Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
382/18.8JAFAR.E1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: RECURSO PENAL
HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
MOTIVO FÚTIL
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
FACA
CANIVETE
MEDIDA CONCRETA DA PENA
INDEMNIZAÇÃO
DUPLA CONFORME
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DE COGNIÇÃO
Data do Acordão: 10/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE O RECURSO DO ARGUIDO. REJEITADOS OS DEMAIS.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Estando vedado a este Tribunal qualquer alteração da matéria de facto ou qualquer reanálise da prova em vista de uma possível alteração da matéria de facto, qualquer conhecimento de uma qualquer alegação que parta daquela alteração fica prejudicada; assim, a apreciação das alegações quanto à requalificação jurídica dos factos fica prejudicada por a matéria de facto estar sedimentada após a prolação do acórdão do Tribunal da Relação.
II - A admissibilidade de recurso para o STJ de decisão que incida sobre a matéria civil passou a ser regulada, subsidiariamente, pelo regime jurídico vertido no CPC, já que se abandonou, nesta sede, a indexação aos critérios de recorribilidade da matéria criminal.
III - Quanto ao pedido de indemnização civil, o acórdão do Tribunal da Relação só admite recurso para o STJ, sem prejuízo dos casos de revista excecional previstos pelo art. 672.º do CPC, quando, em casos de dupla conforme, não exista unanimidade por parte dos Senhores Juízes Desembargadores e a decisão recorrida apresente uma fundamentação essencialmente divergente da sufragada pela decisão (sentença ou acórdão) do tribunal de 1.ª instância.
IV - Não estando dado como provada, de forma clara e explícita, a motivação subjacente à agressão, não se sabendo qual o motivo que determinou o arguido a matar, não existem elementos que nos permitam subsumir os factos ao crime de homicídio qualificado.
V - Não se pode concluir tratar-se de um instrumento particularmente perigoso o canivete utilizado quando não tendo sido apreendido não se conhecem as suas caraterísticas.
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 382/18.8JAFAR.E1.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

Relatório

1. Nos presentes autos de processo comum, com intervenção do tribunal coletivo, mediante acórdão proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de ... (Juízo Central Criminal de ..., Juiz 2), de 20.11.2019, foi decidido:

«a)condenar o arguido AA pela prática de um crime de homicídio do art. 131.º do Código Penal, na pena de 12 (doze) anos de prisão, absolvendo‑o do crime de homicídio qualificado por que vinha acusado;

b) julgar improcedente a condenação na pena acessória de expulsão;

c) ordenar que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo em prisão preventiva, por não se terem alterado os pressupostos de facto e de direito que determinaram a sua aplicação em sede de 1° interrogatório judicial nos termos das disposições conjugadas dos arts. 131° do Código Penal, e 191°, e 202°/1-a) e 204°- a), 213°-b) e 215° do Código de Processo Penal,

d) absolver o arguido/demandado do PIC formulado pela demandante BB;

e) condenar o arguido/demandado no pagamento ao Centro Hospitalar ..., EPE, da quantia de €112, 07 (cento e doze mil euros e sete cêntimos) a acrescer dos juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos desde a notificação para contestar, até ao efectivo e integral pagamento;

f) condenar o arguido/demandado a pagar à assistente/demandante CC e às demandantes DD, EE e FF, a estas nas pessoas das suas respectivas representantes legais, e de acordo com as regras da sucessão legitimária, a quantia global de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) a título de indemnização por danos patrimoniais por lucros cessantes,

g) condenar o mesmo arguido/demandante a pagar à assistente/demandante CC e às demandantes menores DD, EE e FF, nas pessoas das suas respectivas representantes legais, a quantia global de €8.000,00 (oito mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais, pelo dano da vítima da iminência da morte, de acordo com as regras da sucessão legitimaria.

h) condenar o mesmo arguido/demandado a pagar às demandantes CC, DD, EE e FF, sendo às menores nas pessoas das suas respectivas representantes legais, a quantia global de €60.000,00 (sessenta mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, da perda do direito à vida da vítima, a repartir igualmente;

i) condenar o mesmo arguido/demandado a pagar à assistente/demandante CC a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais, pelos danos próprios da demandante pelo sofrimento da perda do marido;

j) condenar o mesmo arguido/demandado a pagar às demandantes menores DD, EE e FF, nas pessoas das suas respectivas representantes legais, a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros) a cada uma delas, a título de indemnização por danos não patrimoniais, pelos danos próprios de cada demandante pelo sofrimento decorrente da perda do pai;

k) absolver o demandado das restantes quantias peticionadas;

1) condenar o demandado no pagamento dos juros vincendos, a acrescer às quantias arbitradas às demandantes à taxa legal dos juros civis, a partir da presente decisão e até integral pagamento».

2. Inconformados, o arguido AA, a assistente/demandante CC e demandante BB recorreram para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 12.05.2020, decidiu “negar provimento aos recursos interpostos pelo arguido, pela assistente CC e pelas demandantes cíveis, mantendo o acórdão recorrido”.

3. Inconformados, recorrem para este Supremo Tribunal de Justiça o arguido AA, a assistente/demandante CC e demandante BB, tendo apresentado as seguintes conclusões:

- o arguido AA

«a) Emerge o presente recurso da discordância em relação ao acórdão tirado no TRE, douto aliás, que decidiu manter a condenação do arguido pela prática de crime p. e p. artº 131º do Código Penal, na pena de 12 (doze) anos e de prisão;

b) As razões de discordância com a douta decisão sob recurso prendem-se ainda e unicamente com o entendimento de que, em qualquer circunstância, a pena em que o recorrente foi condenado se mostra demasiado severa;

c) Na determinação da medida da pena o Tribunal da Relação de Évora, a exemplo do que sucedera em primeira instância, não valorou convenientemente, e segundo o melhor critério, as circunstâncias susceptíveis de deporem a favor do arguido, designadamente a matéria constante dos factos provados em 1.15, 1.39 e 1.43 e, em especial a sua primodelinquência, juventude e o arrependimento do decorrente da sua apresentação voluntária na P.J., como de resto foi dado como provado em 1.39 da matéria assente; e, bem assim,

d) a confissão dos factos na exacta media em foram dados como assentes, sendo certo que de entre a matéria da acusação não se vieram a provar outros que não os que confessou.

e) Por um lado, a decisão em crise não reapreciou a medida da pena face aos elementos resultantes da matéria de facto provada, limitando-se a referir que determinadas circunstâncias foram tidas em conta na medida da pena fixada pelo tribunal de primeira instância;

f) Por outro lado, errou na apreciação que fez da matéria de facto provada, designadamente do ponto 1.43, para além do mais, quanto à inserção laboral do jovem recorrente;

g) Na verdade o desiderato da ressocialização, tendo de ser avaliado em concreto, não pode deixar de ter como parâmetro o inconveniente maléfico de uma longa separação do delinquente da comunidade natal (filha de um ano de idade, mãe e pai, e namorada),

h) Sendo certo que, quando tão jovem, não faz sentido que o arguido cumpra uma longa pena de prisão que em nada contribui para a respectiva reintegração social posterior, quando é certo que, como resulta do facto provado em 1.43, estava social, familiar e laboralmente inserido;

i) Em face do exposto, da melhor apreciação da prova produzida e de uma correcta interpretação das normas legais aplicáveis, a pena a aplicar in casu deveria aproximar-se mais do limite mínimo da moldura penal abstractamente aplicável e fixar-se, quando mais, nos 9 (nove) anos de prisão.

j) Pois tal é o que resulta de uma correcta apreciação dos referidos factos e circunstâncias e a melhor interpretação dos artºs. 40º, 71º e 131º do Código Penal, coisa que o douto Tribunal a quo não fez.

* * *

O acórdão recorrido violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nas seguintes disposições legais supra citadas: artºs. 40º, 71º e 131º do Código Penal.

* * *

Em suma:

- deve revogar-se o acórdão recorrido e ser substituído por outro que, fazendo correcta apreciação e valoração da matéria de facto dada como assente, condene o arguido pela prática do crime p. e p. artº 131º do Código Penal em pena próxima do limite mínimo da moldura penal aplicável não superior a 9 (nove) anos de prisão.»

- a assistente/demandante CC

«1. A Recorrente não se conforma com o Douto Acórdão que foi proferido no dia 20 de Dezembro de 2019, nomeadamente, no que se refere às alíneas a), b), f), g), h), i), j) e k) do Ponto III – DECISÃO, nem com o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12 de Maio de 2020 que manteve a decisão recorrida.

