Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
97P1444
Nº Convencional: JSTJ00033433
Relator: FLORES RIBEIRO
Descritores: FALSIFICAÇÃO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
CHAPA DE MATRÍCULA
AUTORIA
TENTATIVA
Nº do Documento: SJ199803110014443
Data do Acordão: 03/11/1998
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N475 ANO1998 PAG480
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: SIMAS SANTOS E LEAL HENRIQUES IN CÓDIGO PENAL ANOT 2ED PÁG741.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/SOCIEDADE / TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 26 ARTIGO 228 N1 A N2 ARTIGO 229 N1 N3.
CP95 ARTIGO 256 N1 A N3.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ PROC40205 DE 1989/10/18.
ACÓRDÃO STJ PROC582/97 DE 1997/10/15.
Sumário : I - Vem sendo jurisprudência maioritária dos nossos tribunais a que entende ser crime de falsificação de documento autêntico, previsto e punido no artigo 256 n. 1, alínea a), e n. 3 do C.P. 95 (ou o previsto e punido no artigo 228 n. 1, alínea a), e n. 2 do CP82) a substituição de chapa da matrícula de um veículo automóvel por uma outra que esteja em desacordo com a fixada no livrete respectivo.
II - Como flui do artigo 26 do Código Penal, não é necessário que cada co-autor tome parte na execução de todos os actos, pois é da essência da co-autoria cada comparticipante querer causar o resultado como próprio, mas com base numa decisão conjunta e com forças conjugadas.
III - Como não ficou provado o crime consumado, mas que apenas se realizaram actos de execução, a que não se seguiu a consumação por razões alheias à vontade do arguido e seus acompanhantes, só como tentativa o facto ilícito se poderá qualificar.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1. Subsecção
Criminal.
No Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Foz Côa respondeu, em processo comum e perante o tribunal colectivo, o arguido A, com os sinais dos autos, pronunciado pela prática, em concurso real, de um crime de abuso de confiança, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22, 23, 26, 300 ns. 1 e 2, e de um crime de falsificação de documento, previsto e punido nos termos dos artigos 26, 228 n. 1 alínea a) e 2 e
229, ns. 1 e 3, todos do Código Penal de 1982.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, veio o tribunal colectivo, em face da prova produzida, em julgar a pronúncia improcedente, por não provada, em relação ao crime de abuso de confiança, dela absolvendo o arguido; e a condená-lo, pela prática de um crime de falsificação de documentos, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22, 23, 73, n. 1 alínea c) e 256, ns. 1, alínea a) e 3, do Código Penal de 1995, na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de 7500 escudos. Foram declarados perdoados 180 dias da referida pena de multa, por força do disposto no artigo 8, n. 1 alínea c), da Lei n. 15/94, de 11 de Maio, pelo que lhe resta a pena de 120 dias de multa, à taxa de
7500 escudos, o que perfaz o montante de 900000 escudos.
Com o assim decidido não concordou o arguido e daí o ter interposto o presente recurso.
E da motivação apresentada, extraiu as seguintes conclusões:
1- Ao concluir pela tipificação do crime de falsificação de documentos na forma tentada e condenar o arguido pela prática deste crime, tendo em conta que não continha nem a pronúncia nem a acusação factos que permitissem tal tipificação, violou-se o disposto nos artigos 358 e 359 do Código de Processo Penal, por alteração quer não substancial quer substancial dos factos descritos na acusação e na pronúncia, designadamente por na pronúncia não se descrever qualquer acto executório ou preparatório do crime pelo aqui arguido, seja com relação ao objecto da acção criminosa, seja quanto aos elementos material e intelectual, seja quanto ao processo executivo.
2- Ao concluir-se no douto acórdão de que o comportamento do arguido preenchia o tipo legal de crime porque veio a ser condenado sem fazer subsumir os factos ao crime - há insuficiência da matéria de facto devendo este Supremo Tribunal de Justiça conhecer nos termos do n. 2, alínea a) do artigo 410 do Código de Processo Penal.
3- Há ainda contradição insanável da fundamentação - de conhecimento deste Supremo Tribunal de Justiça nos termos do artigo 410, n. 2, alínea b) - porquanto se faz tipificar um crime que pressupõe a co-autoria de dois anteriores co-arguidos, que foram absolvidos do mesmo crime, sendo por tal impossível a prática do crime pelo aqui arguido.
4- Há erro notório na apreciação da prova - que este Supremo Tribunal de Justiça deve conhecer nos termos do artigo 410, n. 2, alínea c) - porquanto apreciada a conduta dos anteriores co-arguidos por outro tribunal colectivo, com a mesma pronúncia e com os mesmos factos estes foram absolvidos.
