Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
228/19.0JAPTM.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO GUERRA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
CITIUS
TRANSCRIÇÃO
GRAVAÇÃO DA AUDIÊNCIA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
MEDIDA DA PENA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
MOTIVAÇÃO DO RECURSO
Data do Acordão: 06/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I- A circunstância qualificativa “frieza de ânimo” consistirá numa vontade criminosa particularmente intensa durante um período de tempo suficiente, para poder reflectir sobre o crime antes de executar, não tendo, portanto, o agente agido sob emoção ou impulso, indiferente à censura que a sua acção concita.

II- Face à matéria de facto provada, e para aferir da verificação da circunstância qualificativa em causa, relevam que a recorrente combinou encontrar-se com o ofendido na manhã, o que só veio a ocorrer da parte da tarde. “E, já com o propósito de retirar a vida ao ofendido”, a recorrente veio desde ..., ..., para esse encontro, o que demonstra uma firme vontade na sua deliberação de matar o ofendido, resolução essa, no entanto, que ocorreu com tempo suficiente para refletir sobre a acção que se propunha concretizar e, não obstante, manteve esse firme propósito.

III- Ainda com o estratagema engendrado, simulando uma avaria de modo a levar o ofendido a socorrê-la, colocando-o primeiro numa situação particularmente vulnerável por estar distraído a procurar verificar a avaria que a recorrente inventara, esta muniu-se de um objecto corto-perfurante idêntico a uma faca, um objecto idóneo a causar a morte que trazia na sua viatura, deferindo os golpes no pescoço e zona abdominal do ofendido com intenção de lhe tirar a vida, abandonando o local, deixando o ofendido estendido no chão, sem lhe ter prestado qualquer assistência, indiferente ao resultado dos seus actos.

IV- Com efeito, o modo pensado e planeado para o cometimento do crime, o estratagema engendrado que pressupõe, necessariamente, um largo período de reflexão, de ponderação para a sua concretização. Tendo formado o seu desígnio criminoso – no caso, o de matar outra pessoa – através de um processo frio, pensado, reflexivo, cauteloso e calmo quanto à execução, e persistente quanto à resolução, entende-se que a arguida autuou com “frieza de ânimo”.
Decisão Texto Integral:


Recurso Penal

Proc. nº.  228/19.0JAPTM

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

Vêm os presentes recursos interpostos por, AA, arguida no processo comum 228/19.0JAPTM, que correu termos no Juízo Central Criminal ........ – Juiz .. – do Tribunal Judicial da Comarca .....

A - O primeiro recurso interposto a 29.12.2020:

Vem este recurso interposto do despacho de 21.12.2020 que indeferiu o requerimento pedindo “a disponibilização do acórdão em ficheiro em formato word, por inexistência de disposição legal que o preveja, sendo certo que se trata de documento autêntico publicitado no Citius” e do requerimento pedindo a “transcrição e respectivo pagamento por inexistência de disposição legal que o preveja, sendo certo que a gravação-audio da audiência se encontra integralmente disponível no Citius”.

B - O segundo recurso interposto recurso a 21.1.2021:

Vem este recurso interposto do acórdão de 17.12.2020 que condenou a recorrente pela autoria material de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs. 22º, nºs.1 e 2, als a) e b); 23º, nºs. 1 e 2; 73º, nº. 1, als a) e b); 131º; 132º, nºs. 1 e 2, al. j), todos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Verifica-se que ambos recursos foram admitidos pelo Tribunal de 1ª instância para este Supremo Tribunal de Justiça, pelo que se irá proceder ao conhecimento do primeiro recurso interposto, nos do artº. 432º nº.1 al. d) do CPP.

A - Quanto ao primeiro recurso, do despacho de indeferimento de 21.12.2020:

I -Relatório

1. Vem este recurso “dirigido ao Tribunal da Relação ….., a subir imediatamente e em separado, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 399º, 401º, nº 1, al. b), 406º, nº 2, 407º, nº 1 e n.º 2, al. b), 411º e 427.º, todos do Código de Processo Penal”.

Ainda, na interposição deste recurso, requer a recorrente “Porque o recurso sobre em separado, anexa os documentos necessários, extraídos do Citius, para instruir o acórdão ad quem”.

Requer ainda a recorrente que “se encontra presa preventivamente, e neste momento está a correr prazo para recurso” se ordene “a suspensão do prazo para apresentação do recurso da sentença final desde a data da prolação do despacho que aqui se recorre (21/12/2020) até que a arguida seja notificada do acórdão que decide sobre o recurso que aqui se interpõe”.

2. São os seguintes, os requerimentos sobre os quais recaiu o despacho recorrido.

AA, arguida identificada nos autos, vem expor para a final requerer: A arguida, não se conforma com o teor do acórdão proferido, pretende daquele recorrer;

O acórdão não se encontra disponível em formado pdf editável na plataforma Citius;                                                                                         

O recurso a interpor, conterá necessariamente excertos/transcrições do acórdão proferido pela primeira instância; É praxis corrente nos tribunais portugueses a cedência das peças processuais que integram os autos em formato word, quando tal é solicitado para efeitos de recurso, aplicando-se, desta forma, o princípio da cooperação processual à prática dos tribunais.

A cooperação e a boa-fé processual são deveres que impendem sobre os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes ao nível da condução e da intervenção no processo judicial. Nos termos deste princípio, todos devem cooperar entre si. Assim se encontra previsto no art. 7.º do CPC, aplicável também em processo crime. Tudo por forma a agilizar a redacção do recurso a apresentar, uma vez que, Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei fundamental, assegura procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de  modo  a  obter tutela  efectiva e  em  tempo  útil  1(In  artigo  20.º/3  Constituição da  República Portuguesa.)

Assim, ao abrigo do normativo invocado, requer seja ordenada a disponibilização da sentença proferida em formato WORD (.docx) e que, tal ficheiro seja enviado para o email da subscritora, ...............@adv.oa.pt  , como também é prática corrente nos tribunais para este tipo de situações, (uma vez que a plataforma Citius não permite o envio deste tipo de ficheiros), por forma a tornar o procedimento mais expedito e causar menos transtorno.

Se, ainda assim, face à motivação apresentada V. Exa. optar por indeferir o requerido, à cautela, ainda se requer, pelo menos, ordene o envio do ficheiro em formato PDF editável pela via atrás requerida.

Tudo com vista à apresentação de recurso.”

e, ainda,

AA, arguida, notificada que foi do acórdão por V. Exa. proferido, e não se conformando com o teor do mesmo, vem expor para a final requerer:

A arguida não se conformou com o teor do acórdão proferido e do mesmo pretende recorrer;

A arguida é beneficiária de apoio judiciário, beneficiando, inclusivamente, da isenção de custas processuais e demais encargos como processo;

Por forma a interpor recurso, o qual pretende verse sobre a matéria de facto e de direito, a arguida tem de ter acesso à transcrição da prova produzida na audiência de discussão e julgamento;

Por outro lado, nos termos do art. 19.º/1 do Regime das Custas Processuais “quando a parte beneficie da isenção de custas ou de apoio judiciário, os encargos são sempre adiantados pelo Instituto de Gestão Financeira e das Infraestruturas da Justiça, I.P., sem prejuízo do reembolso”.

Tendo a transcrição de ser realizada por terceiro, deverá a despesa ser adiantada pelo mencionado instituto, tal como preveem os artigos 19.º e 20.º/2 do Regulamento das Custas Processuais;

Tudo em bom cumprimento do princípio constitucional que garante o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º da Lei Fundamental.

Para efeitos de tradução, a arguida junta orçamento anexo, no valor de €246.00 (duzentos e quarenta e seis euros) com IVA à taxa de 23%, com os elementos para pagamento, inclusos, bem como todos os elementos de contactos necessários para a adjudicação da transcrição.

Termos em que requer a V. Exa., atenta a essencialidade da transcrição para o exercício cabal do direito a recorrer da arguida, se digne ordenar que seja concedido adiantamento para  pagamento das  transcrições  necessárias  à  análise  da  prova produzida e elaboração do recurso.

Consequentemente, requer  seja  concedida  a  adjudicação  do  trabalho  e emitida nota de adiantamento do referido instituto à sociedade que orçamentou, conforme anexo, nos termos do supracitado normativo.

Caso o tribunal entenda adjudicar o trabalho de transcrição a outra sociedade que preste idêntico serviço, requer seja então tal entidade oficiada nos mesmos moldes.”

3. O despacho recorrido, proferido a 21.12.2020, decidiu pela seguinte forma:

Requerimentos da arguida que antecedem:

No que toca à disponibilização do acórdão em ficheiro em formato word, por inexistência de disposição legal que o preveja, sendo certo que se trata de documento autêntico publicitado no Citius.

No que toca à transcrição e respectivo pagamento por inexistência de disposição legal que o  preveja,  sendo  certo  que a  gravação-audio  da  audiência  se encontra  integralmente disponível no Citius, indefere-se ao requerido”.

4. Inconformada, veio a recorrente interpor o presente recurso ao qual aditou as seguintes Conclusões:

I. Os requerimentos apresentados sob as referências Citius …..94 e …….95, e sobre os quais  versaram os indeferimentos,  foram  largamente  motivados,  com  princípios  e disposições legais aplicáveis.

II. Ainda assim, sem se compreender e sem conceder, o despacho a quo não foi.

III. O  primeiro requerimento tinha um  pedido principal (entrega acórdão proferido em formato word) e um pedido subsidiário (acórdão em formato pdf editável ou pesquisável), tudo com vista à redação e interposição do recurso.

IV. O despacho a quo não decidiu a matéria requerida sujeita à sua apreciação, é omisso, viola o dever  de  administrar a justiça e fundamentar as suas decisões, artigos 153.º/1  e 154.º/1  do CPP.

V.  O  requerimento  foi  apresentado  ao  abrigo  do  princípio  da  cooperação  e  boa   fé processual plasmado nos art. 7.º e 8.º do CPC é aplicável ao processo crime ex vi art. 4.º CPP.

VI. Sendo certo  que,  as boas práticas daquele tribunal (juiz .. – juízo central criminal de ........) e de  outros o país, ao abrigo do princípio da cooperação processual invocado têm por costume disponibilizar aos defensores/advogados, pelo menos, a versão pdf editável/pesquisável dos acórdãos proferidos, quando requerido para  efeitos de recurso, por forma a agilizar a sua redação, em respeito pelas garantias de defesa da arguida e tutela jurisdicional efetiva.

VII. Ora,  despacho proferido pelo tribunal a quo contende com  os direitos de recurso da arguida,   e   discrimina-a   de   forma   negativa   face   aos  arguidos   em   igualdade   de circunstâncias, motivados com  requerimentos semelhantes, mas cujos processos foram distribuídos, por exemplo, ao juiz daquele tribunal, e que  por isso, têm a sorte de ver os seus processos tramitados em  tribunais competentes que  pautam as suas práticas conforme o princípio da cooperação processual e boa fé processual, e, por isso, deferem o requerido.

VIII. O tribunal está vinculado ao  dever  de  decisão. O despacho a quo  é, pois, nulo por omissão de  pronúncia, quer  quanto ao  dúbio indeferimento (ou não18) da  cedência do acórdão na  versão word,  quer  porque, claramente,  não  se debruçou relativamente  ao pedido subsidiário feito para  cedência do ficheiro em  pdf pesquisável. Violou, assim, os artigos 379.º/1c) CPP,  e ofendeu os direitos do recorrente.

IX. Com a não decisão de deferimento o tribunal a quo violou as nomas plasmadas no art. 7.º CPC  ex vi artigo 4.º CPP,  e artigos 20.º/5,  32.º/1  a 3 CRP,  e deve  ser substituída por outra que  defira

X. Ainda que  se entenda dever  retirar um  indeferimento do  §2  do  despacho recorrido, relativamente à entrega do documento requerido em versão word, o despacho enfermou de  irregularidade processual de  conhecimento oficioso nos termos do  art.  123.º  CPP conjugado com  o  art.  97.º/5  do  mesmo diploma,  e  art.  205.º  da  Lei Fundamental,  e mantém-se a omissão relativamente ao pedido subsidiário. Só não  há obrigatoriedade de conhecer o pedido subsidiário se o primeiro fosse procedente. Mas aparentemente, e sem certezas, não foi.

XI. Seja como  for, com  o indeferimento ou com  a omissão, o tribunal a quo  dificultou o exercício da  defesa por  parte  da  arguida, o que  acaba por  ter  um  efeito prático muito semelhante – colisão com os direitos de defesa da arguida, os seus direitos fundamentais e, consequentemente, a violação da tutela da jurisdição efetiva.