2. A Recorrente não se conforma que tenha ocorrido a desqualificação do Crime de Homicídio Qualificado pelo qual o Arguido foi Acusado.

3. Como também não se conforma que o Arguido não tenha sido condenado nos precisos termos, tal e qual, em que a mesma explanou a causa de pedir e o pedido no seu Requerimento de Pedido de Indemnização Civil que deduziu nos presentes autos, o que fez em nome pessoal e em representação das suas filhas menores, as órfãs DD e EE.

4. Em primeira linha, a Assistente, com o presente Recurso pretende que se efectue a correcta aplicação do Direito e supervenientemente, seja o Arguido condenado pelo Crime de Homicídio Qualificado e seja-lhe apurada a Medida Concreta da sua Pena.

5. Refira-se que a questão pode ter reflexo na componente Sancionatória Civil, já que um dos critérios é o grau de Culpa do Infractor, e não será indiferente os contornos da causa de pedir da acção hospedeira da conformação do concreto crime que substancia a violação do Direito à Vida, elemento a ter em conta na definição da dimensão do quantum indemnizatório.

6. A diferente Qualificação Jurídico-Penal dos factos assumida no Acórdão Sentença pelo Tribunal “a quo” (que qualificou o crime como Homicídio simples em vez de Homicídio qualificado) conduziu a que o Arguido tivesse sido condenado pelo cometimento de crime menos grave, que traduz e reflecte, em termos jurídicos, Ilicitude e Culpa situadas num patamar inferior.

7. Tal circunstância é susceptível de ter repercussões na esfera jurídica da Assistente, designadamente na Decisão a proferir no Pedido de Indemnização Civil por aquela deduzido contra o Arguido, maxime na fixação da Compensação e da Indemnização devidas pelos danos morais e patrimoniais sofridos.

8. Deste modo, há que concluir pela Legitimidade e Interesse em Agir da Assistente, no que concerne ao crime de Homicídio pelo qual o Arguido vem condenado.

9. Efectivamente, esta também é a opinião Doutrinária do Dr. Pereira Madeira, In Código de Processo Penal Comentado, António da Silva Henriques Gaspar, José António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires Henriques da Graça, Almedina, 2016, em anotação ao art.º 401.º, pág. 1218, onde escreve que: “De todo o modo, essa limitação da legitimidade do assistente é circunscrita à decisão sobre a espécie e medida concreta da pena. Já não assim, obviamente, quanto aos demais aspectos da discussão da causa, nomeadamente, a fixação da matéria de facto e a qualificação jurídica dos factos. Nessa área, pode afirmar-se que a decisão lhe diz respeito directamente, e, por essa via, embora indirectamente, pode ver-se aí um amplo campo de intervenção do assistente no seu possível contributo para a fixação da medida da pena. Mas só por aí.”

10. A Recorrente, para integral análise do seu Recurso, dá aqui por reproduzido tudo o que alegou supra nas suas Motivações de Recurso.

11. Mas não deixa de salientar que, manifesta e consequentemente, a conduta do Arguido em relação ao Ofendido GG não se coaduna com a alegação tida pelo mesmo de ter sido um acidente e muito menos de ter sido um azar, existindo sim uma clara e objectiva intenção do Arguido matar o Ofendido GG.

12. O Arguido determinou-se, com especial perversidade, para praticar uma agressão gratuita, desprezível, repugnante e sem motivo significante, com a clara intenção de matar a Vítima GG, pois outras condutas poderia ter praticado, mas de forma desprezível para a vida humana, agrediu mortalmente a Vítima, sem lograr demonstrar um motivo, se é que existe algum motivo válido para tirar a vida humana.

13. Ora, o motivo torpe ou fútil refere-se a circunstâncias a nível da motivação do agente marcadamente mais censuráveis, sendo um motivo incompreensível ou inexplicável à luz do modo de agir do homem médio ou mesmo revelador de um baixo carácter. Nas palavras de Figueiredo Dias “pesadamente repugnante, baixo ou gratuito”. Justifica-se por revelar uma especial perversidade, ou seja, uma atitude profundamente rejeitável, inaceitável e injustificável, e que pode reconduzir-se a uma atitude má numa concepção emocional da culpa.

14. Objectivamente, conclui-se que se mostra comprovada uma total desproporção entre a normal conduta da Vítima e a actuação do  Arguido e a consequente responsabilidade deste pela situação criada,  sendo bem patente o motivo Fútil que moveu o Arguido porque pesadamente repugnante, baixo e gratuito, profundamente rejeitável,  inaceitável e injustificável, pelo que actuou tendo por base um motivo  Fútil, consequentemente, preenchendo os requisitos legais dos artigos  131° e 132°, n.° 1 e n.° 2, alínea e) do Código Penal.

15. A Recorrente entende ainda que o Arguido utilizou um meio particularmente perigoso contra a Vítima GG, tendo conseguido a sua intenção e pretensão de lhe causar a morte, pelo que esse meio é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a prática do facto com utilização de meio particularmente perigoso.

16. Segundo Teresa Serra, Homicídio Qualificado Tipo de Culpa Medida da Pena, Almedina, 1990, pág. 58 e seg., “(...) é particularmente perigoso o instrumento ou utensílio que pelas suas características, além de dificultar a defesa da vítima, possui uma particular aptidão no contexto em que é utilizado para causar a morte. Tal perigosidade é o desvalor acrescentado ao tipo base, constituindo a qualificativa no sistema optado pelo legislador português”

17. A utilização de uma faca num contexto como o dos autos, perante um ambiente festivo e indivíduos desarmados e não alertados para tal instrumento, confere-lhe particular perigosidade, acentuando o desvalor da conduta do Arguido, implicando, assim, um maior grau de ilicitude vertido na qualificativa da alínea h) do n.º 2, do artigo 132º do CP, pelo que, o Arguido ao ter utilizar a faca, instrumento corto-perfurante de fácil manejo, de forma certeira atento o golpe que desferiu no hemitórax esquerdo, obteve uma superioridade sobre a Vítima, mercê precisamente de deter a faca.

18. A utilização da faca no aludido contexto, empresta ao modo de execução do facto um acréscimo de ilicitude, acréscimo esse que o Legislador objectivou na qualificativa prevista na alínea h) do artigo 132°, n.º 2, do CP, mas tal qualificativa resulta das circunstâncias em que é utilizada pelo Arguido, nomeadamente, no caso dos autos, ela surge num contexto, como já se referiu, em que a sua utilização é particularmente perigosa pois surge acintosamente desproporcional ao contexto festivo, em que os presentes estavam desarmados e a

Vítima, em particular, não estava alertada para a detenção desse instrumento pelo Arguido ou de os golpes terem sido desferidos numa zona do corpo que o torna particularmente perigoso, como ocorreu, sem embargo de o contexto da utilização poder ser merecedor de um juízo de especial censurabilidade e de revelar, por essa via, uma ilicitude compaginável com casos particularmente chocantes.

19. Em suma, meios particularmente perigosos são todos aqueles que ,  quando usados, tendo em atenção a experiência comum, ponham em  perigo a vida humana ou tenham potencialidade para causar uma lesão grave, segundo as regras da causalidade. Dito de outra forma, meio particularmente perigoso é o que tem potencialidade bastante para causar a morte ou ferimentos graves.

20. Pelo exposto, é de concluir que, se encontra comprovada uma acintosa desproporcionalidade pelo contexto do momento e do ambiente de bar e de festa, com a faca dissimulada, num ambiente propício a ganhar vantagem em relação aos pares, nomeadamente, em relação à Vítima,  que foi apanhada de surpresa com os esfaqueamentos sofridos e na zona do corpo onde foram aplicados, nomeadamente na zona do  hemitórax esquerdo, onde se aloja o coração, sendo bem patente o  meio particularmente perigoso usado pelo Arguido, consequentemente, preenchendo os requisitos legais dos artigos 131° e  132°, n.° 1 e n.° 2, alínea h) do Código Penal.

21. Acresce referir que, nas palavras de Teresa Serra - In Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 63., revelam especial censurabilidade as circunstâncias que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. A especial censurabilidade refere-se, assim, às componentes da culpa relativas ao facto, isto é, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.

22. A criminalidade contra a vida tem um efeito devastador e potencialmente desestruturante da tranquilidade social comunitária. Os crimes de Homicídio constituem um dos factores que maior perturbação e comoção social provocam, designadamente em face da insegurança que geram e ampliam na Comunidade. As exigências de prevenção geral são pois de acentuada intensidade.

