Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3ª SECÇÃO | ||
Relator: | NUNO GONÇALVES | ||
Descritores: | JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO DIREITO AO RECURSO ACORDÃO DA RELAÇÃO ABSOLVIÇÃO REVERSÃO PENA NÃO PRIVATIVA DA LIBERDADE GRAU DE JURISDIÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 09/19/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | REJEITADO | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / DECISÕES QUE NÃO ADMITEM RECURSO. DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA O PATRIMÓNIO / CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE / ABUSO DE CONFIANÇA. | ||
Doutrina: | - J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Noticias Editorial, p. 339. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 400.º, N.º 1, ALÍNEA C). CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 205.º, N.ºS 1 E 4, ALÍNEA A). | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4/2016; - ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 13/2016, IN DRE N.º 193/2016, SÉRIE I DE 07-10-2016; - DE 09-05-2019, PROCESSO N.º 13/17.3SWLSB.S1.L1, IN WWW.DGSI.PT; - DE 16-05-2019, PROCESSO N.º 407/14.6TAVRL.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT; - DE 11-09-2019, PROCESSO N.º 390/17.6JACBR.C1.S1; - DE 19-06-2019, PROCESSO N.º 319/14.3 GCVRL.G1, IN WWW.DGSI.PT. -*- ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: - ACÓRDÃO N.º 353/2010, IN DRE N.º 218/2010, SÉRIE II DE 2010-11-10; - ACÓRDÃO N.º 128/2018, DE 13-03; - ACÓRDÃO N.º 372/2019, DE 19-06, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT. | ||
Jurisprudência Internacional: | TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS (TEDH): - DE 30-10-2014, CASO DE SHVYDKA V. UCRÂNIA, (APPLICATION N.º. 17888/12); - KROMBACH V. FRANÇA , Nº 29731/96, § 96, CEDH 2001-II; - DE 25-07-2017, CASO DE ROSTOVTSEV V. UCRÂNIA (APPLICATION N.º. 2728/16). | ||
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Sumário : | I. A pena suspensa é uma pena de substituição não detentiva, não privativa da liberdade, autónoma da pena de prisão. II. A norma processual convocada pela recorrente, o art. 400 n.º 1 al.ª c) do CPP, tem dois segmentos que regulam situações diversas: a primeira parte determina a inadmissibilidade de impugnação “de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade”; a segunda parte estabelece a irrecorribilidade de acórdãos da Relação que apliquem “pena de prisão não superior a 5 anos”. III. O Tribunal Constitucional empenhou-se em patentear que o necessário equilíbrio entre garantias de defesa do arguido e a racionalidade do sistema judiciário, fez com que se tenha circunscrito a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral firmada no Ac. 595/2018, à situação em que o acórdão da Relação, revertendo decisão absolutória da 1ª instância, condena inovatoriamente o arguido em pena de prisão efectiva. IV. Excluída do vício da inconstitucionalidade ficou a reversão de absolvição em condenação numa pena de multa, ou em pena não privativa da liberdade. V. Entendimento que o Tribunal Constitucional reafirmou no Ac. n.º 372/2019 de 19 de junho (in www.tribunalconstitucional.pt) e que alguma jurisprudência deste STJ tem sustentado. VI. Nestes casos, o direito ao recurso pode satisfazer-se, adequada e proporcionadamente, com um duplo grau de jurisdição, assegurado pelo acórdão da Relação, proferido em segunda instância. VII. Introduzir um terceiro grau de jurisdição nestas questões, diminuiria consideravelmente o regime de cognição do STJ, cuja essência de controlo de legalidade sobre os tribunais de instância e de uniformização de jurisprudência deve ser preservada. VIII. Não é admissível recurso para o STJ, visando apenas o reexame do julgamento dos factos efectuado pela Relação, pugnando a recorrente pela reversão à matéria de facto decidida pela 1ª instância. | ||
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Decisão Texto Integral: |
O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, acorda em conferência:
-BB
A assistente “CC, Lda.”, inconformada com a decisão absolutória, recorreu, impugnando a decisão. O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão datado de 19-02-2019, julgando procedente o recurso, decidiu: - alterar o julgamento em matéria de facto, por enfermar de erro notório na apreciação da prova; - revogar a sentença recorrida, e condenar cada um dos arguidos pela prática do crime de abuso de confiança, p. e p. no art. 205° n° 1 e 4 al. a) do C. Penal na pena de 18 (dezoito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período sob condição de, nesse período, cada um dos arguidos pagar a quantia de 3.000,00 (três mil euros) à assistente, quantias que logo que, uma vez pagas, se devem abater ao montante da indemnização civil arbitrada; e, - condenar também os demandados a pagar à demandante a quantia de € 9.505,54 (nove mil quinhentos e cinco euros e cinquenta e quatro cêntimos) e juros legais desde a data da notificação para contestar o pedido cível. c) o recurso: A arguida, inconformada com a reversão da absolvição e a condenação, impugna-a, recorrendo para o STJ. Remata a sua alegação com as seguintes - CONCLUSÕES: A. Independentemente do disposto no art.º 400.º, n.º 1, al. e) do Código do Processo Penal, entende a Recorrente que, in casu, pode exercer o seu direito ao recurso relativamente à decisão proferida pelo Douto Tribunal da Relação de Évora. B. E, caso venha a ser rejeitado o presente recurso, por se considerar a sua inadmissibilidade nos termos da supra referida norma, desde já se argui, para os devidos e legais efeitos, a inconstitucionalidade da interpretação dada à mesma. C. Nesta conformidade, se entende que qualquer interpretação do disposto no art.º 400.º, n.º 1, al. e) do CPP, que estabeleça a irrecorribilidade do acórdão do Tribunal da Relação que, inovadoramente, face à absolvição ocorrida em 1.ª Instância, condena os arguidos em pena de prisão não superior a 5 (cinco) anos, é manifestamente inconstitucional por violação do direito ao recurso previsto no art.º 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa. * D. O Tribunal recorrido mal andou em alterar a matéria de facto considerada provada e não provada pelo Tribunal de 1.ª Instância e, consequentemente, ao condenar a Recorrente pela prática do crime de abuso de confiança p.p. no art.º 205.º, n.ºs 1 e 4, al. a) do Código Penal. E. Com efeito, a matéria de facto considerada provada pelo Tribunal de 1.ª Instância não permite qualquer conclusão quanto à apropriação que faz parte do elemento objectivo do tipo de crime em apreciação nos presentes autos. F. Pois, sendo o dinheiro coisa fungível e não estando provado que a sociedade comercial AA, Lda. não dispunha de saldo bancário que lhe permitisse proceder ao pagamento das contribuições e/ou à devolução da quantia entregue pela Assistente, ou que a referida quantia não foi restituída no tempo e sob a forma juridicamente devida, não se pode entender que houve apropriação. G. Na verdade, a mera confusão do dinheiro no património da sociedade comercial AA, Lda. ou o seu uso, por si só, não preenchem o requisito “apropriação” do elemento objectivo do tipo de crime “Abuso de Confiança”. H. Por tal motivo, o Tribunal recorrido mal andou ao considerar que, in casu, a matéria de facto considerada provada pelo Tribunal de 1.