XII. Por isso, deve  o despacho a quo  ser substituído por outro que  ordene a entrega do documento word  ou  pdf  pesquisável  à  recorrente, com  os fundamentos  indicados  no requerimento apresentado, o que se requer junto de V. Venerandos Desembargadores. XIII. A recorrente possui escassos meios financeiros, por isso mesmo, beneficia de apoio judiciário, na modalidade de nomeação e pagamento de defensora nomeada, bem  como isenção de taxas e custas processuais.

XIV.  Por  isso,  caso necessário  se torne,   fazer  despesas com  terceiros  por  forma  a assegurar a defesa da arguida, não compete à arguida custear essas despesas, mas sim ao instituto (IGFIJ), que deverá proceder ao adiantamento do pagamento dessas de despesas, nos termos doa art. 19.º/1 e 20.º/2  do RCP.

XV. Ora,  defesa entendeu ser necessário proceder à transcrição da prova  produzida em julgamento  para   melhor  análise  da   prova   produzida  em   audiência  de   discussão  e julgamento, e eventual redação de recurso da matéria de facto. Tal transcrição apresenta- se como um encargo.

XVI. Competia ao tribunal a quo ordenar o seu pagamento, a pedido do beneficiário.

XVII. O despacho que  indeferiu o pagamento de transcrição da  gravação do julgamento por terceiro para efeitos de recurso violou as regras dos artigos art. 19.º/1, 20.º2 do Regime das Custas Processuais que  prevê  expressamente “quando a parte  beneficie da isenção de  custas ou  de  apoio  judiciário,  os encargos são sempre adiantados  pelo  Instituto  de Gestão Financeira e das Infraestruturas da Justiça, I.P., sem prejuízo do reembolso”.

XVIII. Dificulta, senão inviabiliza, o recurso da matéria de facto a interpor pela recorrente que  não se conformou com a sentença proferida.

XIX. É preciso  perceber que  as normas supra não  só dão  cumprimento  ao  princípio constitucional que  garante o acesso ao  direito e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º da Lei Fundamental, que imperativamente, impõe que não pode  ser denegada a justiça “por insuficiência de meios económicos”, como  serve para  minimizar diferenças económicas  entre   os  arguidos,  dando  corpo   e  consagração  efetiva  ao   princípio  da igualdade, na  medida em  que  “Todos os cidadãos têm  a mesma dignidade social e são iguais  perante a  lei.”  e  que  ninguém  pode  ser prejudicado  por  causa da  sua situação económica – artigo 13.º  CRP.  E só assim pode  ser entendido, porque qualquer outra interpretação conflitua com a lei fundamental.

XX. Mais prendendo-se a motivação com  a eventual apresentação de  recurso de  forma mais célere e eficaz, viola anda o preceituado no art. 20.º/5 e 32.º/1, todos da CRP, e ainda os artigos 6.º, 7.º do CPC ex vi art. 4.º CPP.

XXI. Ao decidir à revelia dos princípios plasmados na lei fundamental, o despacho a quo deve  ser sindicado pelo tribunal ad quem,  que  ordenará a sua substituição por outro que com aqueles se conforme e ordene a transcrição da prova  oral produzida em julgamento por  entidade terceira através com  o pagamento por  adiantamento do  instituto para  tal competente, com  a consequente ordem  de  entrega à recorrente para  cuidada analise e preparação do recurso do acórdão final a interpor.

Para lá das invocadas ilegalidades,

XXII. O despacho a quo  proferido omitiu a fundamentação, em  absoluto,  ainda  que  por lei a deva  conter;

XXIII. Não  fundamentou de  facto, não  fundamentou de  direito. Não  permitiu `a  arguida compreender “os porquês” das decisões tomadas, ou não  tomadas, inviabilizando a sua reação/defesa.

XXIV. O dever  de fundamentação das decisões é exigência constitucional transposta para a lei processual penal, no art. 97.º/5 CPP.

XXV. A falta de fundamentação é uma irregularidade violadora não só do direito de defesa do arguido relativamente ao  despacho a quo,  mas também, e pior, afetou o decurso do prazo   para   interpor  o  recurso  do  acórdão proferido,  inutilizando-o  parcialmente  pelo decurso do tempo,  sem que  tenha sido ordenada a entrega dos elementos que  a defesa requereu e entende necessários para  instruir a sua interposição do recurso.

XXVI. Por isso, deve  por isso, ser ordenada a suspensão daquele prazo,  ao abrigo do art. 107.º /1 a 3 CPP,  o que aqui se requer cumulativamente.

XXVII. Apesar  da  arguida  se encontrar presa preventivamente,  importa  referir  que  a  lei processual penal não  é  de  todo  avessa à  suspensão de  prazos, ao  remeter para  a  lei processual  civil  a  contagem  dos  mesmos,  (salvaguardando,  no  entanto, os  prazos processuais relativos aos atos urgentes ope  legis e ope  judicis que  à partida correm  em férias judiciais). Contudo  tal suspensão é pedida ao abrigo do espírito da lei, com aplicação ao  casso concreto, pelo  que  assim  deve  ser ponderada e interpretada, exatamente por forma a garantir a boa  defesa dos direitos da arguida, e em consonância com o disposto no art. 107-º/1  a 3 CPP.

XXVIII. Neste caso, entende ser de declarar, cumulativamente com deferimento de ambos os requerimentos apresentados em substituição do despacho a quo, a suspensão do prazo para  recorrer do  acórdão que  condenou a  arguida, uma  vez  que  não  foi  ordenada a obtenção dos elementos requeridos pela defesa para cuidada análise, instrução e redação do recurso atempadamente, em exercício cabal da defesa recursiva da arguida, por causa exclusivamente imputável ao  tribunal, e  estranha à  arguida, que  diligenciou de  forma atempada pela obtenção de todos os elementos necessários.

XXIX.  Recorda que  o  direito  de  defesa  da  arguida  é  um  direito  constitucionalmente protegido, consagrado no artigo 32.º  n.º 1 da  CRP,  devendo ser asseguradas à arguida todas as garantias de  defesa, inclusivamente, a suspensão dos prazos judiciais quando só assim se possa garantir o seu cabal exercício.

XXX. As normas violadas pelo despacho foram as que infra se indicam,

i) Artigos do CPP:  4.º; 97.º; 107.º;  123.º;  153.º/1;  154.º/1;  379.º/1c);

ii) Artigos da CRP: 13.º; 20.º; 32.º; 205.º;

iii) Artigos do CC: 7.º e 8.º;

iv) Artigos do RCP: 19.º1  e 20º/2;

Terminando a requer que o prazo para interpor recurso do acórdão condenatório “se considere suspenso  desde a data da prolação do despacho  a quo até que a arguida se considere notificada do aqui acórdão ad quem”.

5. A este recurso respondeu o Ministério Público pugnando pela improcedência do recurso, com as seguintes Conclusões:

1- O âmbito do recurso retira-se das respectivas conclusões as quais por seu turno são extraídas da motivação da referida peça legal, veja-se por favor a título de exemplo o sumário do douto Acórdão do STJ de 15-4-2010, in www.dgsi.pt,Proc.18/05.7IDSTR.E1.S1.

2-  “Como decorre  do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão  contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso”.

3- São as conclusões, que fixam o objecto do recurso, artigo 417º, nº3, do Código de Processo Penal.

4- Quer a arguida que lhe seja disponibilizado o Douto Acórdão datado de 21-12-2020, em formato “word” , bem como quer que o Instituto de Gestão Financeira adiante a verba para pagamento das transcrições  necessárias  para  a  análise  da prova  produzida  e elaboração do recurso, uma vez que a arguida beneficiária de apoio judiciário.

5-    Por  Despacho  datado  de 21-12-2020,  o Tribunal  “  a  quo” declinou as pretensões da arguida.

7- Não existe norma  legal que obrigue o Tribunal a disponibilizar o Douto Acórdão  em formato “word”.

9-   A  pretendida   transcrição   e   o   adiantamento   da   verba necessária para  custear a sua despesa não  deve  ser adiantada pelo Instituto de  Gestão Financeira, como  a recorrente beneficiária de apoio judiciário reivindica.

10-  Sendo evidente  que   a  gravação  áudio  se  encontra em perfeitas condições e pode  ser utilizada para  impugnar o Douto Acórdão. Porém a tarefa será mais árdua sem a tal transcrição…

11- Não violou o Douto Despacho qualquer disposição legal da CRP,  CPP, CPC ou Regulamento das Custas Processuais.

12-   Mas  entendemos   que   a   disponibilização   das  Doutas Decisões  em  formato:”word”  ou  outro  de  mais  fácil  manejo, poderá beneficiar a  aplicação da  justiça em  sentido amplo e agilizar a actividade de todos os sujeitos processuais.

13- Podendo e devendo passar a ser uma  prática corrente sem violar a Lei e sem acréscimo de despesas par o erário público.

14-  Não  assistirá razão  à arguida, devendo  o Douto  Despacho recorrido  manter-se,  todavia  pensamos que se poderá passar  a disponibilizar as Doutas Decisões em formato:”word”, sem violar a Lei e sem acréscimos para o erário público, agilizando desta forma a tarefa de todos os sujeitos processuais”.

6. Neste Tribunal o Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu parecer único, nos termos do artº. 416º, nº.1, do CPP, relativamente a ambos recursos:

Quanto a este primeiro recurso, pronunciou-se no sentido de inexistir fundamento legal para as pretensões manifestadas pela recorrente nos seus requerimentos e “sendo o recurso manifestamente improcedente deve ser rejeitado-ut CPP 420º, nº 1, alínea a)”.

7. Cumprido o artº. 417º nº. 2, do CPP, a recorrente nada disse.

8. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

II – Fundamentação:

A recorrente fundamenta o seu recurso alegando que não lhe foi assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos, considerando terem sido violadas as suas garantias de defesa, no caso o direito ao recurso, e que o Tribunal omitiu proferir decisão sobre o que por si lhe foi requerido, não fundamentando a decisão proferida (recorrida) como estava obrigado, resultando, assim, estar a ser discriminada em razão da sua débil condição económica – citando os artºs. 13º; 20º; 32º e 205º da Constituição da República e ainda os artºs. 4º; 97º; 107º; 123º; 153º/1; 154º/1; 379º/1c) do CPP.

Também, o Tribunal absteve-se de decidir, invocando a falta de lei aplicável aos factos alegados, sem ter em consideração casos análogos que mereceram tratamento diferente por outros Tribunais – citando os artºs. 7º e 8º do CC.

Ainda, não foi observado o dever de cooperação na condução do processo e de remoção do alegado obstáculo com vista a proporcionar a intervenção processual desejada pela recorrente – citando o artº. 7º do CPC.

Finalmente, como beneficiária de apoio judiciário, os encargos e despesas relativos ao deferimento dos seus requerimentos são sempre adiantados pelo Instituto de Gestão Financeira e das Infra-Estruturas da Justiça, pelo que o Tribunal deveria ter, também por essa razão, ter deferido os seus requerimentos – citando os artºs. 19, nº 1 e 20º, nº. 2 do RCP.

Vejamos então:

1. Quanto à disponibilização do acórdão em formato Word:

Pela recorrente não vem posto em causa que tenha tomado conhecimento do acórdão condenatório, contra si proferido em 17.12.2020, considerando-se notificada, bem como a sua defensora,  tendo estado ambas presentes, no acto da sua leitura.

Após a sua leitura, de acórdão este é depositada na secretaria e é entregue cópia aos sujeitos processuais que o solicitem – cf. o disposto no artº. 373º do CPP – o que sucedeu. A 21.12.2020, foi feita a entrega de cópia física do acórdão condenatório à defensora oficiosa.

Ainda, desde a sua colocação na plataforma “Citius” – sistema informático de suporte à atividade dos tribunais –, o acórdão condenatório esteve sempre disponível à defensora da recorrente, que tinha acesso àquela plataforma e da qual é plena usuária, como bem resulta da motivação deste recurso, pelo que a simples consulta dessa plataforma e o manejo das suas funcionalidades lhe permitiram obter o acórdão condenatório em formato acessível e convertível para o formato pretendido.

De acordo com o artº. 19º da Portaria n.º 280/2013, “Os atos processuais dos magistrados judiciais (…) são sempre praticados em suporte informático através do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais, com aposição de assinatura eletrónica qualificada ou avançada”. Inexistindo qualquer base legal para solicitar o ficheiro em formato Word do acórdão.