23.Também aqui se deixa Eminente Jurisprudência Uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, (cfr. Acórdãos STJ de 2002/11/14, Proc. 3316/02 de 1991/12/12Proc. 42640, de 1992/05/06, Proc. 43109, de 1997/12/16, Proc. 102/98, de 1990/12/20, Proc. 41848, todos eles in www.dgsi.pt)

24. Atendendo a tudo o que fica Provado nos Pontos anteriores,  entende-se que a actuação ilícita do Arguido perpetrada contra a Vítima GG é revestida de especial  censurabilidade e perversidade, por motivo fútil e meio de actuação especialmente perigoso, porque dissimulado,  escondido e com surpresa.

25. Objectivamente, o Arguido actuou com DOLO DIRECTO, e não eventual como ficou determinado no Acórdão Recorrido.

26. A ILICITUDE da conduta do Arguido é MANIFESTAMENTE ELEVADA.

27. Concluindo, em face de tudo o supra exposto, requer-se a V.as Ex.as Colendos Conselheiros do Colendos Supremo Tribunal de Justiça que  revoguem a Decisão Penal proferida, que condenou o Arguido ao  cumprimento de uma Pena de Prisão por 12 anos, pela prática de um Crime de Homicídio Simples, e, consequentemente, procedendo à correcta aplicação do direito concluam pela prática do tipo do Crime  de Homicídio Qualificado, previsto e punido pelos artigos 131° e 132°,  n.° 1 e n.° 2, alíneas e) e h) do Código Penal, devendo V.as Ex.as  condenar o Arguido pelo referido Crime numa Pena próxima dos 4/5  da Pena Máxima permitida para este Crime.

28. V.as Ex.as, Desembargadores do Venerando Supremo Tribunal de Justiça, ao concluírem pela prática do tipo de Crime de Homicídio Qualificado conduzirão a que se tenha que impor uma Decisão Condenatória do Pedido de Indemnização Civil deduzido pela Demandante CC diferente daquele de que se Recorre.

29. A vítima era uma pessoa com 31 anos, saudável, activa profissionalmente, com alegria de viver, amante da vida, marido, pai de 3 filhas menores, filho, irmão, consequentemente, em relação à Perda do Direito à Vida da Vítima deverá o Arguido ser condenado a pagar uma quantia global nunca inferior a €: 100.000,00 às Demandantes CC, DD, EE e FF, revogando a Decisão Recorrida nessa parte.

30. A título de Indemnizações pelos Danos Patrimoniais, no que referente aos Lucros Cessantes, também a Decisão Recorrida venha a ser revogada nesta parte, uma vez que o Tribunal “a quo” efectuou o computo desta Indemnização tendo por base o montante de €: 580,00 de Rendimento Mensal e uma Esperança de Vida de 36 anos, sendo certo que, sendo a nova resposta consentânea com a sugestão, fica provado que o falecido GG auferia mensalmente entre €: 700,00 a €: 800,00 à data da sua morte e que é público e notório que, de acordo com estudo do INE, designado “Tábuas de Mortalidade para Portugal 2016-2018”, publicado e acessível no site https://www.ine.pt/ ngt_server/attachfileu.jsp?look_parentBoui=376171550&att_display=n&att_download=y os  indivíduos do sexo masculino, com 31 anos de idade, como a vítima, a esperança de vida de mais 47,55 anos e não de 36 anos como foi dado por provado no Acórdão Recorrido, pelo que V.as Ex.as Venerandos  Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça deverão efectuar novo  computo do montante total da Indemnização por Lucros Cessantes e  proferir nova Decisão que seja conforme aos novos quantitativos  provados referentes a Rendimento mensal e a Esperança de Vida,

31. A Decisão proferida contra o Arguido/Demandado, no que respeita à Indemnização pelos danos próprios da esposa e da cada filha, pelo sofrimento da perda do marido e do pai, venha a ser computada e Decidida em montante superior ao decidido, que seja superior a €: 30.000,00 para cada uma.

32. Verifica-se efectivamente que o Douto Acórdão Recorrido violou o disposto nos artigos 20°, 32° e 266° da Constituição da República Portuguesa e ainda os artigos 14° n.° 1, 40°, 71° e 132° n.° 2 alíneas e) e h), todos do Código Penal, uma vez que os Factos do caso concreto foram erradamente subsumidos as Direito.»

- a demandante BB

«1. A Recorrente não se conforma com a Decisão que absolveu o Arguido/Demandado do Pedido de Indemnização Civil e que condenou o mesmo a apenas pagar à sua neta FF os montantes constantes nas alíneas f), g), h) e j) da Decisão proferida no Douto Acórdão sob Recurso, pelo que, na qualidade de Demandante, em nome pessoal e em representação da sua neta menor, a órfã FF, apesar de entender ter existido incorrecto julgamento quanto à Matéria de Facto e à subsunção dessa mesma matéria ao Direito Criminal e, consequentemente, ao Direito Civil, por apenas ter Legitimidade para Recorrer quanto à Decisão Civil, vem Recorrer da mesma.

2. A Recorrente, para integral análise do seu Recurso, dá aqui por reproduzido tudo o que alegou supra nas suas Motivações.

3. Assim, sendo a vítima uma pessoa com 31 anos, saudável, activa profissionalmente, com alegria de viver, amante da vida, marido, pai de 3 filhas menores, filho, irmão, consequentemente, em relação à Perda do Direito à Vida da Vítima deverá o Arguido ser condenado a pagar às Demandantes FF, CC, DD e EE a quantia global de €: 100.000,00, revogando a Decisão Recorrida nessa parte.

4. Requer-se ainda que, a título de Indemnizações pelos Danos Patrimoniais, no que referente aos Lucros Cessantes, também a Decisão Recorrida venha a ser revogada nesta parte, uma vez que o Tribunal “a quo” efectuou o computo desta Indemnização tendo por base o montante de €: 580,00 de Rendimento Mensal e uma Esperança de Vida de 36 anos, é público e notório que, de acordo com estudo do INE, designado “Tábuas de Mortalidade para Portugal 2016-2018”, publicado e acessível no site https://www.ine.pt/ngt_server/attachfileu.jsp?look_parentBoui=376171550&att_display=n&att_download=y  os indivíduos do sexo masculino, com 31 anos de idade, como a vítima, a esperança de vida de mais 47,55 anos e não de 36 anos como foi dado por provado no Acórdão Recorrido, devendo V.as Ex.as Venerandos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça efectuar novo computo do montante total da Indemnização por Lucros Cessantes e proferir nova Decisão que seja conforme aos novos quantitativos provados referentes a Rendimento mensal e a Esperança de Vida.

5. Mais se requer que os Pontos 1.25, 1.26, 1.28 e 1.29 dos Pontos de Facto dados como Provados no Acórdão Recorrido, permitem requerer que a Decisão proferida contra o Arguido/Demandado, no que respeita à Indemnização pelos danos próprios de cada filha pelo sofrimento da perda do pai, venha a ser computada e Decidida em montante superior ao decidido, que seja superior a €: 30.000,00 para cada uma.

6. Por último, os Pontos 1.25, 1.26 e 1.29 dos Pontos de Facto dados como Provados no Acórdão Recorrido demonstram também que a Demandante BB também foi acometida de danos próprios pelo            sofrimento       decorrente       da        perda   do filho GG     e, consequentemente, também deverá ser Indemnizada em função dessa perda do filho.»

4. O recurso foi admitido por despacho de 30.06.2020.

5. A assistente demandante CC e a demandante BB apresentaram contra-alegações, tendo concluído nos seguintes termos:

- a assistente/demandante CC

«A – A Assistente foi notificada do Recurso interposto pelo Recorrente.

B – É pacífica e uniforme a Jurisprudência do STJ, no sentido de que a fixação e delimitação do âmbito do Recurso se define pelas Conclusões que o Recorrente extrai da respectiva Motivação, no seu confronto com a Decisão Recorrida, sem prejuízo, contudo, da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à Lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer com base nos elementos constantes do Processo.

C – O Recorrente AA não impugnou a Decisão Cível proferida nos Acórdãos Recorridos, como não impugnou qualquer Ponto de Facto Dado como Provado e Dado como Não Provado, apenas dizendo que “uma melhor apreciação da prova produzida e uma correcta interpretação das normas legais aplicáveis, impunha a condenação do recorrente numa pena próxima do limite mínimo da moldura penal aplicável”, tendo alegado que a pena que lhe foi aplicada “se revela excepcionalmente severa”.