ª Instância era, por si só, suficiente para se considerar igualmente como provada a factualidade dada como não provada, alterando assim a mesma. I. Assim, salvo o devido respeito por opinião contrária, entende a Recorrente que deve ser considerada como não provada a seguinte factualidade: e) Apropriaram-se, assim, os arguidos da quantia de € 7.860,00 que a Assistente lhes entregou para pagamento por conta do IRC de 2012; f) Agiram os arguidos com intenção de fazer seu o montante de € 7.860,00, integrando tal quantia no património da sociedade que geriam, bem sabendo que tal não lhes pertencia e que actuam contra a vontade e em prejuízo da Assistente; g) Os arguidos actuaram com o objectivo concretizado de se apropriar do dinheiro, integrando-o no património da sociedade que geriam; h) Agiram os arguidos de forma livre, deliberada e conscientemente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e mesmo assim não se coibiram. J. E, consequentemente, deverá a Recorrente ser absolvida do crime de abuso de confiança p.p. pelo art.º 205.º, n.ºs 1 e 4, al. a) do Código Penal. K. Ao decidir como decidiu, violou o Tribunal a quo o disposto no art.º 204.º do Código Penal. Peticiona a revogação do acórdão recorrido. d) - resposta da assistente: A assistente apresentou contramotivação, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido, culminando com as seguintes - Conclusões: UM: A decisão constante do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora é irrecorrível. No caso concreto tem absoluta aplicação a disposição legal prevista na alínea e) do n.º 1 do art. 400º do Código de Processo Penal que prevê a irrecorribilidade da douta decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora, considerando-se a referida irrecorribilidade absolutamente constitucional, nos termos do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018 e publicado em Diário da República n.º 238/2018, Série I de 2018-12-11. Assim, o recurso apresentado não poderá ser admitido e apreciado por legal e constitucionalmente inadmissível. DOIS: Caso o recurso venha a ser apreciado e julgado, o que só por mera hipótese se equaciona, deverá o Acórdão ser integralmente confirmado porquanto, atenta a verificação do erro notório na apreciação por parte do tribunal de 1ª Instância, a alteração da matéria de facto provada impunha-se uma vez que a matéria de facto provada já continha em si mesma factos que preenchiam uma parte do elemento objectivo do tipo, a saber: a “apropriação”. Devendo manter-se a douta decisão que considerou provado que, os arguidos se apropriaram da quantia de €7.860,00 que a assistente lhes entregou para pagamento por conta do IRC de 2012, ficando este facto constante da alínea a) da matéria não provada eliminado, e passando a constar da matéria de provada com o n.º 7 A), assim como as demais alterações à matéria de facto decididas no douto Acórdão proferido, a saber: os factos constantes da alíneas b) a d) da matéria não provada passam a constar da matéria provada, respectivamente, com os n.ºs 12A, 12B e 12C. De qualquer modo, sempre o recurso terá de ser julgado improcedente, mantendo-se a condenação dos Arguidos pela prática do crime de abuso de confiança, p. e p. no art. 205º, n.º 1 e 4 al. a) do C. Penal na pena de 18 (dezoito) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo prazo e condições decididas no douto Acórdão recorrido. e) resposta do Ministério Público: O Ministério Público na Relação de Évora apresentou contramotivação, defendendo a manutenção da decisão recorrida. O Digno Procurador-Geral Adjunto teve vista no processo.
A recorrente insurge-se contra a alteração do julgamento dos factos, decidida pela Relação, pretendendo reverte-la. É, simplesmente, um recurso restrito à impugnação da matéria de facto. Não suscitando questões de direito criminal. Como questão previa argui a inconstitucionalidade da norma do art.º 400º n.º 1 al.ª c) do CPP. Assim delimitado o objecto do recurso, cumpre desde logo verificar se é admissível.
Para nos situar, vejamos a factualidade que resultou fixada pela decisão recorrida, (vão em itálico as alterações operadas pela Relação). - factos provados -: 1. Os arguidos eram os sócios gerentes da sociedade denominada "AA, Lda", sendo que a arguida Teresa apenas foi gerente até 20 de Maio de 2013, data em que renunciou à gerência; 2. A sociedade "AA, Lda" era gerida por ambos os arguidos e a conta bancária da mesma podia ser movimentada por ambos os arguidos; 3. A actividade da sociedade "AA, Lda" era a prestação de serviços nas áreas de contabilidade e fiscalidade; 4. No âmbito dessa actividade, os arguidos, através da sociedade de ambos, prestaram serviços de contabilidade à Assistente “CC, Lda”; 5. Assim, ao abrigo da avença mensal que a Assistente tinha com a sociedade dos arguidos, a Assistente entregou a 20 de Setembro de 2012, através de transferência bancária efectuada da conta da progenitora do gerente da Assistente, DD, a quantia de € 3.930,00 à sociedade gerida pelos arguidos, para pagamento do 2.º pagamento por conta do IRC do ano de 2012; 6. Na transferência bancária supra referida foram igualmente entregue a quantia devida pela avença mensal (€110.70) e o pagamento da Segurança Social dos trabalhadores (€206,44), sendo que o valor global da transferência bancária foi de € 4.247,14; 7. E entregou, a 7 de Dezembro de 2012, através de transferência bancária efectuada da conta da progenitora do gerente da Assistente, DD, a Assistente a quantia de € 3.930,00 à sociedade gerida pelos arguidos, para pagamento do 3.º pagamento por conta do IRC do ano de 2012; 7 A). Apropriaram-se, assim, os arguidos da quantia de € 7.860,00 que a Assistente lhes entregou para pagamento por conta do imposto do IRC de 2012; Por causa da falta de pagamento do imposto referido, a assistente teve de suportar a coima de €1.645,54. 8. Na transferência bancária supra referida foram igualmente entregue a quantia devida pela avença mensal e o pagamento da Segurança Social dos trabalhadores, sendo que o valor global da transferência bancária foi de € 4.246,76; 9. Contudo os arguidos não procederam à entrega do 2.° e 3.° pagamento por conta de IRC da Assistente aos cofres do Estado, que deviam ter sido efectuados até 30 de Setembro de 2012 (o 2.° pagamento por conta) e 15 de Dezembro de 2012 (o 3.° pagamento por conta), tendo ficado com o dinheiro e utilizado o mesmo em proveito próprio da sociedade que ambos geriam; 10. O valor de € 7.860,00 era da Assistente e destinava-se a ser entregue aos cofres do Estado para pagamento por conta do imposto de IRC de 2012, o que os arguidos bem sabiam; 11. Os arguidos bem sabiam que a Assistente apenas lhe havia entregue a quantia de € 7.860,00 para que estes procedessem à estrega da mesma quantia aos cofres do Estado para pagamento por conta do imposto de IRC de 2012; 12. Os arguidos ao não entregarem a referida quantia aos cofres do Estado sabiam que estavam a actuar contra a vontade e sem o conhecimento da Assistente; 12 A. Agiram os arguidos com intenção de fazer seu o montante de € 7.860,00, integrando tal quantia no património da sociedade que geriam, bem sabendo que tal não lhes pertencia e que actuam contra a vontade e em prejuízo da Assistente; 12 B. Os arguidos actuaram com o objectivo concretizado de se apropriar do dinheiro, integrando-o no património da sociedade que geriam; 12 C). Agiram os arguidos de forma livre, deliberada e conscientemente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e mesmo assim não se coibiram de as praticar 13. 0 arguido AA regista uma condenação pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art° 105.° n.°s 1 e 5 do RGIT, por factos praticados em 2009, tendo sido condenado na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período; 14. A arguida BB não tem antecedentes criminais registados. Não há factos não provados.