Com efeito, como deveria ser claro para a recorrente, sendo a sua defensora usuária da plataforma “Citius”, os ficheiros ou documentos enviados através do desta plataforma, conforme resulta do artº. 8º da referida Portaria “Os ficheiros e documentos referidos no n.º 1 do artigo 6.º devem ter o formato portable document format – pdf –, preferencialmente na versão PDF/A e com conteúdo pesquisável”.

Ora, esta Portaria, mesmo relativamente aos mandatários refere uma disponibilização em formato pdf e não em formato Word.

Assim, inexiste qualquer omissão de pronúncia no despacho recorrido ao indeferir o requerimento da recorrente, quanto à disponibilização do acórdão condenatório. E entendemos que se encontra, ainda que de forma sucinta, suficientemente fundamentado ao decidir que “inexiste disposição legal que o preveja e por se tratar de documento autêntico publicitado no Citius. É certo que apenas faz alusão expressa ao ficheiro Word e não quanto ao ficheiro pdf editável, contudo, retira-se do despacho recorrido que o requerimento – na integra –, apresentado pela recorrente, foi indeferido por falta de disposição legal aplicável, bem como por o acórdão se tratar de um documento autêntico disponibilizado na plataforma “Citius”. Deste modo, o despacho recorrido não padece de qualquer omissão de pronúncia e encontra-se, ainda que de forma sucinta, suficientemente fundamentado.

Aliás, não se vislumbra em que medida o indeferimento da disponibilização do acórdão condenatório em formato Word possa ter afectado o direito de recurso da recorrente, já que o que a lei pretende acautelar é que os visados se inteirem do teor da decisão condenatória para que possam reagir, querendo. O que ocorreu com o depósito do acórdão e sua colocação na plataforma “Citius”.

Assim, não só a notificação foi feita de forma legal, como a recorrente viu plenamente assegurado o seu direito a conhecer ter acesso à decisão contra si proferida. 

Pelo exposto, quer mediante a entrega física do acórdão condenatório, quer com a sua colocação na plataforma “Citius”, a recorrente e a sua defensora passaram a ter pleno conhecimento e acesso ao teor daquele acórdão, sem que com o despacho recorrido, ao indeferir a disponibilização do acórdão em formato Word, o Tribunal tenha condicionado o exercício do seu direito ao recurso ou prejudicado as garantias de defesa da recorrente.

2. Quanto à transcrição a  gravação-áudio  da  audiência de julgamento:

Diz a recorrente pretender obter a transcrição das gravações áudio da  audiência de julgamento para poder exercer convenientemente o seu direito ao recurso, e assim, recorrer também da matéria de facto.

Porém, sobre a “Forma da documentação” da audiência de julgamento em processo penal, dispõe o artº. 364º do CPP:

1 - A documentação das declarações prestadas oralmente na audiência é efetuada, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, só podendo ser utilizados outros meios, designadamente estenográficos ou estenotípicos, ou qualquer outro meio técnico idóneo a assegurar a reprodução integral daquelas, quando aqueles meios não estiverem disponíveis.

2 - Além das declarações prestadas oralmente em audiência, são objeto do registo áudio ou audiovisual as informações, os esclarecimentos, os requerimentos e as promoções, bem como as respetivas respostas, os despachos e as alegações orais.

3 - Quando houver lugar a registo áudio ou audiovisual devem ser consignados na ata o início e o termo de cada um dos atos enunciados no número anterior.

4 - A secretaria procede à transcrição de requerimentos e respetivas respostas, despachos e decisões que o juiz, oficiosamente ou a requerimento, determine, por despacho irrecorrível.

5 - A transcrição é feita no prazo de cinco dias, a contar do respetivo ato; o prazo para arguir qualquer desconformidade da transcrição é de cinco dias, a contar da notificação da sua incorporação nos autos.

6 - É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 101.º”.

Ora, aquando do seu requerimento aquelas gravações estavam acessíveis na plataforma “Citius” tendo a recorrente pleno acesso às mesmas e, ainda que assim não fosse, haveria sempre a receber o registo áudio de tais gravações –mormente através de CD.

Como dispõe o nº. 1 do artº. 364ª do CPP, “a documentação das declarações prestadas oralmente na audiência é efetuada, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, só podendo ser utilizados outros meios, designadamente estenográficos ou estenotípicos, ou qualquer outro meio técnico idóneo a assegurar a reprodução integral daquelas, quando aqueles meios não estiverem disponíveis”.

Por sua vez, dispõe o artº. 101º, nº. 4 do CPP que, “Sempre que for utilizado registo áudio ou audiovisual não há lugar a transcrição e o funcionário, sem prejuízo do disposto relativamente ao segredo de justiça, entrega, no prazo máximo de 48 horas, uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira, bem como, em caso de recurso, procede ao envio de cópia ao tribunal superior.”

Assim, por regra não são realizadas transcrições da audiência de julgamento. A única excepção àquela regra e que não se aplica ao caso, vem prevista do nº. 4, do artº. 364º do CPP: “A secretaria procede à transcrição de requerimentos e respetivas respostas, despachos e decisões que o juiz, oficiosamente ou a requerimento, determine, por despacho irrecorrível”.

Em idêntico sentido dispõe o artº. 155º do CPC, aplicável ex vi o artº. 4º do CPP. Relativamente ao acesso ao registo da audiência de julgamento e  contrariamente à pretensão da recorrente, o nº. 3 deste preceito estabelece o modo como se faz tal acesso: “A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respetivo ato”. E tal como no nº. do artº. 364º, do CPP, dispõe no seu nº. 5, em que situações e que intervenções e que  actos actos orais são transcritos: “A  secretaria procede à transcrição de requerimentos e respetivas respostas, despachos e decisões que o juiz, oficiosamente ou a requerimento, determine, por despacho irrecorrível”.

Contrariamente ao que sucedia na vigência do regime anterior à Lei nº. 48/2007, de 29.8, inexiste qualquer obrigação legal do juiz de determinar a reprodução transcrita do conteúdo de declarações, já que esse conteúdo está suportado na gravação efectuada, em obediência às regras de documentação da audiência definidas pelo artº. 364º do CPP.

Além disso, estas regras de documentação da produção de prova em audiência, não contendem minimamente com o posterior exercício do direito ao recurso do modo que se afigurar conveniente a quem seja titular desse direito, designadamente o recurso da matéria de facto.

Por outro lado, dispõe o artº. 412º, nº. 3  e seguintes do CPP.

3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

5 - Havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse.

6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa”.

Deste modo, as pretendidas transcrições da gravação áudio da prova produzida em audiência, não são necessárias para a interposição de recurso da matéria de facto que a recorrente alega ter pretendido.

 Com efeito, para a especificação, em recurso, das concretas provas que entendesse imporem decisão diversa daquela contra si proferida no acórdão recorrido, ou para a especificação das provas que entendesse deverem ser renovadas, bastaria à recorrente indicar concretamente as respectivas passagens nas gravações, realizadas de acordo com as regras do nº. 3 do artº. 364 do CP, em que se fundasse a pretendida impugnação – vd. os nºs. 3 e 4 do artº. 412º do CPP.

Caberia depois ao Tribunal ad quem, para conhecimento do recurso, proceder à audição das passagens daquelas gravações que a recorrente viesse a indicar – vd. o nº. 6 do do artº. 412º do CPP.

A audição das gravações, estabelecida neste nº. 6 do artº. 412º do CPP – introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29/08 –, fez caducar a jurisprudência fixada pelo AFJ nº. 2/2003, de 16.1 - DR Série I-A, de 30.1.2003, no sentido de que sempre que o recorrente impugnasse a decisão proferida sobre matéria de facto, conforme o disposto nos nºs. 3 e 4 do artº. 412º do CPP, essa transcrição incumbia ao tribunal.

Aliás, o Acórdão de Justiça de Fixação de Jurisprudência nº. 3/2012 - D.R. nº. 77, Série I de 18.4.2012, fixou jurisprudência no seguinte sentido: “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações”.

Deste modo,  tendo sido documentada a prova produzida na audiência de julgamento através de registo áudio, tendo obtido esse registo e estando este registo também disponível e acessível à defesa da recorrente na plataforma “Citius”, não tinha a recorrente o “direito” a obter do Tribunal as transcrições pretendias, nem era exigível ao Tribunal que procedesse a tais transcrições, o que sempre configuraria um acto inútil.

Não pode, assim, considerar a recorrente que não lhe foi assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos, considerando terem sido violadas as suas garantias de defesa, no caso o direito ao recurso, nem tão pouco, que não foi observado o dever de cooperação na condução do processo e de remoção do alegado obstáculo com vista a proporcionar a intervenção processual desejada pela recorrente.

A cooperação e a boa-fé processual – artºs. 7.º e 8.º do CPC – são princípios que impendem sobre todos os operadores judiciários, mas não se sobrepõem à lei. A lei, conforme acima se referiu, exige que seja disponibilizada uma cópia da sentença, sempre que solicitada, e a sua disponibilização na plataforma “Citius”, o que ocorreu, pelo que não padece o despacho recorrido de violação de qualquer preceito legal ou constitucional, ao indeferir o requerido pela arguida. A alegada falta de cooperação processual não faz gerar a ilegalidade do acto praticado.

Aliás, sobre esta questão pronunciou-se também o Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº. 473/2007 - DR, II Série de 2.11.2007, decidindo: “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que não é obrigatório, para efeitos de interposição de recurso abrangendo também a decisão da matéria de facto, o fornecimento pelo tribunal ao arguido da transcrição da gravação da prova produzida em audiência de julgamento, bastando, para esse efeito, o fornecimento dos suportes magnéticos dessa gravação; e não julga inconstitucional a norma da segunda parte do n.º 6 do artigo 328.º do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de ser inaplicável nos casos em que existe documentação da prova produzida em audiência”. sublinhado nosso.

E, ainda, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº. 405/04, de 2.6.2004, que decidiu: “Não julgar inconstitucional a norma do n.º 4 do mesmo artigo 412º, quando interpretada no sentido de que incumbe ao recorrente o ónus de transcrição ali previsto”. Sublinhado nosso.

3. Ainda, contrariamente ao alegado pela recorrente de que o Tribunal “omitiu decisão sobre o que por si foi requerido e não fundamentou a decisão proferida”, inexistindo fundamento legal para o deferimento das pretensões manifestadas nos requerimentos da recorrente, a fundamentação do despacho recorrido é suficiente, quando, constatando inexistir fundamento legal para as pretensões manifestadas, declara isso mesmo retirando daí as necessárias consequências.

Com efeito, o despacho recorrido especifica os motivos de facto e de direito da decisão de indeferimento. É claro, objectivo na explicação e justificação da decisão, sem qualquer obscuridade ou contraditoriedade e sem que, para a percepção e compreensão, de quem pudesse ser seu destinatário  houvesse necessidade de mais dizer.

Finalmente e consequentemente, pelas razões acima expendidas, não poderia o Tribunal ter deferido a pretensão da recorrente no sentido serem custeados pelo Instituto de Gestão Financeira e das Infra Estruturas da Justiça a “transcrição da gravação do julgamento por terceiro”, determinando se procedesse “ao adiantamento do pagamento dessas de despesas, nos termos doa art. 19.º/1 e 20.º/2 do RCP”. Com a constatação de inexistência de fundamento legal, ficou necessariamente prejudicado o deferimento desta pretensão, o sempre  que configuraria um acto inútil não permitido conforme o disposto no artº. 130º do CPC ex vi o artº. 4º do CPP, sem que, obviamente, o Tribunal haja violado qualquer dos preceitos legais que a recorrente invoca.

4. Por todo o exposto, as razões da não interposição de recurso que abrangesse também a impugnação da matéria de facto apenas à recorrente podem ser imputadas, não havendo qualquer justificação, também, para a pretendida extensão do prazo para a interposição do recurso do acórdão condenatório.

Assim sendo, teremos que concluir que é manifesta a improcedência deste recurso devendo o mesmo, em conformidade com o disposto no artº. 420º nº. 1, al. a) do CPP, ser rejeitado.

B – Quanto ao segundo recurso interposto do acórdão condenatório proferido a 17.12.2020.

