Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
164/21.0T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OFENSA DO CASO JULGADO
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
CASO JULGADO FORMAL
OBJETO DO RECURSO
VALOR DA AÇÃO
DESPACHO SANEADOR
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
AUTOR
Data do Acordão: 06/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :
I – Sendo o valor da presente acção inferior ao da alçada da Relação, o recurso de revista não seria, em regra, admissível, sendo-o por ter sido alegada a ofensa de caso julgado; assim, o objecto do recurso de revista interposto e admitido com fundamento no disposto no art. 629, n.º 2, al. a), do CPC, cinge-se à questão da violação do caso julgado e não abarca outras questões.
II – Quando, no acórdão da Relação que recaiu sobre as decisões proferidas no saneador, se diz expressamente que devem considerar-se que os AA.  são  S, M e J, são eles os AA. não só para o efeito de aferir do pressuposto da personalidade judiciária, mas para os restantes efeitos no processo, entendendo-se o pedido formulado na acção e as menções constantes do articulado inicial se reportam aos ditos autores.
III - O caso julgado apenas se forma relativamente a questões ou excepções dilatórias que tenham sido concretamente apreciadas e nos limites dessa apreciação, não valendo como tal a mera declaração genérica sobre a ausência de excepções ou questões prévias – pelo que não há qualquer caso julgado formal a observar face à genérica declaração de que não existiam «outras exceções, questões prévias ou incidentais» de que cumprisse conhecer e que obstassem à apreciação do mérito da causa.
IV – Deste modo, não ocorreu a violação do «caso julgado implícito formado sobre a omissão de decisão de questões relativas aos factos integradores da causa de pedir e do pedido», nem foi violado «o caso julgado explícito formado pelo despacho saneador, na parte em que este decidiu expressamente não existirem outras exceções ou questões prévias».
Decisão Texto Integral:


Proc. nº 164-21.0T8GMR.G1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

                                                        *

I - AA, BB e CC, na qualidade de herdeiros da herança que disseram ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD e que disseram representar, apresentando na p.i. aquela “Herança Ilíquida e Indivisa” como A., intentaram acção, sob a forma de processo comum, contra EE, FF, GG e HH.
O pedido formulado foi o seguinte:
«a) Serem condenados os RR. a reconhecer o direito de propriedade da Autora sobre o prédio rústico descrito nos artigos 5.º, 8º e 9º desta Petição Inicial;
b) Ser reconhecido à herança Autora o direito de preferência na compra do prédio identificado na mesma Petição Inicial, em especial, no seu artigo 2.º;
c) Serem condenados os 1.ºs Réus a abrir mão do referido prédio a favor da Autora, entregando-o no estado em que se encontrava à data da Escritura já referida, atribuindo-se à mesma herança Autora o correspondente direito de propriedade e aos Réus o direito ao levantamento do preço depositado, ordenando-se o cancelamento de quaisquer eventuais registos conservatoriais feitos com base na predita escritura, ou quaisquer outros que, entretanto, tenham sido efetuados».
Na contestação apresentada os RR. defenderam-se por excepção e por impugnação. Invocaram a caducidade por falta de depósito do preço e a falta de personalidade judiciária da herança A., referindo que somente tem personalidade judiciária a herança jacente e, no caso, a herança permanece indivisa mas foi aceite pelos herdeiros AA, BB e CC. Acrescentaram que não cabendo à herança nenhum dos direitos que reclama, direitos esses que, abstractamente, quando muito poderiam caber aos herdeiros, a acção será improcedente.
Após resposta, pugnando pela improcedência das excepções invocadas, foi proferido despacho saneador.
Neste, o Tribunal, decidindo sobre a excepção de falta de personalidade judiciária, concluiu pela improcedência da excepção dilatória, declarando que as «partes têm personalidade e capacidade judiciária e estão nos autos devidamente patrocinadas».
Baseando-se, no que à decisão sobre aquela excepção de falta de personalidade judiciária concerne, em duas linhas de argumentação:
-   Dada a desconformidade existente entre o conteúdo do formulário (onde constam como AA., em litisconsórcio, AA, BB e CC) e o conteúdo da petição inicial (onde é mencionada como A. a Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD, representada por aqueles), «no que à identificação dos autores respeita, deverá prevalecer a informação constante de tal formulário, considerando-se que os autores desta ação são os ditos AA, BB e CC, herdeiros da referida herança, e não a própria herança».
- Mesmo que assim se não entendesse, deverá «considerar-se excessivamente formalista o entendimento de que, num caso em que se refere na petição inicial que a ação é intentada por determinada herança, representada por todos os seus herdeiros, tal circunstância impeça o normal prosseguimento dos autos, sendo que, no fundo, o que ocorre é apenas uma incorreção na expressão utilizada para identificar a parte e a qualidade em que interpõe a ação, devendo entender-se que os autores são os próprios herdeiros e não a herança que dizem representar».
O Tribunal de 1ª instância igualmente julgou improcedente a excepção da caducidade do direito de acção, declarando, ainda:
«Não existem outras exceções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer nesta fase processual e que obstem à apreciação do mérito da causa.
*
Nos termos do disposto no artigo 315º, n.ºs 1 e 2, do CPC, fixo à presente causa o valor de € 9.500,00».
Interposto pelos RR. recurso de apelação, pugnando pela revogação do «despacho saneador recorrido para, em sua substituição ser decidido que a ação é desde já julgada improcedente e não provada, mas, ainda que assim se não entenda, corrigir-se o valor da ação nos termos propugnados e declarado não cumprido o ónus imposto pelo artigo 1410º nº 1 do Código Civil», em 13-1-2022, pelo Tribunal da Relação de Guimarães foi proferido acórdão que decidiu julgar improcedente a apelação, confirmando as decisões recorridas.
Neste acórdão, indicadas como questões a resolver a da personalidade judiciária do lado activo, a do valor da acção e a do depósito do preço, foi considerado quanto à primeira que num caso como o dos autos, a «falta de personalidade judiciária é apenas aparente, uma vez que todos os herdeiros estão presentes, identificados e outorgaram procuração ao mandatário subscrito da petição, devendo considerar-se que são eles os autores (e não a herança) que em conjunto exercem os direitos relativos à herança, conforme decorre do disposto no artigo 2091º, nº 1 do Código Civil»; quanto à segunda que o valor da acção é, no caso, de 9.500,00 €; quanto à terceira, que o depósito do preço foi regularmente realizado.
O processo seguiu os seus termos, vindo a ser proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
«Pelo exposto, julgo a presente ação intentada por AA, BB e CC, na qualidade de herdeiros da herança aberta por óbito de DD, contra EE, FF, GG e HH, parcialmente procedente, por provada, e consequentemente:
- reconhecendo-se o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio rústico aludido em 7. dos factos provados, declaro que assiste aos mesmos o direito de preferência na compra do prédio rústico denominado “Campo ..., Campo ... e ... com ...”, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...18 e inscrito na matriz sob o artigo ...86º, atribuindo-se aos AA. o correspondente direito de propriedade e aos réus EE e FF o direito ao levantamento do preço depositado, no montante de € 9.500,00 (nove mil e quinhentos euros);
- ordeno o cancelamento da inscrição da aquisição, na competente Conservatória do Registo Predial, ... objeto da preferência em nome dos réus EE e FF;
- julgo improcedentes os demais pedidos formulados pelos AA. contra os RR., absolvendo estes dos mesmos;
- julgo improcedente o pedido formulado pelos RR. relativo à condenação dos AA. como litigantes de má-fé».
Quer os RR. quer os AA. interpuseram recurso de apelação, vindo a Relação de Guimarães, por acórdão proferido em 16-2-2023, a julgar improcedentes as apelações de AA. e RR..
Interpuseram os RR. recurso de revista, mencionando no requerimento de interposição que o recurso tinha como fundamento a violação do caso julgado formado pelo decidido no despacho saneador, formulando as seguintes conclusões:
1.ª A (cita-se da petição inicial) “Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de DD, (…) representada pelos seus herdeiros AA e marido II, BB e CC”, litigando como autora, propôs a presente ação de preferência, nos termos do art. 1380.º, n.º 1 do CC, contra os réus EE e mulher FF e GG e mulher HH, invocando como causa de pedir o facto de ser proprietária de um prédio rústico confinante com um outro prédio rústico, ambos de área inferior à unidade de cultura, cabendo-lhe direito de preferência na venda deste último porque ele foi vendido, sem que “embora a herança autora gozasse do direito de preferência” lhe fosse concedida “a possibilidade de exercer tal direito” (artigo 4.º da petição), daí tendo formulado o pedido de, na procedência da ação, entre o mais, “ser reconhecido à herança autora o direito de preferência na compra do prédio identificado na mesma petição inicial” e “serem condenados os primeiros réus a abrir mão do referido prédio a favor da autora, entregando-o (…) e atribuindo-se à mesma herança autora o correspondente direito de propriedade”.
2.ª Suscitada a inevitável improcedência da ação, na contestação dos réus, ora recorrentes, por a herança autora não poder exercer qualquer direito de preferência por falta de personalidade jurídica e judiciária (artigo 12.º, alínea a) do CPC), no entanto, essa exceção foi julgada improcedente no despacho saneador, através de decisão que foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13/01/2022, decidindo-se, mesmo, nesse despacho saneador que (o que, evidentemente, não corresponde à verdade) “ao contrário do que alegam os RR., os AA. desta ação são os referidos AA, BB e CC, e não a mencionada herança”.
3.ª Em consequência dessas decisões, ficaram os referidos herdeiros, individualmente considerados, e por decisão transitada em julgado, a ser autores da ação  (em vez da herança) mas, apesar dessa substituição de sujeitos, não foi sequer suscitada a necessidade de alteração da causa de pedir (alegava-se que, embora a herança autora gozasse do direito de preferência não lhe fora conferida a possibilidade de o exercer), nem foi suscitada a necessidade de ser alterado ou corrigido o pedido de reconhecimento à herança do direito de preferência e de à herança ser atribuído o direito de propriedade do imóvel transacionado.
4.ª     Para além disso, o despacho saneador , que conhecera apenas da exceção relativa à autoria da ação e de uma outra exceção relativa à sua caducidade, decidiu também, com trânsito em julgado, que “não existem outras exceções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer nesta fase processual que obstem à apreciação do mérito da causa”, e escusou-se de indicar, eventualmente por lapso, quaisquer temas de prova .
5.ª Ficou assim definitivamente decidido quem eram os autores (os herdeiros que integravam a herança requerente), qual era a causa de pedir (“embora a herança autora gozasse do direito de preferência” os réus não lhe concederam “a possibilidade de exercer tal direito”) e qual era o pedido (“ser reconhecido à herança autora o direito de preferência na compra do prédio” e “serem condenados os primeiros réus a abrirem mão do referido prédio a favor da autora, entregando-o (…) e atribuindo à mesma herança autora o correspondente direito de propriedade”, pelo que, alterados os sujeitos ativos da ação, esta ficou desprovida de causa de pedir e de pedido que correspondessem a direitos relativos a esses sujeitos processuais, uma vez que, todo o processamento posterior dos autos se fez como se a herança fosse sujeita dos direitos impetrados.
6.ª Não obstante, na sentença, sem que se considerasse ter-se provado, para além da venda, quaisquer factos (a falta de informação aos autores e pelos réus sobre o projeto de venda) integradores da causa de pedir, quer em relação à herança, quer em relação aos herdeiros, a ação foi julgada parcialmente procedente, condenando-se os réus num pedido que não fora formulado (que assiste aos autores “o direito de preferência na compra do prédio rústico (…) atribuindo-se aos AA. o correspondente direito de propriedade” com a consequência de ser ordenado o cancelamento do registo).
7.ª Em recurso de apelação dessa sentença, os réus sustentaram a sua dupla nulidade, nos termos do art. 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) do CPC, quer por ocorrer contradição insanável entre os factos que corresponderiam a causa de pedir, mesmo que se tivessem provado, e não provaram (omissão de informação aos preferentes pelos obrigados à preferência dos elementos essenciais do negócio, que, embora alegada em relação à herança não se provou nem em relação a ela nem em relação aos herdeiros) quer por ter ocorrido a condenação em pedido inexistente (uma vez que o pedido que subsistiu referia-se ainda a direitos da herança, e a condenação referia-se a direitos dos herdeiros).
8.ª Sustentaram os apelantes que essas nulidades apontadas são processualmente insupríveis, e o seu conhecimento, desde logo nos termos do n.º 1 do art. 617.º do CPC, levaria necessariamente à improcedência da ação, resultado a que de qualquer maneira se teria de chegar se viesse a entender-se que esses vícios não constituem nulidades, mas constituem antes erros de julgamento.
9.ª Por outro lado, tendo a sentença considerado como objeto de controvérsia, entre outras, as questões de saber “se a autora CC desempenhava o cargo de cabeça de casal da dita herança”, se “o réu GG juntamente com o seu amigo ofereceu àquela autora a compra do prédio em causa, tendo esta respondido que nem ela nem os filhos estavam interessados naquele negócio”, e tendo decidido que esses factos não se haviam provado, também nessa parte os apelantes contestaram a decisão, por mal fundada.
10.ª De facto, para excluir a prova desses factos, a sentença - considerando também que não se provaram factos relativos à prévia transmissão aos autores ou à herança dos elementos fundamentais do negócio, para que uns ou outra pudessem decidir se queriam ou não preferir na venda -conforme transcrição que dela mesmo consta considerou que as testemunhas indicadas comprovariam esse facto (como resulta do texto expresso da sentença que foi atrás transcrito) e os referidos na conclusão precedente, mas, os respetivos depoimentos não eram credíveis uns, e até eram inverosímeis outros, por provindos de pessoas que mantêm com os réus “relações de parentesco e/ou de amizade, tendo os seus depoimentos sido pautados pela evidente preocupação em que a ação seja decidida de acordo com os interesses dos RR.”, o que fez com que o tribunal ficasse “com sérias dúvidas quanto à sua isenção e objetividade”.
11.ª Na apelação, os réus impugnaram a decisão sobre a matéria de facto dita não provada, cumprindo os ónus estabelecidos pelo art. 640.º do CPC, pois especificaram os concretos pontos de facto que consideraram incorretamente julgados, os concretos meios probatórios constantes do processo e do registo de gravação da prova nele realizada que impunham decisão diversa, e indicaram, concretamente os factos que entendem dever ser considerados provados.
12.ª E fizeram-no, por um lado, por considerarem de todo infundadas as reservas quanto à seriedade dos depoimentos, que não têm justificação racional nem legal alguma, uma vez que o parentesco ou a amizade não são causas de inabilidade para depor (arts. 495.º n.º 1, 496.º e 497.º do CPC), nem a sentença se justificou por outro modo e, por outro lado, porque esses depoimentos foram produzidos por pessoas que igualmente têm um bom relacionamento com os autores e que são deles parentes (os autores AA e BB são sobrinhos dos réus GG e HH; a autora CC é irmã do réu GG, cunhada da ré HH e prima dos réus EE e FF, e os autores AA e BB são primos dos réus EE e mulher FF), o que significa que a pretensa causa de inabilidade pura e simplesmente não pode ocorrer.
13.ª Concretamente, os apelantes, referiram o exarado nas atas de audiência de discussão e julgamento de 4 de maio de 2022 e de 25 de maio de 2022, transcrevendo os depoimentos de parte, gravados no sistema digital Habilus Media Studio e armazenados em CD das autoras AA (de 00:04:32 a 00:05:56) e CC (de 00:10:49 a 00:11:34) e das testemunhas JJ (de 00:02:02 a 00:05:41 de 00:07:01 e de 00:07:55), GG (de 00:03:53 a 00:06:29), KK (de 00:02:29 a 00:05:18) e LL (de 00:02:58 a 00:04:58), reproduzidos de novo nas presentes alegações, com o objetivo de, embora conhecendo-se a limitação dos poderes do STJ, permitir, ainda assim, uma avaliação perfunctória sobre se são cogitáveis outras razões, para além das invocadas pelas instâncias, para descredibilizar qualquer deles.
14ª. Os apelantes cumpriram o ónus imposto pela al. c) do n.º1 do art. 640.º do CPC, indicando a matéria de facto que deve ser julgada provada e que corresponde, na sua formulação verbal, àquela que a sentença considerou não se ter provado, por ser manifesto que, a seu ver, esses factos deviam, sem prejuízo dos demais provados, que não contrariam, ter-se por assentes (a redação é copiada da própria sentença):
“36. No dia 17 de junho de 2020, o Sr. JJ, conjuntamente com o réu GG, ofereceram à autora CC a compra do prédio aludido em 1., dizendo-lhe que, sendo esse prédio contíguo ao prédio aludido em 7., poderia estar interessada na sua compra, 37. mais lhe tendo dito que tal negócio já estava apalavrado com o réu EE,
38. tendo a autora CC respondido àquele seu irmão que nem ela nem os seus filhos estavam interessados na compra de tal prédio, até porque tinham o deles a monte,
39. e que o réu GG podia, querendo, concretizar o negócio já anunciado com o réu EE.
40. A pormenorização do negócio teve lugar em 17 de junho de 2020 e na presença da autora CC, fixando, então, o promitente vendedor, o aqui réu GG, o preço de € 25.000,00 para o conjunto dos três campos, preço esse que foi aceite pelo promitente comprador, o aqui réu EE,
41. mais tendo os réus GG e EE, nessa ocasião, combinado que a escritura seria realizada no prazo de um ou dois meses.
42. A autora CC, em 17 de junho de 2020 desempenhava o cargo de cabeça de casal da herança aberta por óbito de DD,
43. tendo aquela autora invocado representar também os seus filhos.
44. Nos primeiros dias do mês de julho de 2020, o réu GG informou o réu EE que iria contactar um outro vizinho, MM, uma vez que este tinha ocupado uma parte do prédio vendido, aquela que era conhecida como T... com ..., e antes de ser outorgada a escritura queria poder assegurar ao comprador que esse bocado de terreno lhe seria entregue num prazo razoável.
45. Estando já marcado dia para a escritura de venda, acabaram  promitente comprador            e promitente    vendedor,        ante aquela dificuldade, por combinar que o promitente vendedor pagaria apenas o preço de € 9.500,00, ficando o resto em dívida, no montante de € 15.500,00, para ser pago na data em que ao réu EE fosse entregue a parte do terreno de que não dispunha”.
15.ª O acórdão recorrido julgou, porém, a apelação improcedente, decisão da qual os recorrentes interpõem o presente recurso de revista, decidindo as questões sobre que devia pronunciar-se, e que constituem objeto deste recurso, do modo que sucintamente se refere:
a) Não ocorre qualquer nulidade, quando muito poderia ocorrer erro de julgamento, mas nem esse, porque a contradição apontada entre os factos que integrariam a causa de pedir e a decisão sobre pedido inexistente não admite “sequer princípio de discussão possível”, porque “os arguentes colocam os seus termos em função daquilo que, na sua opinião, seria a causa de pedir original” e quanto ao excesso de pronúncia, também não se verifica porque “a posição dos apelantes advém da leitura formal que fazem do articulado inicial” quando a sentença “não fez mais do que concretizar o princípio da prevalência do fundo sobre a forma” de onde “o que foi feito resume-se à retificação dessa irregularidade que se estendeu à factualidade alegada e aos pedidos (…) e mais não é do que uma interpretação corretiva do articulado que fixou o objeto da lide e deve ser lido nos termos expostos na sentença”;