O tribunal (singular) da 1ª instância, na sentença absolutória proferida nos autos, julgou provados alguns factos imputados aos arguidos e julgou não provados outros. O Tribunal de 2ª instância (a Relação), apreciando o recurso da assistente[1], declarou que a sentença recorrida enfermava do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no art. 410°, n° 2 al. c) do CPP e corrigindo, ao abrigo do disposto no art. 431° do C.PP, julgou provados também os factos que naquela se decidira julgar não provados. Fixada a factualidade assente, que preenche os elementos constitutivos do crime de abuso de confiança p. e p. pelo art. 205.º n.º 1 e 4 al.ª a) do Código Penal, observando a jurisprudência fixada no Acórdão (AUJ) n.º 4/2016[2], condenou os arguidos em pena suspensa (18 meses de prisão com suspensão da execução por igual prazo), condicionada à reparação parcial da ofendida. A arguida, não se conformando com a alteração da factualidade provada, pretende que este Supremo Tribunal reaprecie o julgamento da Relação, reverta o julgamento da matéria de facto e, em consequência, anule a condenação. Ciente de que o disposto no art. 400º n.º 1 al.ª e) do CPP não admite recorrer do acórdão da Relação e, consequentemente, antevendo que não seja admitida a sua impugnação, argui, como questão prévia, a inconstitucionalidade [material] daquela norma, na interpretação “que estabeleça a irrecorribilidade do acórdão do Tribunal da Relação que, inovadoramente, face à absolvição ocorrida em 1.ª Instância, condena os arguidos em pena de prisão não superior a 5 (cinco) anos”. Entende que tal interpretação viola o direito ao recurso consagrado no art.º 32.º, n.º 1 da Constituição da República. A assistente , respondendo, assinala que a norma em apreço “não foi julgada totalmente inconstitucional, ou seja, em toda a sua amplitude, mas apenas nos casos em que a Relação, revertendo uma absolvição em 1ª instância, condena o arguido a uma pena de prisão efetiva não superior a 5 anos”. Vejamos de que lado está a razão.
A recorrente sustém a sua pretensão na argumentação de que foi condenada em pena de prisão. Não tem razão. A premissa concreta e inultrapassável não é aquela, mas sim a de que está condenada, pela Relação, numa pena não privativa da liberdade, mais precisamente, em 18 meses de prisão com execução suspensa por igual período de tempo, com deveres (condicionada à reparação parcial da lesada). De acordo com a doutrina e a maioria da jurisprudência, a pena de prisão suspensa na sua execução já vinha sendo considerada a mais importante pena de substituição e, dogmaticamente, uma pena autónoma da pena de prisão. No ensinamento de J. Figueiredo Dias “a suspensão da execução da prisão não representa um simples incidente, ou mesmo uma modificação da execução da pena, mas uma pena autónoma e portanto, na sua aceção estrita e exigente, uma pena de substituição”[3]. Na Exposição de Motivos do Código Penal, incluiu-se nas medidas não detentivas em que a pena “significa uma suspensão da execução da pena que, embora efectivamente pronunciada pelo tribunal, não chega a ser cumprida, por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o delinquente da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime” –cfr ponto 11. Por sua vez, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 353/2010 decidiu “não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a pena suspensa não é uma pena privativa de liberdade” (in DRE n.º 218/2010, Série II de 2010-11-10). O Supremo Tribunal de Justiça, chamado a sanar a dissidia jurisprudencial que ainda persistia, no Acórdão – AUJ - n.º 13/2016 (publicado no DRE n.º 193/2016, Série I de 2016-10-07) reafirmando a autonomia da suspensão relativamente à pena de prisão, fixou jurisprudência com o seguinte entendimento: “A condenação em pena de prisão suspensa na sua execução integra o conceito de pena não privativa da liberdade referido no n.º 1 do artigo 17.º da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto, com a redacção dada pela Lei n.º 114/2009, de 22 de Setembro”. Estabelecida doutrinária, jurisprudencial e normativamente a autonomia dogmática da pena suspensa, assume relevância para a resolução da questão prévia aqui em apreço repisar que a recorrente não foi condenada nos autos em pena de prisão. Foi-lhe, isso sim, aplicada uma pena suspensa, que é uma pena de substituição não detentiva, uma pena não privativa da liberdade. Assim sendo, vejamos os termos dessa relevância.
A norma processual convocada pela recorrente, o art. 400 n.º 1 al.ª c) do CPP, tem dois segmentos que regulam situações diversas. A primeira parte determina a inadmissibilidade de impugnação “de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade”. A segunda parte estabelece a irrecorribilidade de acórdãos da Relação que apliquem “pena de prisão não superior a 5 anos”. O Tribunal Constitucional tem entendido, e reafirmou no recente Acórdão n.º 372/2019 de 19 de junho, transcrevendo trechos de anterior aresto seu (Acórdão n.º 128/2018, de 13 de março), que a norma em análise tem efectivamente dois segmentos que “apesar de integrados no mesmo preceito legal [alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP], … configuram critérios diferenciados de não admissão do recurso, reportando-se um a penas não privativas de liberdade (…) e o outro a penas de prisão não superiores a 5 anos”. “Esta diferença encontra projeção expressa e clara no julgamento empreendido no Acórdão n.º 429/2016, não permitindo a transposição dos fundamentos subjacentes ao juízo de inconstitucionalidade ali formulado para o caso ora em análise. Aclarada aquela premissa e delimitado o âmbito do segmento normativo aplicável ao caso em apreço, conclui-se, logicamente, que a vertente impugnação enquadra-se na primeira parte da previsão da norma. Não podendo, pois, acoitar-se no segmento que se reporta à não admissão de acórdão proferido pela Relação que tenha aplicado pena de prisão não superior a 5 anos. Assentes nestes dados concretos, isto é, naquela premissa (condenação em pena suspensa) e estabelecido, hermenêuticamente, o parâmetro da norma (o primeiro) que rege a situação, partimos em busca de deslindar a questão colocada, que se resume em saber se enferma também de inconstitucionalidade material o primeiro segmento, na interpretação e aplicação de que não admite recurso o acórdão da Relação (da 2ª instância) que revertendo decisão absolutória, condena inovatoriamente a/o arguida/o em pena suspensa (em qualquer pena não privativa da liberdade). Ou também, de outro horizonte mais alargado, se a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral firmada no Ac. 595/2018 é extensível de modo a inconstitucionalizar qualquer interpretação que restrinja o direito a recorrer de acórdão da Relação que, alterando decisão da 1ª instância, agrava as consequências jurídicas do/s crime/s cometido/s, incluindo, portanto, acórdãos que embora confirmem anterior condenação, agravam as condições desta (máxime: da pena de multa; em vez da multa aplica pena não privativa da liberdade; agrava a pena não privativa da liberdade; eleva o tempo da suspensão da pena ou impõe regras de conduta ou deveres mais exigentes; converte a condenação anterior em pena de prisão não superior a 5 anos; agrava a medida da pena efectiva de prisão anteriormente aplicada, etc.).
Previamente à convocação da arquitectura constitucional e normativa do direito ao recurso e das limitações que pode admitir, parece útil, em breve nota, dizer que o direito ao recurso está expressamente consagrado em instrumentos jurídicos de direito internacionais sobre os direitos fundamentais que Portugal se vinculou a observar. O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos estabelece, no art. 14º: “Toda a pessoa declarada culpada de um delito terá direito a que a sentença e a pena que lhe foram impostas sejam submetidas a um tribunal superior, conforme o previsto na lei”. A Convenção Europeia dos Direitos Humanos consagrando, no Protocolo n.º 7, artigo 2º o “direito a um duplo grau de jurisdição”, estatui: Remete para a lei ordinária de cada Estado parte, a regulamentação “[d]o exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido”. Reconhecendo não poder ser um direito infinito e ilimitadamente exercido, no n.º 2 enuncia situações que podem fundamentar a inadmissibilidade da reapreciação da culpabilidade ou da condenação em 2ª instância, sem que daí resulte desprotecção insuportável de direitos fundamentais da pessoa condenada. Estabelece: Pela correspondência com a situação dos autos, acentua-se a admissibilidade da limitação do direito à reapreciação da condenação “quando o interessado tenha sido … declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição”. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, interpretando esta norma, tem afirmado, reiteradamente, que “os Estados Contratantes, em princípio, desfrutam de uma ampla margem de apreciação ao determinar como o direito garantido pelo Artigo 2 do Protocolo nº 7 da Convenção deve ser exercido (ver Krombach v. França, nº 29731/96 96, CEDH 2001 ‑ II)” Afirma que esta norma regula essencialmente dois aspectos: a acessibilidade à jurisdição de recurso; e o escopo do controlo que esta exerce –cfr. caso de SHVYDKA v. UCRÂNIA, (Application n.º. 17888/12), julgamento de 30 de outubro de 2014.