D – Para fundamentar essa pretensão, invoca que na determinação da medida da pena o Tribunal “a quo” e o Tribunal de Recurso não valoraram “a primodelinquência, a juventude e o arrependimento do decorrente da sua apresentação voluntária na P.J.”, bem como “a confissão dos factos” e “o desiderato da ressocialização”.

E – No entanto, pela leitura atenta dos Acórdãos Recorridos, verifica-se que todos estes elementos invocados pelo Recorrente foram analisados, ponderados e valorados pelo Tribunal “a quo” e pelo Tribunal de Recurso nesses seus Acórdãos Recorridos, pelo que se conclui que as invocações do Recorrente, transcritas na precedente conclusão são totalmente falsas, sendo patente a Má-Fé argumentativa do Recorrente.

F – Ao Recorrente não pode ser permitido falsear uma Decisão Judicial para a tornar conforme à sua vontade, até porque o mesmo sabe que praticou o crime hediondo de tirar a vida de outro seu semelhante, com quem convivia e considerou como conhecido, amigo até e pessoa que lhe falava bem.

G – A Assistente conclui que o Recorrente não tem qualquer fundamento ou alegação que validamente possa ser decidido em conformidade com a sua pretensão, entendendo também que não se encontram violados quaisquer dos dispositivos legais indicados pelo Recorrente.

H – CONCLUINDO, V.AS EX.AS, COLENDOS CONSELHEIROS, DEVERÃO DECIDIR PELA TOTAL IMPROCEDÊNCIA DA PRETENSÃO RECURSÓRIA DO RECORRENTE AA.

I – Passando à análise das Alegações e Conclusões vertidas no Recurso interposto pela Demandante BB, importa dizer que a aqui Assistente CC concorda na totalidade com o que foi vertido nesse mesmo Recurso da Demandante BB, que versou sobre a impugnação da Decisão Cível destes autos, mais referindo que, a pretensão da Demandante BB, quer a título pessoal, quer em representação da neta FF, deverá beneficiar da procedência do Recurso interposto pela Assistente, nomeadamente, no que respeita à procedência desse Recurso quanto à sua parte Criminal, com directas e imediatas consequências na parte Criminal e Civil destes autos.

J – CONCLUINDO, V.AS EX.AS, COLENDOS CONSELHEIROS, DEVERÃO DECIDIR PELA TOTAL PROCEDÊNCIA DA PRETENSÃO RECURSÓRIA DA RECORRENTE BB.»

- a demandante BB

«A – A Demandante BB foi notificada do Recurso interposto pelo Recorrente.

B – É pacífica e uniforme a Jurisprudência do STJ, no sentido de que a fixação e delimitação do âmbito do Recurso se define pelas Conclusões que o Recorrente extrai da respectiva Motivação, no seu confronto com a Decisão Recorrida, sem prejuízo, contudo, da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à Lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer com base nos elementos constantes do Processo.

C – O Recorrente AA não impugnou a Decisão Cível proferida no Acórdão Recorrido, como não impugnou qualquer Ponto de Facto Dado como Provado e Dado como Não Provado, apenas dizendo que “uma melhor apreciação da prova produzida e uma correcta interpretação das normas legais aplicáveis, impunha a condenação do recorrente numa pena próxima do limite mínimo da moldura penal aplicável”, tendo alegado que a pena que lhe foi aplicada “se revela excepcionalmente severa”.

D – Para fundamentar essa pretensão, invoca que na determinação da medida da pena o Tribunal “a quo” e pelo Tribunal da Relação não valorou “a primodelinquência, a juventude e o arrependimento do decorrente da sua apresentação voluntária na P.J.”, bem como “a confissão dos factos” e “o desiderato da ressocialização”.

E – No entanto, pela leitura atenta dos Acórdãos Recorridos, verifica-se que todos estes elementos invocados pelo Recorrente foram analisados, ponderados e valorados pelo Tribunal “a quo” e pelo Tribunal da Relação nos Acórdãos Recorridos, pelo que se conclui que as invocações do Recorrente, transcritas na precedente conclusão são totalmente falsas, sendo patente a Má-Fé argumentativa do Recorrente.

F – Ao Recorrente não pode ser permitido falsear uma Decisão Judicial para a tornar conforme à sua vontade, até porque o mesmo sabe que praticou o crime hediondo de tirar a vida de outro seu semelhante, com quem convivia e considerou como conhecido, amigo até e pessoa que lhe falava bem.

G – A Demandante BB conclui que o Recorrente não tem qualquer fundamento ou alegação que validamente possa ser decidido em conformidade com a sua pretensão, entendendo também que não se encontram violados quaisquer dos dispositivos legais indicados pelo Recorrente.

H – CONCLUINDO, V.AS EX.AS, COLENDOS CONSELHEIROS, DEVERÃO DECIDIR PELA TOTAL IMPROCEDÊNCIA DA PRETENSÃO RECURSÓRIA DO RECORRENTE AA.

I – Passando à análise das Alegações e Conclusões vertidas no Recurso interposto pela Assistente CC, importa dizer que a aqui Demandante BB concorda na totalidade com o que foi vertido nesse mesmo Recurso da Assistente CC, que versou sobre a impugnação das Decisões Criminal e Cível destes autos.

J – Mais se conclui que a procedência da pretensão recursória vertida pela Assistente CC, quer a título pessoal, quer em representação das filhas DD e EE, deverá beneficiar a pretensão que a Demandante BB visa obter com o Recurso que Interpôs, concretamente, no que respeita à procedência desse Recurso da Assistente quanto à sua parte Criminal, com directas e imediatas consequências na parte Criminal e Civil destes autos.

K - CONCLUINDO, V.AS EX.AS, COLENDOS CONSELHEIROS, DEVERÃO DECIDIR PELA TOTAL PROCEDÊNCIA DA PRETENSÃO RECURSÓRIA DA RECORRENTE CC»

6. No Tribunal da Relação de Évora, o Senhor Procurador-Geral Adjunto respondeu ao recurso interposto pelo arguido considerando, em súmula apertada, que “a insistência do Recorrente relativamente a um pretenso arrependimento não tem qualquer razão de ser posto que (...) o Tribunal não deu como provado qualquer arrependimento do Arguido”, concluindo pela improcedência do Recurso, devendo manter-se a pena de 12 anos de prisão.

Respondeu, igualmente, ao recurso interposto pela assistente CC contra-alegando, por um lado, que a Recorrente impugnou novamente a matéria de facto, estando esta matéria vedada ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça e, por outro lado, fazendo depender desta alteração o recurso quanto à qualificação jurídica dos factos, fica o conhecimento desta questão prejudicado, pelo que deve o recurso ser julgado improcedente.

7. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta, usando a faculdade prevista no n.º 1 do art. 416.º, do CPP, e pronunciando-se pela “improcedência do recurso” acompanha a resposta do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora, e sustenta “o afastamento da verificação das circunstâncias qualificativas previstas no art. 132.º, n.ºs 1 e 2, als e) e h), do Código Penal” uma vez que “o quadro fáctico dado como provado não permite sustentar um juízo de especial censurabilidade ou de especial perversidade da conduta do arguido, conducente à qualificação do crime de homicídio”. Entende também que a pena aplicada é justa e adequada.

8. Notificados os Recorrentes nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse. A assistente/demandante CC e a demandante BB vieram responder mantendo na íntegra as suas motivações de recurso e as suas contra-alegações.

9. Colhidos os vistos, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

Fundamentação

A. Matéria de facto provada

1. Matéria de facto dada como provada:

«1.1 No dia 9 de Dezembro de 2018, pelas 5 h e 55 m, no interior do estabelecimento comerciai denominado "...", sito na Av.  … (…), em ..., despoletou-se uma discussão entre o arguido AA e o ofendido GG, ambos clientes do bar, por motivo relacionado com o cantar de parabéns a uma amiga em comum.

1.2 No seguimento dessa discussão o arguido, que se encontrava munido de um canivete cujas características não se logrou apurar, desferiu dois golpes sobre o ofendido atingindo-o no hemitórax esquerdo e no flanco esquerdo, na zona lombar.

1.3 Acto contínuo, o arguido colocou-se em fuga através de uma porta lateral do estabelecimento.

1.4 Entretanto, o ofendido foi transportado de ambulância para o Hospital ....

1.5 Na sequência deste evento o arguido provocou ao ofendido duas feridas inciso-contusas:

- uma na face antero-lateral esquerda do tórax, com 2,2 cm de largura situada a 2,5 cm do mamilo esquerdo e a 10 cm da linha axilar anterior esquerda com solução de continuidade no terço inferior lateral do musculo grande peitoral e laceração do coração; e

- outra no terço médio da anca esquerda, com a largura de 2,2 cm com 5 cm de profundidade.