I- Relatório:

1. Vem o presente recurso interposto pela recorrente AA, do acórdão proferido pelo Juízo Central Criminal........ – Juiz .. – do Tribunal Judicial da Comarca ...., no qual foi decidido:

a) condenar a arguida AA  como autora material de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, dos arts. 22º nº 1 e 2-a) e b), 23º nº 1 e 2, 73º nº 1-a) e b),  131º, 132º nº 1 e nº 2-j) do Código Penal, na pena, especialmente atenuada, de  6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão;

d) julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil do demandante BB, e, em consequência, condenar a arguida/demandada a pagar ao demandante a  quantia de €10.000,00  (dez  mil euros) a título de danos não patrimoniais,  quantia a acrescer dos juros de mora, vencidos e vincendos, à  taxa legal dos juros civis, desde a presente decisão até efectivo e integral pagamento, e bem assim, condenar a mesma demandada no pagamento de todas as despesas futuras, médicas, medicamentosas e de intervenção/assistência médico-cirúrgica  que sejam decorrentes da sua actuação, a título de danos futuros, e a liquidar em execução de sentença.

e) Julgar procedente o pedido de indemnização civil do demandante Centro Hospitalar …….., EPE, e condenar a arguida/demandada  no pagamento ao demandante da quantia de €8.897,26  (oito mil, oitocentos e noventa e sete euros e vinte e seis centimos) a acrescer de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a notificação para contestar, até ao efectivo e integral pagamento;”

2. Inconformada com esta decisão, a arguida recorre este Supremo Tribunal, versando o seu recurso “essencialmente, sobre a matéria de direito e sobre a medida da pena aplicada” terminado a motivação com as seguintes Conclusões:

A.  Não se conforma a arguida com o douto acórdão proferido que decidiu a uma pena de 6 anos e 6 meses de prisão efetiva, pela prática de um “crime  de  homicídio    qualificado,    na  forma tentada,  dos arts.  22° nº 1 e 2-a)  e b), 23° nº 1 e 2, 73° nº 1-a) e b), 131°,  132° n° 1 e n" 2-j)  do Código  Penal,  na pena,  especialmente atenuada,  de  6 (seis) anos e 6 (seis) meses  de prisão.” e, condenada a pagar a quantia de €10.000,00 (dez mil   euros) a titulo   de pedido de indemnização civil por danos não patrimoniais ao demandado BB, no pagamento de todas as despesas futuras, médicas, medicamentosas e de intervenção/assistência médico-cirúrgica que sejam decorrentes da sua atuação, a titulo de danos futuros, e também, condenar a arguida/demandada  no pagamento da quantia de €8.897,26 ao demandante Centro Hospitalar........., EPE.

B. Resulta do enquadramento jurídico penal do ac. a quo que aquele tribunal entendeu que a matéria dada como provada se mostrou suficiente para preenchimento da alínea j) do art. 132.º, devendo considerar-se o crime como qualificado.

C. Apesar do tribunal a quo ter entendido que “da factualidade    provada    não sendo possível concluir pela reflexão sobre os meios empregados, nem pela persistência da intenção de matar por mais de 24 horas”, entendeu possível retirar a “frieza de animo” da factualidade dada como provada, porquanto “reveladora de um sangue frio e uma indiferença da arguida perante o ofendido, que integram a especial perversidade da circunstância qualificativa invocada.”

D. Não mais podia a recorrente discordar.  Até porque, a “frieza de ânimo” materializa-se numa série de atos preparatórios, numa “actuação calculada, em que de modo frio o agente toma a sua deliberação de matar e firma sua vontade (…)», situação em que «no fundo, o agente teve oportunidade de reflectir sobre o seu plano e ponderou toda a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto» - Fernando Silva, Direito Penal, Crimes contra as Pessoas, Quid Juris, 200 5 e Acórdão nº STJ_07P647 de 29-03-2007.

E. Mas a verdade é que dos factos provados não resulta ostensivamente que a arguida tenha agido «de modo frio» tomado a sua deliberação de matar o ofendido e firmado a vontade correspondente, ou seja, a de que, tendo tido «oportunidade de refletir sobre o seu plano», «ponderou toda a sua atuação» e se «mostrou indiferente perante as consequências do seu ato».

F. Ademais, não resultou provada qual foi a arma do crime.

G. Não se provou quando aquela foi obtida e para que finalidade.

H. Tampouco resultou provado que a arguida tenha decidido retirar a vida ao ofendido.

I. Tampouco se aquela era da arguida.

J. Ou que a arguida tenha escolhido aquela hora concreta e local para cometer um homicídio contra o ofendido, obtenção dos seus intentos.

K. Ora, exatamente porque a qualificação está ligada à culpa e não ao tipo, é necessário aferir se ocorreu a circunstância prevista no art. 132.ºj) CP, sendo, contudo, necessário também que se tal circunstância não resultar inequívoca deve integrar os factos dados como provados.

L. Assim sendo, apesar do facto dado como provado “1.8 Na manhã do dia 20 de Dezembro de 2019, a arguida, através do seu telemóvel com o n.º........., entrou em contacto com o ofendido BB, para o telemóvel deste com o n.º .........;” não poder ser sindicado pelo STJ, a afirmação que consta do facto seguinte 1.9 é-o.

M.  Ou seja, “E, já com o propósito de retirar a vida ao ofendido BB, combinou encontrar-se com ele  na  tarde  desse  mesmo  dia”.  Porquanto resulta numa  afirmação de  direito,  e  por isso controlável pelo STJ.

N.   Equivale a dizer que houve uma série de atos preparatórios para que fosse levado a cabo um homicídio, sem que resulte dos factos dados como provados tais premissas. Resultou provado que o relacionamento entre a arguida e o ofendido estava “beliscado”, que aquela não queria terminar o relacionamento, e que ambos combinaram encontrar-se no local onde se encontravam habitualmente, sendo que para tal, o ofendido custeou a deslocação, mas não resultou provado ato preparatório e refletido conducente ao planeamento e propósito de retirar a vida ao ofendido, de onde se pudesse retirar tal conclusão. (9) “atraindo-o para o local, onde ao longo da relação se iniciavam os encontros amorosos” in ac. a quo.

O.   Não é possível extrair tal conclusão de direito sem factos dados como provados que a integrem e preencham.

P.    Do facto 1.8 não é possível retirar a conclusão do facto 1.9.

Q. Na verdade, não resultaram verificados atos preparatórios que nos permitam retirar consequências qualificativas do tipo.

R. «O art. 132.º do CP constitui “um tipo de culpa e de medida da pena que não se aplica, ainda que o agente realize a circunstância qualificadora, sempre que o comportamento não revele censurabilidade agravada”»(10) Maria Margarida Silva Pereira, ob. cit.

S.  Não foi feita prova da maior censurabilidade de acordo com o princípio da culpa.

T. “Além  de  que  seria  «indispensável  determinar,  com  particular  exigência  e  severidade»  a verificação da «qualificação», sob pena de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra de homicídio doloso» (Comentário Conimbricense, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, 37).(11) In Ac. nº STJ_07P647 de 29-03-2007

U.   De igual modo, ““não se poderão retirar de uma eventual “ilicitude maior” (decorrente de “circunstâncias susceptíveis de revelar a especial censurabilidade”) quaisquer efeitos (qualificativos), “a menos que a acompanhe um acréscimo de culpa” (Maria Margarida Silva Pereira, ob. cit.).

V. Pois que, sendo a aplicação do art. 132.º “incumbência judicial” (ibidem), não bastará, para se afirmar a qualificação do homicídio, a “verificação no comportamento [do homicida] de circunstâncias das alíneas qualificadoras”, tendo antes de se fazer “prova da maior censurabilidade de acordo com o princípio da culpa” (ibidem). ”(12) In Ac. nº STJ_07P647 de 29-03-2007

W.  A  agravante  encontra-se  conexionada  com  a  atuação calma  ou imperturbada reflexão,  no assumir pelo agente da resolução de matar a que se alia a firmeza dessa mesma resolução criminosa.

X. Prova essa que não se fez aqui. Tanto que não resulta da factualidade dada como provada.

Y. Para lá disso, a especial frieza de ânimo pode ser representada por circunstâncias que denunciam uma culpa agravada, descrita como exemplo-padrão, mas a sua ocorrência não determina, por si só e automaticamente, a qualificação do crime.

Z. Concludentemente, não pode a arguida vir condenada por um crime de homicídio qualificado sob a forma tentada, (132.º CP), mas tão somente um homicídio simples, enquadrável no art. 131.º CP.

AA. O que importa naturalmente diferente configuração do tipo e a alteração da moldura penal aplicável,

BB. E consequente, redução da pena aplicada em concordância.

CC. Importando a mesma reflexão e enquadramento nos pedidos de indemnização atribuídos, os quais devem por isso ser proporcionalmente reduzidos.

Ainda assim,

Da medida da pena:

DD. Subjacente à especial censurabilidade e perversidade está um desvalor ético-jurídico traduzindo culpa agravada e que tem a ver com “a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui”.

EE.  Para essa apreciação concorrem todas as circunstâncias da conduta, quer na ação externa, quer nos aspetos relacionados com os motivos e objetivos que presidiram à ação (factos psíquicos). E estes últimos não foram criteriosamente explorados pelo tribunal a quo, especialmente ao rejeitar fosse realizada uma perícia psíquica à arguida, o que se impunha, face ao enquadramento clínico atual da arguida, atual e à data dos factos, bem como familiar.

FF.  Pois que, se o primeiro momento, o tribunal a quo omitiu o cálculo da moldura penal aplicável ao caso, no segundo momento, sobressai a falta de cuidado na escolha da medida da pena aplicável, ou teria sido aplicada à arguida pena diferente da recorrida.

GG. Aliás, "na sentença devem ser expressamente referidos os fundamentos das penas" cfr. art. 71º, n.º 3. O Tribunal a quo violou, como segundo se demonstrará, o disposto no artigo 71º do Código Penal, por incorreta e imprecisa aplicação.

HH. Há que respeitar a livre apreciação da prova e a convicção do Tribunal, sem, contudo, se descurar o facto de assistir à arguida o direito de exigir que o acórdão que determina a sua condenação - em especial a privação da sua liberdade - seja criteriosamente fundamentado e se sustente em factos que permitam, só por si, valorar o grau de ilicitude e a intensidade do dolo. E ainda justificar a necessidade de prevenção especial, imputada ao caso concreto.

II. Na fixação da medida da pena é necessário, ordenar, relacionando-as, a culpa, a prevenção geral e a prevenção especial, tendo-se, para isso, em conta os quadros agravativos e atenuativos, sob pena de se frustrarem as finalidades da sanção, ou seja, a proteção dos bens jurídicos e a reintegração da arguida na sociedade.

JJ. Atentos  os factos provados,  e  a esses teremos  de reportar,  há que  valorar,  para aferir  e determinar a medida da pena, o grau de culpa do agente - devendo o facto ilícito ser valorado em função do seu efeito externo -, e, por outro lado, atender às necessidades de prevenção - cfr. artigo 71º do Código Penal.

KK. Temos  que,  a  medida  da culpa  deverá servir  de  limite  à  medida da pena,  sendo  que  na determinação desta, deverá o Tribunal atender a todos os fatores ou circunstâncias que, ainda que não fazendo parte do tipo de crime, possam depor a seu favor.

LL.  Nomeadamente, atender a:

i)          A arguida não regista quaisquer antecedentes criminais;

ii)         A arguida havia tentado suicidar-se antes.

iii)        A arguida apresenta um quadro depressivo desde, pelo menos, o ano de 2017.

iv)        Sendo certo que ainda hoje é medicada para tal doença.

v)         Está a ter acompanhamento psiquiátrico.

vi)        Estava a ter acompanhamento psiquiátrico à data dos factos.

vii)       Imediatamente antes da prática dos factos havia consumido estupefacientes -cocaína - conjuntamente com medicação para a depressão, o que originou uma perceção certamente deturpada da realidade, mas desconhecendo-se os efeitos de tal mistura.

viii)      No   estabelecimento   prisional   mantém   boa   conduta   prisional,   cumpre   as   regras institucionais e mantém uma ocupação estruturada do seu quotidiano

ix)        E tem recebido visitas da mãe e irmã com alguma regularidade, o que demonstra integração sólida no agregado familiar, e suporte familiar para integração na sociedade.

Com todo o respeito,

MM.    Entendemos  que  o  Tribunal  a  quo  não  ponderou  ou  devidamente  valorou  tais fatores/circunstâncias na determinação da medida da pena.