Tem entendido que “a revisão por um tribunal superior de uma condenação ou sentença pode dizer respeito a questões de fato e questões de direito, ou pode limitar-se apenas a questões de direito”. “Contudo, quaisquer restrições contidas na legislação nacional sobre o direito a uma revisão mencionada nessa disposição devem, por analogia com o direito de acesso a um tribunal consagrado no artigo 6, parágrafo 1, da Convenção, buscar um objetivo legítimo e não infringir a própria essência desse direito (ver Krombach v. França , nº 29731/96, § 96, CEDH 2001-II) –cfr. caso de ROSTOVTSEV v. UCRÂNIA (Application n.º. 2728/16), julgamento de 25 de julho de 2017.
ii. regime constitucional:
A Constituição da República, na quarta versão, - dada pela Lei Constitucional n.º 1/97 de 20 de Setembro -, no artigo 32º n.º 1, incluiu nas garantias da defesa no processo penal, o direito ao recurso, sem diferenciar a impugnação do julgamento dos factos, da reponderação da decisão em matéria de direito. Não consagra, à semelhança dos instrumentos internacionais de direito mencionados, um direito ilimitado e infinito. A Constituição não estatui sobre os graus que o direito ao recurso pode comportar. Sendo certo que exige pelo menos um gau de jurisdição. Compete ao legislador ordinário dar expressão normativa àquele concreto aspeto das garantias de defesa que o processo penal não pode deixar de colocar à disposição do arguido. iii. regime processual penal: Executando o comando constitucional, o Código de Processo Penal consagra o princípio da recorribilidade das decisões proferidas no processo penal – art. 399º -, não admitindo limitações que não estejam expressamente previstas na lei. As sentenças, acórdãos e despachos que não admitem recurso estão catalogadas, essencialmente, no art. 400º. Elenco que inclui a norma do n.º 1 al.ª e), que (em 22 anos) já vai na quarta versão (dada pela Lei n.º 20/2013), com a redacção seguinte: “1- Não é admissível recurso: e) de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos”. O legislador da Lei n.º 20/2013, com a alteração do “regime da admissibilidade de interposição de recursos para o Supremo Tribunal de Justiça”, quis clarificar “que são irrecorríveis os acórdãos proferidos em recurso que apliquem pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos. Sendo igualmente irrecorríveis os acórdãos absolutórios proferidos em recurso, pelas relações relativamente a decisão de primeira instância condenatória em pena de multa, ou em pena de prisão não superior a cinco anos”. Na expressão da então Ministra da Justiça, aquando da discussão parlamentar, respondendo à objecção de uma Deputada: “Foi unicamente o que se fez, esclarecendo que, abaixo dos cinco anos, não havia recurso senão para a Relação”. Na Proposta de Lei n.º 77/XII(1.ª)(GOV), que deu lugar à Lei n.º 20/2013, explicitando os motivos da visada clarificação expende-se que “era essencial delimitar o âmbito dos recursos para o Supremo, preservando a sua intervenção para os casos de maior gravidade e eliminando “as dificuldades de interpretação e assintonias que conduzam a um tratamento desigual em matéria de direito ao recurso” . O Tribunal Constitucional tem afirmado repetidamente “caber na discricionariedade do legislador definir os casos em que se justifica o acesso à mais alta jurisdição, desde que não consagre critérios arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados”. – Ac. .357/2017. O direito ao recurso em processo penal, as limitações que pode admitir, os graus de recurso que pode ou não comportar e os graus de jurisdição a que, por essa via, se pode aceder, são aspectos que têm sido vivamente discutidos, com especial enfoque na jurisprudência do Tribunal Constitucional que até data recente ia univocamente, e sem destrinçar as situações a que se aplicava, no sentido de que a garantia jusconstitucional do direito ao recurso se satisfazia com um grau de jurisdição. Entendia-se que o “conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido consiste no direito a ver o seu caso examinado em via de recurso, mas não abrange já o direito a novo reexame de uma questão já reexaminada por uma instância superior” –Ac. n.º 189/2001. Tribunal que vinha afirmado não ser “arbitrário nem manifestamente infundado reservar a intervenção do STJ, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada. Essa limitação do recurso apresenta-se como «racionalmente justificada, pela mesma preocupação de não assoberbar o Supremo Tribunal de Justiça com a resolução de questões de menor gravidade»” – Ac. .357/2017. Naquele entendimento, no Ac. n.º 49/2003 expende-se: “o acórdão da relação, proferido em 2ª instância, consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição, indo ao encontro precisamente dos fundamentos do direito ao recurso”. “Cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição”. Porquanto, “se o direito ao recurso em processo penal não for entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição, sendo antes perspectivado como uma faculdade de recorrer – sempre e em qualquer caso – da primeira decisão condenatória, ainda que proferida em recurso, deveria haver recurso do acórdão condenatório do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso interposto de decisão da Relação que confirmasse a absolvição da 1ª instância. O que ninguém aceitará”.
Alterando, num aspeto concreto, o sentido da sua jurisprudência, o Tribunal Constitucional, no Acórdão 595/2018 (publicado no DRE n.º 238/2018, Série I de 11-12-2018) declarou, “com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro”. Reiterando que o direito ao recurso pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição, afirma-se que pode não bastar-se com ele. Motivando o juízo de inconstitucionalidade do especificado segmento daquela norma processual, no aresto em citação transcrevem-se do Acórdão 429/2016, os seguintes trechos: “Nestes casos de reversão no tribunal de recurso de uma absolvição em condenação as consequências jurídicas do crime só são definidas no julgamento do recurso. Assim, apesar de o duplo grau de jurisdição facultar ao arguido a possibilidade de contra-alegar no âmbito do recurso interposto da sentença absolutória, esta faculdade não lhe assegura a possibilidade de sindicar o processo decisório subjacente à escolha e à determinação da medida concreta da pena de prisão que será aplicada no futuro e a consequente reapreciação dos respetivos fundamentos. Na verdade, o arguido vê-se confrontado com uma pena de privação de liberdade cujo fundamento e medida não tem oportunidade de questionar em sede alguma. Neste caso, os critérios judiciais de determinação, em concreto, da medida adequada da pena escapam a qualquer controlo”. “Deixar livre de qualquer controlo parte da decisão condenatória, a norma em apreciação implica uma intensa e grave restrição ou compressão do direito ao recurso, uma vez que resulta totalmente excluído da sua proteção o poder de recorrer de uma parte da decisão, precisamente aquela que acarreta o maior potencial de lesão dos direitos fundamentais do arguido” (a escolha e a determinação da pena privativa da liberdade).