1.6 Como consequência directa e necessária deste evento e das lesões sofridas, que resultaram de traumatismo violento de natureza corto-perfurante, o ofendido veio a falecer, sendo a morte devida a traumatismo torácico associado a choque hemorrágico

1.7 tendo o óbito sido verificado pelas 7h32m, já depois de se encontrar no Hospital ...,

1.8 O arguido, ao actuar da forma supra descrita, agiu de forma livre, deliberada e consciente.

1.9 O arguido encontrava-se ciente de que o objecto utilizado, atendendo à sua natureza, era adequado para produzir esse resultado, em especial quando aplicado como arma de agressão dirigida à zona vital do coração onde atingiu o ofendido.

1.10 Ao agir da forma descrita o arguido causou a morte ao ofendido, resultado que previu e com o qual se conformou.

1.11 O arguido estava ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Da contestação

1.12 Na sequência da discussão em que o arguido se envolveu com GG este agarrou-o pela roupa que envergava ao mesmo tempo que dizia "vamos falar lá para fora", ao que o arguido se opôs dizendo-lhe "não vou nada",

1.13 Persistindo GG na sua acção de levar o arguido para o exterior,

1.14 Em face disso, o arguido meteu a mão no bolso das calças que trajava do qual retirou um canivete que tinha junto de um chaveiro com as chaves de casa,

1.15 À data dos factos o arguido contava 00 anos de idade.

Do PIC do CHUA

1.16 O Centro Hospitalar ..., EPE, é um Centro Hospitalar estatal, integrado no Serviço Nacional de Saúde, que presta cuidados de saúde à população em geral e a vítimas de crimes, em particular.

1.17 No dia 9/12/2018, em consequência directa e necessária da conduta do demandado, o Centro Hospital ... prestou assistência médica ao ofendido no valor de €112,07, em que importou o custo do episódio de urgência.

Dos PIC das demandantes BB, FF, CC, DD e EE

1.18 Em consequência directa e necessária da actuação do arguido e das lesões que este lhe infligiu, GG foi assistido no local e posteriormente transportado para o Hospital ..., vindo a falecer.

1.19 A actuação ilícita do arguido causou a GG dores e sofrimento que se prolongaram até à morte.

1.20 A data do seu falecimento GG tinha 31 anos, era activo e saudável, com alegria de viver e amante da vida, estimado pelos amigos, família e vizinhos, e com uma esperança de vida, de, pelo menos, mais 36 anos,

1.21 A data dos factos GG auferia o salário mínimo nacional correspondente a €580,00 mensais,

Dos PIC das demandantes BB e FF

1.22 GG era filho da Demandante BB,

1.23 E pai da demandante FF, nascida a 0/00/0000,

1.24 Com a morte do pai a demandante FF, à data com … anos de idade, perdeu o pai, o seu afecto, alimentos para o seu sustento e para despesas médicas e medicamentosas, educação e bem-estar.

1.25 As demandantes BB e FF tinham relações de amor e carinho com o filho e o pai, respectivamente,

1.26 eram amigos e estavam ligados por fortes laços de afeição, amor e carinho, e sofreram um forte desgosto e abalo psicológico com o seu falecimento.

1.27 Com a perda do filho BB perdeu a vontade de se socializar, evitando os contactos sociais, comportamento anterior que sempre a caracterizou,

1.28 A menor FF, de criança afável e sociável, passou a ser criança que se isola, não partilhando das brincadeiras das crianças da sua idade, e, por tudo e por nada se assusta,

1.29 A actuação do demandado provocou grande tristeza e mágoa às demandantes BB e FF, danos que perdurarão para sempre,

Dos PIC das demandantes CC, DD e EE

1.30 À data do óbito GG estava casado com a demandante CC, por casamento celebrado a 00/00/2015, sem convenção antenupcial,

1.31 e era pai das demandantes menores DD, nascida a 00/00/0000, e EE, nascida a 00/00/0000,

1.32 Com a morte do marido a demandante CC perdeu um cuidador e amigo, e o seu afecto e amor.

1.33 Com a morte do pai as demandantes DD e EE perderam um cuidador e amigo, o afecto e amor do pai, o seu convívio, as brincadeiras e ensinamentos, e alimentos para o seu sustento, saúde, educação e bem-estar.

1.34 As demandantes CC, DD e EE tinham, com o marido e pai fortes laços de afeição, amor e carinho e sofreram um forte desgosto e abalo psicológico com o seu falecimento.

1.35 CC perdeu a vontade de se socializar, evitando os contactos sociais, comportamento anterior que sempre a caracterizou.

1.36 As menores DD e EE, de crianças afáveis e sociáveis passaram a ser crianças que se isolam e interagem muito menos, não partilhando das brincadeiras das crianças da sua idade, perguntam pelo pai com muita regularidade, apresentam sobressaltos e assustam-se frequentemente.

1.37 A menor EE com frequência demonstra incompreensão pela ausência e perda do pai,

1.38 A actuação do demandado provocou grande tristeza e mágoa às demandantes CC, DD e EE, danos que perdurarão para sempre,

1.39 O arguido apresentou-se perante a Polícia Judiciária, no dia 12/12/2018.

1.40 E foi detido nessa data, 12/12/2018, e encontra-se em prisão preventiva desde 13/12/2018 à ordem dos presentes autos.

1.41 O arguido é nacional de ..., e é titular do cartão de residência (de Familiar de Cidadão da União Europeia Nacional de Estado Terceiro) com o n° 0000 emitido pelo SEF a 0/0/2013 válido até 00/00/2020.

1.42 O arguido já foi condenado:

-     no processo sumário 845/18.5PDAMD do Tribunal da ... da comarca de ..., JL criminal, JI, por decisão de 22/11/2018, transitada em julgado a 04/01/2019, pela prática a 16/11/2018, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 70 dias de multa;

-     no processo abreviado 165/18.5GTABF do Tribunal de ..., da Comarca de ..., JL criminal, J2, por decisão de 01/07/2019, transitada em julgado a 17/09/2019, pela prática a 18/07/2018, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 70 dias de multa;

1.43 O arguido tem 00 anos, à data dos factos, com 00 anos, encontrava-se transitoriamente junto da família paterna, localizada na zona de .... Tratava-se de uma situação frequente, embora integrasse o agregado da mãe, composto por esta, pelo padrasto e por uma irmã de 00 anos, residindo na zona periférica de … (...). São imigrantes ..., com uma vida organizada através do regular desempenho de serviços indiferenciados. O arguido trabalhava como ... no Hospital ..., contrato que havia cessado pouco tempo antes da data dos factos... ponderava a possibilidade de poder ficar mais tempo no ..., caso encontrasse aqui uma alternativa de trabalho. As relações interfamiliares foram descritas como isentas de conflitos relevantes. Tem residência regular no país. O arguido foi criado em contexto de família alargada em ... - ..., basicamente a cargo da avó materna. A mãe veio para Portugal quando tinha 0 anos, sendo que o pai já havia emigrado antes. AA veio mais tarde, com 00 anos, para junto da progenitora, estando já então cada um dos progenitores com vidas familiares distintas. AA frequentou a escola no país de origem até um nível equiparado ao 0o ano. Em Portugal ainda chegou a frequentar algum tempo, mas teve dificuldades e acabou por desistir, optando por começar a trabalhar... Em contratos de curta duração como ... no Hospital .... Nesta altura tinha por prática entregar o vencimento à mãe, para ajudar nas despesas familiares, anuindo na gestão dos gastos que a mesma determinava... jovem obediente em meio familiar, não sendo reconhecidos sinais comportamentais problemáticos ou questões de saúde no seu processo de desenvolvimento. Das suas características pessoais, é notória a imaturidade e as baixas competências pessoais e sociais, tendendo à dependência de terceiros para a resolução dos seus próprios assuntos, designadamente os de cariz oficial. Revela uma reduzida capacidade de iniciativa e de antecipação de consequências, dificilmente respondendo proativamente às exigências do seu contexto. Fruto de uma relação de namoro ... nasceu uma filha há 0 ano atrás, encontrando-se ambas na .... Faz menção a uma outra namorada...com quem mantém uma relação mais próxima. Embora apreciasse ambientes de diversão e saídas com grupo de pares, contextos em que se facilitariam consumos de substâncias psicoativas, os mesmos assumiram um carater pontual ... sem tendências reveladas no uso de violência na resolução de conflitos, o confronto judicial que agora enfrenta teve um impacto de choque em meio familiar. ... O arguido, embora se mostre muito apreensivo pela situação e ciente da gravidade dos factos, tende a minimizar a sua responsabilidade, através de alegações como o estado em que se encontrava de alteração de consciência induzido pelo consumo de bebidas alcoólicas e outras substâncias e o caráter acidental que atribui aos alegados factos. Encontra-se nos últimos nove meses em prisão preventiva no EP de .... Em meio prisional revela um comportamento ajustado às regras vigentes. Trabalha em … e frequenta algumas ações, mas é pouco expediente nas situações mais diversas. Tem contado com apoio exterior, traduzido em visitas e contactos telefónicos regulares, por parte de familiares, da namorada ... e também da mãe da filha.»