NN. Apesar  de  tudo o que vem descrito não nos parece  que  o tribunal a quo tenha valorado devidamente a ausência de antecedentes criminais, tampouco a conduta anterior e posterior da arguida.

OO. Não só pelo supra descrito em relação à desqualificação requerida, mas também relativamente à necessidade de prevenção especial, ao confundir a frustração do término de um namoro com persistência na conduta criminosa. Pois que os dois são bem distintos.

PP.  O Tribunal a quo violou, por conseguinte, o disposto nos artigos 71º, n.º 1 e n.º 2 e 72.º do Código Penal,  traduzindo-se  a  pena  aplicada  numa pena demasiado  severa,  atenta a factualidade considerada e a parca fundamentação da douta decisão.

QQ. Por respeito à eminente dignidade da pessoa, a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (art.40.º, n.º 2 do CP), designadamente por razões de prevenção.

RR. Visando a aplicação das penas a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art.º 40.º nº 1 do CP) e que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art.º 40.º nº 2),

SS. Ponderada a ilicitude global do facto, a culpa do recorrente e as exigências de prevenção requeridas, uma pena situada mais próxima dos mininos da moldura penal abstrata aplicável, realizará, de forma adequada e suficiente,  as finalidades da punição, considerando-se mais adequada ao caso concreto e à medida da culpa do arguido, a pena de 4 anos de prisão.

TT.  É excessiva a pena aplicada, e deveria ainda ter sido avaliada e aberta a possibilidade de aplicação do regime  da suspensão  de execução da mesma, aliado fosse  a medidas de  proibição de contactos com o ofendido e /ou outras regras de conduta, caso V. Exas. entendam satisfaça as exigências de prevenção para o caso concreto e a ressocialização e reintegração da arguida.

UU. O acórdão a quo violou as seguintes regras 40.º, 50.º, 52.º, 53.º, 70.º, 71.º, 131.º, 132.º/2 j), todos do CP, 32.º CRP, artigos 27.º/4, 205.º do CRP e artigos 374.º, 375.º, 379.º do CPP.”.

Terminando o seu recurso pugnando pela
· alteração da “qualificação jurídica do crime pelo qual a arguida é condenada”,
· alteração da “medida   da   pena   aplicada   pelo mesmo, revogar a decisão recorrida (e bem assim,  declarar a  sua suspensão  da execução   da   mesma,   caso   entenda   satisfaça   as   exigências   de prevenção e ressocialização, ainda que sujeita a regras de conduta ou regime de prova.)
· “e ainda”, pela redução “proporcionalmente” do “pedido de indemnização civil atribuído ao recorrido BB”.

3. A este recurso respondeu o Ministério Público, pugnando que seja negado provimento ao recurso, o que fez com as seguintes Conclusões:

1- O âmbito do recurso retira-se das respectivas conclusões as quais por seu turno são extraídas da motivação da referida peça legal, veja-se por favor a título de  exemplo o sumário do douto Acórdão do STJ de 15-4-2010, in www.dgsi.pt,Proc.18/05.7IDSTR.E1.S1.

2- “Como decorre do artigo 412.º  do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na  motivação apresentada, em  que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da  motivação do recurso que  este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de  conhecimento oficioso”.

3- São  as conclusões,  que  fixam  o objecto  do  recurso, artigo 417º,  nº3, do Código de Processo Penal.

4- A arguida não tem passado criminal.

5-  A qualificação jurídica que  o Tribunal “a quo” deu  aos factos praticados pela arguida e provados, é legal e adequada.

6- O Tribunal “a quo” descreveu no Douto Acórdão  o homicídio do artigo 131º e o homicídio qualificado do artigo 132º e fundamentou  as  razões legais  e  práticas  que   o  levaram  a condenar a  arguida nos termos do  nº2,  alínea j), deste último artigo do Código Penal.

7- Não  deve  obter  ganho de  causa a pretensão da  recorrente para  ser condenada pela prática do crime de homicídio, p. e p. no artigo 131º,  do Código Penal, na forma tentada.

8- A arguida questiona a medida da  pena, porém  a pena de  6 anos e 6 meses de prisão, pela prática como  autora material de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos artigos 22º,  nº1,  e 2-a) e b), 23º,  nº1 e 2, 73º,  nº1-a)  e b), 131º, 132º,  nº  1 e  nº  2-j) do  Código Penal, na  pena, especialmente atenuada, é legal e adequada.

9- Tendo  presente o limite  temporal  previsto  no  nº1,  do  artigo 50º,  do Código Penal: “pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos”, não  podia o Tribunal “a quo” suspender na execução a pena de prisão a que foi condenada a arguida em 1ª instância.

10- E mesmo que  a pena de  prisão fosse  igual  ou inferior  a 5 anos, sempre minguaria  o  juízo  de  prognose favorável,  pois exige  “a  valoração  conjunta  de  todas as circunstâncias  que tornam   possível  uma   conclusão  sobre  a  conduta  futura  do arguido, a finalidade político-criminal visada com  o instituto da suspensão da pena é o afastamento da prática pelo arguido, no futuro, de novos crimes”.

11- Ora,  nas circunstâncias  da  arguida  nada se vislumbra  que possa sustentar um juízo de prognose favorável, como  aliás se infere do Douto Acórdão.

12-  Respeitou o  Douto  Acórdão   as disposições contidas nos artigos 40º, 50º, 52º, 53º, 70º, 71º, 131º e 132.º,  nº2, j), todos do Código  Penal,  artigos  27º,  nº4,  32º  e  205º,  da  CRP  e  artigos 374º,  375ºe 379º do Código de Processo Penal.

13- Não enferma o Douto Acórdão  de nenhum vício ou nulidade, tendo   sido  aplicados  os preceitos  legais  de  Direito Europeu, Constitucional e Criminal.

14- Deve  persistir na íntegra o Douto Acórdão”.

4. Relativamente a este recurso, ao pronunciar-se nos termos do artº. 416º, nº. 1, do CPP, o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça foi de parecer, em síntese que:

(…) Ainda que se entendesse que a factualidade assente não permite perfectibilizar a alínea j), do n º 2, do art.º 136º do CP a verdade a mesma permitiria sempre a qualificação do crime. Na verdade, estamos perante um crime de homicídio que seguramente preenche o critério diferenciador de uma forte censurabilidade e perversidade, (…).

Neste conspecto, não só não se nos afigura que se não pode ter como excessiva a pena fixada em 6 anos e 6 meses de prisão, bem como pelo contrário, a mesma traduz uma inesperada benevolência.

Somos assim de parecer:

Que o recurso do despacho de indeferimento, relevando da manifesta improcedência deve ser rejeitado -ut CPP 420º, n º 1, alínea a);

Que o recurso do acórdão deverá ser improcedente, mantendo-se a subsunção dos factos a um crime de homicídio qualificado, confirmando-se a pena aplicada”.

5. Cumprido o disposto no artº. 417º, nº. 2, do CPP, pela recorrente nada foi dito.

II – Fundamentação:

1. São estes os Factos provados constantes do acórdão recorrido:

1.1     O ofendido BB e a ora arguida conheceram-se há cerca de 2 anos num estabelecimento........;

1.2       Iniciaram, então, uma relação extra conjugal entre si – o ofendido é casado, e residente em ….. - tendo aquele assumido apoiar financeiramente a arguida, devendo esta abandonar o consumo de substâncias estupefacientes;

1.3       Com o decorrer do tempo, tal relação foi-se deteriorando, dizendo a arguida que ia contar tais factos à família dele, e mostrar umas fotos íntimas que obtivera;

1.4       Suspeitando o assistente que a arguida continuava a gastar o dinheiro que lhe dava na aquisição de substâncias psicotrópicas;

1.5       Ao ponto de o ofendido ajudar, cada vez menos, a arguida, o que não agradava a esta;

1.6       Não obstante, o ofendido não conseguiu terminar com tal relacionamento;

1.7       O ofendido e a arguida, que comunicavam essencialmente através de telemóvel, combinavam encontrar-se entre si, o que habitualmente ocorria aos fins-de-semana numa habitação de que o ofendido era proprietário,  na ..............., na cidade........;

1.8       Na manhã do dia 20 de Dezembro de 2019, a arguida, através do seu telemóvel com o nº........., entrou em contacto com o ofendido BB, para o telemóvel deste com o nº .........;

1.9       E, já com o propósito de retirar a vida ao ofendido BB, combinou encontrar-se com ele na tarde desse mesmo dia, tendo-lhe solicitado que lhe desse algum dinheiro para poder suportar os custos da viagem da sua residência, em …………, …., até ........;

1.10     Ao que o ofendido acedeu, fazendo uma transferência tão-só de 30,00 € (trinta euros);

1.11     O que não agradou à arguida;

1.12     Pelas 14 horas e 40 minutos do dia 20 de Dezembro de 2019, o arguido, conduzindo o seu veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-UZ, marca “……”, modelo “…..”, de cor …., deslocou-se para junto do viaduto situado na parte inferior da E.N. nº …-.., na zona ……….., à saída deste cidade…., e na direcção ….., local onde habitualmente combinavam encontrar-se, e de onde costumavam seguir juntos para ........;

1.13     Tendo chegado primeiro que a arguida, o ofendido estacionou o seu veículo mesmo à entrada do referido túnel, e permaneceu no interior do mesmo.

1.14     Decorridos alguns minutos ali chegou a ora arguida, conduzindo o seu veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-ML-.., marca “…..”, modelo “…..”;

1.15     Esta, ao contrário do que habitualmente fazia, parou o seu veículo no interior do túnel/viaduto, e saiu para o exterior do mesmo;

1.16     E dirigiu-se para a parte frontal do seu veículo, levantando o capot do mesmo;

1.17     O ofendido, que achou estranho o que se estava a passar, saiu também para o exterior do seu veículo, e dirigiu-se para junto da arguida;

1.18     Esta referiu, então, o que sabia não corresponder à verdade, que estava com problemas no seu veículo, que estava sem óleo;

1.19     O ofendido retirou a vareta do óleo, pediu à arguida que lhe arranjasse um pano/papel para a limpar, verificou o nível do óleo, que lhe pareceu suficiente, e colocou a vareta no seu lugar;

1.20     De seguida a arguida deslocou-se ao seu veículo, e aí muniu-se de um objecto corto-perfurante cujas características e dimensões se desconhecem, dado que não foi possível recuperá-lo até ao momento, eventualmente, uma faca, ou outro objecto  de idêntica natureza, encobriu-o, e levou-o consigo;

1.21     E, já junto do ofendido, com a intenção de lhe tirar a vida, desferiu-lhe  com tal objecto três golpes atingindo-o na zona do pescoço e na zona abdominal;

1.22     Embora não tenha perdido logo os sentidos, o ofendido BB ficou semi-inconsciente, o que ainda lhe permitiu aperceber-se que a arguida, nessa altura, se dirigiu à mala do seu veículo, e aí apoderou-se, sem a sua autorização e contra a sua vontade, da sua carteira;

1.23     Na posse dessa carteira, que continha a quantia monetária de 100,00 € (cem euros), cartões de débito e crédito, a arguida logo fugiu do local, deixando o ofendido abandonado, estendido no chão, sem lhe ter prestado qualquer assistência;

1.24     Com a conduta supra descrita a arguida causou ao ofendido BB, entre o mais - traumatismo da região abdominal da qual resultou evisceração e perfuração do intestino delgado, e ferida no pescoço.

1.25     Foi submetido a intervenção cirúrgica de urgência, para laparotomia exploratória, com enterectomia segmentar do segmento ileal perfurado  com serosa de aspecto congestivo e duas soluções de continuidade de 2,5cm e 5cm de maior eixo e enterectomia de outro segmento ileal que envolvia divertículo de Meckel, congénito, com sinais de isquemia, com serosa de aspecto congestivo. Foi submetido a sutura de ferida a nível do mento.

1.26     No dia seguinte, 21/12/2019, entre o mais, o ofendido apresentava

- Ferida abdominal longitudinal paramediana direita correspondente a lesão por arma branca suturada por planos com agrafos;

- Ferida igualmente por arma branca supraumbilical oblíqua com cerca de 3cm integrada na incisão cirúrgica;

- Ferida a nível do mento igualmente suturada no Bloco operatório.

1.27     Lesões causadas pela arguida ao ofendido em consequência das quais este foi  internado, em estado crítico, no Hospital ........, onde foi logo submetido a intervenção cirúrgica;

1.28     A 25/6/2020 o ofendido apresentava as seguintes lesões/sequelas relacionadas com o evento

-  no pescoço:

cicatriz recente na região cervical imediatamente abaixo do mento  na região anterior cervical em forma de U, com 5cm de comprimento.