5- O tribunal recorrido interpretou as disposições conjugadas dos artigos 22, 23, 73, n. 1 alínea c) e 256 n. 1 alínea a) e 3, do Código Penal, no sentido de que haveria tentativa de falsificação porquanto o arguido teria tentado, com outros, forjar ou alterar as chapas de matrícula de um veículo, sendo que só não consumou o acto por a G.N.R., entretanto, ter surgido; ora, por forjar só se pode entender a contrafacção total ou parcial, tal como se escreve no douto acórdão recorrido. Não resulta mesmo do acórdão que o arguido tenha alterado o conteúdo de qualquer elemento identificador do automóvel ou acrescentado, aditado ou suprimido dizeres ou sinais e, muito menos, que tenha sido interrompido na realização de tais actos pela G.N.R., ou tenha revelado qualquer subjectividade criminosa; toda a actuação descrita na pronúncia e mesmo no douto acórdão não individualiza quer os elementos materiais quer os elementos intelectuais quer ainda o processo executivo do aqui arguido, sendo que, ficando absolvidos, os anteriores co-arguidos, a especial conduta que pressupunha um plano não pode proceder - artigo 412 n. 2 alínea b), do Código de Processo Penal.
Deve, assim, o arguido ser absolvido.
Na resposta que apresentou, o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público defende a manutenção do decidido.
Neste Supremo, a Excelentíssima Procuradora-Geral Adjunta teve vista dos autos e foi proferido o despacho preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a audiência oral, cumpre decidir.
É a seguinte a matéria de facto dada como provada:
1- No dia 29 de Maio de 1991, pelas 20 horas, na sequência de um plano previamente acordado entre todos, o arguido encontrou-se com B e C, no Bairro ..., em Vila Nova de Foz Côa, em frente ao edifício pertencente a D, identificado a folha 173 dos autos.
2- Uma vez aqui chegados, o C retirou do interior do veículo em que se fazia transportar duas chapas de matrícula portuguesa, próprias para veículos automóveis, preenchidas com os seguintes caracteres: "HX", as quais entregou ao arguido e ao B, dirigindo-se todos em seguida para o interior de uma garagem sita no prédio acima referido, onde o arguido A guardava um veículo automóvel de marca Renault ..., descrito no auto de exame de folha 37, cujos termos aqui se dão por reproduzidos.
3- Este veículo apresentava-se com a fechadura da porta do lado do condutor com sinais de ter sido estroncada e a respectiva chave da ignição não correspondia à original.
4- Tal veículo havia sido furtado em 25 de Janeiro de 1990, em Pierre Fitte, França, em circunstâncias que se desconhecem e tinha a tapar o buraco da respectiva fechadura um objecto em plástico preto.
5- Havia possuído matrícula francesa, estando uma das respectivas chapas caída no chão da garagem.
6- Uma vez no interior da mesma garagem, o arguido e os seus acompanhantes, fixaram na parte posterior do referido veículo uma das citadas chapas de matrícula "HX" matrículas estas que, contudo, haviam sido atribuídas a um outro veículo automóvel de marca Renault ..., com características muito semelhantes às daquele, registado em nome de E, entretanto falecido num acidente de viação com o referido Renault , do que resultou também a perda total deste.
7- Nem o arguido, nem os seus acompanhantes possuíam qualquer elemento de identificação do veículo a que estavam a mudar as matrículas.
8- Ao actuarem pela forma descrita quer o arguido, quer os seus acompanhantes, fazendo-o concertadamente, quiseram apor no renault 19 as referidas chapas de matrícula, sabendo que as mesmas haviam sido atribuídas a outro veículo, entretanto destruído em acidente de viação.
9- O arguido e seus acompanhantes pretendiam colocar o veículo em causa em circulação com as matrículas que lhe estavam a ser apostas, visando assim ludibriar as autoridades fiscalizadoras respectivas quanto aos verdadeiros elementos de identificação do mesmo, furtá-lo à necessária legalização e, deste modo, obterem para si vantagens patrimoniais a que sabiam não terem direito.
10- O arguido e seus acompanhantes actuaram em toda a descrita conduta em comunhão de esforços e intenções, de forma determinada e livre, sabendo ser a mesma conduta criminalmente punida.
11- O arguido que em julgamento se recusou a prestar declarações, tem uma situação económica muito próspera, exercendo a sua actividade nos sectores do comércio automóvel e do mobiliário, possuindo, quanto a este, dois estabelecimentos comerciais.
12- Não regista passado criminal e o seu comportamento social não tem merecido reparos.
De acordo com o artigo 433 do Código de Processo Penal, sem prejuízo do disposto no artigo 410, ns. 2 e 3, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.
É pacífica a jurisprudência deste Supremo no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo de se pronunciar sobre questões de conhecimento oficioso.
Determina o n. 2 do artigo 410 que "mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; c) Erro notório na apreciação da prova".
Como resulta claramente dos termos da lei e é jurisprudência constante deste Supremo Tribunal, para que ocorra qualquer dos vícios nele previstos é necessário que os mesmos procedam do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem o recurso a quaisquer elementos a ele estranhos, ainda que constantes do processo. Pode ver-se neste sentido e a título de exemplo o acórdão de 15 de Outubro de 1997, Processo n....
Quanto ao vício previsto na alínea a), vem igualmente sendo decidido de modo constante que o mesmo só se verificará quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão proferida - acórdão de 5 de Maio de 1993, Processo n. ....