2. Matéria de facto dada como não provada:

«2.1 O arguido encontrava-se munido de uma faca cuja lâmina terá cerca de 2,2 cm de largura e 10 ou mais cms de comprimento,

2.2 Ao mesmo tempo que persistia na sua acção de levar o arguido para o exterior GG desferiu-lhe um murro na cara,

2.3 O arguido usou o canivete, na tentativa de se libertar,

2.4 O arguido desferiu o segundo golpe porque após o primeiro golpe GG não o libertou de imediato,

Do Pic das demandantes CC, DD e EE

2.5 Tendo, quer a mulher quer as filhas do falecido, durante muitas noites um sono agitado com constantes pesadelos, acordando por diversas vezes, agitadas e aos gritos ou em pranto,

2.6 A menor DD encontra-se a ser acompanhada por psicólogo, que a está a ajudar a compreender a ausência/falta/perda do pai, apesar desse acompanhamento ainda necessitar de ser prolongado por mais um grande período temporal.»

           

B. Matéria de direito

1. A partir das conclusões dos recursos interpostos, as questões são as seguintes:

- medida da pena concreta aplicada pela prática do crime de homicídio, que devia ser de 9 anos de prisão (recurso do arguido);

- qualificação jurídica dos factos, considerando-se que estes se deviam subsumir ao crime de homicídio qualificado nos termos dos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al.s e) e h), do Código Penal (CP) e, consequentemente, deveria ter sido aplicada uma pena próxima dos 4/5 da pena máxima; além disto, sendo alterada a qualificação “necessária, objetiva e consequentemente [vai] impor uma decisão condenatória do pedido de indemnização civil (...) diferente” (recurso da assistente/demandante);

- e a partir do entendimento de que alguns factos provados foram “insuficiente ou incorretamente dados como provados” deveria ter sido outra a decisão quanto ao pedido de indemnização civil (recurso da demandante).

Ora, tendo em conta o âmbito do recurso assim delimitado, cumpre desde já verificar em que medida a decisão do Tribunal da Relação de Évora é recorrível. E cumpre referir que o acórdão recorrido negou provimento a todos os recursos interpostos e manteve a decisão do Tribunal de 1.ª instância.

Ora, é certo que o recurso relativo a matéria de direito em que o arguido foi punido com uma pena de prisão superior a 8 anos, ainda que esta tenha sido integralmente confirmada pelo Tribunal da Relação, é admissível nos termos dos arts. 399.º, 432.º. n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 1, al. f), a contrario, todos do Código de Processo Penal (CPP). Porém, nos termos do art. 434.º, do CPP, os poderes de cognição deste Supremo Tribunal de Justiça estão restritos a matéria de direito, podendo conhecer (oficiosamente) dos vícios elencados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, se estes decorrerem do texto da decisão recorrida. Não podendo este Supremo Tribunal conhecer das alegações da matéria de facto — e porque a assistente/demandante faz depender da alteração da matéria de facto uma outra qualificação jurídica, considerando tratar-se de um homicídio qualificado — o conhecimento desta alegação de reanálise da qualificação jurídica dos factos fica prejudicado (por ter feito depender a alegação de uma outra qualificação jurídica de uma alegação de alteração da matéria de facto inadmissível, dado que toda a decisão relativa àquela ficou sedimentada com o acórdão do Tribunal da Relação).

Na verdade, a assistente/demandante — pretendendo uma “requalificação jurídica da conduta praticada pelo Arguido” (p. 4 da motivação de recurso) — desenvolve todo o raciocínio a partir de uma outra análise da matéria de facto (o que constituem alegações das quais este Tribunal não pode conhecer) ­ — e faz apelo:

às declarações prestadas pelo arguido quer em julgamento, quer em 1.ª interrogatório judicial; considera “de maior relevo referir que a Testemunha...” (p. 5 da motivação apresentada) assim remetendo para o depoimento desta, embora referindo que “nenhuma referência ao seu Depoimento é efectuada ao longo do Acórdão da Relação de Évora somente releva para efeitos de apreciação do facto de não conseguir identificar, sem sombra de dúvida, a arma branca utilizada no caso concreto” (p. 6 da motivação); refere que o “Tribunal a quo não logrou apurar quais as características do objecto conto-perfurante que provocou os ferimentos...” (p. 6 da motivação), e o facto de uma das testemunhas não terem assistido a qualquer discussão (p. 7 da motivação); afirma que as declarações do arguido “não devem ser valoradas, por terem sido incoerentes, inverosímeis e não terem sido credíveis, tendo sido sim manifestamente prestadas com a pretensão de o desresponsabilizar” e remete, expressamente, para as gravações das declarações (p. 7 da motivação); alega que o arguido alterou as declarações entre o que disse em julgamento e no 1.º interrogatório (p. 8 da motivação), que os relatos do arguido em julgamento são contraditórios entre si (idem); e a partir desta outra análise factual conclui que o arguido se determinou “com especial perversidade” e que os factos deveriam ter sido subsumidos ao homicídio qualificado, nos termos do art. 132.º, n.º 2, als. e) e h), do CP.

Ora, estando vedado a este Tribunal qualquer alteração da matéria de facto ou qualquer reanálise da prova em vista de uma possível alteração da matéria de facto, qualquer conhecimento de uma qualquer alegação que parta daquela alteração fica prejudicada; assim, a apreciação das alegações quanto à requalificação jurídica dos factos fica prejudicada por a matéria de facto estar sedimentada após a prolação do acórdão do Tribunal da Relação de Évora.

E fazendo depender o recurso quanto ao pedido de indemnização civil daquelas alterações — da matéria de facto e, consequentemente, da (re)qualificação jurídica dos factos — fica, igualmente, prejudicado o conhecimento desta parte do recurso.

Assim sendo, rejeita-se, por manifesta improcedência o recurso interposto pela assistente/demandante na parte referente à alegação de uma outra qualificação jurídica (e consequentemente de uma outra pena) tendo por base uma alteração da matéria de facto, por manifesta improcedência, nos termos dos arts.  410.º, n.º 1, al. a), do CPP, determinando a condenação da recorrente ao pagamento de 3 UC, nos termos do art. 420.º, n.º 3, do CPP.

Mas, independentemente destes considerandos, também o recurso relativo ao pedido de indemnização civil, ainda que constituísse um recurso autónomo (como ocorre no caso do recurso interposto pela demandante), não é admissível.