Conhecido o fundamento da declaração de inconstitucionalidade do segmento da norma processual em análise, urge questionar se é extensível a todo e qualquer acórdão da Relação que reverte sentença absolutória em condenação e/ou também que simplesmente agrava a condenação da 1ª instância mas sem que aplique pena efectiva de prisão? A resposta negativa decorre não só do teor literal do dispositivo como também, e muito nitidamente, do próprio texto do Ac. 595/2018, e, sobretudo, tem sido reafirmada em arestos posteriores. Efetivamente, do texto do acórdão em referência consta a advertência expressa de que “levado ao limite, este argumento[4] poderia parecer impor a garantia da recorribilidade de qualquer decisão condenatória que se apresente como inovatória, independentemente da pena concretamente aplicada. Poder-se-ia argumentar que, num caso de condenação que reverte uma absolvição de 1.ª instância, o direito ao recurso é tão afetado com a aplicação de pena de multa como com a aplicação da pena máxima de 25 anos de prisão. Um tal raciocínio ad consequentiam (…) baseia-se, no entanto, num paralogismo inaceitável desde logo porque a restrição do direito ao recurso em ambos os casos não é equivalente”. Justificando, explicita-se: “existe, com efeito, uma diferença qualitativa entre a pena de prisão e todas as outras penas que deve ser relevada na verificação do respeito pelo direito ao recurso, enquanto garantia de defesa do arguido. Ignorar as particularidades da pena de prisão efetiva, é desprezar a correlação existente entre o direito fundamental ao recurso e os direitos fundamentais caracteristicamente restringidos pela pena, o que não pode ser aceite, já que é a gravidade da pena que se reflete na esfera pessoal do arguido. Quanto mais grave for a pena aplicada (i.e., quanto mais intensa for a potencial violação dos direitos fundamentais do arguido), maior necessidade existe de garantir o direito ao recurso - ou de, em compensação, contrabalançar a afetação da posição processual do arguido com a proteção de um interesse público igualmente valioso”. Acentuando a diversidade das penas e a especial gravidade da prisão efectiva, acrescenta-se: “Em contraste com a execução coativa das penas não detentivas, a execução da pena de prisão efetiva não pode ser condicionada por qualquer decisão adicional. Não existe qualquer outro meio de defesa ao dispor do condenado para impedir, atenuar ou sequer adiar a execução da prisão efetiva em que é definitivamente condenado. Por conseguinte, a ausência de possibilidade de recurso implica a imediata restrição forçada da sua liberdade o que demonstra o imperativo de se reconhecer ao condenado o direito ao recurso enquanto valor garantístico próprio - e único! - no quadro das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas ao arguido”. Da antecedente citação resulta inquestionável que o Tribunal Constitucional se empenhou, firme e ostensivamente, em deixar patenteado que o necessário equilíbrio entre garantias de defesa do arguido e a racionalidade do sistema judiciário, fez com que tenha circunscrito a declaração de inconstitucionalidade da norma do art. 400º n.º 1 al.ª c) do CPP, taxativamente às situações em que o acórdão da Relação, revertendo decisão absolutória da 1ª instância, condena inovatoriamente o arguido em pena efectivamente privativa da liberdade. Exclui do vício da inconstitucionalidade, expressamente, a reversão de absolvição em condenação numa pena de multa, ou também em outra pena não privativa da liberdade. Não resta, pois, margem para defender que a jurisprudência do Tribunal Constitucional e, designadamente, a declaração de inconstitucionalidade firmada no Ac. 595/2018, serve de “chapéu” para abrigar o entendimento de que é inconstitucional também o primeiro segmento da norma do art. 400º n.º 1 al.ª e) do CPP, ou seja, na parte em que estatui que não é admissível recurso de acórdão da Relação que, revertendo sentença absolutória, condena o arguido em pena não privativa da liberdade (máxime: multa, pena suspensa, proibição do exercício de profissão, função ou actividades, prestação de trabalho, admoestação). Que é assim de claro, ademais do próprio texto do Acórdão, resulta evidenciado pelo voto do Presidente do Tribunal Constitucional que ficou vencido porque, embora concordando “inteiramente com a decisão”, queria mais e, por isso, defendeu o alargamento da declaração de inconstitucionalidade “pelo menos, na direção da multa aplicada a pessoa singular” por não lhe parecer “que haja uma diferença decisiva ditada pela natureza da pena, em definitivo aplicada”, argumentando que “do ponto de vista teleológico e político-criminal, em matéria de recurso há uma grande comunicabilidade entre a condenação em prisão efetiva e, por exemplo, a condenação em multa”. Voto que aqui vem à colação tão-somente para evidenciar que o âmbito daquela declaração de inconstitucionalidade foi propositadamente circunscrito à reversão de absolvição em condenação a pena efectiva de prisão. Realmente, a interpretação da norma que foi inconstitucionalizada, tem como substrato dois pilares ali bem evidenciados: -absolvição em 1ª instância; Na nossa leitura do aresto em análise, do vício da inconstitucionalidade está excluída, sem qualquer margem para divergir, a limitação do direito ao recurso de acórdão da Relação que revertendo sentença absolutória condena inovatoriamente o arguido em pena de multa. Mas também assim sucede em qualquer outra situação em que a reversão da absolvição não resulte na aplicação de pena efectiva de prisão. Deste modo, e no que para a economia deste caso interessa, pode afirmar-se que a declaração de inconstitucionalidade não beliscou a conformidade do primeiro segmento da norma do art. 400º n.º 1 al.ª c) do CPP (reversão da absolvição em condenação a pena não privativa da liberdade) com o direito ao recurso consagrado no art. 32º n,º 1 da Constituição da República e, consequentemente, não determinou a invalidade da limitação daquele direito de defesa, consistente na irrecorribilidade dos acórdãos condenatórios da Relação que, inovatoriamente face a absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena não privativa da liberdade. h) - jurisprudência posterior (recente): Porque a norma em referência comporta outras situações, - designadamente quando a decisão da 1ª instância é já condenatória -, identicamente restritivas do direito de recorrer das decisões judiciais desfavoráveis em matéria penal, que estão para além da declaração firmada no Ac. 595/2018 e também da exclusão que teve o cuidado de patentear, certamente que a controvérsia sobre o seu âmbito, os graus de recurso e de jurisdição admissível, vai persistir, senão intensificar-se como indiciam recentes acórdãos deste Supremo Tribunal e do Tribunal Constitucional.