- no abdómen:

cicatriz recente quelóide abdominal mediana com 26 cm de comprimento;

cicatriz recente no flanco direito  com 6 cm de comprimento;

1.29     A 2/7/2020 a situação do ofendido ainda não se encontrava estabilizada, desconhecendo- a dimensão exacta das consequências dessas lesões, bem como a existência de sequelas permanentes que delas possam ter resultado, e pelo facto de o ofendido continuar em tratamentos médicos e cirúrgicos;

1.30     O objecto corto-perfurante utilizado pela arguida foi idóneo a causar ao ofendido as lesões à integridade física que lhe causou, e, mesmo, a tirar-lhe  a vida;

1.31     A arguida agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente;

1.32     E com a intenção de tirar a vida ao ofendido BB, o que só não conseguiu por factos completamente alheios, e contrários, à sua vontade – pronta assistência que foi permitida ao ofendido por quem passou no local, rápido transporte ao Hospital e rápida e oportuna intervenção cirúrgica;

1.33     Bem sabia a arguida que tais condutas não lhe eram permitidas e que as mesmas eram punidas por lei.

1.34     O demandante Centro Hospitalar......... está integrado no Serviço Nacional de Saúde, presta cuidados de saúde à população em geral, e a vítimas de crimes em particular;

1.35     Em consequência directa e necessária  da conduta da arguida/demandada o ofendido/assistido foi encaminhado para a unidade de saúde........ onde lhe foram prestados cuidados de saúde, designadamente,

- um episódio cirúrgico,

- internamento de 10 dias, de 20/12/2019 a 30/12/2019,

- uma consulta de acompanhamento,

intervenções cujo custo legalmente fixado importou em €8.897,26;

1.36     Esta agressão provocou ao demandante muitas dores,

1.37     E significativas perdas de sangue,

1.38     parte  do intestino  do  Demandante saiu para  fora do seu corpo, aumentando-lhe o estado de grande  aflição,

1.39     Conseguindo,  instintivamente, empurrar  essa parte  para  dentro,  impedindo que saísse mais.

1.40     Tendo pensado  que iria morrer,

1.41     Sozinho, a sangrar, a estancar a saída do intestino ...

1.42     O  demandante   ainda  foi levado  a tempo  para  o Hospital  ........,   onde  foi  logo  submetido   a intervenção   cirúrgica  que  lhe  salvou  a vida.

1.43     A recuperação  a que tem estado sujeito, tem sido  dolorosa.

1.44     Na  zona  dos  golpes   sofre    dores  intensas   e ''picadas' que passaram a fazer parte do seu dia-a-dia,

1.45     O  demandante,  passou a sofrer  de dificuldades em dormir à noite,  que ainda se mantêm.

1.46     Além de frequentes vómitos face ao mal-estar que sentia e sente.

1.47     Nervoso, recolheu-se sobre si próprio.

1.48     Em  consequência  das agressões praticadas  pela arguida,  o demandante  sentiu-se e sente-se ainda envergonhado,  humilhado  e amargurado.

1.49     E não se sente seguro, pois vive na iminência de um dia, a demandada poder voltar  a agredi-lo,

1.50     Temendo  pela sua própria  vida.

1.51     Pois da próxima  vez, pode  não voltar  a ter a sorte de o conseguirem  assistir a tempo, para lhe salvarem a vida.

1.52     O demandante  ficou  com  cicatrizes  no  corpo  que  o levam  a  lembrar-se constantemente  dos factos ocorridos  no dia 20 de Dezembro  de 2019.

1.53     Cicatrizes essas que o vão acompanhar  e envergonhar  para o resto da sua vida.

1.54     Quando  sai à rua, sente que as pessoas olham para ele e comentam  a situação  que aconteceu.

1.55     O  que ainda aumenta  mais a sua angústia.

1.56     Por  outro  lado, a arguida  apoderou-se  da carteira do demandante,   levando-a consigo.

1.57     Dentro  da  carteira encontrava-se  a  quantia   de  €100,00   (cem  euros)  de que  a demandada   se apropriou, sem o consentimento do demandante,   causando-lhe assim um prejuízo  de, pelo menos, 100 euros;

1.58     A situação  clínica do Assistente  ainda está aberta  face ao seu estado  de saúde, pelo que é expectável que ainda seja sujeito a exames e tratamentos,  bem como a novas intervenções cirúrgicas.

1.59     A arguida  foi detida a 2/1/2020, e sujeita a prisão preventiva a 4/1/2020, por despacho judicial de fls. 142.

1.60     A  arguida não tem antecedentes criminais.

1.61     A arguida, de 49 anos de idade, à data dos factos residia com os  pais de 86 e 73 anos de idade e com o seu filho B... de 21 anos de idade. Profissionalmente, exercia atividade laboral aos fins-de-semana, num Bar em ......... Atualmente, o filho mais novo de AA, frequenta um Curso de Formação Profissional do IEFP ….. e mantém residência com os avós maternos em ………. A filha mais velha da arguida, TS de 31 anos de idade, reside e trabalha em ……. Ambos filhos do seu casamento com J..., com quem casou aos 19 anos de idade, quando estava grávida da filha mais velha. A separação do casal ocorreu tinha o seu filho mais novo 2 anos de idade e nessa altura, passou a residir com os seus pais em ……….. A filha mais velha, na época com 12 anos de idade, ficou aos cuidados dos avós paternos, no ……... Quando tinha cerca de 35 anos de idade, a arguida foi para o ....... trabalhar numa …… em ......., deixando o seu filho menor, com 6 anos de idade, aos cuidados dos avós maternos. Passados 4 anos, a arguida decidiu mudar de trabalho, para a área da restauração em ..........., trazendo o filho para junto de si, situação que durou cerca de dois anos, tendo esta retomado o seu trabalho noturno (...) e o filho regressado a casa dos avós maternos. Foi nesta altura, com 41 anos de idade que a arguida iniciou os consumos de substâncias estupefacientes (Cocaína). Aos .. anos de idade, decidiu regressar a casa dos seus pais em …….., onde tentou fazer um Curso de Formação Profissional…….., que não concluiu. Durante este período de tempo, vinha aos fins-de-semana para o ......., onde retomou a sua atividade de “…..”, num …. em ......... Foi aqui que conheceu BB, alegada vítima no presente processo, tendo iniciado uma relação de namoro apesar de a arguida saber que este era casado. Segundo a arguida, BB sabia que esta consumia substâncias ilícitas, chegando mesmo a dar-lhe dinheiro para a aquisição de cocaína… AA sempre teve uma vida pouco adequada às convenções sociais, com episódios de infidelidade na constância do seu matrimónio e mais tarde, com hábitos de consumos de substâncias ilícitas… terá tentado o suicídio… uma vez. … Em Junho de 2019, a GNR ………..,…foi acorrer a uma situação de episódio psicótico da arguida, em que esta agrediu um agente da autoridade e quando se pôs em fuga, ia atropelando o próprio filho. Por estar visivelmente perturbada, os agentes conduziram-na à consulta de psiquiatria, tendo a arguida tido alta no próprio dia… No âmbito do presente processo, AA encontra-se desde 04-01-2020 em prisão preventiva, segundo informações dos serviços de educação do Estabelecimento Prisional …….., a arguida frequenta o Curso ……. e o RVCC (Reconhecimento Validação e Certificação de Competências) para obtenção do 12º ano de escolaridade. No EP tem recebido visitas da mãe e irmã com alguma regularidade, o que vem favorecendo o seu equilíbrio emocional. Mantém acompanhamento psiquiátrico no Hospital

………… em ….. (Dr. CC). AA identifica em abstrato o valor Jurídico em causa nos alegados factos bem como, a existência de dano para a vítima. A arguida reconhece nas suas próprias atitudes ou comportamentos, fatores que possam explicar a sua envolvência judicial, bem como, a intervenção do sistema de justiça, estando disponível para colaborar com os serviços judiciais sempre que necessário e em eventuais medidas que lhe venham a ser aplicadas.

2. O Direito aplicável.

A recorrente coloca as seguintes questões e faz o seguinte pedido:

A) Primeira questão: deve ser alterada a qualificação jurídica do crime pelo qual foi condenada, uma vez que, entende, apenas se fez prova da autoria de um crime de homicídio na forma tentada e não de um crime de homicídio qualificado na forma tentada.

B) Segunda questão: deve a medida da pena aplicada ser consequentemente alterada e aplicada pena adequada ao crime de homicídio na forma tentada e bem assim,  declarar a  sua suspensão  da execução   da   mesma,   caso   entenda   satisfaça   as   exigências   de prevenção e ressocialização, ainda que sujeita a regras de conduta ou regime de prova

C) Pedido: deve, ainda, ser reduzido proporcionalmente a indemnização civil atribuída ao ofendido.

O Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, conhece exclusivamente de matéria de direito, no entanto, ainda que o recurso interposto vise “exclusivamente o reexame de matéria de direito”, como a qualificação jurídica dos factos provados ou a medida da pena, como é o caso do presente recurso, se vier a constar um dos vícios do artº. 410º , nº 2, CPP, que ponha em causa a correta decisão de direito, poderá afirmar oficiosamente a sua verificação, tirando daí as devidas consequências.

A) – Primeira questão.

Quanto a esta primeira questão, se deve ser alterada a qualificação jurídica do crime pelo qual a recorrente foi condenada, uma vez que, entende, os factos provados apenas permitem a subsunção à autoria de um crime de homicídio na forma tentada e não de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, não podendo considerar-se verificada a circunstância agravante do artº. 132º, nº. 1, al. j) do CP.

Para tanto, alega a recorrente que: “Apesar do tribunal a quo ter entendido que «da factualidade  provada  não sendo possível  concluir pela reflexão sobre os meios empregados, nem pela persistência da intenção de matar por mais de 24 horas», entendeu possível retirar a «frieza de ânimo» da factualidade dada como provada, porquanto «reveladora de um sangue frio e uma indiferença da arguida perante o ofendido, que integram a especial perversidade da circunstância qualificativa invocada»”.

E refere, ainda, a recorrente, citando Fernando Silva, “Direito Penal, Crimes contra as Pessoas”, Quid Juris, 2005 e o Acórdão nº STJ_07P647 de 29-03-2007 que, “Até porque, a «frieza de ânimo» materializa-se numa série de atos preparatórios, numa «actuação calculada, em que de modo frio o agente toma a sua deliberação de matar e firma sua vontade (…)», situação em que «no fundo, o agente teve oportunidade de reflectir sobre o seu plano e ponderou toda a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto»”.

Concluindo que “dos factos provados não resulta ostensivamente que a arguida tenha agido «de modo frio» tomado a sua deliberação de matar o ofendido e firmado a vontade correspondente, ou seja, a de que, tendo tido «oportunidade de refletir sobre o seu plano», «ponderou toda a sua atuação» e se «mostrou indiferente perante as consequências do seu ato»”.

Deste modo a discordância da recorrente relativamente à qualificação jurídica dos factos reconduz-se à verificação, ou não, de “frieza de ânimo”, qualificação atribuída à sua actuação pelo acórdão recorrido.

Posto isto:

No caso em apreço concluiu o acórdão recorrido que a conduta da recorrente se subsumia na previsão dos artºs. 131 e 132º, nºs. 1 e 2, al. j) do CP, considerando que aquela actuou com “frieza de ânimo”.

Ora, o crime de homicídio qualificado previsto no artº. 132º, do CP, pelo qual a recorrente foi condenada, comporta numa relação simbiótica, duas cláusulas de agravação. Uma genérica prevista no nº. 1, aplicável em “circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade” e outra indicando exemplos padrão, elencados no nº. 2, susceptíveis “de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior”. Assim, qualificam o crime de homicídio, entre outras, as circunstâncias, como as elencadas no nº. 2, que revelem especial censurabilidade ou perversidade.  

Esta qualificação fundamenta-se numa culpa mais grave manifestada pela especial censurabilidade no cometimento de determinado crime de homicídio ou de especial perversidade na execução concreta desse crime.

Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, “Sendo assim, o especial grau de culpa subjacente à «especial censurabilidade ou perversidade» que o agente manifesta em tais circunstâncias aquilo que motiva a agravação, esta tem afinal a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática do crime de homicídio simples” – Coletânea de Jurisprudência, ano XII - 1987, Tomo 4, pág. 52.