O recurso relativo ao pedido de indemnização civil é admissível quando o valor do pedido e a sucumbência o permitam (nos termos do art. 400.º, n.º 2, do CPP), e quando estão cumpridos os pressupostos de admissibilidade do recurso de revista, segundo o disposto no CPC (ex vi art. 4.º, do CPP), assim se estabelecendo um mesmo regime de admissibilidade do recurso referente a pedidos de indemnização civil, quer sejam processados por apenso ao processo penal, quer o sejam em separado.
Na verdade, como a recorribilidade para o STJ da parte da sentença relativa à matéria criminal está essencialmente dependente da medida concreta da pena aplicada ao arguido [cf. arts. 400.º, n.º 1, al. f), e 432,º, n.º 1, ambos do CPP] e como este critério de recorribilidade não demonstra virtualidade de aplicação, por razões óbvias, quanto ao segmento decisório relativo ao pedido de indemnização civil, a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisão que incida sobre a matéria civil passou a ser regulada, subsidiariamente, pelo regime jurídico vertido no CPC, já que se abandonou, nesta sede, a indexação aos critérios de recorribilidade da matéria criminal. Com isto estabeleceu-se uma igualdade entre a ação civil enxertada em processo penal e aquela que se mostra deduzida, de modo autónomo, em ação de cunho exclusivamente civil, de modo a que a diferente forma de dedução (enxertada ou autónoma) do pedido de indemnização civil não venha a ter qualquer influência nas legítimas expectativas dos sujeitos processuais no que diz respeito às possibilidades de acesso, em sede de recurso, aos tribunais hierarquicamente superiores.
E assim, a jurisprudência do STJ, de forma largamente maioritária, tem entendido que o regime de admissibilidade dos recursos previsto no CPC tem aplicação subsidiária aos pedidos de indemnização cível formulados em processo penal[1].
Assim sendo, o acórdão do Tribunal da Relação só admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos de revista excecional previstos pelo art. 672.º do CPC, quando, em casos de dupla conforme, não exista unanimidade por parte dos Senhores Juízes Desembargadores e a decisão recorrida apresente uma fundamentação essencialmente divergente da sufragada pela decisão (sentença ou acórdão) do tribunal de 1.ª instância.
“Confirmação” significa coincidência decisória entre o acórdão do Tribunal da Relação e a sentença ou acórdão do tribunal de 1.ª instância, o que abrange, quer a coincidência total dos segmentos decisórios em confronto (o que se obtém mediante a confirmação pela Relação de toda a decisão do tribunal de 1.ª instância), quer a coincidência parcial, desde que a decisão contenha segmentos distintos e autónomos, em que, naturalmente, quanto aos mesmos, ocorra confirmação do decidido[2].
Por seu turno, “fundamentação essencialmente diferente” significa que não é toda e qualquer divergência, por mais insignificante e por mais irrelevante que seja, entre a decisão do tribunal de 1.ª instância e a decisão do tribunal de recurso, que obsta à formação da denominada dupla conforme. Exigem-se divergências marcantes, importantes ou significativas entre essas decisões judiciais, em termos de qualificação ou de enquadramento jurídico, no tocante a aspetos que não sejam acessórios ou secundários para a discussão ou julgamento da causa.
A simples diferença na fundamentação não obsta à inadmissibilidade de recurso para o STJ. A lei impõe uma diferença qualificada, nas suas palavras, uma “fundamentação essencialmente diferente”, o n.º 3 do art. 671.º do CPC exige que a fundamentação de direito apresentada pela sentença da 1.ª instância seja drástica ou profundamente divergente em face daquela que sustenta o acórdão do tribunal de recurso.
Ora, no presente caso, consideramos existir dupla conforme, pelo que é inadmissível o recurso por força do disposto no art. 671.º, n.º 3, do CPC, dado que não há voto de vencido e a fundamentação apresentada no acórdão recorrido não é essencialmente diferente da apresentada em 1.ª instância, assim se impondo a rejeição do recurso.
Isto porque, no acórdão de 1.ª instância (de 20.11.2019), a atribuição do pedido de indemnização civil fundamentou-se na responsabilidade civil por factos ilícitos decorrente da prática do crime [nos termos conjugados do art. 129.º, do CP, e dos arts. 483.º, n.º 1, 496.º, 562.º, 563.º, 564.º, n.º 1, e 566.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código Civil (CC)]. E compulsado o acórdão recorrido, a fundamentação é coincidente (os instrumentos jurídicos são os mesmos, assim como os factos relevantes para a determinação da indemnização). Em ambas as decisões quanto à atribuição da indemnização devida pela perda do direito à vida do ofendido, considerou-se o bem jurídico lesado, a idade da vítima (31 anos), o facto de ser uma pessoa alegre, saudável e feliz, e os juízos de equidades relevantes, para concluir que a indemnização arbitrada era correta (cf. p. 51 do ac. recorrido e p. 23 do ac. de 1.ª instância). Em ambas as decisões, quanto ao dano não patrimonial sofrido pelo ofendido antes de morrer, considerou-se relevante o tempo decorrido entre as lesões e a morte e determinou-se a mesma indemnização (cf. p. 52-53 do ac. recorrido e p. 24 do ac. de 1.ª instância). Em ambas as decisões, quanto à indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelas demandantes, foi relevante o sofrimento, os laços estabelecidos com o ofendido, e as sequelas decorrentes do sucedido, tendo sido arbitrada a mesma indemnização.
Atendendo, pois, à existência de dupla conforme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, o recurso quanto à indemnização civil interposto pela assistente/demandante e pela demandante não é admissível, por força do disposto no art. 671.º, n.º 3, do CPC ex vi art. 4.º, do CPP.
Assim sendo, é apenas admissível o recurso quanto à medida da pena interposto pelo arguido, sendo rejeitados os restantes recursos:
- são rejeitados os recursos quanto ao pedido de indemnização civil interpostos pela assistente/demandante CC, em seu nome e em representação das suas filhas, e o interposto pela demandante BB, em seu nome e em representação da sua neta, nos termos do art. 671.º, n.º 3, do CPC ex vi art. 4.º, do CPP.
Fica prejudicado o conhecimento do recurso interposto pela assistente/demandante CC, em seu nome e em representação das suas filhas, quanto à qualificação jurídica dos factos por ter feito depender este de alegações contra a matéria de facto provada, matéria vedada ao conhecimento deste Supremo Tribunal de Justiça, por força do art. 434.º, do CPP.

2. O arguido AA vem condenado pelo crime de homicídio, nos termos dos arts. 131.º, do CP, numa pena de prisão de 12 anos.

Na verdade, tendo sido inicialmente acusado pela prática de um crime de homicídio qualificado, nos termos do art. 132.º, n.º 2 als. e) e h), do CP, considerou-se, por um lado, que tendo ficado provado o motivo que deu origem à discussão (facto provado 1.1.), mas não tendo sido apurado o concreto motivo subjacente ao facto de o arguido e o ofendido se terem envolvido (factos provados 1.12. e 1.1.3.), com o ofendido a convidar o arguido para saírem e o arguido a recusar e, por outro lado, tendo o arguido atuado com dolo eventual (facto provado 1.10.) e não dolo direto, considerou-se que o comportamento não deveria ser qualificado em função da al. e), do n.º 2, do art. 132.º, do CP (cf. ac. recorrido p. 46 e ac. de 1.ª instância p. 16); além disto, as características do instrumento usado não foram apuradas (facto provado 1.2.), nem este foi apreendido, pelo que se considerou que não havia elementos suficientes para qualificar a conduta com base na al. h) do n.º 2, do art. 132.º, do CP (cf. p. 47 do ac. recorrido e p. 17 do ac. de 1.ª instância).

Para melhor esclarecimento transcreve-se a fundamentação do acórdão de 1.ª instância:

«Quanto à circunstância qualificativa da alínea e)

"...Motivo torpe ou fútil significa que o motivo da actuação avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito ... de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pela vida humana — vd., Jorge Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora Tomo 1, 1999, p. 33. Ora,

No caso dos autos, sem embargo, de se ter apurado que o motivo que deu início à discussão entre o arguido e o ofendido se prendeu com o facto deste ter respondido a uma solicitação do arguido que não lhe era dirigida, mas a terceiro (sobre a necessidade do arguido e o destinatário da interpelação se deslocarem para outro local para cantarem parabéns a uma amiga comum que fazia anos), todavia, não se apurou o concreto motivo porque, a partir daí, na sequência da discussão o arguido e o ofendido se envolveram, o ofendido a convidar e a agarrar o arguido para irem para o exterior, e o arguido a recusar sair e a recorrer ao uso do canivete para com ele desferir os golpes que desferiu ao ofendido, sendo que, nem, tão-pouco, se tendo apurado dolo directo na actuação do arguido, não se vislumbra qual o concreto motivo da actuação do arguido que pudesse preencher a qualificativa do motivo fútil, pelo que não pode persistir tal qualificação — vd., neste sentido, Ac. do TRE de 20/1/2015, relator Sr. Des. Proença da Costa, processo 320/13.4GCBNV, acessível em www.dgsi.pt "...Não será motivo fútil a ausência (ou o desconhecimento) da motivação do agente ... ".

Quanto à circunstância qualificativa da alínea h)

"...utilizar meio particularmente perigoso é... servir-se para matar de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima",

Devendo ponderar-se, que

"a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos",

Pelo que,

"...Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar ( não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar, ser indispensável determinar com particular exigência e severidade se da natureza do meio utilizado — e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes - resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Sob pena de outra forma ... se poder subverter o inteiro método da qualificaç'ão legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra do homicídio doloso"- vd. Jorge Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora Torno 1, 1999,p. 37.