b) No que respeita à matéria de facto, a posição dos apelantes não pode ser atendida porque eles insurgem-se genericamente quanto à “convicção formada pelo tribunal”, limitando-se a “sinalizar que existe um meio de prova de v.g. testemunha que diverge dos factos tidos como provados (…) pretendendo arrimar – sem mais – nesse meio de prova uma decisão de facto diversa” sem atender a que “a existência de sentidos díspares dos meios de prova é conatural a qualquer processo judicial pelo que o cumprimentos do ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto não pode ter-se por observado com tal enunciação singela”, tendo os apelantes suportado a modificação pretendida de “múltiplos factos em dados probatórios que não individualizaram”, violando o artigo 640.º n.º1 b) do CPC, para além de não se verem “razões para divergir da convicção expressa pela primeira instância” atendendo ao “tom dos depoimentos”,” à forma”, tudo aliado aos “laços familiares ou interesses mais próximos da causa dos réus” e de a pretensão de “transformar esses depoimentos na comprovação da esperada comunicação assertiva (…) é fortemente prejudicada pela informalidade festiva do ato”.
c) No que respeita à questão de saber quem é cabeça de casal da herança, foi eliminada a alínea h) dos factos assentes, mantendo-se que nada mais há a alterar até porque da “prova indicada (…) não resulta sequer que a autora tenha invocado formalmente essa qualidade” determinando-se ainda a manutenção da recusa de atendibilidade dos factos das alíneas j) e m) (encontro do réu GG com o vizinho MM e redução do preço), sem se explicar porquê…
d) No que respeita ao “ónus de demonstrar que ocorreu informação sobre os elementos essenciais do negócio”, embora aceitando-se que essa matéria não foi provada, sustenta-se que “uma leitura atenta da sentença permitiria concluir que a mesma não considerou que esse fosse um pressuposto do direito reclamado pelos autores” e corretamente porque a matéria respetiva é ónus de prova dos réus, sempre, é claro, explicar porquê.
e) Quanto a quem compete o cabecelato, de modo dificilmente compreensível, o acórdão sustenta que “para que fique claro, nunca iriamos          conhecer desta questão porque a mesma está prejudicada pela apontada falta de demonstração da comunicação do concreto negócio preferido”, sucedendo que, por outro lado, “os réus nunca poderiam, com base em prova testemunhal contrariar a prova desse negócio” (sic.).
16.ª Os recorrentes interpuseram o presente recurso de revista, sustentando a necessidade de ser revogado o acórdão recorrido, que entendem ter julgado erradamente as seguintes questões:
1) a matéria de facto, por não ter sido julgada mercê da utilização de argumentos deslocados de todo das circunstâncias concretas do caso, e em violação da lei, pretendendo que o STJ reanalise a matéria à luz dos poderes que a lei lhe dá;
2) O direito aplicado, por entenderem que:
a) ocorre caso julgado impeditivo da procedência da ação;
b) que devia ter sido, de qualquer modo, decidido que os réus cumpriram os ónus que a lei lhes impõe de transmitirem à herança previamente à venda os elementos essenciais do negócio;
c) que devia ter sido julgado que a herança era representada pela viúva do decesso, e que esta renunciou, por si, pela herança e pelos demais herdeiros ao direito de preferir, bem como;
d) que nem a herança nem os herdeiros, de qualquer modo, estavam em condições de preferir por não terem cumprido as regras processuais que a lei imperativamente lhes impõe.
17.ª Demonstrado está nos autos que, na sequência de alegação dos réus, o tribunal decidiu no despacho saneador, e a decisão transitou em julgado, que em vez da Herança Ilíquida e Indivisa que se apresentava a litigar, não era essa a autora, mas sim os herdeiros que a integravam, individualmente considerados, tendo esse mesmo despacho decidido essa e outra exceção (a caducidade da ação) e, sem formular quaisquer temas de prova, em violação da lei (artigos 577.º, alínea c), 590.º, 591.º, 595.º n.º1 alínea a) e n.º 2 e 596.º, todos do CPC) o que limita de todo a matéria de prova ao alegado nos articulados, concluindo que “não existem outras exceções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer”.
18.ª Em consequência dessa decisão, a ação ficou a contar como autores os herdeiros individualmente considerados, mantendo, porém, a causa de pedir constante da petição inicial (incumprimento pelo dever prévio de dar conhecimento da transmissão à herança, para que esta, querendo, exercesse esse direito) e o pedido (reconhecimento do direito de preferência e do consequente direito de propriedade à herança), pelo que a sentença que veio a ser produzida, nunca podia, subvertendo a realidade processual, ficcionar uma ou outra causa de pedir e um outro pedido, declarando que o direito de preferência e o consequente direito de propriedade, são dos autores, que o não haviam pedido, nem sequer podia pretender que ainda podia agora corrigir lapsos dos articulados dos autores, ou retificar irregularidades dos mesmos articulados, ou, e muito menos, considerar que o acórdão da Relação que atribuiu legitimidade aos autores permite considerar que “a retificação dessa irregularidade se estende à factualidade alegada e aos pedidos”, o que é de todo inadmissível e ilegal (artigo 265.º do CPC).
19.ª De resto, o assento do STJ de 1/02/1963 (D.G. 1ª Série de 21/03/1963, in BMJ 124, 414) tirado por unanimidade, decidiu que “é definitiva a declaração em termos genéricos no despacho saneador transitado em julgado, relativamente à legitimidade, salvo a superveniência de factos que nesta se repercutam”, decisão que sempre foi entendida quer pela jurisprudência que se lhe seguiu, quer pela doutrina no sentido de que a doutrina desse assento “é aplicável extensivamente a quaisquer exceções dilatórias” (cfr. acórdão do STJ de 1/06/1983, in BMJ 328 pag. 588 e seguintes e Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, 120, pág. 278 e seguintes).
20.ª Por isso, não podia o acórdão recorrido, fossem quais fossem os argumentos que utilizasse, ultrapassar a questão, violando o caso julgado e muito menos sustentando que a decisão recorrida se resume a um complemento de retificação do lapso inicial dos autores, retificação que se estendeu “à factualidade alegada e aos pedidos, numa postura que (…) mais não é do que uma interpretação corretiva do articulado que fixou o objeto da lide” pois, os julgadores não podem dispor do processo como entenderem, alterando sucessiva e inesperadamente a causa de pedir e o pedido.
21.ª Assim sendo, o acórdão recorrido violou o caso julgado implícito formado sobre a omissão de decisão de questões relativas aos factos integradores da causa de pedir e do pedido, que são apenas os que constam dos articulados, na formulação destes constantes, e porque em relação a esses factos ou à sua eventual correção nada foi decidido até à audiência de julgamento, admitindo a jurisprudência que tais questões têm de considerar-se abrangidas, mesmo que de forma não expressa, nos limites e termos do julgamento (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/12/2017, proc. 3435/16.3T8VIS-A.C1, disponível em www.dgsi.pt, entre outros) e violou ainda o caso julgado explícito formado pelo despacho saneador, na parte em que este decidiu expressamente não existirem outras exceções ou questões prévias, o que impedia qualquer tribunal de posteriormente alterar também a causa de pedir e o pedido, ou de os reescrever.
22.ª A matéria de facto, como se demonstra desde logo pela simples transcrição atrás feita, foi julgada em manifesta violação da lei, designadamente, do artigo 662.º do CPC, pois a Relação, ao julgar a matéria de facto tem de fundamentar a sua decisão, estando constitucionalmente consagrado esse dever de fundamentação, no artigo 205.º da CRP, e na execução dessa tarefa é-lhe exigível que faça um novo julgamento, como se julgasse em primeira instância, sendo que quer a confissão quer o acordo das partes têm força probatória plena (acórdãos do STJ de 8/01/2015, proc. 3719/10, Sumários, janeiro/2015, pág. 9 e de 8/09/2015, pro. 3525/11, Sumários 2015, pág. 465).
23.ª O artigo 674.º , n.º3 do CPC, disciplinando a competência do STJ sobre o julgamento da matéria de facto, na sua melhor hermenêutica (acórdão do STJ de 9/12/2014, proc. 3614/09, Sumários 2014, pág. 670) determina que o STJ tem competência para exercer controlo sobre a boa ou má aplicação das regras processuais a que a Relação deve obediência, designadamente no que tange ao efetivo exercício de um segundo grau de jurisdição, que não pode nunca limitar-se à adesão aos argumentos da primeira instância, como no caso sucedeu.
24.ª E no caso concreto, há razões de mais para uma intervenção corretora do STJ porquanto:
a) não é verdade que os recorrentes se limitem genericamente a discordar da convicção formada pelo tribunal de primeira instância, uma vez que desenvolveram as razões em que a sua discordância se filiava, referindo concretamente a inconsistência da pretensa inabilidade das testemunhas, quer em termos de facto, quer em termos legais;
b) não é verdade que os recorrentes se tenham limitado a “sinalizar” que existe um meio de prova (testemunha) que diverge dos factos tidos como provados, porque os recorrentes não alegaram qualquer divergência de depoimentos, nem sequer questionaram os factos que se provaram, mas sim aqueles que se não provaram, nem podiam sequer indicar testemunhos contraditórios, porque não os há: todas as testemunhas ouvidas sobre a matéria de facto em causa e omissa depuseram da mesma forma e coerentemente;
c) não faz qualquer sentido o argumento do acórdão de que os recorrentes não atenderam à existência de sentidos dispares de meios de prova, pois bastaria ter lido com um mínimo de atenção o que se escreveu, ou até ter ouvido a gravação da prova, para se perceber que a posição de todas as testemunhas foi no mesmo sentido, e se alguma coisa contrariaram foi apenas o depoimento de parte dos autores;
d) é inaceitável que o acórdão recorrido, para tentar justificar o não ter visto “razões para divergir da convicção expressa pela primeira instância”, faça um apelo ao “tom” ou à “forma” dos depoimentos, sem explicar em que um e outra contribuem para diminuir a credibilidade dos depoimentos, para limitar toda a escusa de julgar a matéria de facto, quando a única razão é a mesma importada da primeira instância, mas de todo insubsistente: os “laços familiares ou interesses mais próximos da causa dos réus”.
25.ª Quanto à decisão relativa à informação sobre os elementos essenciais do negócio, não se vê como a respetiva matéria (que é condição do exercício da ação, porque se se aceitasse que tinham sido fornecidos pelos réus os elementos essenciais do negócio, não era possível o recurso à ação) não vemos como considerar que a mesma é ónus da prova dos réus: se os autores não alegarem que não tiveram conhecimento prévio dos elementos essenciais da transação não podem apresentar-se a preferir judicialmente.
26.ª De resto, estando alegada pela herança (ou pelos autores) como causa de pedir que esses elementos não foram transmitidos pelos obrigados à preferência, para que eles pudessem preferir, certo é que não consta esse facto da matéria de facto provada, pelo que a ação tinha de improceder de qualquer modo, por improvada uma condição do exercício do direito reivindicado.
27.ª As instâncias, embora por razões não coincidentes, consideraram irrelevante saber se cabeça de casal era a autora AA ou a autora CC, porque mesmo que tivesse sido dado conhecimento à CC dos elementos essenciais do negócio, tal como vem articulado pelos réus, esse conhecimento era irrelevante porque a CC não era a cabeça de casal, cargo que, pelo contrário, era desempenhado por sua filha AA, afirmação que, porém, é de todo incorreta porque quer a autora CC, quer a autora AA depuseram inequivocamente no sentido de que era a autora CC quem exercia o cabecelato (cfr citações infra na conclusão 29.ª).
28.ª Por outro lado, fosse quem fosse o cabeça de casal, certo é que a matéria da preferência invocada pelos autores está disciplinada no art. 1034.º, n.º 1 e 2 do CPC, que estabelece que os obrigados a darem preferência devem notificar o cabeça de casal da herança a quem cabe o direito de preferência, para que este, logo que seja notificado, promova uma conferência de interessados para deliberar se a herança deve exercer o direito de preferência, conferência esta que deverá ter lugar quer haja quer não haja inventário, e está demonstrado nos autos que no caso a herança nem reuniu nem deliberou (cfr. José Pinto Loureiro, Manual dos Direitos de Preferência, Vol. II, pág. 166 e seguintes, acórdão do STJ de 14/01/1972, sentença do Juiz Arlindo Payan Teixeira Martins, in Revista dos Tribunais, ano 90, fls. 68 e 88), o que significa seguramente que a herança não está autorizada, por decisão sua a propor qualquer ação.
29.ª Para além disso, a herança estava capazmente representada pelo cônjuge sobrevivo do seu autor, a interessada CC, pelo que era esta a quem competia receber a comunicação, a quem competia convocar a conferência de interessados e a quem competia transmitir aos obrigados à preferência o que a herança deliberasse, não obstante a afirmação, verdadeiramente inadmissível, da sentença – repetida pelo acórdão em tom ainda mais ácido - no sentido de que nenhum elemento de prova se fez de que a autora CC desempenhava o cargo de cabeça de casal, quando essa prova fez-se e é abundante, porquanto, bastaria ouvir a prova gravada para facilmente se concluir que:
a) a interessada AA interveio num Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros e Registos, no qual declarou que exercia o cargo de cabeça de casal por acordo com os restantes interessados, mas confessou expressamente em depoimento de parte que tal acordo não ocorreu, e que, pelo contrário, a cabeça de casal era sua mãe, afirmação que esta mesma repetiu (depoimentos transcritos acima quer   da interessada AA (gravação de 00:04:45 a 00:05:38) quer da própria CC (gravação de 00:11:01 a 00:11:34);
b) prescrevendo o artigo 2080.º do CC que o cargo de cabeça de casal se defere por forma a sê-lo em primeiro lugar ao cônjuge sobrevivo e só depois dele a qualquer parente que seja herdeiro legal, os artigos 210.º-B, 210.º-E e 210.º-G do CRC exigem que os procedimentos simplificados de sucessão hereditária têm de ser promovidos pelo cabeça de casal, mas este tem de comprovar a capacidade e poderes dele e dos demais interessados, a fim de, em cumprimento do art. 210.º-F do mesmo diploma, o serviço de registo poder proceder de acordo com a vontade dos interessados que titulam a habilitação de herdeiros e partilha, e nada disso sucedeu;
c) cabendo a administração da herança ao cabeça de casal até à sua liquidação e partilha (art. 2079.º do CC) e aplicando-se à comunhão hereditária as regras da compropriedade (art. 1404.º do CC) só em conjunto os herdeiros podem exercer os direitos inerentes à herança cujas decisões, designadamente a de nomear um cabeça de casal, só podem ser tomadas com consentimento de todos, em reunião de todos e após convocatória a fazer com antecedência razoável (acórdão do STJ de 04/04/2006, Col. Jurisp. STJ de 2006, 2.º, pág. 31), não tendo no caso ocorrido qualquer deliberação que atribuísse essas funções à interessada AA, antes tendo esta aceite e a interessada CC confirmado, que o cabeçalato cabia à mãe (cfr. as transcrições constantes das alegações, que aqui se dão por integradas e reproduzidas);
d) mas se, porventura, todos os herdeiros tivessem decidido atribuir à interessada AA o cargo de cabeça de casal, devendo as relações negociais ser pautadas sempre por regras de boa fé, quando a autora CC foi informada dos elementos essenciais do negócio, deveria ter informado, e não o fez, o que levaria sempre à renúncia do direito, que aquela qualidade não lhe cabia mas sim à sua referida filha (cfr. Almeida Costa, Obrigações, 3ª ed., nota 1).
Terminaram os recorrentes do seguinte modo:
«Termos em que, na procedência do recurso, deve reconhecer-se que o acórdão recorrido, ao decidir como decidiu, violou o caso julgado formado por decisão explícita e implícita do despacho saneador, nos termos referidos, pelo que a ação deve ser julgada improcedente e não provada com as legais consequências,
ou, quando assim se não entenda desde já, julgar-se a decisão nula quanto à fixação da matéria de facto e ordenar-se a baixa dos autos à segunda instância para que aí seja de novo julgada essa matéria, expurgada dos vícios apontados,
e sempre a ação ser julgada de qualquer modo improcedente e não provada por se reconhecer que a autora CC renunciou ao direito de preferência ajuizado, quer em nome da herança, quer dela própria, quer de seus filhos».
Dos autos não constam contra alegações de recurso.
                                                        *
II – 1 - As instâncias consideraram provados os seguintes factos:
1. Por contrato de compra e venda outorgado no dia 25 de Julho de 2020, cujo teor, constante de fls. 7 a 8, aqui se dá por reproduzido, com termo de autenticação lavrado por NN, solicitador, os réus GG e HH declararam vender ao réu EE, que declarou aceitar tal compra e venda, o prédio rústico denominado “Campo ..., Campo ... e ... com ...”, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...18 e inscrito na matriz sob o artigo ...86º.
2. No âmbito do aludido acordo, os réus GG, HH e EE declararam também que o preço acordado foi de € 9.500,00
3. e que essa quantia, na data aludida em 1., já tinha sido recebida pelos réus GG e HH.
4. À data aludida em 1., o dito prédio encontrava-se registado na Conservatória do Registo Predial ... com aquisição a favor dos réus GG e HH, pela apresentação 979, de 19 de Junho de 2020,
5. após o que passou a estar registado na mesma conservatória com aquisição a favor do réu EE, casado com a ré FF, pela apresentação 1616, de 27 de Julho de 2020.
6. O supramencionado prédio tem a área de 8.590m2.