O Supremo Tribunal, no Acórdão de 9/05/2019 (proferido no proc. n.º 13/17.3SWLSB.S1.L1, disponibilizado em www.dgsi.stj.pt) entendeu que a declaração de inconstitucionalidade não é extensível aos demais segmentos da norma, interpretados com o sentido de não ser admissível recurso dos acórdãos da Relação que não revertam absolvição em inovatória condenação em pena efectiva de prisão. Em causa estava acórdão da Relação que, mediante recurso do Ministério Público, agravou a punição: na 1ª instância os arguidos tinham sido condenados em pena suspensa (pena de prisão com execução suspensa); a 2ª instância elevou a medida da pena e aplicou prisão efectiva. Entendimento ancorado essencialmente na leitura estrita do Ac. 595/2018 e, mormente, na motivação expendida no Ac. n.º 476/2018 (de 3 de outubro de 2018), e que aqui se reproduz: “Contrariamente ao caso que ditou o referido julgamento de inconstitucionalidade, nos presentes autos, a arguida foi condenada na 1ª instância. Ora, a decisão alcançada no referido Acórdão (…) fundamentou-se, precisamente, no específico caráter inovatório da condenação processada em 2ª instância. Não ocorrendo semelhante circunstância no presente caso, resta concluir pela improcedência do juízo de inconstitucionalidade, e pela reafirmação da jurisprudência nesta matéria consolidada. À mesma conclusão tem o Tribunal Constitucional chegado em casos semelhantes, como decorre da recente Decisão Sumária n.º 37/2017 (disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias.html), a qual decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, interpretada no sentido de que é vedado o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da Relação que, em recurso, imponha ao arguido não recorrente pena privativa de liberdade não superior a 5 anos, em substituição de outra que não continha tal privação. A referida decisão tem o seguinte teor, no que ao presente caso releva: Idêntico entendimento foi subsequentemente sufragado nos já referidos Acórdãos n.°s, 804/2017, de 29 de novembro, e 101/2018, de 21 de fevereiro. Neste último se sublinhou uma vez mais que «os Acórdãos n.ºs 412/2015 e 429/2016 não apreciaram ‘a mesma norma’ que está em causa neste processo», mas «a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro.» Diversamente do que acontece em tais casos, «quando o recurso visa, precisamente, a revogação da decisão de primeira instância no segmento em que determinou a suspensão da execução da pena de prisão, o arguido recorrido pode, em contra-alegações, pronunciar-se sobre todas as questões de facto e de direito relevantes para a apreciação dessa pretensão recursória”. No mesmo sentido, isto é, de a declaração de inconstitucionalidade firmada no Ac. 595/2018 não poder extrapolar-se para situações diversas daquela que especificadamente contém, decidiu-se também no Ac. de 16-05-2019, deste Supremo Tribunal (proc. 407/14.6TAVRL.C1.S1, consultável em www.dgsi.stj.pt) que versou sobre recurso de acórdão da Relação, no qual se decidiu alterar o julgamento da matéria de facto e, revertendo sentença absolutória, condenar o arguido em pena não privativa da liberdade (pena suspensa). Ou seja, em situação igual à dos presentes autos. Sustenta ali que a “[in]constitucionalidade da norma acima referida cinge-se somente àquela situação de reversão de uma decisão absolutória numa inovatória decisão condenatória em pena de prisão, e por causa dessa específica sanção”. No mesmo sentido decidiu-se igualmente o Ac. de 11/09/2019, proferido no proc. n.º 390/17.6JACBR.C1.S1 (ainda não publicado). Não é, porém, uniforme o entendimento deste Supremo Tribunal sobre a questão. No Ac. de 19-06-2019 (proferido no proc. 319/14.3 GCVRL.G1, consultável em www.dgsi.stj.pt) entendeu-se que “por identidade de razões, e fazendo jus a uma interpretação da norma ínsita no art. 410º, nº 1, e), do CPP, conforme com a CRP (concretamente, o direito ao recurso sem limitações desproporcionadas e em termos que realmente garantam o princípio do duplo grau de jurisdição, enquanto expressão das garantias de defesa do arguido, consagradas no art. 32.º, n.º 1, da CRP), são recorríveis os acórdãos em que a Relação inovatoriamente condena os arguidos em pena de prisão efetiva, seja em caso de i) absolvição na 1.ª Instância, seja em caso de anterior condenação em ii) pena de prisão suspensa na sua execução ou em iii) pena de multa”. Todavia, as decisões que admitiram recurso da Relação em caso de reversão de absolvição ou tão-somente de agravamento da anterior condenação sem que daí resultasse a imposição de prisão efetiva, não recusaram, por desconformidade com o direito ao recurso consagrado no art. 32º n.º 1 da Constituição da República, a interpretação dos correspondentes segmentos da norma do art. 400º n.º 1 al. c) do CPP. Dito de outra maneira, não decidiram desaplicar a norma em causa com fundamento na sua inconstitucionalidade. ii. do tribunal Constitucional: Por sua vez, o órgão judicial “ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional” –cfr art. 221º da Constituição da República -, na mais recentemente jurisprudência, tem reiteradamente afirmado não ofender o direito ao recurso constitucionalmente consagrado a norma processual em apreço no segmento em que não permite recorrer de acórdão da Relação que alterando sentença absolutória, condena o arguido em pena não privativa da liberdade. Assim dá fé e comprova no Ac. n.º 372/2019 de 19 de junho -já citado -, prolatado sobre reclamação da Decisão Sumaria n.º 341/2019, de que ali se transcreve o trecho seguinte (e que aqui se reproduz): A improcedência da pretensão em apreço decorre com clareza da jurisprudência já prolatada pelo Tribunal Constitucional sobre a temática da irrecorribilidade de determinadas decisões em matéria penal, de que em seguida se dá conta. 5.1. Deve desde logo atentar-se nos Acórdãos n.º 101/2018, n.º 804/2017 e n.º 357/2017, todos prolatados no sentido da não inconstitucionalidade. No último Acórdão referido, este Tribunal afirmou: «4. A norma que constitui a ratio decidendi da decisão recorrida foi já objeto de vários arestos proferidos pelo Tribunal Constitucional, que têm afirmado que a garantia de recurso e demais garantias de defesa constantes do art. 32.º da CRP se bastam com a garantia de um grau – e não dois – de recurso (ver, entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 189/2001, 336/2001, 369/2001, 49/2003, 377/2003, 495/2003 e 102/2004, disponíveis, assim como a restante jurisprudência constitucional citada, em http://www.tribunalconstitucional.pt). Mais especificamente quanto à irrecorribilidade decorrente da alínea e) do n.º 1, do artigo 400.º, do CPP na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, veja-se o que o Tribunal Constitucional decidiu nos Acórdãos n.º 276/2015, 516/2015 e 418/2016. De facto, tem sido repetidamente afirmado, pela jurisprudência deste Tribunal, a este propósito, caber na discricionariedade do legislador definir os casos em que se justifica o acesso à mais alta jurisdição, desde que não consagre critérios arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados. E que não é arbitrário nem manifestamente infundado reservar a intervenção do STJ, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada. Essa limitação do recurso apresenta-se como “racionalmente justificada, pela mesma preocupação de não assoberbar o Supremo Tribunal de Justiça com a resolução de questões de menor gravidade (como sejam aquelas em que a pena aplicável, no caso concreto, não ultrapassa o referido limite), sendo certo que, por um lado, o direito de o arguido a ver reexaminado o seu caso se mostra já satisfeito com a pronúncia da Relação e, por outro, se obteve consenso nas duas instâncias quanto à condenação” (citado Acórdão n.º 451/03)» (cfr. Acórdão n.º 551/2009, n.º 7). 5. No que ao presente caso respeita, importa reiterar essa jurisprudência sedimentada. De facto, a mesma não é invalidada, no presente contexto, pelo Acórdão n.º 429/2016, o qual julgou inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, resultante da revisão introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos. De facto, não está em causa, nos presentes autos, questão equivalente à decidida naquele aresto. Contrariamente ao caso que ditou o referido julgamento de inconstitucionalidade, nos presentes autos, a arguida foi condenada na 1ª instância. Ora, a decisão alcançada no referido Acórdão (…) fundamentou-se, precisamente, no específico carácter inovatório da condenação processada em 2.ª instância. Não ocorrendo semelhante circunstância no presente caso, resta concluir pela improcedência do juízo de inconstitucionalidade, e pela reafirmação da jurisprudência nesta matéria consolidada. À mesma conclusão tem o Tribunal Constitucional chegado em casos semelhantes, como decorre da recente Decisão Sumária n.