No caso dos autos,

A este propósito, provou-se que o arguido desferiu os golpes com um canivete que trazia no bolso, instrumento de características não concretamente apuradas, posto que não houve apreensão do mesmo, e que, não obstante, aquele concreto canivete usado pelo arguido ter tido a aptidão para provocar as lesões que provocou, com as características descritas na autópsia que determinaram a morte, designadamente, a laceração do coração do ofendido, todavia, à luz da exigência dos ensinamentos transcritos supra, tais constatações não bastam para o preenchimento da circunstância qualificativa em apreciação, pelo que, também não se mostra preenchida a circunstância da alínea h) do n° 2 do artigo 132° do Código Penal — no mesmo sentido, vd. o Ac. do ST.I de 12-06-2003, relator Sr. C° Carmona da Mota, acessível em www.dgsi.pt  03P1671.

Improcede pois a qualificação do homicídio do art. 132° do CP, do, pelo que, a final, será o arguido condenado pela prática do crime de homicídio do art. 131.º do Código Penal.»

Na verdade, a qualificação com base no disposto no art. 132.º, n.º 2, al. e), do CP, baseia-se em elementos estritamente subjetivos, na motivação do agente, em particular, num motivo que deva ser considerado “pesadamente repugnante, baixo ou gratuito[3]; ora, não estando dado como provada, de forma clara e explícita, a motivação subjacente à agressão, não se sabendo qual o motivo que determinou o arguido a matar, não existem elementos subjetivos provados que nos permitam aplicar o direito aos factos. Além disto, o instrumento usado — canivete — tal como “a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos”[4] e, por isso, a lei exigiu que o instrumento fosse “particularmente perigoso”, ou seja, o instrumento tem que revelar “uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar”[5]. Ora, não se pode concluir deste modo quando o instrumento utilizado foi um canivete, sem que se saiba quais as suas caraterísticas. Só as particulares características deste é que nos poderia, eventualmente, fazer concluir tratar-se de um instrumento com uma particular perigosidade distinta da perigosidade inerente à generalidade dos instrumentos utilizados para matar.

Não havendo lugar à qualificação da conduta do arguido, a pena deverá ser determinada a partir da moldura do crime de homicídio, isto é, entre 8 e 16 anos, nos termos do art. 131.º, do CP.

A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências da prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos arts. 71.º, n.º 1 e 40.º, do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela dos bens jurídicos em causa e às exigências sociais decorrentes das lesões ocorridas, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade humana do delinquente. Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena, dever‑se-ão ter em conta todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra o arguido, nomeadamente, os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º, n.º 2, do CP. Nesta valoração, o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenha tido em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração).

A partir dos factos provados, podemos concluir estarmos perante um caso em que a culpa do agente é elevada, e as exigências de prevenção geral e especial bastante robustas.

Tendo em consideração:

- o modo de execução do facto que provocou um “traumatismo violento” (facto provado 1.6.), do qual resultou a morte da vítima |(facto provado 1.6.),

- o comportamento posterior do arguido (facto provado 1.3.) que logo após a agressão colocou-se em fuga, deixando a vítima à sua mercê;

- mas, sem esquecer

. que ofendido contribuiu de modo relevante para a prática do crime, agarrando o arguido pela camisa e pretendendo insistentemente levá-lo lá para fora para “falarem” (ponto 1.12),

. que à data da prática dos factos, o arguido tinha apenas 00 anos (o arguido nasceu a 03.06.1997 e os factos ocorreram a 09.12.2018[6]),

. que o arguido se apresentou voluntariamente à Polícia 3 dias depois do ocorrido (a 12.12.2018 — facto provado 1.39.),

. e que anteriormente apenas tinha sido condenado por crimes de condução sem habilitação legal em pena de multa; e

- tendo ainda em consideração que, estando privado da liberdade desde 12.12.2018 (facto provado 1.40), tem apresentado “um comportamento ajustado ás regras vigentes” (facto provado 1.43), embora minimize a sua responsabilidade “através de alegações como o estado em que se encontrava de alteração de consciência induzido pelo consumo de bebidas alcoólicas e outras substâncias e o carácter acidental que atribui aos alegados factos” (facto provado 1.43),

consideramos que sendo elevadas as exigências de prevenção geral atendendo ao bem jurídico lesado, as exigências de prevenção especial são medianas, dada a sua integração na sociedade, pois é tido como um “jovem obediente em meio familiar, não sendo reconhecidos sinais comportamentais problemáticos” (facto provado 1.43), apesar de ser “notória a imaturidade e as baixas competências pessoais e sociais, tendendo à dependência de terceiros para a resolução dos seus próprios assuntos” (facto provado 1.43), e de revelar  “uma reduzida capacidade de iniciativa e de antecipação de consequências” (facto provado 1.43).

Assim, a partir de uma moldura entre 8 e 16 anos, consideramos que uma pena de 10 anos de prisão, ainda dentro da culpa do agente, cumpre aquelas exigências de prevenção geral, e é mais adequada às exigências de prevenção especial, pois poderá facilitar uma melhor adaptação à sociedade uma vez em liberdade.

III

Conclusão

Nos termos acima expostos, acordam, em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em

a) rejeitar, por manifesta improcedência, o recurso interposto pela assistente/demandante CC na parte referente à alegação de uma outra qualificação jurídica (e consequentemente de uma outra pena) tendo por base uma alteração da matéria de facto, por manifesta improcedência, nos termos dos arts.  410.º, n.º 1, al. a), do CPP;

b) condenar a assistente/demandante CC no pagamento de 3 UC nos termos do art. 420.º, n.º 3, do CPP;

c) rejeitar os recursos quanto ao pedido de indemnização civil interpostos pela assistente/demandante CC, em seu nome e em representação de suas filhas, e o interposto pela demandante BB, em seu nome e em representação de sua neta, nos termos do art. 671.º, n.º 3, do CPC ex vi art. 4.º, do CPP e

d) conceder provimento ao recurso interposto por AA, aplicando uma pena de 10 (dez) anos de prisão pela prática de um crime de homicídio, nos termos do art. 131.º, do Código Penal.

Custas pelos recorrentes/demandantes, com 10 UC de taxa de justiça, nos termos do art. 527.º, n.º 3, do CPC.

Não são devidas custas pelo arguido.

Supremo Tribunal de Justiça, 15 de outubro de 2020

Os juízes conselheiros,

     

Helena Moniz (Relatora)                                  

Francisco Caetano

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[1] Cf., neste sentido, entre muitos outros, Acs. do STJ de 29.09.2010, Proc. n.º 343/05.7TAVFN.P1.S1, de 07.04.2011, Proc. n.º 4068/07.0TDPRT.G1.S1, de 22.06.2011, Proc. n.º 444/06.4TASEI.L1.S1, de 30.11.2011, Proc. n.º 401/06.0GTSTR.E1.S1, de 15.12.2011, Proc. n.º 53/04.2IDAVR.P1.S1, de 19.09.2012, Proc. n.º 13/09.7GTPNF.P2.S1, de 13.02.2013, Proc. n.º 707/10.4PCRGR.L1.S1, de 14.03.2013, Proc. n.º 610/04.7TAPVZ.P1.S1, de 12.06.2013, Proc. n.º 123/09.0GCTND.C1.S1, de 30.10.2013, Proc. n.º 150/06.0TACDR.P1.S1, de 06.03.2014, Proc. n.º 89/01.5IDLSB.L1.S1, e de 10.04.2014, Proc. n.º 378/08.8JAFAR.E3.S1
[2] A este respeito, cf., a jurisprudência das Secções Cíveis do STJ, vertida nas revistas n.ºs 16/13.7TBSCF-A.L1-A.S1 - 7.ª Secção, de 30-10-2014, 70/10.3T2AVR.C1.S1 - 7.ª Secção, de 26-06-2014, 1084/08.9TBCBR.C1.S1 - 6.ª Secção, de 13-05-2014, e 2393/11.5TJLSB.L1.S1 - 7.ª Secção, de 10-04-2014
[3] Figueiredo Dias/ Nuno Brandão, art. 132.º/ § 25, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 62.
[4] Figueiredo Dias/ Nuno Brandão, ob. cit., art. 132.º/39, p. 68.
[5] Idem.
[6] Não sendo, pois, passível de aplicação o regime especial previsto no Decreto Lei n.º 401/82, de 23.09, porque apenas é tido com jovem, para efeitos deste diploma “o agente que, à data da prática do crime,tiver completado 16 anco sem ter ainda atingido os 00 anos” (art. 1.º, n.º 2)