E quanto ao erro notório na apreciação da prova ele terá que ser de tal modo evidente que não escape à observação do homem medianamente dotado.
O crime de falsificação pelo qual o ora recorrente veio a ser condenado em 1. instância, encontra-se assim redigido - artigo 256 n. 1 alínea a) - "Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao
Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo: a) Fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento, ou abusar de assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso,...". E o n. 3 agrava a pena aqui prevista "se os factos referidos no n. 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força".
Se tivermos presente a matéria de facto dada como provada, nomeadamente os factos descritos nos ns. 2, 5, 6 e 8, temos que concluir que todos os elementos do crime se acham comprovados.
Fundamenta-se o recorrente no facto de os dois co-arguidos terem sido absolvidos da mesma acusação, pois o processo era o mesmo.
Já acima se referia que, para que se possa chegar à conclusão que ocorreu algum dos citados vícios, apenas se pode lançar mão da decisão recorrida e nada mais. O facto de os co-arguidos terem sido julgados em separado e absolvidos, não pode ser invocado neste momento, por ser estranho à decisão recorrida. Acresce que tais arguidos foram julgados por outros juízes que, em face da prova produzida e do disposto no artigo 127 do Código de Processo Penal, chegaram a uma outra convicção. Mas tal convicção não pode vir intrometer-se naquela a que os juízes que proferiram a decisão agora em análise chegaram.
Por isso, não podem ocorrer os vícios de contradição insanável e erro notório que o recorrente diz existir - conclusões 2, 3 e 4.
Daí que toda a matéria de facto dada como provada se tenha que admitir como assente.
Segundo o artigo 26 do Código Penal é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros.
Como resulta dos ns. 8 e 10 dos factos provados, o recorrente agiu em co-autoria na prática dos factos ilícitos. Como flui do citado artigo, não é necessário que cada co-autor tome parte na execução de todos os actos, pois é da essência da co-autoria cada comparticipante querer causar o resultado como próprio, mas com base numa decisão conjunta e com forças conjugadas - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de
18 de Outubro de 1989, Processo n..... Daqui que cada um deles responde pela totalidade do evento. Sendo assim, não interessa saber quem concretamente tirou uma placa e colocou outra, pois era desejo de todos os intervenientes proceder a tal mudança.
Nem sequer consta na pronúncia ou na decisão recorrida que fora recorrente quem procedera, materialmente, à mudança das placas. Nem tal era preciso para ser incriminado ou condenado.
Por isso, nem o artigo 358 ou o artigo 359, do Código de Processo Penal foram violados.
Vem sendo jurisprudência maioritária dos nossos tribunais a que entende ser crime de falsificação de documento autêntico, previsto e punido no artigo 256, n. 1 alínea a) e n. 3 do Código Penal de 95 (ou o previsto e punido no artigo 228, n. 1 alínea a), n. 2 do Código Penal de 1982), a mudança da chapa de matrícula de um veículo automóvel por uma outra que esteja em desacordo com a fixada no livrete respectivo.
Vejam-se, por exemplo, os vários acórdãos citados em Leal Henriques e Simas Santos - Código Penal anotado, 2. edição, 2. volume, página 741 e, por último, o deste Supremo, de 15 de Outubro de 1997, Processo n. 582/97, segundo o qual "a falsificação de chapas de matrícula integra o crime de falsificação de documentos com igual força dos autênticos, uma vez que têm, por lei, uma força probatória equivalente aos documentos autênticos, dado que são transcritos como seus elementos identificadores nos registos oficiais e são a expressão visível e obrigatória desses elementos identificadores".
Consta da pronúncia - e veio a ser dado como provado - que o ora recorrente juntamente com B e C, de comum acordo e conjugação de esforços se preparavam para, em carro furtado em França e com a sua respectiva matrícula, colocar chapas de matrícula referente a um veículo propriedade de um português. É precisamente com este comportamento - substituir a matrícula atribuída por uma outra pertencente a um outro veículo que nada tem a ver com aquela - que fica consubstanciado o crime de falsificação de documento. Não é imposto por lei o fazer-se, e criar-se, uma chapa de matrícula, basta colocar uma chapa de outro veículo para que o facto ilícito se concretize. Verifica-se, claramente, a alteração de um documento.
E como não ficou provado o crime consumado, mas que apenas se realizaram actos de execução, a que não se seguiu a consumação por razões alheias à vontade do arguido e seus acompanhantes, só como tentativa o facto ilícito se poderia qualificar.
Falecem, pois, todas as conclusões.
Nestes termos, acordam em negar provimento ao recurso.
Vai condenado em 12 UCS de taxa de justiça, com procuradoria que se fixa em 1/3.
Fixam-se os honorários à Excelentíssima Defensora
Oficiosa em 10000 escudos.
Lisboa, 11 de Março de 1998
Flores Ribeiro,
Brito Câmara,
Joaquim Dias,
Pires Salpico.
Decisão impugnada:
- Tribunal de Vila Nova de Foz Côa - Processo n. 73/96