7. O prédio rústico denominado de “Campo ... ou Campo ...”, situado no lugar de ..., sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...85º, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...81, com aquisição registada a favor dos AA. pela apresentação ...71, de 07 de Outubro de 2020, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária ocorrida na sequência do óbito de DD, com quem a autora CC foi casada, no regime da comunhão de adquiridos.
8. O prédio aludido em 7. encontra-se descrito como sendo um terreno de lavradio com árvores avidadas, formando uma curva, com um bocado de terreno inculto com árvores avidadas, separadas por um rego,  9. apresentando a área de 9.600m2.
10. O prédio aludido em 1. confronta, a norte e nascente, com o prédio aludido em 7., 11. não existindo nem se interpondo entre esses prédios terrenos de outrem, caminhos ou outra forma de separação.
12. Os réus EE e FF não eram, à data aludida em 1., proprietários de prédios rústicos confinantes com o prédio referido em 1.
13. Os aludidos prédios, à data mencionada em 1., não se destinavam a outro fim que não fosse a cultura agrícola,
14. sendo que tais prédios eram constituídos por videiras de enforcado e espécies arbóreas.
15. Em meados de Novembro de 2021, os réus EE e FF começaram a cortar, no prédio aludido em 1., as árvores, na sua maioria choupos, e as videiras que àquelas se encontravam atadas no sistema de “vinha de enforcado”.
16. As árvores e videiras abatidas pelos réus EE e FF foram cerca de 250,00.
17. As ditas videiras produziam uma média anual situada entre os 1.000,00 e os 1.500,00 litros de vinho,
18. ao preço aproximado de um euro por cada litro de vinho produzido.
19. As árvores abatidas tinham um valor global situado entre os € 500,00 e os € 1.000,00.
20. As supramencionadas árvores e videiras estavam em condições de durar, pelo menos, seis anos.
21. Depois de terem cortado as sobreditas árvores e videiras, os réus EE e FF começaram a arrancar os seus raizeiros,
22. tendo procedido ao aplanamento de todo o prédio.
23. De seguida, os réus EE e FF abriram em quase todo o prédio pequenas cavidades
24. e nelas colocaram estacas de madeira tratada,
25. dispostas em diversas fileiras e a espaços regulares,
26. prendendo tais estacas a fiadas de arame esticadas,
27. plantando, finalmente, ao longo das ditas fileiras, cepas de vinha.
28. A eventual remoção da vinha aludida em 27. não contenderia com as potencialidades produtivas do solo do prédio aludido em 1.
29. No dia 01 de Julho de 2020, os aqui réus GG e HH celebraram, por escrito, com o réu EE um contrato de arrendamento rural, cujo teor, constante de fls. 33 e 33, verso, aqui se dá por reproduzido, através do qual os primeiros deram de arrendamento a este último o prédio aludido em 1.
30. Mais foi declarado, no âmbito do acordo aludido em 29., que o arrendamento inclui o terreno de vegetação permanente de natureza não florestal, destinado habitualmente aos fins próprios da exploração normal do prédio locado.
31. O arrendamento aludido em 29. foi celebrado pelo prazo de 10 anos,
32. com início em 30 de Junho de 2020,
33. nele tendo sido estabelecida a retribuição anual de € 500,00,
34. a ser paga em casa do senhorio.
35. Por força dos trabalhos aludidos em 15. e 21. a 27., o valor do prédio mencionado em 1. aumentou, quando comparado com o valor que tal prédio tinha antes da realização de tais trabalhos.
                                                        *
II – 2 - As instâncias não consideraram provados os seguintes factos:

a. A actuação aludida em 15. e 21. a 27. foi, também, praticada pelos réus  GG e HH.
b. No dia 17 de Junho de 2020, o Sr. JJ, conjuntamente com o réu GG, ofereceram à autora CC a compra do prédio aludido em 1., dizendo-lhe que, sendo esse prédio contíguo ao prédio aludido em 7., poderia estar interessada na sua compra,
c. mais lhe tendo dito que tal negócio já estava apalavrado com o réu EE,
d. tendo a autora CC respondido àquele seu irmão que nem ela nem os seus filhos estavam interessados na compra de tal prédio, até porque tinham o deles a monte,
e. e que o réu GG podia, querendo, concretizar o negócio já anunciado com o réu EE.
f. A pormenorização do negócio teve lugar na data aludida em b. e na presença da autora CC, fixando, então, o promitente vendedor, o aqui réu GG, o preço de € 25.000,00 para o conjunto dos três campos, preço esse que foi aceite pelo promitente comprador, o aqui réu EE,
g. mais tendo os réus GG e EE, nessa ocasião, combinado que a escritura seria realizada no prazo de um ou dois meses.
i. tendo aquela autora invocado representar também os seus filhos.
j. Nos primeiros dias do mês de Julho de 2020, o réu GG informou o réu EE que iria contactar um outro vizinho, o Sr. MM, uma vez que este tinha ocupado uma parte do prédio vendido, aquela que era conhecida como T... com ..., e antes de ser outorgada a escritura queria poder assegurar ao comprador que esse bocado de terreno lhe seria entregue num prazo razoável.
k. Por isso, o réu GG procurou o referido MM, fazendo-lhe ver que precisava de uma garantia dele de que estaria disposto a fazer a entrega daquela parcela ocupada por si indevidamente ao promitente comprador.
l. O Sr. MM, no entanto, embora sem esconder que tinha ocupado indevidamente esse trato de terreno, recusou-se a comprometer-se com uma data para fazer a entrega.