Já no que concerne à “frieza de ânimo”, circunstância qualificativa prevista no artº. 132º, nº. 2, al. j) do CP, com que o acórdão recorrido considerou ter a recorrente actuado, refere o Prof. Figueiredo Dias “Com a previsão simultânea dos três tipos de circunstâncias referidas na al. j) do nº. 2 do artº. 132º do CP, «o legislador português pretendeu afinal englobar uma realidade unitária, susceptível de possibilitar por si mesma um maior juízo de censura jurídico-penal sobre o agente; é a particular intensidade da vontade criminosa daquele que age com reflexão ou domínio de si, e não sob emoções ou impulsos de momento, e que desse modo pode manifestar uma personalidade marcadamente mais desviada dos padrões supostos pela ordem jurídica» - obra supra citada págs. 51-55.

Do exposto, resulta que a censurabilidade da conduta da recorrente, à luz da circunstância qualificativa em causa, consistirá numa vontade criminosa particularmente intensa durante um período de tempo suficiente, para poder reflectir sobre o crime antes de executar, não tendo, portanto, agido sob emoção, impulso ou as circunstâncias do momento da prática do crime, indiferente à censura que a sua acção concita.

Sobre a questão em apreço aditemos um apontamento da Jurisprudência deste Tribunal.

Assim, foi entendido no Acórdão deste Tribunal de 6.1.2010, no Proc. 38/08.2JAAVR.C1.S, relator Cons. Oliveira Mendes que a frieza de ânimo “traduz-se na actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a sua deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando um sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto” ;

Também, citando outra Jurisprudência deste Tribunal e refletindo o seu entendimento concordante com aquela, supra,  refere o Acórdão de Tribunal de 10.12.2020, no Proc. 757/18.2JACRB.C1S1, da 5ª Secção, relator Cons. Clemente Lima “Na al. j) do n.º 2 do artigo 132.º do CP está prevista a premeditação, tendo o legislador reunido neste conceito a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 h. A agravante encontra-se conexionada com a actuação calma ou imperturbada reflexão, no assumir pelo agente da resolução de matar a que se alia a firmeza dessa mesma resolução criminosa. - Ac. STJ de 19-2-2014, proc. 168/11.0GCCUB.S1

É entendimento pacífico do STJ que a qualificativa prevista na al. j) consubstancia-se em agir “de forma calculada, planeada quanto ao local e ao momento, com imperturbada calma, revelando-se indiferença e desprezo pela vida, firmeza, tenacidade, sangue frio, um lento, reflexivo e cauteloso processo na execução e preparação do crime de forma a denotar insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e vida humana.” - Ac. STJ de 30-5-2019, proc. 21/17.4JAFUN.L1.S1

Feitas estas breves considerações, relembremos, de forma sintética, a matéria de facto provada pertinente para a demonstração da circunstância qualificativa em causa.

Consta  Factos provados:

1.2     Iniciaram, então, uma relação extra conjugal entre si – o ofendido é casado, e residente em ..... - tendo aquele assumido apoiar financeiramente a arguida, devendo esta abandonar o consumo de substâncias estupefacientes;

1.3       Com o decorrer do tempo, tal relação foi-se deteriorando, dizendo a arguida que ia contar tais factos à família dele, e mostrar umas fotos íntimas que obtivera;

1.5       Ao ponto de o ofendido ajudar, cada vez menos, a arguida, o que não agradava a esta;

1.6       Não obstante, o ofendido não conseguiu terminar com tal relacionamento;

1.7       O ofendido e a arguida, que comunicavam essencialmente através de telemóvel, combinavam encontrar-se entre si, o que habitualmente ocorria aos fins-de-semana numa habitação de que o ofendido era proprietário,  ..............., na cidade ........;

1.8       Na manhã do dia 20 de Dezembro de 2019, a arguida, através do seu telemóvel com o nº........, entrou em contacto com o ofendido BB, para o telemóvel deste com o nº .........;

1.9       E, já com o propósito de retirar a vida ao ofendido BB, combinou encontrar-se com ele na tarde desse mesmo dia, tendo-lhe solicitado que lhe desse algum dinheiro para poder suportar os custos da viagem da sua residência, em ......., ...., até ........;

1.10     Ao que o ofendido acedeu, fazendo uma transferência tão-só de 30,00 € (trinta euros);

1.11     O que não agradou à arguida;

1.12     Pelas 14 horas e 40 minutos do dia 20 de Dezembro de 2019, o arguido, conduzindo o seu veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-UZ, marca “……..”, modelo “….”, de cor ….., deslocou-se para junto do viaduto situado na parte inferior da E.N. nº …-.., na zona ……, à saída deste cidade ....., e na direcção ….., local onde habitualmente combinavam encontrar-se, e de onde costumavam seguir juntos para ........;

1.13     Tendo chegado primeiro que a arguida, o ofendido estacionou o seu veículo mesmo à entrada do referido túnel, e permaneceu no interior do mesmo.

1.14     Decorridos alguns minutos ali chegou a ora arguida, conduzindo o seu veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-ML-.., marca “….”, modelo “…..”;

1.15     Esta, ao contrário do que habitualmente fazia, parou o seu veículo no interior do túnel/viaduto, e saiu para o exterior do mesmo;

1.16     E dirigiu-se para a parte frontal do seu veículo, levantando o capot do mesmo;

1.17     O ofendido, que achou estranho o que se estava a passar, saiu também para o exterior do seu veículo, e dirigiu-se para junto da arguida;

1.18     Esta referiu, então, o que sabia não corresponder à verdade, que estava com problemas no seu veículo, que estava sem óleo;

1.19     O ofendido retirou a vareta do óleo, pediu à arguida que lhe arranjasse um pano/papel para a limpar, verificou o nível do óleo, que lhe pareceu suficiente, e colocou a vareta no seu lugar;

1.20     De seguida a arguida deslocou-se ao seu veículo, e aí muniu-se de um objecto corto-perfurante cujas características e dimensões se desconhecem, dado que não foi possível recuperá-lo até ao momento, eventualmente, uma faca, ou outro objecto  de idêntica natureza, encobriu-o, e levou-o consigo;

1.21     E, já junto do ofendido, com a intenção de lhe tirar a vida, desferiu-lhe  com tal objecto três golpes atingindo-o na zona do pescoço e na zona abdominal;

1.22     Embora não tenha perdido logo os sentidos, o ofendido BB ficou semi-inconsciente, o que ainda lhe permitiu aperceber-se que a arguida, nessa altura, se dirigiu à mala do seu veículo, e aí apoderou-se, sem a sua autorização e contra a sua vontade, da sua carteira;

1.23     Na posse dessa carteira, que continha a quantia monetária de 100,00 € (cem euros), cartões de débito e crédito, a arguida logo fugiu do local, deixando o ofendido abandonado, estendido no chão, sem lhe ter prestado qualquer assistência;

1.24     Com a conduta supra descrita a arguida causou ao ofendido BB, entre o mais - traumatismo da região abdominal da qual resultou evisceração e perfuração do intestino delgado, e ferida no pescoço.

1.30     O objecto corto-perfurante utilizado pela arguida foi idóneo a causar ao ofendido as lesões à integridade física que lhe causou, e, mesmo, a tirar-lhe  a vida;

1.31     A arguida agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente;

1.32     E com a intenção de tirar a vida ao ofendido BB, o que só não conseguiu por factos completamente alheios, e contrários, à sua vontade – pronta assistência que foi permitida ao ofendido por quem passou no local, rápido transporte ao Hospital e rápida e oportuna intervenção cirúrgica”.

Posto isto e face à matéria de facto provada, e para aferir da verificação da circunstância qualificativa em causa, relevam, como necessariamente se extrai dos factos provado que a recorrente combinou encontrar-se com o ofendido na manhã de 20.12.2019, o que só veio a ocorrer da parte da tarde. “E, já com o propósito de retirar a vida ao ofendido”, a recorrente veio desde ......., ...., para esse encontro, o que demonstra uma firme vontade na sua deliberação de matar o ofendido, resolução essa, no entanto, que ocorreu com tempo suficiente para refletir sobre a acção que se propunha concretizar e, não obstante, manteve esse firme propósito.

Ainda com o estratagema engendrado, simulando uma avaria de modo a levar o ofendido a socorrê-la, colocando-o primeiro numa situação particularmente vulnerável por estar distraído a procurar verificar a avaria que a recorrente inventara, esta muniu-se de um objecto corto-perfurante idêntico a uma faca, um objecto idóneo a causar a morte que trazia  na sua viatura, deferindo os golpes no pescoço e zona abdominal do ofendido com intenção de lhe tirar a vida.

Ou seja, primeiro levou a que o ofendido se colocasse naquela situação/posição para depois, utilizando o objecto corto-perfurante de que se havia munido, encobrindo-o, deferiu  três golpes no ofendido atingindo-o na zona do pescoço e na zona abdominal para lhe causar a morte, indo de seguida à mala do seu veículo apoderando-se da sua carteira com o dinheiro e cartões de débito e crédito, abandonando o local, deixando o ofendido estendido no chão, sem lhe ter prestado qualquer assistência, indiferente ao resultado dos seus actos

Ainda o modo do seu cometimento, o estratagema arranjado pressupõe necessariamente um largo período de várias horas de reflexão, de ponderação para a concretização do crime.

Deste modo é insofismável que a conduta da recorrente, usando a expressão usada no Acórdão deste Tribunal de 26.9.2007, no Proc. 07P2591, relator Cons. Armindo Monteiro “é um crime que repercute uma imagem global do facto agravada, um plus de culpa do agente, quando comparado com o homicídio simples” revelando especial censurabilidade ou perversidade sendo evidente que agiu com frieza de ânimo sendo certo que revelam especial censurabilidade ou perversidade  todo o elenco dos factos provados relativos ao cometimento do crime.

Também, tal como no caso em apreço, decidiu  este Tribunal no Acórdão de 27.11.2019, no Proc. 323/18.2PFLRS, relator Cons. Lopes da Mota: “VI. Mostram os factos provados que a decisão de matar, livre e consciente, se seguiu a uma reflexão de «algumas horas», que terminou com a fria escolha do momento e do meio apto a produzir a morte nas circunstâncias determinadas pela vontade do arguido, devendo concluir-se que o homicídio foi cometido com «frieza de ânimo» e «reflexão sobre os meios empregados», nos termos da al. j) do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal”.

Ainda, tem pertinência  referir aqui o decidido pelo supra citado  Acórdão de Tribunal de 10.12.2020, no Proc. 757/18.2JACRB.C1S1, da 5ª Secção, relator Cons. Clemente Lima “29. Desse hiato temporal entre a ideação do acto delitivo, do meio a usar e a passagem à acção, por seu intermédio, titula firmeza, propósito, tenacidade, irrevogabilidade da decisão, tal seja, uma forte vontade criminosa, que não pode deixar de conter-se na regra prevenida no n.º 1 do artigo 132.º, do CP, posto que, à luz da ponderação global do facto, espelha uma censura agravada, seja na medida em que tal circunstancialismo repercute um mais acentuado desvalor do facto (especial censurabilidade) – veja-se, neste particular, com proveito até ao presente, a lição do Professor Beleza dos Santos, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 67.º, pp. 306 ss.

30. Termos em que a conduta do arguido deve ser subsumida à previsão típica da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º, do CP, por isso que, nesta parcela, o recurso não pode lograr procedência”.

Já no que concerne à alegação de que “não resultou provada qual foi a arma do crime”; “quando aquela foi obtida e para que finalidade”, se aquela era da arguida”; e que “tenha escolhido aquela hora concreta e local para cometer um homicídio contra o ofendido”, Conclusões F.G.I e J, como facilmente se retira do supra exposto, tais factos são completamente irrelevantes para afastar a circunstância qualificativa do crime.

Já quanto à Conclusão H, com a afirmação de que “não resultou provado que a arguida tenha decidido retirar a vida ao ofendido”, a recorrente posterga uma regra elementar do processo penal, no caso, o princípio da “lealdade processual” – cfr. Jorge de Figueiredo Dias “Acordos Sobre a Sentença em Processo Penal”, 2011, pág. 77 – alegando como factos não provados, factos efetivamente provados, que, no seu critério, deviam ter sido considerados não provados. Com efeito, consta dos factos provados “1.32 E com a intenção de tirar a vida ao ofendido BB, o que só não conseguiu por factos completamente alheios, e contrários, à sua vontade (…)”.