º 37/2017 (disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias.html), a qual decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, interpretada no sentido de que é vedado o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da Relação que, em recurso, imponha ao arguido não recorrente pena privativa de liberdade não superior a 5 anos, em substituição de outra que não continha tal privação. (…) 5.2. Idêntico entendimento foi subsequentemente sufragado nos já referidos Acórdãos n.º 804/2017, n.º 101/2018 e n.º 476/2018. Neste último se sublinhou uma vez mais que «os Acórdãos n.ºs 412/2015 e 429/2016 não apreciaram ‘a mesma norma’ que está em causa neste processo», mas «a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro». Diversamente do que acontece em tais casos, «quando o recurso visa, precisamente, a revogação da decisão de primeira instância no segmento em que determinou a suspensão da execução da pena de prisão, o arguido recorrido pode, em contra-alegações, pronunciar-se sobre todas as questões de facto e de direito relevantes para a apreciação dessa pretensão recursória.» Esclarece-se que subjacente à questão de inconstitucionalidade apreciada na transcrita Decisão Sumaria e no citado Acórdão do TC, estava acórdão da Relação que aplicou pena suspensa e que a sentença da 1ª instância tinha sido também condenatória. Decisão Sumaria que, na fundamentação, contemplando a irrecorribilidade de acórdão da Relação que, anulando absolvição decretada na 1ª instancia, condena a arguida em pena de multa. Da sua motivação consta: “No presente processo, como já se referiu, a norma sub judice é distinta da que era objeto de fiscalização no Acórdão n.º 429/2016. Está em causa o direito ao recurso de uma condenação em pena não privativa da liberdade, mais concretamente, em pena de multa proferida por um tribunal de 2.ª instância em reversão de um juízo de absolvição resultante do julgamento de 1.ª instância. (…) Diante da natureza da sanção resultante da condenação proferida em 2.ª instância, a que alude a norma sob escrutínio, o que importa, então, analisar é se a limitação ao direito de recorrer para uma terceira instância (o Supremo Tribunal de Justiça) será uma solução tolerada pela Constituição, designadamente por se apresentar como proporcionada à prossecução do interesse reconhecido na racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça. (…) No Acórdão n.º 672/2017, da 3.ª Secção, estando em causa o sentido normativo extraído do artigo 400.º, n.º 1, alíena e), do CPP, segundo o qual não é passível de recurso o acórdão da Relação que, perante absolvição ocorrida em 1.ª instância, condene o arguido em pena de multa alternativa, o Tribunal, no ponto 14, referiu que: «(…) estando somente em causa a fixação do número de dias da pena de multa e respetiva taxa diária, a efetiva possibilidade de condicionar esse juízo tendo por base os factos já fixados nos autos, apesar de não corresponder à mais ampla ou eficaz modalidade de concretização do direito ao recurso, não coloca tal direito, como se entendeu suceder ali, aquém do ponto constitucionalmente prescrito pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição. Trata-se, pelo contrário, de uma opção que cabe ainda na ampla margem de conformação que ao legislador ordinário assiste no âmbito da definição do elenco das decisões (ir)recorríveis, cujo resultado não é, relativamente aos fins que através dela se prosseguem, desproporcionado ou excessivo.» (…) Em consequência, concluiu-se no aludido Acórdão, ponto 14: «Encontramo-nos, em suma, no âmbito das hipóteses – que o Acórdão n.º 429/2016 expressamente ressalvou – em que, sob pena de irremediável frustração de qualquer esforço de racionalização do sistema judiciário, o direito ao recurso é concretizável de forma constitucionalmente não censurável através do mero asseguramento do duplo grau de jurisdição.» 17. Também no presente recurso estamos diante de uma norma que veda o recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que, revertendo a absolvição de primeira instância, apliquem pena de multa. É, pois, incontestável que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral firmada no Acórdão 595/2018 não é extensível a outras situações abrangidas pela primeira parte da previsão do art. 400º n.º 1 al.ª e) do CPP, não podendo incluir-se nos seus termos o recurso dos acórdãos da Relação que revertendo sentença absolutória, imponham pena de multa ou penas não privativas da liberdade. Como se observou, nos autos, a arguida foi absolvido na 1ª instância porquanto os factos que o tribunal singular julgou provados não preenchiam todos os elementos constitutivos do crime de abuso de confiança que lhe era imputado. A assistente reagiu contra o julgamento da factualidade e a absolvição dos arguidos, invocando, além do mais, o vício do erro notório na apreciação da prova. Os arguidos (e o Ministério Público) puderam responder, ponto por ponto, à motivação da ali recorrente, rebatendo, especificadamente, às razões aduzidas pela assistente para demonstrar o invocado vício lógico da decisão, e puderam argumentar em defesa da manutenção do julgamento dos factos, apresentando os motivos que, em seu entender, justificavam a confirmação da decisão em matéria de facto e a sentença absolutória. É, incontestável que a alteração do julgamento dos factos e a consequente e conforme reversão da absolvição, era uma decisão que os arguidos podiam prever e esperar. E, por isso, podiam e deveriam antecipar a argumentação destinada a influir na escolha e na medida das consequências jurídicas do crime que a assistente insista a que se fossem condenados. O Tribunal da Relação, resolvendo a controvérsia que lhe foi apresentada, pela simples leitura e analise do próprio texto da sentença recorrida, por si só e à luz das regras da experiência, conclui que padecia do vício lógico que a assistente lhe assacava e, corrigindo-a, expurgou o julgamento da matéria de facto do mencionado erro notório. Subsumindo os factos provados ao direito aplicável condenou os arguidos na pertinente consequência jurídica do crime que tinham cometido. Recorrem agora impugnando o julgamento dos factos que a Relação julgou provados. Como se deu conta, a inconstitucionalidade da norma em referência quando interpretada com o sentido assinalado, restritivo do direito ao recurso, alicerça-se na indefesa do condenado na parte referente à escolha e/ou à medida de uma pena privativa da liberdade, para a qual não pôde contribuir e da qual já não poderia reagir. Depreende-se da fundamentação da declaração de inconstitucionalidade que não se pode dizer que exista indefesa contra a reversão da alteração da decisão em matéria de facto. E percebem-se as razões porquanto as provas não são outras que aquelas que foram produzidas na 1ª instância. Nesse caso, a arguida, ali recorrida, pôde realmente contra-argumentar e rebater, especificadamente, os motivos da pretensão recursória condenatória. Querendo, podia também “requerer que se realiz[asse] audiência, especificando os pontos da [contra]motivação do recurso que pretend[ia] ver debatidos” (arts. 413º n.º 4 e 411º n.º 5 do CPP), comparecer e aí alegar (art. 423 n.º 3 do CPP) o que tivesse por conveniente, nomeadamente sobre a reclamada condenação. A procedência do recurso resultava, como resultou, na condenação em uma das penas legalmente previstas, consentida pelo tipo de ilícito cometido. Por isso, a arguida, podia e devia ter antecipado a aplicação de uma pena como um dos resultados possíveis e, agindo diligentemente, esgrimir argumentos sobre a sua espécie e medida. Não obstante ser previsível a condenação, a arguida não teve possibilidade real de influir na escolha e na medida da pena. Não releva para o caso se tal impossibilidade também pode, em alguma medida, ser imputada à sua atuação processual (podia requerer audiência e aí alegar também sobre a questão da determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar –arts. 423º n.º 3 e 5 e 369º n.º 2, 1ª parte, do CPP) porquanto a condenação se traduziu num pena não privativa da liberdade. Pena que, segundo a lei processual penal, - com o aval da conformidade à Constituição da República dado pelo Tribunal Constitucional -, justifica a limitação do recurso a um só grau de jurisdição, não admitindo um terceiro grau de jurisdição tanto em matéria de facto como também de direito. Nestes casos, o direito ao recurso pode satisfazer-se, adequada e proporcionadamente, com um duplo grau de jurisdição, assegurado pelo acórdão da Relação, proferido em segunda instância.