m. Estando já marcado dia para a escritura de venda, acabaram promitente comprador e promitente vendedor, ante aquela dificuldade, por combinar que o promitente vendedor pagaria apenas o preço de € 9.500,00, ficando o resto em dívida, no montante de € 15.500,00, para ser pago na data em que ao réu EE fosse entregue a parte do terreno de que não dispunha.
n. O dito MM pretendia, com a sua atitude reticente, inviabilizar a escritura de venda,
o. acabando, porém, por ser informado, alguns dias depois, que a escritura já estava feita.
p. Após obter essa confirmação, o aludido MM, apercebendo-se de que por si nada podia fazer para que o negócio não fosse efectivado, engendrou o estratagema de procurar a autora CC, pedindo-lhe que propusesse esta acção de preferência, com vista a, obtendo ganho de causa, lhe transmitir depois os prédios, o que lhe permitiria, desse modo, apropriar-se definitivamente da parte do prédio por si ocupada,
q. e oferecendo-lhe, como contrapartida, a quantia de € 10.000,00,
r. o que foi aceite pela autora CC.
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III - Na 16ª conclusão do recurso de revista os recorrentes sustentam que o acórdão recorrido (o acórdão da Relação de Guimarães proferido em 16-2-2023) julgou erradamente as seguintes questões:

«1) a matéria de facto, por não ter sido julgada mercê da utilização de argumentos deslocados de todo das circunstâncias concretas do caso, e em violação da lei, pretendendo que o STJ reanalise a matéria à luz dos poderes que a lei lhe dá;

2) O direito aplicado, por entenderem que:

a) ocorre caso julgado impeditivo da procedência da ação;

b) que devia ter sido, de qualquer modo, decidido que os réus cumpriram os ónus que a lei lhes impõe de transmitirem à herança previamente à venda os elementos essenciais do negócio;

c) que devia ter sido julgado que a herança era representada pela viúva do decesso, e que esta renunciou, por si, pela herança e pelos demais herdeiros ao direito de preferir, bem como;

d) que nem a herança nem os herdeiros, de qualquer modo, estavam em condições de preferir por não terem cumprido as regras processuais que a lei imperativamente lhes impõe».

Por força do que determina a parte final do nº 2-a) do art. 629 do CPC, independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso com fundamento na ofensa do caso julgado.

A presente revista foi admitida por via daquela disposição legal uma vez que o valor desta acção (9.500,00 €) é inferior ao valor da alçada da Relação (art. 44 da LOSJ).

É de realçar que, em tais casos, conforme refere Abrantes Geraldes («Recursos em Processo Civil», Almedina, 7ª edição, pág. 54 e nota 80) «a norma que amplia a recorribilidade apenas pode servir para confrontar o Tribunal Superior com a discussão da alegada ofensa de caso julgado, excluindo-se outros segmentos decisórios ou questões cuja impugnação fica submetida às regras gerais», sendo que na jurisprudência «revela-se a estabilização do entendimento segundo o qual, uma vez interposto recurso com fundamento em violação do caso julgado, em ação cujo valor é inferior ao da alçada do tribunal a quo, é vedado ao recorrente suscitar outras questões que extravasem esse fundamento».

Também Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre («Código de Processo Civil Anotado», vol. III, Almedina, 3ª edição, pág. 28) mencionam que quando o «recurso é recebido nos termos da alínea a) ou da alínea b) do nº 2, o seu objeto fica limitado à apreciação da impugnação que esteve na base da sua admissão, não podendo alargar-se a outras questões».

Assim, exemplificativamente, o acórdão deste  STJ de 23-4-2020 (ao qual se poderá aceder em www.dgsi.pt, proc. 405/06.3TBMNC-C.G1.S1) em que foi  considerado que tendo o recurso sido interposto ao abrigo do fundamento especial previsto no artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC (a ofensa do caso julgado), o objecto do recurso terá se se circunscrever à questão de saber se ocorre a alegada ofensa do caso julgado; bem como o acórdão do STJ de 2-2-2022 (ao qual se poderá aceder em www.dgsi.pt, proc. 5111/07.9TBVLG-B.P1.S1.) que explicitou que a admissão de um recurso (por exemplo de revista) com base apenas num fundamento especial (como um dos elencados no nº. 2 do artº. 629º do CPC), tem como consequência que o objeto do mesmo fique tão somente circunscrito à apreciação da questão que está na base da sua admissão, sem que possa alargar-se a outras questões.

Deste modo, se no caso dos autos o recurso de revista não seria, em regra, admissível, sendo-o por ter sido alegada a ofensa do caso julgado, o objecto do recurso de revista interposto e admitido com fundamento no disposto no art. 629, n.º 2, al. a), do CPC, cinge-se à questão da violação do caso julgado e não a outras questões.