Pelo exposto, contrariamente ao expendido pela recorrente nas suas Conclusões K,M,N, e não cabendo no presente recurso de direito, reapreciar a matéria de facto provada, a circunstância qualificativa “frieza de ânimo” resulta inequivocamente da matéria de facto provada, resultaram provados atos preparatórios e refletidos conducentes ao planeamento e propósito de retirar a vida ao ofendido.

Com efeito, o modo pensado e planeado para o cometimento do crime, o estratagema engendrado que pressupõe, necessariamente, um largo período de reflexão, de ponderação para a sua concretização. Tendo formado o seu desígnio criminoso – no caso, o de matar outra pessoa – através de um processo frio, pensado, reflexivo, cauteloso e calmo quanto à execução, e persistente quanto à resolução.

Ainda com o estratagema engendrado simulando uma avaria e da maneira que levou o ofendido a socorrê-la, colocou-o primeiro numa posição particularmente vulnerável e indefesa, quando estava a debruçado a procurar concertar a avaria qua a recorrente inventara. Ou seja, primeiro levou a que o ofendido se colocasse naquela situação/posição para depois utilizando o objecto de que previamente se havia munido e que consigo transportara, deferir os golpes no ofendido.   

Por todo o exposto, face à matéria de facto provada, não restam dúvidas de que a recorrente agiu com frieza de ânimo, preenchendo assim a circunstância qualificativa prevista na al. j) do nº. 2 do artº. 132º do C P, como se decidiu no acórdão recorrido, que não merece por isso qualquer censura.

B) – Segunda questão.

A segunda questão a decidir é a da medida da pena pelo crime de homicídio, se deve ser reduzida para próximo mínimo legal, como pretende a recorrente e, “bem assim,  declarar a  sua suspensão  da execução   da   mesma,   caso   entenda   satisfaça   as   exigências   de prevenção e ressocialização, ainda que sujeita a regras de conduta ou regime de prova”.

Dispõe, assim, o artº. 71º do CPP, sob a epígrafe “Determinação da medida da pena”:

1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”.

Quanto à medida da pena concretamente aplicada, a decisão recorrida fundamentou:
5. Determinação da Pena
Enquadrada desta forma a conduta da arguida cumpre determinar a pena concreta a aplicar dentro da moldura abstracta prevista na lei, o que se fará, tendo em vista as finalidades que presidem à aplicação das penas, da protecção dos bens jurídicos e da reintegração do agente na sociedade – nos termos do art. 40º/1 do CP  - em função das exigências de prevenção de futuros crimes e da culpa - nos termos do art. 71º/1 do CP - e, tendo a culpa do arguido por limite inultrapassável, como preceitua o art. 40º/2 do CP,
E, devendo considerar-se, em concreto, todas as circunstâncias  que não fazendo parte do tipo de crime,  depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime, a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Assim,
no caso concreto,
há que ponderar as exigências de prevenção geral dos crimes de homicídio, elevadíssimas, atenta a frequência em crescendo, quase banalização, com que vêm ocorrendo,
- a ilicitude da conduta – elevada, manifestada na forma de execução, designadamente na forma como dissimulou o ataque, sem que o arguido se tivesse apercebido da sua iminência,  
- a intensidade do dolo - na forma intensa do dolo directo,
- a gravidade das consequências – muito elevada, revelada na importância das lesões e sequelas causadas ao ofendido, e, na necessidade de intervenção cirúrgica de urgência,
- a conduta anterior e posterior da arguida – não podendo deixar de se assinalar a revolta que a arguida declarou em audiência ter sentido perante a iminência do termo da relação, por se sentir com direito a ser sustentada/mantida pelo ofendido, e, sem mesmo na presença do ofendido em audiência ter expressado qualquer arrependimento pelos factos que praticou, assim, apenas atenuando as exigências de prevenção especial a inexistência de antecedentes criminais.
Deste modo, 
face a todo o circunstancialismo descrito, considerada  a moldura penal abstracta aplicável, e as exigências de prevenção geral e especial assinaladas e a culpa elevada da arguida, cuja conduta é  merecedora de forte censura, mostra-se adequada a aplicação à mesma da pena de 6  anos e 6 meses de prisão”.

Posto isto, contrariamente ao que alega a recorrente o acórdão recorrido vem “criteriosamente fundamentado” e sustenta-se em factos que permitem, só por si, “valorar o grau de ilicitude e a intensidade do dolo” e consequentemente, “justificar a necessidade de prevenção especial, imputada ao caso concreto”.

Com efeito, atentos  os factos provados,  foram valorados,  para aferir  e determinar a medida da pena, o grau de culpa da recorrente bem como foram atendidas as exigência de prevenção – cfr. o artº. 71º do CP.

Sendo certo que servindo o grau de culpa como limite à medida da pena o acórdão recorrido atendeu e ponderou todas as circunstâncias que, ainda que não fazendo parte do tipo de crime, pudessem depor a seu favor, como bem resulta do teor do acórdão recorrido.

Elenca a recorrente, na Conclusão LL, “os factores” que o acórdão recorrido deveria “nomeadamente atender”, como não ter antecedentes criminais, ter tentado o suicídio antes, apresentar  um quadro depressivo, estar a ter acompanhamento psiquiátrico à data dos factos e ter consumido estupefacientes antes do seu cometimento, ter bom comportamento no estabelecimento prisional e ter visitas com alguma regularidade o que demonstra integração sólida no agregado familiar, e suporte familiar para integração na sociedade.

Ora, todos estes “factores” foram relacionados nos factos provados e ponderados na justa medida da sua relevância para o caso.

Fundamenta, assim, o acórdão recorrido sobre a conduta anterior e posterior da recorrente:

- a conduta anterior e posterior da arguida – não podendo deixar de se assinalar a revolta que a arguida declarou em audiência ter sentido perante a iminência do termo da relação, por se sentir com direito a ser sustentada/mantida pelo ofendido, e, sem mesmo na presença do ofendido em audiência ter expressado qualquer arrependimento pelos factos que praticou, assim, apenas atenuando as exigências de prevenção especial a inexistência de antecedentes criminais”. sublinhados nossos.

Também, contrariamente ao que a recorrente alega a  antecedentes criminais, inexistência de antecedentes criminais não tem o relevo que a recorrente lhe pretende dar, uma vez que é a exigência mínima para a vida em sociedade e que, mesmo assim, foi ponderada pelo acórdão recorrido.

Já no que concerne aos demais “factores” que sobre o quadro depressivo e necessidade de medicação e acompanhamento psiquiátrico, “1.61” e sem que tenha agido emocionalmente motivada por qualquer razão aceitável ou compreensível, o que resultou provado foi que “1.31 A arguida agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente”;

 e no que concerne aos factos provados 1.61” ponderou o acórdão recorrido “não podendo deixar de se assinalar a revolta que a arguida declarou em audiência ter sentido perante a iminência do termo da relação, por se sentir com direito a ser sustentada/mantida pelo ofendido”. Com efeito, o que resulta dos factos provados é que a conduta da recorrente a esta motivação se deveu e não a qualquer episódio ou quadro psicótico da recorrente, pelo que aquela alegação, no caso em apreço releva para “condições pessoais” da recorrente, na medida em que foi considerado.

Sustenta ainda a recorrente que, relativamente às necessidades de prevenção especial o acórdão recorrido não refere qual tenha sido o motivo que levou a tal concluir – Conclusões II e MM – e que, no seu caso, as necessidades de prevenção especial são diminutas, se bem que não fundamente essa afirmação. Ora, no acórdão recorrido os motivos de as necessidades de prevenção especial mereceram ponderação e detalhe na apreciação. Assim, resulta do acórdão:

Ponderando, no caso, as exigências de prevenção geral o acórdão recorrido considerou-as “elevadíssimas”, assim como as exigências de prevenção especial, evidenciadas na forma como planeou e executou o crime, uma acção que a recorrente empreendeu foi pensada e planeada, tendo persistido no seu “propósito de retirar a vida ao ofendido”, bem como posteriormente, já na audiência do seu julgamento, declarou “ter sentido perante a iminência do termo da relação, por se sentir com direito a ser sustentada/mantida pelo ofendido”, e, “sem mesmo na presença do ofendido em audiência ter expressado qualquer arrependimento pelos factos que praticou”, não revelando qualquer interiorização do desvalor da conduta. Considerou, no entanto, “apenas atenua[r] as exigências de prevenção especial a inexistência de antecedentes criminais”.

Ainda, foi considerada elevada a ilicitude da conduta da recorrente, manifestada na forma de execução, designadamente na forma como dissimulou o ataque, sem que o arguido se tivesse apercebido da sua iminência,  “intenso” o dolo - na forma intensa do dolo directo e ponderada “a gravidade das consequências – muito elevada, revelada na importância das lesões e sequelas causadas ao ofendido”.

Ainda, alega a recorrente na Conclusão FF.  “que, se o primeiro momento, o tribunal a quo omitiu o cálculo da moldura penal aplicável ao caso, no segundo momento, sobressai a falta de cuidado na escolha da medida da pena aplicável, ou teria sido aplicada à arguida pena diferente da recorrida”, tendo sido violado o disposto no artº. 71º, nº. 3 do CP porquanto, “na sentença devem ser expressamente referidos os fundamentos das penas”. 
Ora, para além de tudo o que quanto à determinação da medida da pena ficou dito e se destacou do acórdão recorrido o cálculo pretendido pela recorrente consta do acórdão: “Decorre das transcritas disposições legais que o tipo fundamental do crime de homicídio, que vem previsto no art. 131º do CP, e é punível com a pena de prisão de 8 a 16 anos, é agravado pelo art. 132º do CP, passando a pena de 12 a 25 anos de prisão, quando ao tipo-base acresçam circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, circunstâncias  que, sendo relativas ao facto ou ao autor, e descritas como exemplos-padrão no art. 132º, indiciem um maior grau de culpa, uma culpa agravada”,
Deste modo, 
face a todo o circunstancialismo descrito, considerada  a moldura penal abstracta aplicável, e as exigências de prevenção geral e especial assinaladas e a culpa elevada da arguida, cuja conduta é  merecedora de forte censura, mostra-se adequada a aplicação à mesma da pena de 6  anos e 6 meses de prisão”.

Por todo o exposto, a pena de 6 anos e 6 meses de prisão, aplicada à recorrente, respeita as finalidades estabelecidas pelo artº. 40º, nº. 1, CP e a sua medida foi determinada com estrita obediência ao critério estabelecido no artº. 71º, CP.

Trata-se de uma pena consentida pela medida da culpa como determina o artº. 40º, nº.2, CP e pena esta pena em concreto aplicada  respeita o critério da proporcionalidade subjacente às reações penais, sendo uma pena adequada que, não só não se nos afigura que não se pode considerar excessiva, bem como pelo contrário pelo que será mantida. Assim, improcedam as pretensões da recorrente de atenuação para próximo do mínimo legal e, consequentemente, por impossibilidade legal em consequência do limite máximo da pena aplicada – vd. artº. 5ºº, nº. 1 do CP, comtemplar o pedido de suspensão da execução da pena, se “as  exigências  de prevenção e ressocialização” permitissem, o que não é manifestamente o caso. entenda   satisfaça   subsidiário de aplicação da pena aplicada na 1.ª instância.

C) – Pedido.

 Relativamente ao montante da indemnização a recorrente limita-se, a final, a requerer “e ainda, reduzir proporcionalmente o pedido de indemnização civil atribuído ao recorrido BB” sem que a redução do seu montante indemnizatório conste, quer da motivação, quer das respectivas Conclusões.

Ora, dispõe o artº. 412º, nº. 1 do CPP, “A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

Não se tratando de caso de deficiência ou incompletude das Conclusões em que à recorrente facultada a oportunidade de suprir tal deficiência – cfr. Jurisprudência do Tribunal Constitucional – mas, antes inexistência de motivação de recurso nesta parte, não pode o Tribunal conhecer do “pedido”.

III- Decisão:

Por todo o exposto, acordam em:

A) – rejeitar por manifesta improcedência o recurso interposto do despacho de indeferimento de 21.12.2020;

B) - julgar improcedente o recurso interposto do acórdão condenatório recorrente, confirmando-o.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC, artº. 8º do RCP e  Tabela III anexa – sem prejuízo do benefício da assistência judiciária.

Consigna-se que foi observado o disposto no artº. 94º, nº. 2 do CPP.

João Guerra (Relator)

Helena Moniz