeira mirada, compatíveis com a conclusão de que ocorreram apenas dois crimes, tanto mais que, ao nível da factualidade provada no âmbito do pedido civil, deu-se como provado que a menor BB sofreu, durante um período de cerca de quatro anos, dores físicas e psicológicas, em elevadíssimo grau, tristeza, vergonha e medo e perturbação do desenvolvimento da sua sexualidade, em consequência da ação do arguido/demandado tal como descrita nos factos assentes.

Admitimos, porém, que tendo sido dado como não provado que a ofendida BB, desde 2016, passou praticamente todos os fins de semana com o arguido em casa deste, existindo, por conseguinte, incerteza quanto ao número de vezes que tal aconteceu e, por conseguinte, quanto ao número de crimes cometidos, o tribunal tenha procurado identificar o número de condutas por referência a outros elementos, não perdendo de vista o princípio in dubio pro reo.

Não ignorando a polémica doutrinal que envolve a fundamentação do princípio in dubio e a sua relação com o princípio da presunção de inocência – entre teorias uniformizadoras que identificam os dois princípios e teorias diferenciadoras que distinguem o seu alcance e conteúdo -, temos que perante uma dúvida sobre os factos desfavoráveis ao arguido, que seja insanável, razoável e objectivável, o tribunal deve decidir “pro reo”.

Ensina, sobre a matéria, o Prof. Figueiredo Dias:

“À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (...) – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo” (Direito Processual Penal, reimpressão, 1984 p. 213).

O estado de dúvida (insanável, razoável e objetivável) - valorado a favor do arguido por não ter sido ilidida a presunção da sua inocência - pressupõe que, produzida a prova, o tribunal, e só o tribunal, tenha ficado na incerteza quanto à verificação ou não, de factos relevantes para a decisão. Como diz Cristina Líbano Monteiro: «O universo fáctico – de acordo com o “pro reo” – passa a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos factos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para a prova dos segundos se exige a certeza.» (Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo», Coimbra Editoras, 1997, pág. 53).

Neste quadro, tendo por assente, sem margem para qualquer dúvida, que os atos ocorreram pelo menos em duas ocasiões, entre 2016 e março de 2020, não havendo certeza para além disso, considerando, além do mais, “o elemento objetivo decorrente da factualidade assente relativamente ao número de vezes em que o arguido submeteu a ofendida à prática de coito anal”, admitimos, não sem alguma reserva, que o tribunal recorrido tenha decidido condenar o arguido pela prática, em concurso efetivo (real), de dois crimes de abuso sexual de criança agravados, previstos nos artigos 171.º, n.ºs1 e 2 e 177.º, n.º1, a) do Código Penal, puníveis com pena de prisão de 3 a 10 anos agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo, isto é, cada um deles com pena de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão. Neste quadro, o período de 4 anos supra referido pode ser entendido como aquele em que se manteve a possibilidade da jovem BB passar fins-de-semana com o pai, possibilidade que, só por si, era penalizante e geradora de sofrimento para a mesma.

Não se tratou de qualquer concessão à caraterização das condutas do arguido como crime habitual ou crime de trato sucessivo, ou de continuação criminosa – aliás, o arguido foi condenado por dois crimes e não por um -, mas antes de uma questão de prova que não terá permitido que se desse como assente que os atos ocorreram em mais do que duas ocasiões, em fins-de-semana que a jovem BB passou com o pai (ainda que possamos questionar: foram apenas dois os fins de semana que a jovem passou com o pai, nesse lapso temporal?).

3.3. A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas se reconduzem à proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).

Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cf., com interesse, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).

Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exato de pena.

Havendo que determinar, em primeiro lugar, a moldura legal ou moldura penal abstrata, no âmbito da qual proceder-se-á à determinação de cada pena concreta, já se disse que tal moldura, para cada crime por que o arguido foi condenado, é de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão.

Estabelece o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, relevantes para a medida concreta da pena, pela via da culpa e/ou pela da prevenção, dispondo o n.º3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjetiva no artigo 375.º, n.º1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.

Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma submoldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção atuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 227 e ss.).

Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º2, Abril-Junho de 2002, pp. 181 e 182), apresenta três proposições, em jeito de conclusões, da seguinte forma sintética:

«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»

De acordo com o referido artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, há que considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) –, e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes por via da prevenção geral, traduzida na necessidade de proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança da comunidade na norma violada, e bem assim as relevantes no plano da prevenção especial, que permitam fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro e assim avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se aqui o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e)] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente, a que se referem as circunstâncias das alíneas e) e f), adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista das exigências de prevenção especial.

Diz-se no acórdão recorrido:

«É, pois, ilícita a ação do arguido, certo que violou disposições legais e ofendeu os interesses penalmente protegidos da autodeterminação e liberdade sexual e ainda da proteção de menores e do desenvolvimento harmonioso da personalidade.

E, uma vez que conhecia a ilicitude dos atos que praticou e a legal proibição da sua conduta e, não obstante, quis empreendê-la, agiu com dolo direto (artigo 14, nº1 do Código Penal).

A intensidade do ilícito é elevada, atendendo ao modo de execução, à reiteração no tempo, à natureza dos atos praticados e a repercussão dos mesmos na ofendida.

O dolo, atenta a reflexão necessária ao empreendimento da ação, assume intensidade muito significativa.

Não resulta da factualidade assente qualquer fundamento atendível da atenuação da culpa, pelo contrário, o arguido, por ser o pai da ofendida, violou de forma grave os deveres de proteção e respeito inerentes a esse papel, revelando uma indiferença total pelos laços de parentesco que o uniam à ofendida e um total alheamento das consequências que da sua atuação poderiam advir para a sua filha, nem se preocupando com a possibilidade de engravidar a própria filha, uma vez que sempre fazia ejaculação intracavitária, sem utilização de preservativo, pelo que se mostra acentuada significativamente a reprovação ético-jurídica da conduta.

Nas situações de violência sexual infantil intrafamiliar, o desvalor da ação é particularmente acentuado porque a criança confia e sente-se segura nesse ambiente familiar e espera receber proteção e afeto e essa confiança é traída, o que prejudica inevitavelmente o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade,

Beneficia o arguido de bom comportamento anterior, consubstanciado na inexistência de condenações, tendo já completado 39 anos de idade.

Porém, são ainda de acautelar exigências de prevenção especial de intensidade média/ elevada por não estar afastado o risco de repetição das condutas.

São particularmente elevadas as exigências de prevenção geral.

Não manifestou o arguido autocensura ou arrependimento.

Não beneficia de boa inserção familiar e a mesma, a nível laboral é instável.

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De harmonia com o plasmado no artigo 40º do Código Penal, a aplicação de uma pena visa a proteção de bens jurídicos, entendida como tutela da crença e confiança da comunidade na sua ordem jurídico-penal e a reintegração social do agente, não podendo a pena ultrapassar a medida da culpa, sendo certo que não se trata de medida exata, situando-se a pena concreta entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa), intervindo os outros fins das penas - prevenção geral e especial - dentro daqueles limites (cf. Claus Roxin, in Culpabilidad Y Prevencion en Derecho Penal, págs. 4 a 113).

A determinação da medida concreta da pena será, pois, efetuada segundo os critérios estatuídos no artigo 71º do Código Penal, onde se explicita que a medida da pena se determina em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, no caso concreto, a todas as circunstâncias, que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente e contra ele.

Considerando os elementos de ilicitude e culpabilidade, o restante circunstancialismo apurado e o disposto nos citados artigos 40º, 41º, nº1 e 71º do Código Penal, julga-se adequado cominar ao arguido, por cada um dos ilícitos imputados, a pena de 7 anos e 6 meses de prisão.»

O STJ tem entendido que, em matéria de revista sobre a medida concreta da pena, a sindicabilidade abrange a correção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de fatores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, mas não abrangerá “a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado” (Figueiredo Dias, ob cit., §254, p. 197; acórdãos do STJ, de 29.3.2007, no processo n.º 07P9025; de 8.11.2023, no processo n.º 808/21.3PCOER.L1.S1; de 02.05.2024, processo n.º 6409/22.1JAPRT.S1, in www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação).

O arguido agiu com dolo direto e intenso. A ilicitude é muito elevada, tendo o arguido atuado com gravíssima violação dos seus deveres parentais e das suas obrigações de segurança, de assistência e de educação e conforto. As duas condutas ocorreram tinha a ofendida entre 9 e 13 anos de idade, traduzindo-se em retirar à criança, sua filha, as calças de pijama e as cuecas, introduzir-lhe repetidamente o pénis ereto, umas vezes na vagina da menor e também, o que ocorreu cerca de duas vezes, no seu ânus, sem utilização de preservativo e com ejaculação no interior do corpo da ofendida, com introdução, nessas ocasiões, dos dedos na vagina da mesma, com carícias nos seios, vagina e nádegas, além de beijos na boca.

Em consequência da ação do arguido, a ofendida BB sentiu-se envergonhada e infeliz e receou que aquele repetisse o descrito comportamento.

Os autos dão conta de que a jovem BB apresenta critérios de diagnóstico clínico para a perturbação pós-stress traumático associado às experiências de natureza sexual de que foi vítima, observando-se indicadores de depressão e ansiedade.

Marcas e sequelas a nível emocional e psicológico que perdurarão no tempo e que a afetaram gravemente na sua infância, com repercussões na sua adolescência e na fase adulta.

Tudo isto aconteceu porque o arguido, egoisticamente, visou a satisfação da sua lascívia, com descaso da proteção da infância da sua filha, impedindo-a de viver, saudavelmente e no tempo adequado e próprio, em autodeterminação, a sua sexualidade, em prejuízo do são desenvolvimento afetivo e emocional da mesma.

Trata-se de ações que a comunidade considera inaceitáveis e geradoras de grande repulsa, sendo muito significativas as necessidades de prevenção geral, traduzidas na necessidade de manter a confiança da sociedade nos bens jurídico-penais violados, o que justifica uma resposta punitiva firme.

Como se disse no acórdão deste STJ, de 10.10.2012, proc. n.º 617/08.5PALGD.E2.S1:

“O abuso sexual de crianças repugna à consciência coletiva, tanto no plano ético como moral, por um lado por ser um grave atentado a seres indefesos, salutar e desejável, em termos de interesse comunitário, que as crianças cresçam e se desenvolvam harmonicamente, por outro por ser frequente a prática de crimes desta natureza, gerando graves consequências à pessoa das vítimas, e também alarme e intolerância social, ataque à paz social, não se dispensando uma intervenção firme dos tribunais, como forma de apaziguar o tecido social afectado e demover potenciais delinquentes”.

No mesmo sentido, o acórdão de 19.01.2022, proferido no processo 327/17.2T9OBR.S1:

“O abuso sexual de crianças e de menores dependentes, violando a autodeterminação sexual e o harmonioso desenvolvimento da personalidade global das crianças na esfera sexual, demandam assertiva reafirmação da validade do bem jurídico e da vigência da proteção penal.”

Também elevadíssimas se revelam as necessidades de prevenção especial, pois o arguido revelou pela sua atuação uma personalidade altamente desvaliosa e mal formada, dissociada do direito, tendo evidenciado “uma séria dificuldade na reflexão sobre os potenciais danos provocados nas vítimas, em situações abstratas de crimes contra a autodeterminação sexual, praticados contra crianças e menores de idade” e, se “manifestou sentimentos de repulsa perante a prática de atos sexuais instrumentalizados (prostituição) e entre indivíduos do mesmo género”, porém “a mesma reação não se verificou perante eventuais práticas de atos sexuais entre adultos e crianças”.

Quer isto dizer que o arguido demanda elevadas necessidades de prevenção especial de socialização.

Não vem assinalado arrependimento – aliás, o arguido negou a prática dos factos - e também não se regista ter havido qualquer reparação.

A seu favor milita tão só a ausência de antecedentes criminais, sendo certo que o não cometimento de crimes é obrigação da generalidade dos cidadãos. Além disso, como foi sublinhado na resposta ao recurso, a ausência de antecedentes é um fator que, na criminalidade de abusos sexuais de crianças, não permite justificar uma redução das exigências de prevenção nos mesmos termos em que permitiria noutros tipos de criminalidade, porquanto se trata de um crime de oportunidade.

Neste contexto, entendemos que, no quadro do binómio formado pela culpa e pela prevenção, tendo em vista a moldura de prisão de 4 a 13 anos e 4 meses de prisão, a fixação de cada pena concreta em 7 anos e 6 meses (pouco acima do primeiro 1/3 da moldura legal aplicável) mostra-se ajustada, não reclamando a intervenção corretiva deste STJ.

3.4. No que toca à determinação da medida concreta da pena conjunta do concurso, aos critérios gerais contidos no artigo 71.º, n.º1, acresce um critério especial fixado no artigo 77.º, n.º1, 2.ª parte, do Código Penal: “serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso.

Refere Cristina Líbano Monteiro (A Pena «Unitária» do Concurso de Crimes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, págs. 151 a 166) que o Código rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente.

Como se diz no acórdão do STJ, de 31.03.2011, proferido no processo 169/09.9SYLSB.S1, a pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção - dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes.

Em suma, para a determinação da medida concreta da pena conjunta é decisivo que se obtenha uma visão de conjunto dos factos que tenha em vista a eventual conexão dos mesmos entre si e a relação com a personalidade de quem os cometeu.

As conexões ou ligações fundamentais, na avaliação da gravidade do ilícito global, são as que emergem do tipo e número de crimes; da maior ou menor autonomia e frequência da comissão dos delitos; da igualdade ou diversidade de bens jurídicos protegidos violados; da motivação subjacente; do modo de execução, homogéneo ou diferenciado; das suas consequências e da distância temporal entre os factos – tudo analisado na perspetiva da interconexão entre todos os factos praticados e a personalidade global de quem os cometeu, de modo a destrinçar se o mesmo tem propensão para o crime, ou se, na realidade, estamos perante um conjunto de eventos criminosos episódicos, devendo a pena conjunta refletir essas singularidades da personalidade do agente.

A revelação da personalidade global emerge essencialmente dos factos praticados, mas também importa ponderar as condições pessoais e económicas do agente e a sua recetividade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado, elementos particularmente relevantes no apuramento das exigências de prevenção.

No caso em apreço, temos de reconhecer que a fundamentação da determinação da pena única, constante do acórdão recorrido, não se mostra particularmente desenvolvida, como seria desejável, mas ainda assim é minimamente suficiente, desde que integrada pelo que se ponderou, de forma globalizada e algo indistinta, relativamente à punição dos crimes em causa (de algum modo combinando critérios de ponderação da determinação das penas parcelares e única).

Existindo alguma homogeneidade nas condutas praticadas, certo é não estarmos perante um conjunto de eventos criminosos que se possam considerar meramente episódicos ou ocasionais, mas antes face a condutas que documentam uma personalidade desviante, deficientemente formada, pouco sensível aos valores tutelados pelas normas violadas e orientada para a satisfação dos interesses imediatos do próprio.

A culpa do arguido é muito elevada e são manifestas e acentuadas as necessidades de prevenção geral, dada a frequência com que continuam a ser praticados crimes sexuais contra menores, incluindo os cometidos num contexto de vida familiar.

Também não são de descurar, não obstante a inexistência de antecedentes criminais, as exigências de prevenção especial, dada a natureza dos crimes praticados, o circunstancialismo da sua prática e a não assunção pelo arguido do desvalor das suas condutas, com o inerente risco da sua repetição – não se sinaliza no acórdão recorrido qualquer manifestação de arrependimento.

Para a determinação da pena única a lei não estabelece quaisquer critérios aritméticos.

Não se ignora, porém, a existência de jurisprudência do STJ que, perante a amplitude da moldura penal do concurso, advoga que se adicione à parcelar mais elevada uma fração variável das restantes penas parcelares (sendo frequente ver somada, à pena mais grave, frações das demais penas que variam desde ½ até 1/5), tendo como referência diversos critérios jurisprudenciais e convocando um denominado «fator de compressão» que deve atuar entre o mínimo e o máximo da moldura penal prevista no artigo 77.º, n.º2, do Código Penal. Fala-se, a este propósito, da existência, por um lado, de um efeito “expansivo” das outras penas sobre a parcelar mais grave, e, por outro, de um efeito “repulsivo” a partir do limite da soma aritmética de todas as penas, que resulta de uma preocupação de proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar, em relação ao conjunto de todas elas.

A determinação da pena única, a nosso ver, quer pela sua sujeição aos critérios gerais da prevenção e da culpa, quer pela necessidade de proceder à avaliação global dos factos na sua ligação com a personalidade, não é compatível com a utilização de critérios matemáticos de fixação da sua medida. A convocação desses critérios apenas poderá ser entendida, porventura, como coadjuvante, e não mais do que isso, quando existe uma grande margem de amplitude na pena a aplicar, tendo em vista as exigências dos princípios da proporcionalidade e proibição do excesso, mas sempre procurando a solução justa de cada caso concreto, apreciado na sua particular singularidade.

Neste quadro, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto todos os factos em presença, a sua relacionação com a personalidade do recorrente neles documentada e os fins das penas, não deixando de ter presente o referente jurisprudencial deste STJ para casos com alguma similitude, dentro da moldura abstrata aplicável à pena do cúmulo – prisão de 7 anos a 6 meses a 15 anos -, não se surpreendem elementos que permitam justificar um juízo de discordância relativamente à pena única de 10 anos de prisão aplicada (que fez acrescer ao mínimo da moldura 1/3 da pena sobrante), razão por que se entende não ser de efetuar qualquer intervenção corretiva na sua medida, que não peca por excessiva nem por desproporcionada.

Conclui-se que o recurso não merece provimento.

*

III - DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto por AA e, em consequência, manter o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (cf. artigos 513.º do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26.02 e Tabela III anexa).

Supremo Tribunal de Justiça, 31 de outubro de 2024

(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Jorge Gonçalves (Relator)

Agostinho Torres (1.º Adjunto)

João Rato (2.º adjunto)