O vertente recurso tem a singularidade de se limitar à impugnação da alteração do julgamento da matéria de facto efectuada pela Relação. Efectivamente, a arguida, alegando que “o Tribunal recorrido mal andou em alterar a matéria de facto considerada provada e não provada pelo Tribunal de 1.ª instância e, consequentemente, em condenar a recorrente” (cls D) entende-se “que deve ser considerada como não provada a seguinte factualidade” (que enuncia) –cfr cls I. No demais, limita-se a esgrimir que “a matéria de facto considerada provada pelo Tribunal de 1.ª instância não permite qualquer conclusão quanto à apropriação que faz parte do elemento objectivo do tipo de crime em apreciação nos presentes autos” –cls E. Não diz o mesmo (que não preenche os elementos constitutivos do crime), honestamente, da factualidade que resultou assente pela decisão prolatada no acórdão recorrido. Aliás, a tal respeito não faz qualquer alusão. O legislador processual penal, estabeleceu, como regra geral, a limitação dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça à reapreciação do direito aplicado nas decisões das instâncias, estabelecendo no art.434º do CPP: “Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito”. Prescreve que nos recursos em matéria de facto, o STJ não é um tribunal de instância, estando-lhe vedado sindicar a apreciação das provas e a fixação dos factos materiais da causa. Funciona como tribunal de revista, alargada à deteção de vícios lógicos de que possa adoecer a decisão recorrida. Resulta, consequentemente, estar vedado a este Supremo Tribunal o reexame da matéria de facto, o que significa que a decisão proferida pelo Tribunal da Relação sobre aquela matéria se tornou definitiva, sendo pois inalterável através de recurso ordinário. Assim sendo, não é admissível o recurso da arguida para o STJ, visando apenas que se reexamine e se reverta o julgamento dos factos efectuado pela Relação, pugnando pela reversão à matéria de facto decidida pela 1ª instancia. Interpretação normativa e aplicação judicial compatível com o entendimento de que, em matéria de facto, o direito ao recurso se satisfaz, suficiente e adequadamente, com um grau de jurisdição, no caso efetivamente exercido perante - e pelo - tribunal da Relação. Ainda que não sendo necessariamente aplicável no vertente recurso, pelas razões aduzidas mais acima e, nomeadamente, porque se entende que a inconstitucionalidade com força obrigatória geral decretada no Ac. 595/2018 não é extensível ao primeiro segmento da norma do art. 400º n.º 1 al.ª e), não deve escamotear-se que, a jurisprudência que segue outro entendimento poderá deparar-se com sérias dificuldades em justificar convincentemente a aplicação do disposto no art. 434º às situações, como a dos autos, em que o reversão da absolvição decorre tão-somente da alteração do julgamento em matéria de facto e, especificamente, pela verificação de vícios lógicos da decisão. É que, como se sinaliza no voto de um dos Conselheiros do Tribunal Constitucional que ficou vencido, “encontram-se aqui imbricadas duas questões diferentes que não podem ser confundidas. Uma é a (…) de saber se (…) [o regime] fixado pela lei processual penal satisfaz (…) plenamente as exigências decorrentes do direito a um duplo grau de jurisdição. Outra a questão de saber em que circunstâncias é que se deve entender que, existindo julgamento em segunda instância, ainda assim impõe a Constituição que se abra nova via de recurso para tribunal superior”. Precisando não estar em causa “a admissibilidade constitucional de um conceito alargado de direito ao recurso (faculdade de pedir sempre o reexame por um tribunal superior de uma primeira decisão desfavorável, nomeadamente se estiver em causa uma condenação que implique a privação da liberdade do arguido). Contudo já é mais difícil aceitar que o direito ao recurso, neste entendimento mais alargado - que parece ser o sufragado pela maioria -, não deva ter sempre o mesmo conteúdo, admitindo distinções consoante o tribunal de recurso: reexame da decisão recorrida quanto à matéria de facto e de direito, incluindo, portanto, a possibilidade de renovação da prova, no caso das relações; e mera revista alargada, no caso do Supremo Tribunal de Justiça”. Noutra expressão: a Constituição da República consente que o legislador diference substancialmente o recurso em matéria de facto pela simples razão de ter sido inovatória e decisivamente fixada pela Relação? Da motivação daquela declaração de inconstitucionalidade com força geral e obrigatória, extrai-se que o Tribunal Constitucional tem como não ofensiva do direito consagrado no art. 32º n.º 1 da Constituição da República. a diferenciação não só quando o recurso é restrito à impugnação da matéria de facto como também em matéria de direito, concretamente nas demais situações englobadas na previsão do art. 400º n.º 1 al.ª c) do CPP, conquanto não tenha sido revertida absolvição em inovatória condenação em pena efectiva de prisão. Ressuma também, implicitamente, que nesta situação – inovatória condenação na 2ª instância -, o recurso para o STJ se deve circunscrever ao enquadramento jurídico-penal dos factos, ou seja, à questão da escolha e/ou da medida da pena aplicada. A admitir-se que o recurso pode abranger também a condenação, isto é, o próprio sentido da decisão (condenatória), na esmagadora maioria dos casos, não seria fácil justificar a não reapreciação dos fundamentos da reversão, radiquem eles em vícios lógicos da decisão, no in dúbio pro reo, ou no julgamento dos factos. Introduzido um terceiro grau de jurisdição nestas questões, diminuiria consideravelmente o regime de cognição do STJ, cuja essência de controlo de legalidade sobre os tribunais de instância e de uniformização de jurisprudência deve ser preservada.
A resolução da questão prévia suscitada nos autos pela recorrente basta-se com o entendimento de que a irrecorribilidade dos acórdãos da Relação que, revertendo sentença absolutória condenam inovatoriamente a arguida em pena não privativa da liberdade, estabelecida na primeira parte da norma do art. 400º n.º 1 al.ª e) do CPP, não é desconforme com os limites ao direito ao recurso constitucionalmente consentidos (admitidos também nos instrumentos de direito internacional sobre os direitos humanos). m) rejeição de recurso: Recurso que o Tribunal da Relação devia ter rejeitado, em conformidade com o expendido, e à luz do disposto no art. 414º n.º 2 do CPP. Todavia, a decisão de admissão do recurso no tribunal a quo não vincula o tribunal ad quem –art. 414º n.º 3 do CPP. Dispõe o n.º 2 do art. citado em último lugar que “o recurso não é admitido quando a decisão for irrecorrível”. Por sua vez, o art. 420º estatui que, “o recurso é rejeitado sempre que: c) Se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414”. É o que se verifica no vertente recurso. A rejeição do recurso implica a condenação da recorrente ao pagamento de uma importância entre 3 UC e 10 UC. Sanção processual que no caso se tem por adequada e suficiente se situar em medida igual ao seu limiar inferior.
Nos termos expostos, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, acorda em: ---- a) - julgar improcedente a questão prévia da inconstitucionalidade da norma do art.º 400º n.º 1 al.ª e) do CPP, interpretada com o sentido de que não admite recurso acórdão da Relação que revertendo absolvição, aplica pena suspensa (pena não privativa da liberdade); b) - rejeitar o recurso da arguida, por não ser legalmente admissível nos termos da citada norma –cfr arts 414º n.º 2 e 420 n.º 1 al.ª b) do CPP; c) - condenar a recorrente BB na sanção processual prevista no arts. 420º n.º 3 do CPP, que se fixa em 3UCs; * Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs. * * Lisboa, 18 de setembro de 2019 Nuno Gonçalves (Relator) Pires da Graça ------------------
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