Indiferentes, são, assim, as considerações desenvolvidas pelos recorrentes com respeito a outras questões - como é o caso da argumentação que fazem versar sobre a decisão da Relação referente à deduzida impugnação da matéria de facto, isto ainda que estivesse contida dentro dos poderes atribuídos ao STJ, atento o disposto no nº 3 do art. 674 e no nº 2 do art. 682 do CPC.
Apenas a questão da ofensa do caso julgado nos poderá ocupar.
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IV – 1 - Os recorrentes fazem constar do requerimento de interposição de recurso de fls. 202 e seguintes e do corpo da alegação de recurso (fls. 212v e seguintes), justificando a invocação da violação do caso julgado:
O acórdão da Relação de 13-1-2022, só decidiu a questão de que os autores na presente acção eram os herdeiros e não a herança ilíquida e indivisa, confirmando o que sobre tal decidira o despacho saneador; deste despacho consta que não existem outras excepções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer nesta fase processual e que obstem à apreciação do mérito da causa; ficou assim definitivamente julgado que os AA. eram os herdeiros e não a herança, mas nada se decidiu sobre o pedido e a causa de pedir, ambos reportados à herança e aos herdeiros e que não foram modificados; a questão de se, então, o processo tinha condições para prosseguir ou só poderia prosseguir se a causa de pedir e o pedido fossem alterados de forma a corresponderem a direitos dos autores (e não da herança) teria de ter correspondência nos temas da prova e de ser analisada como uma verdadeira questão prévia ou como excepção; nada tendo sido feito a acção prosseguiu com uma  causa de pedir e um pedido que não correspondiam a direitos dos AA.; a declaração no despacho saneador de que não há outras excepções que obstem à apreciação do mérito da causa é definitiva e obsta ao julgamento posterior de quaisquer outras excepções ou questões prévias; o acórdão recorrido confirmou a sentença entendendo que no saneador e acórdão da Relação que o confirmara se procedera à rectificação da irregularidade que se estendera “à factualidade alegada e aos pedidos”; o acórdão recorrido ao admitir a extensão da decisão sobre a autoria da acção com aquela amplitude (alterando sujeitos, causa de pedir e pedido) violou o caso julgado formado pelo despacho saneador quando este excluiu a possibilidade de posteriormente serem discutidas outras excepções ou questões prévias.
Na sequência, no que á ofensa de caso julgado concerne, são apresentadas as seguintes conclusões:
-  O tribunal de 1ª instância «decidiu no despacho saneador, e a decisão transitou em julgado, que em vez da Herança Ilíquida e Indivisa que se apresentava a litigar, não era essa a autora, mas sim os herdeiros que a integravam, individualmente considerados, tendo esse mesmo despacho decidido essa e outra exceção (a caducidade da ação) e (…) concluindo que “não existem outras exceções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer”» - conclusão 17ª.
- «Em consequência dessa decisão, a ação ficou a contar como autores os herdeiros individualmente considerados, mantendo, porém, a causa de pedir constante da petição inicial (incumprimento pelo dever prévio de dar conhecimento da transmissão à herança, para que esta, querendo, exercesse esse direito) e o pedido (reconhecimento do direito de preferência e do consequente direito de propriedade à herança), pelo que a sentença que veio a ser produzida, nunca podia, subvertendo a realidade processual, ficcionar uma ou outra causa de pedir e um outro pedido, declarando que o direito de preferência e o consequente direito de propriedade, são dos autores, que o não haviam pedido, nem sequer podia pretender que ainda podia agora corrigir lapsos dos articulados dos autores, ou retificar irregularidades dos mesmos articulados, ou, e muito menos, considerar que o acórdão da Relação que atribuiu legitimidade aos autores permite considerar que “a retificação dessa irregularidade se estende à factualidade alegada e aos pedidos”, o que é de todo inadmissível e ilegal (artigo 265.º do CPC)» - conclusão 18ª.
- «O assento do STJ de 1/02/1963 (D.G. 1ª Série de 21/03/1963, in BMJ 124, 414) tirado por unanimidade, decidiu que “é definitiva a declaração em termos genéricos no despacho saneador transitado em julgado, relativamente à legitimidade, salvo a superveniência de factos que nesta se repercutam”, decisão que sempre foi entendida quer pela jurisprudência que se lhe seguiu, quer pela doutrina no sentido de que a doutrina desse assento “é aplicável extensivamente a quaisquer exceções dilatórias” (…)» - conclusão 19ª.
- «Por isso, não podia o acórdão recorrido, fossem quais fossem os argumentos que utilizasse, ultrapassar a questão, violando o caso julgado e muito menos sustentando que a decisão recorrida se resume a um complemento de retificação do lapso inicial dos autores, retificação que se estendeu “à factualidade alegada e aos pedidos, numa postura que (…) mais não é do que uma interpretação corretiva do articulado que fixou o objeto da lide” pois, os julgadores não podem dispor do processo como entenderem, alterando sucessiva e inesperadamente a causa de pedir e o pedido» - conclusão 20ª.
- «Assim sendo, o acórdão recorrido violou o caso julgado implícito formado sobre a omissão de decisão de questões relativas aos factos integradores da causa de pedir e do pedido, que são apenas os que constam dos articulados, na formulação destes constantes, e porque em relação a esses factos ou à sua eventual correção nada foi decidido até à audiência de julgamento, admitindo a jurisprudência que tais questões têm de considerar-se abrangidas, mesmo que de forma não expressa, nos limites e termos do julgamento … e violou ainda o caso julgado explícito formado pelo despacho saneador, na parte em que este decidiu expressamente não existirem outras exceções ou questões prévias, o que impedia qualquer tribunal de posteriormente alterar também a causa de pedir e o pedido, ou de os reescrever» - conclusão 21ª.
Temos presente que o caso julgado tem como fundamentos a salvaguarda do prestígio dos tribunais e, mais relevantemente, razões de certeza e segurança jurídicas (Manuel de Andrade, em «Noções Elementares de Processo Civil», Coimbra Editora, 1979, págs. 306-307)

Como referia Alberto dos Reis («Código de Processo Civil Anotado», vol. V, Coimbra Editora, 1981, pág. 237) a demonstração de que a decisão recorrida ofendeu, realmente, o caso julgado é aspecto que tem a ver com a procedência do recurso.
Haverá, pois, que verificar se a decisão recorrida (acórdão da Relação de Guimarães impugnado) ofendeu, realmente, o caso julgado formado sobre decisões constantes do despacho saneador, com confirmação pelo anterior acórdão da Relação de Guimarães (acórdão de 13-1-2022).

Consoante consta do art. 619 do CPC, transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele, nos limites fixados pelos arts. 580 e 581.

Sendo que, como decorre do art. 620 do mesmo Código, também as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo – transitados os mesmos em julgado, é inadmissível decisão posterior sobre a mesma questão, dentro do processo.

Explicava Amâncio Ferreira («Manual dos Recursos em Processo Civil», Almedina, 8ª edição, pág. 113) que para que se verifique a ofensa de caso julgado material, impõe-se que a decisão recorrida seja contrária a outra anterior, transitada em julgado, proferida entre as mesmas partes, incidindo sobre o mesmo objecto e apoiada na mesma causa de pedir e que se verifica ofensa de caso julgado formal quando, no mesmo processo, se profere decisão contrária a outra anterior recaindo unicamente sobre a relação processual, a menos que esta seja insusceptível de recurso (como o despacho de mero expediente ou o proferido no uso legal de um poder discricionário).

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IV – 2 - A laboriosa e intrincada construção dos recorrentes para efeitos do presente recurso com fundamento na ofensa de caso julgado (pretendendo, embora, estender o recurso a outras questões) passa por dois segmentos do despacho saneador proferido nos autos.

O primeiro deles refere-se ao decidido sobre a excepção da falta de personalidade judiciária da “Herança”, excepção invocada pelos RR. e que o Tribunal de 1ª instância julgou improcedente conforme relatado em I), consignando, em consequência, que as partes tinham personalidade e capacidade judiciárias - o que a Relação de Guimarães confirmou, concretizando que a «falta de personalidade judiciária é apenas aparente, uma vez que todos os herdeiros estão presentes, identificados e outorgaram procuração ao mandatário subscrito da petição, devendo considerar-se que são eles os autores (e não a herança) que em conjunto exercem os direitos relativos à herança, conforme decorre do disposto no artigo 2091º, nº 1 do Código Civil».

No posterior acórdão que recaiu sobre a sentença (acórdão de 16-2-2023, ou seja, o acórdão recorrido), sobre a epígrafe «Da qualidade dos Autores e seus reflexos no julgado», a Relação de Guimarães explicou:

Os RR./Apelantes «insistem (item 6º das suas conclusões) que a sentença errou quando considerou os factos e os pedidos formulados por referência aos Autores e não à herança que dizem representar.

Neste ponto renovamos os argumentos já acima expendidos para sublinhar que secundamos a posição suposta na sentença, resultante de uma interpretação correctiva que estabeleceu uma precisa correspondência entre a identificação do sujeito e a verdadeira intenção da parte, aliás, no caso, patente no formulário digital que enquadra a petição e assente, de acordo com a decisão proferida por este Tribunal da Relação de Guimarães no apenso A, com força de caso julgado (cf. art. 6º, do C.P.C.)».

Havendo, anteriormente, considerado:

«…a posição dos Apelantes advém da leitura formal que fazem do articulado inicial dos Autores em abono da alegada desconformidade do que foi considerado pela sentença e foi firmado no seu dispositivo com o que originalmente os Autores haviam alegado e pedido.

Sucede que a sentença não fez mais do que concretizar o princípio da prevalência do fundo sobre a forma que o Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 13.1.2022, proferido no apenso A, entendeu que deveria ser considerado na abordagem do lapso em que incorreram os Autores quando identificaram como sujeito ou titular dos direitos em causa a herança indivisa e não os seus herdeiros, o conjunto dos aqui demandantes/recorridos.

Nessa perspectiva, que sufragamos, o que foi feito resume-se à rectificação dessa irregularidade que se estendeu à factualidade alegada e aos pedidos, numa postura que se enquadra no espírito do que foi atendido pelo citado Acórdão deste Tribunal da Relação (e jurisprudência nele citada) e mais não é do que uma interpretação correctiva do articulado que fixou o objecto da lide e deve ser lido nos termos expostos na sentença».

Vejamos.

Há que interpretar o acórdão da Relação de Guimarães de 13-1-2022, bem como o despacho saneador que foi impugnado e que aquele acórdão confirmou. Quando no dito acórdão se refere que devem considerar-se que são os AA.  - AA, BB e CC - e não a “Herança” que em conjunto exercem os direitos relativos à herança por óbito de DD, entende-se que o pedido formulado na acção como sendo deduzido pela “Herança” e as menções a “Herança Autora” e “Autora” constantes da p.i. devem considerar-se, agora, como reportados aos mencionados Autores. Não faria sentido que assim não fosse: quando naquele acórdão se diz expressamente que devem considerar-se que os AA.  são  AA, BB e CCsão eles os AA. não só para o efeito de aferir do pressuposto da personalidade judiciária, mas para os restantes efeitos no processo, sem o que ocorreria uma cisão artificial e inexplicável na lógica da p.i. e a decisão das instâncias seria, também ela, falha de congruência. Assim, não podemos concordar com os recorrentes quando dizem que a acção prosseguiu «com uma causa de pedir e um pedido que não correspondiam a direitos dos autores, mas sim da herança, que, porém, o tribunal excluíra como figura da legitimidade ativa» (fls. 216 v).

Doutro modo, gorar-se-ia a pretensão de evitar a visão formal a que o acórdão alude, bem como a de aproveitamento da acção com prevalência do fundo sobre a forma. Sendo desnecessário (porque intuitivo) especificar em que concretos pontos do articulado inicial a menção aos AA. (herdeiros que foram considerados AA. na acção), substituiria a designação “Herança” ou “Herança Autora”.

Faz, deste modo, todo o sentido o expresso pela Relação de Guimarães no seu acórdão de 16-2-2023, acórdão recorrido, designadamente nos excertos que transcrevemos, de modo algum ofendendo o que anteriormente fora determinado por decisão transitada em julgado.

O que acabámos de ponderar, por si e desde logo, levaria a que soçobrasse a estrutura edificada pelos recorrentes relativa à ofensa de caso julgado.

Apreciemos, todavia, a restante argumentação dos recorrentes.

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IV – 3 – No despacho saneador o Tribunal de 1ª instância fez constar: «Não existem outras exceções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer nesta fase processual e que obstem à apreciação do mérito da causa».

O Tribunal de 1ª instância limitou-se, pois, a consignar que (naquela fase do saneador) não existiam «outras exceções, questões prévias ou incidentais» de que cumprisse conhecer e que obstassem à apreciação do mérito da causa – isto em termos genéricos, nada em concreto apreciando.

Resulta dos nºs 1-a) e 3) do art. 595 do actual CPC que o despacho saneador constituirá caso julgado formal quanto às excepções dilatórias e nulidades processuais, invocadas pelas partes ou de conhecimento oficioso, concretamente apreciadasnão quanto a outras questões que não fossem apreciadas concretamente.

Significa isto que o despacho saneador tabelar, apenas enunciando sem apreciar concretamente, por exemplo, a legitimidade das partes, não faz caso julgado formal.  Se o juiz referir genericamente que determinados pressupostos se verificam o despacho saneador não constitui nessa parte caso julgado formal, continuando a ser possível a apreciação de uma questão concreta de que resulte que o pressuposto genericamente referido afinal não ocorre. Face ao nº 3 do art. 595, ultrapassada se encontra a questão (que já foi controvertida) de saber se o despacho saneador genérico produzia caso julgado formal quanto à verificação dos pressupostos e inexistência de nulidades (fora do caso respeitante à competência em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia, atento o disposto no nº 2 do art. 104 do CPC de 1961, anterior à revisão de 1995-1996) (ver, a propósito, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no «Código de Processo Civil Anotado», II vol., Almedina, 3ª edição, pág. 657).

O caso julgado apenas se forma relativamente a questões ou excepções dilatórias que tenham sido concretamente apreciadas e nos limites dessa apreciação, não valendo como tal a mera declaração genérica sobre a ausência de alguma ou da generalidade de excepções dilatórias, tendo caducado a jurisprudência que fora fixada pelo Assento nº 2/63 a que os recorrentes aludem (ver, também, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, «Código de Processo Civil Anotado», vol. I, Almedina, 2018,  págs. 696-697).
Deste modo, não há qualquer caso julgado formal a observar face à genérica declaração de que, naquela fase, não existiam «outras exceções, questões prévias ou incidentais» de que cumprisse conhecer e que obstassem à apreciação do mérito da causa.

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IV – 4 - Os recorrentes ligam aquela apreciação genérica de inexistência de excepções ou questões prévias à pressuposição de que o tribunal «teria de analisar e decidir se o processo tinha condições de prosseguir, ou se só poderia prosseguir se a causa de pedir e o pedido fossem alterados de forma a que correspondessem a direitos dos autores», considerando que essa «questão teria de ser vista, quer na parte decisória do despacho saneador, quer na formulação dos temas de prova, que foi omitida de todo, como uma verdadeira questão prévia, ou como excepção…» (fls. 216).

Não é assim. Desde logo porque aquilo a que os recorrentes se reportam não conformava uma “excepção” ou uma “questão prévia” a considerar no saneador. As excepções – dilatórias ou peremptórias -  estão perfeitamente definidas nos arts. 571 e 576 do CC, a elas não se reconduzindo o alegado. Já as questões prévias serão aquelas questões de índole processual que devem ser resolvidas previamente ao julgamento – a elas se reconduzindo, por exemplo, as nulidades processuais que não são excepções dilatórias (ver a alínea b) do art. 577 do CPC).

Refira-se, lateralmente, que no que concerne à indicação dos temas da prova os recorrentes parecem esquecer o valor da acção e o disposto no art. 597 do CPC.

Na perspectiva que as instâncias assumiram, consoante interpretado em IV – 2), não houve qualquer omissão, pelo que não teve lugar a violação do «caso julgado implícito formado sobre a omissão de decisão de questões relativas aos factos integradores da causa de pedir e do pedido»; tal como, aqui também atento o expendido em IV – 3), não foi violado «o caso julgado explícito formado pelo despacho saneador, na parte em que este decidiu expressamente não existirem outras exceções ou questões prévias».

Pelo que soçobra a argumentação dos recorrentes.
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V-  Face ao exposto acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em negar a revista.
Custas pelos RR.
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Lisboa,  28 de Junho de 2023



Maria José Mouro (Relatora)

Graça Amaral                    

Maria Olinda Garcia  



SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora).