Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | PEREIRA MADEIRA | ||
Descritores: | RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ALEGAÇÕES ESCRITAS ALEGAÇÕES ORAIS JULGAMENTO EM AUDIÊNCIA VIOLÊNCIA CONTRA AS PESSOAS MEDIDA DA PENA PENA SUSPENSA | ||
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Nº do Documento: | SJ200301230040985 | ||
Data do Acordão: | 01/23/2003 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T J PORTIMÃO | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 291/02 | ||
Data: | 07/08/2002 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
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Sumário : | I - Nos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça em que sejam vários os recorrentes e uns requeiram e outros não, alegações por escrito, embora aparentemente os primeiros devessem ser julgados em conferência e os demais em audiência, mandam os princípios da concentração e economia processual que todos sejam julgados conjuntamente, após a audiência oral, se a ela houver lugar, sem prejuízo de a discussão quanto aos que foram objecto de alegações escritas, se haver por encerrada com a produção daquelas ou o decurso do prazo para tal efeito. II - No crime de dano qualificado o facto só é típico quando atinge a função da coisa danificada, não o sendo se a lesão for indiferente ao fim específico que a coisa serve. III - Nem todo o dano que atinge coisa alheia «de valor elevado» ou «consideravelmente elevado» determina a punibilidade nos termos do artigo 213.º do Código Penal. IV - Com efeito, a coincidência entre o valor do dano e o valor da coisa, para efeitos de incriminação pelo dano só pode colocar-se quando a coisa é destruída na totalidade. V - Nos demais casos, ou seja, nos de «danificação parcial», o referente do «valor elevado» ou «consideravelmente elevado» é, não a coisa-objecto-da-acção, mas o prejuízo causado pela acção. VI - Sendo, no caso, o valor da coisa e seus componentes, de cerca de cerca de € 51.000, mas o dos danos nela causados pela acção do arguido, de apenas, € 2.350, não pode aceitar-se como boa a qualificação do crime pelo n.º 1, a), do artigo 213.º do Código Penal. VII - A «violência contra pessoas», qualificativa do crime de dano prevista no artigo 214.º do Código Penal, é hoje, doutrinal e jurisprudencialmente, um conceito abrangente, englobando não apenas a violência física sobre o corpo das pessoas, como a violência psíquica. VIII - A violência ali tipificada também pode consistir numa intervenção física sobre coisas, (que tanto podem ser do ofendido como de terceiro) desde que exercida directamente sobre tais coisas, atinja pessoa(s ) por via indirecta. IX - No caso sujeito, tendo o arguido, em reacção contra um dos ofendidos, (que se recusou a vender-lhe uma bifana que aquele previamente anunciara que não pagaria), e com o objectivo de danificá-la, arremetido com o seu veículo automóvel contra a roulote de farturas dentro da qual eles se encontravam e permaneceram, obrigando algumas pessoas que se encontravam do lado de fora a desviar-se para não serem atingidas, e, com a violência do impacto, fazendo-a oscilar e arrastando a roulote do local onde se aquela encontrava, fazendo cair vários frascos de produtos alimentares, copos e pratos que se partiram, assim como deitando ao chão, a frigideira onde estavam a ser cozinhadas bifanas, configura-se a qualificativa «violência contra pessoas». X - Com efeito, deixando de lado a violência de que também foram objecto os clientes que estavam no exterior, forçados a desviar-se do veículo atacante, para não serem, também eles, por ele atingidos, encontrando-se os donos no interior da roulote, é apodíctico, pelo menos, que, juntamente com ela, foram arrastados contra a vontade e por acção violenta do arguido. XI - E não se pode, sequer, alegar inexistência do elemento subjectivo da infracção quando se provou que o arguido agiu voluntária e conscientemente, investindo com o seu automóvel contra a roulote, arrastando-a violentamente, com as pessoas lá dentro, sabendo que elas lá se encontravam. XII - Os recursos são meios de reacção contra decisões contrárias à lei e não meios de refinamento dessas decisões, nomeadamente quanto à medida concreta da pena aplicada. XIII - A culpa não fornece a medida da pena mas fixa o seu limite máximo, que, em caso algum, pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas. XIV - Se no caso, ante, nomeadamente, os já muitos antecedentes criminais do arguido, é de ter como pouco almofadado o juízo optimista do tribunal a quo quanto ao futuro comportamento do arguido, não é de entender que falham por inteiro os pressupostos de aplicação da pena suspensa, ou que o prognóstico favorável seja totalmente desajustado, já que o mesmo é por natureza uma operação de risco, embora calculado. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1. Pelo colectivo do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Portimão foi julgado o arguido ALGC, devidamente identificado, tendo afinal sido decidido, além do mais: Condenar o arguido, pela prática de um crime de dano qualificado com violência, p. e p. pelos art.ºs 212º, n.º 1, 213º, n.º 1, al. a) e 214º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão. Suspender a execução da referida pena pelo período 3 anos, com a condição de pagar ao lesado SBG a quantia de € 1.500, no prazo máximo de seis meses. Inconformados, recorrem ao Supremo Tribunal, o MP e o arguido - este, solicitando, sem oposição, que «havendo lugar (?) a alegações, sejam as mesmas produzidas por escrito», delimitando respectivamente os seus recursos com este rol conclusivo: A - o MP 1.ª - O arguido ALGC julgado pelo Tribunal Colectivo e condenado como autor material de um crime de dano qualificado com violência previsto e punível pelos artigos 212.º n.º 1, 213,º n.º 1, al. a) e 214.º n.º 1, al. b) do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, que lhe foi declarada suspensa pelo período de 3 anos; 2.ª - Em face da matéria de facto provada e, relevantemente, na parte atinente à culpa do arguido, verificam-se como circunstâncias que depõem contra o arguido o elevado grau de ilicitude do facto, o dolo directo e intenso, a conduta do arguido posterior ao facto, que se pautou por uma total indiferença, nada fazendo no sentido de reparar os danos que causou, e os seus antecedentes criminais, já com 4 condenações anteriores; 3.ª - E como circunstâncias que depõem a favor do arguido temos apenas o ter assumido a prática dos factos, mas sem demonstração de autocrítica ou arrependimento, o seu enquadramento familiar, tendo dois filhos menores, e o facto de trabalhar, embora não de forma certa; 4.ª - Devidamente ponderadas todas essas circunstâncias, em face da nítida e substancial prevalência das que depõem contra o arguido em confronto com as que a favor dele concorrem, e em conformidade com o critério legal estabelecido no artigo 71.º do Código Penal, mostra-se adequada afixação da pena concreta em 5 anos de prisão. 5.ª - Mas admitindo, apenas por hipótese e sem conceder, que seja mantida a pena de 3 anos de prisão que foi aplicada ao arguido, nunca poderá beneficiar da suspensão da execução da pena nos termos do artigo 50.º do Código Penal, por não se verificarem os necessários pressupostos; 6.ª - Com efeito, em face da matéria de facto provada, não é possível fazer-se um juízo de prognose social favorável ao arguido, por não existir fundada expectativa de que ele sentisse a condenação como advertência bastante para não voltar a delinquir, e passasse a pautar-se na vida futura em conformidade com alei; 7.ª - Ao fixar a medida concreta da pena como o fez, o Tribunal Colectivo violou o artigo 71.º n.º 1 do Código Penal, pois interpretou esta norma no sentido de que, em face dos factos atinentes à culpa do arguido, poderia fixar essa pena no mínimo da moldura penal abstracta de 3 a 15 anos de prisão, enquanto deveria interpretá-la no sentido de que só uma pena de 5 anos de prisão se mostra ajustada ao caso; 8.ª - E ao suspender a execução dessa pena o Tribunal Colectivo violou o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, pois interpretou esta norma no sentido de que no caso dos autos podia dar como verificados os pressupostos que nela se exigem para a suspensão da pena, enquanto que tais pressupostos manifestamente não se verificam. Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e ser-lhe concedido provimento, revogando-se o douto acórdão recorrido na parte em que fixou a pena concreta aplicada ao arguido e a declarou suspensa, fixando-se agora essa pena em 5 anos de prisão. B- O arguido 1.°- O Colectivo de Juízes que compuseram o 2° Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Portimão, condenou o arguido ALGC, pela prática um crime de dano qualificado com violência, p. e p. pelos artigos 212°, n.º 1,213°, n.o 1, al. a) e 214°, n.º 1, al. b), todos do Código; 2.°- Pela prática de tal crime aplicou ao arguido, conforme melhor consta do, aliás douto, acórdão recorrido, condenaram o mesmo arguido numa pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, com a condição do arguido pagar ao lesado SBG a quantia de 1.500,00 (mil e quinhentos Euros), no prazo máximo de seis; 3.°- Entenderam os M.mos Juízes que compuseram o Tribunal "a quo" que a conduta praticada pelo arguido deveria ser punida no âmbito das citadas disposições legais, pese embora o valor do dano produzido pelo mesmo tenha sido consideravelmente inferior ao conceito de valor elevado, previsto no artigo 202, al. a) do Código Penal; 4.°- É que, tal como foi dado como provado no, aliás douto, acórdão recorrido, o valor dos danos produzidos pelo arguido ascenderam a cerca de 2.344,35 (dois mil trezentos e quarenta e quatro Euros e trinta e cinco cêntimos), ou seja, em Esc. 470.000$00 (quatrocentos e setenta mil escudos) - cfr. fls. 33 dos presentes autos; 5.°- Deveria o Tribunal "a quo", de acordo com o alegado pelo arguido na sua contestação, ter efectuado uma interpretação restritiva do citado artigo 231°, n.º 1, al. a) do Código Penal, 6.°- E que, como bem considerou o Professor Doutor Manuel da Costa Andrade, em sede comentário ao artigo 213° do Código Penal, in "Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial", Tomo II, Coimbra, 2001, págs. 243 e seguintes, deve efectuar-se uma interpretação restritiva e correctiva da norma legal em questão, uma vez que ". ..nem todas as condutas em abstracto subsumíveis no teor literal do preceito suportam o juízo de ilicitude qualificada subjacente à incriminação, nem merecem, por isso, as reacções particularmente drásticas que ela comina( ...) "; 7.°- No caso em apreço, tendo em conta o disposto no artigo 204°, n.º 4 do mesmo código, aplicável ao crime ora em análise, ex vi do disposto no n.º 3 do mesmo preceito, deveria ter-se efectuado tal interpretação restritiva, pois de outra forma estaremos a dar um tratamento penal "distorcido" aos crimes de dano qualificado como o que foi objecto dos presentes autos: o valor dos danos não atinge o valor elevado, de acordo com o artigo 202°, al. a), mas o crime é punido como se o valor do dano fosse superior a tal montante; 8.°- E não se diga, tal como o faz o douto acórdão recorrido, que aquilo que está aqui em causa, no tipo de ilícito em análise, é o valor da coisa danificada e não o valor dos danos causados. 9.°- É que tal interpretação que, salvo o devido respeito, não podemos subscrever, tem apenas em conta o elemento literal da norma em questão, esquecendo de forma evidente toda a coerência intrínseca da norma em questão e, sobretudo, de todas as normas que tutelam o património no nosso Código Penal. 10.°- Tal entendimento, para além de não respeitar o disposto no artigo 9°, n.o 1 do Código Civil, iria acarretar uma evidente contradição na aplicação das normas penais incluídas no Título II do Código Penal; 11.º- Andou mal o Tribunal "a quo", pois deveria ter efectuado tal interpretação restritiva do artigo 213°, n.º 1, al. a) do Código Penal, punindo o arguido no âmbito do art. 212° do mesmo diploma legal; 12.°- Ao decidir desta forma, violou o Tribunal "a quo" o disposto nos artigos 204°, n.ºs 3 e 4 e 213°, n.º 1, al. a), todos do Código; 13°- Ainda que assim não se entenda, o que por mera hipótese académica de admite, não deveria o arguido ter sido condenado pela prática do criem previsto no artigo 214°, n.º 1, al. b) do C. P. 14.°- Para que se ache preenchido o tipo de ilícito do citado artigo, a violência deve ser exercida directamente contra as pessoas, a menos que a violência exercida directamente contra as coisas atinja indirectamente as pessoas. 15.°- No caso sub judice, no que diz respeito à pessoa dos ofendidos, não se poderá falar na prática de um crime de dano com violência, uma vez que os mesmos não foram atingidos por qualquer violência, directa ou indirecta; 16°- Deveria o Tribunal " a quo" ter entendido que o arguido não praticou tal crime; 17.°- É que se a norma legal em apreço pretendesse proteger a tranquilidade das pessoas, far-se-ia referência a tal bem jurídico na previsão da mesma. 18.°- Ao usar-se a expressão "(...) violência contra uma pessoa, ou ameaça com perigo iminente para a vida ou a integridade física (...)", entendemos que o bem jurídico que em concreto se quis proteger foi exactamente a integridade física da vítima, ressalvando-se, porém, a situação de ela não ser atingida mas produzir-se uma ameaça iminente contra a mesma; 19.°- Ao decidir como decidiu, violou o Tribunal "a quo" o artigo 214°, n.º 1, al. c) do Código Penal. Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Ex.as. doutamente suprirão, deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que efectue uma interpretação restritiva do artigo 213° do Código Penal, condenando apenas o arguido pela prática de um crime de dano simples e que absolva o mesmo arguido da prática do crime p. e p. pelo artigo 214°, nº. 1, al. c) do C. P. Decidindo desta forma Venerandos Conselheiros, V. Ex.as. farão a tão esperada e devida Justiça! Respondeu o MP ao recurso do arguido, sustentando em suma 1.ª - O arguido ALGC julgado pelo Tribunal Colectivo e condenado como autor material de um crime de dano qualificado com violência previsto e punível pelos artigos 212.º n.º 1, 213.º, n.º 1, al. a) e 214.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, que lhe foi declarada suspensa pelo período de 3 anos; 2.ª - O arguido embateu propositadamente com o seu veículo na roulote de "comes e bebes" pertencente ao ofendido SB, causando danos na própria roulote e nos objectos que continha, no valor de 2,350; 3.ª - Uma vez que a referida roulote, incluindo o equipamento que a compõe e o alvará necessário ao seu funcionamento, tem o valor de 51.000 (valor elevado, nos termos do artigo 202.º, al. a) do Código Penal) , a conduta do arguido integra a previsão do artigo 213.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, 4.ª - Pois o valor a considerar para o efeito é o valor da coisa danificada, e não o valor do dano causado; 5.ª - Quando o arguido conduziu o seu automóvel contra a roulote, embatendo nela com força que a fez oscilar e deslocar-se uma certa distância, fazendo cair no chão copos, pratos e a frigideira onde estavam a ser cozinhadas bifanas, os ofendidos SBG e AMM encontravam-se a trabalhar no interior da roulote, o que o arguido bem sabia. 6.ª - Assim, a conduta do arguido é também um acto danoso praticado com violência contra essas pessoas, para efeitos do artigo 214.º, n.º 1, al. b) do Código Penal; 7.ª - Pelo que dúvidas não restam de que o arguido praticou o tipo legal de crime de dano qualificado com violência previsto e punível pelos artigos 213.º n.º 1, al. a) e 214.º, n.º 1, al. b) do Código Pena, por que foi julgado e condenado; 8.ª - No douto acórdão não foram violadas as normas como tais indicadas pelo arguido. E respondeu o arguido ao interposto pelo MP: 1°- O Colectivo de Juízes que compôs o 2° Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Portimão, condenou o arguido ALGC, pela prática um crime de dano qualificado com violência, p. e p. pelos artigos 212°, n.o 1, 213°, nº. 1, al. a) e 214°, n.º 1, al. b), todos do Código; 2°- Pela prática de tal crime aplicou ao arguido, conforme melhor consta do, aliás douto, acórdão recorrido, condenaram o mesmo arguido numa pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, com a condição do arguido pagar ao lesado SBG a quantia de 1.500,00 (mil e quinhentos Euros), no prazo máximo de seis; 3°- Inconformado com tal acórdão, veio o Ministério Público interpor recurso, alegando em síntese que, de acordo com os critérios previsto no artigo 71° do C. P ., a medida concreta da pena deveria ter sido fixada em 5 anos; 4°- Caso assim se não entendesse e sem conceder, refere igualmente o Digno Procurador da República que a execução da pena de três anos de prisão aplicada ao arguido não deveria ter sido suspensa; 5°- Diversamente, entende o arguido que, à excepção dos fundamentos que constam do seu recurso, não merece o acórdão recorrido qualquer censura, já que não viola qualquer disposição legal, tendo aplicado uma pena adequada e suspendido a execução da mesma em observância do disposto no artigo 50°, n.º 1 do C. P. 6°- Desta forma, não merece o recurso do Ministério Público qualquer provimento; Subidos os autos, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta nada requereu. Fixado prazo para as requeridas alegações escritas (cingidas ao recurso do arguido, que as requereu), apenas o MP as produziu, ficando-se o requerente por um silêncio pouco lisonjeador. Agora, naquelas alegações, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta conclui, enfim, que o recorrente devia ser absolvido da instância por falta de legitimidade do MP para o exercício da acção penal já que o crime de dano cometido pelo arguido é o de dano simples (art. 212.º do C P), e não o qualificado, e não houve queixa dos ofendidos. Defende, em suma, não há que falar em crime de dano qualificado nem pelo valor da coisa nem pela violência já que, quanto àquele, «o referente valor elevado ou consideravelmente elevado, há-de ser não a coisa-objecto-de-acção mas o prejuízo causado pela acção», que no caso não ultrapassa as 50 UC; e não há que falar em dano qualificado pela violência, porquanto, para o efeito considerado esta deve constituir um dos meios de cometimento do crime de dano e não, apenas, «mero facto acompanhante da acção do agente», sendo certo que nem sequer se pode ter como preenchido o elemento subjectivo - dolo - que pressupõe o conhecimento de todos os elementos que determinam a qualificação do facto. As questões a decidir: 1. A subsunção jurídica dos factos, que o arguido e, agora, o MP junto do Supremo Tribunal, defendem integrarem apenas a previsão do crime de dano simples, do artigo 212.º do Código Penal; 2. Os factos igualmente - de acordo com aquelas posições - não integram a previsão do artigo 214.º do Código Penal. 3. Eventual falta de legitimidade do MP, que decorrerá da solução a dar às duas antecedentes questões. 4. Em frontal oposição, a medida da pena deve, segundo o recorrente MP junto do tribunal de 1.ª instância, ser fixada em 5 anos de prisão; 5. Ainda que assim não seja, não há fundamento legal, segundo o mesmo MP recorrente para apoiar a opção por pena suspensa. Os recursos, teoricamente, seriam objecto de caminhos diferenciados, ou seja, audiências distintas: o do arguido seguiria para conferência, uma vez que pediu alegações escritas - art.º 419.º, d), do Código de Processo Penal - e o do MP para audiência. Porém, convivendo tal recurso com o do MP, onde tal requerimento não foi apresentado, a solução não pode ser outra que não a de fazer convergir a decisão de ambos numa só deliberação, por um lado, porque o certo é que embora cingidas a uma parte do objecto do processo (o recurso sobrante do MP), «há lugar a alegações orais», o que, nos termos literais do citado artigo implica, a contrario, a conclusão de que a audiência sempre terá lugar quanto ao restante recurso, decidindo-se ambos no acórdão que resultar após a discussão em audiência, sem prejuízo de tal discussão, quanto ao recurso do arguido, se haver de ter por já encerrada; por outro, porque, não obstante, sempre tal solução seria demandada em face da boa aplicação dos princípios da concentração e economia processual. É a solução, aliás, em conformidade com a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal, nomeadamente a emergente do Acórdão de 4 de Outubro de 2001, com o mesmo relator, que rompendo com uma certa corrente jurisprudencial estabelecida, está assim sumariado (1): I - A existência de uma pluralidade de recursos em que alguns recorrentes requerem e outros, não, a produção de alegações escritas, não implica que todos os recorrentes sejam forçados a alegar por escrito. II - Sem prejuízo da unidade de julgamento final, a vida de cada recurso não fica condicionada à vida do outro ou outros. III - A não ser assim, ou seja, o impor-se, sem mais, a obrigatoriedade de alegações escritas a todos, conferindo-se, infundadamente, a um deles, o correspondente direito potestativo e colocando os demais em perfeito estado de sujeição, estaria a erigir-se a excepção - alegações escritas - em regra geral, com o consequente esvaziamento do princípio geral da oralidade das alegações, impondo um processamento especial quando se impunha o comum, o que configura nulidade insanável. E se tal defesa da oralidade em processo penal se mostra hoje algo desajustada, em face, sobretudo, do manifesto abandono a que em regra os advogados vêm votando as audiências orais nos tribunais superiores, mormente no Supremo - a ponto de em conferência proferida no Salão Nobre do mesmo Supremo Tribunal, a 5/12/02, o Prof. Germano Marques da Silva ter defendido a sua eliminação pura e simples - o certo, é que, com ou sem adesão, por ora, é esse o regime positivado na lei processual vigente. Por isso, o processo veio para audiência, cumprindo agora proferir decisão relativa aos dois recursos interpostos. 2. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. Vejamos antes de mais os factos provados No dia 26 de Fevereiro de 2002, pelas 1,15 horas, junto da Estação de Caminhos de Ferro, em Portimão, encontrava-se estacionado e aberta ao público, a roulote de "comes e bebes", matrícula AB, propriedade de SBG, o qual se encontrava no seu interior, juntamente com AMM. Nas referidas circunstâncias, o arguido, que se encontrava embriagado, dirigiu-se ao SG e pediu-lhe uma bifana, dizendo desde logo que não pagava. O SG recusou, dizendo que não vendia fiado. De seguida o arguido dirigiu-se à viatura com a matrícula KA que aí se encontrava estacionada, tirou do seu interior uma cerveja e bebeu-a. De seguida o arguido entrou no referido veículo, sua propriedade, fez marcha atrás e posicionando-se de frente para a roulote, a cerca de cinco metros, arrancou, embatendo de forma violenta com a parte da frente do veículo por si conduzido na parte lateral direita daquela. No momento do embate, estavam dentro da roulote o SG e a AM e no exterior, junto à mesma, CACL e JFHV que, ao se aperceberem de que a viatura conduzida pelo arguido tinha arrancado, desviaram-se. Como consequência directa do embate, a roulote oscilou e deslocou-se cerca distância não apurada do local em que inicialmente se encontrava. Vários frascos de produtos alimentares, copos e pratos que se encontravam no interior da roulote caíram para o chão, partindo-se. Igualmente a frigideira onde estavam a ser cozinhadas bifanas, caiu. A referida roulote, incluindo o equipamento que a compõe e o alvará necessário o seu funcionamento, tem o valor de € 51.000 e, em consequência da conduta do arguido, a respectiva carroçaria ficou amolgada na parte lateral direita, tendo ocorrido um prejuízo de € 2.350. Por virtude do comportamento do arguido SG teve alguns dias sem poder utilizar a roulote. A vítima SG foi ressarcido pelo seguro do arguido no montante de € 2.000. O arguido bem sabia que no momento do embate se encontravam no interior da roulote SG e AM. O arguido actuou com o objectivo de danificar a roulote, como efectivamente danificou e actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei. O arguido reside com uma companheira e dois filhos menores. Trabalha de forma incerta numa sucata, auferindo quando trabalha, cerca de € 350 por mês. Em 21/8/93, o arguido foi condenado em pena de multa, por condução sem carta. Em 18/5/96 foi condenado em pena de multa por condução sob o efeito do álcool. Em 16/10/98 foi condenado em pena de multa por crimes de desobediência e falsas declarações. Na mesma data foi condenado em multa por crime de receptação. Em 28/11/01, foi condenado em pena de multa, por crimes de ofensa à integridade física, injúrias e dano. Os factos relatados na contestação e que provados ficaram são os já acima referidos, na parte em que eram coincidentes com a acusação. Factos não provados: Da matéria constante na acusação não resultou provado o seguinte: O arguido pediu uma cerveja ao SG. O arguido disse que partia aquilo tudo. O arguido atirou com uma garrafa de cerveja contra a roulote. O CL e o JV estavam de costas para o arguido quando esta arrancou com o carro. O CL e o JV só não foram atingidos porque se desviaram. A roulote desviou-se cerca de 30 cm do local onde se encontrava. O arguido não ignorava que punha em perigo da integridade física de SG, AM, CL e JV. Nesta matéria de facto não se vislumbram vícios que a invalidem, nomeadamente os que são mencionados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Como assim, temo-la como definitivamente assente. Procedendo à subsunção jurídica dos factos, ponderou o tribunal recorrido: «Ao arguido é imputada a prática de um crime de dano qualificado, praticado com violência, p. e p. nos art.ºs 213º, n.º 1, al. a) e 214º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal Ora, efectivamente entende o Tribunal eu foi esse o crime praticado pelo arguido. Com efeito, desde logo provado ficou que o arguido dirigiu o seu veículo automóvel contra a roulote, danificando-a, tendo agido precisamente com a intenção de o fazer. Actuou de forma livre, voluntária e consciente. Assim sendo, estão preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime de dano, tal como previsto no art.º 212º, n.º 1, do Código Penal Por outro lado, provado ficou que a coisa danificada tem um valor de € 51.000 e que os prejuízos na roulote ascenderam a € 2.350. Refere o art.º 213º, al. a), do Código Penal que pratica o crime da dano qualificado quem praticar algum dos actos previstos no art.º 212º, n.º 2, tendo a coisa valor elevado. Entende o arguido na sua douta contestação que não sendo o prejuízo causado na coisa de valor elevado nunca pode ter-se por verificada a circunstância qualificativa. Em abono da sua tese faz o arguido apelo ao que o Prof. Costa Andrade refere no Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, págs. 243 e segs. Ora, com o devido respeito, entende-se que não assiste razão ao arguido. Com efeito, a letra da lei é de uma clareza inquestionável: a al. a) do n.º 1 do art.º 213º do Código Penal diz coisa alheia de valor elevado e não prejuízo de valor elevado. O legislador refere-se, assim, claramente, ao valor da coisa danificada e não ao valor dos prejuízos nela causados. E é assim porque o que se pretende proteger é precisamente as coisas de valor elevado. Isto é: ao punir-se mais severamente o dano em coisa de valor elevado, independentemente do valor do dano concreto que nela se faça, pretende-se proteger o proprietário de coisas com valor significativo e prevenir de forma mais eficaz que o agente pratique nessa coisa mais valiosa danos. Não se vislumbra, pois, porque é que deverá fazer uma interpretação restritiva da citada disposição legal (nem seria bem uma interpretação restritiva mas sim "substitutiva": onde se lê coisa de valor elevado, passava-se a ler prejuízo de valor elevado). Também não se vê como é que a interpretação restritiva "é, desde logo, imposta pela cláusula do diminuto valor, prescrita n.º n.º 4 do art.º 204º do Código Penal e aplicável por força do n.º 3". O que se passa é que se, nos termos do n.º 4 do art.º 204º do Código Penal, a coisa for de diminuto valor não há lugar à qualificação. Porque é que isso há-de implicar uma interpretação dita restritiva da referida disposição legal? Resulta do que refere o Prof. Costa Andrade que a interpretação restritiva e correctiva se impõe porque "nem todas as condutas em abstracto subsumíveis no teor literal do preceito suportam o juízo de ilicitude qualificada subjacente à incriminação ..." Talvez assim seja, isto é, poderá haver situações em que choca punir nos termos do art.º 213º do Código Penal. Mas deverá ser por isso que devemos "substituir" coisa de valor elevado por prejuízo de valor elevado, ou não será antes de reclamar alteração do preceito legal no sentido que parece mais adequado? Não terá querido o legislador precisamente proteger o património de quem gastou soma considerável para o adquirir? Parece-nos que sim e, consequentemente, entende-se que o arguido incorreu na previsão da al. a) do n.º 1 do art.º 213º do Código Penal, conjugado com a al. a) do art.º 202º do Código Penal E que dizer quanto à agravação do art.º 214º, n.º 1, al. b), do Código Penal? Também aqui se discorda do entendimento do arguido (agora não acompanhado, pelo menos expressamente, pelo Prof. Costa Andrade) quando refere que não se verifica a agravação porque os ofendidos não foram atingidos directa ou indirectamente por qualquer violência. Importa desde logo esclarecer que, ao contrário do que parece ter sido entendido na acusação, a questão não se põe em saber se o arguido pôs ou não em perigo a integridade física de quem quer que fosse, mas sim se houve ou não violência contra alguém. Ora, parece ser evidente que "atirar" um veículo automóvel contra uma roulote de "comes e bebes" sabendo que no seu interior estão duas pessoas é um acto danoso praticado com violência contra essas pessoas, apesar de não ter havido qualquer contacto físico com elas e apesar de não ter resultado qualquer ofensa na sua integridade física (neste sentido: Ac. do S.T.J. de 23/6/99, C.J. II, 231 e Ac. da Rel. do Porto de 29/4/98, C.J. II, 251). O que se pretende proteger é a tranquilidade das pessoas, isto é: o agente não só danifica coisa alheia, como o faz de forma violenta contra determinada pessoa, pelo menos, assustando-a. Temos, portanto que a conduta do arguido é punida com pena de prisão de 3 a 15 anos(...).» Aqui chegados, há que enfrentar as questões postas pelos recursos, começando, por uma questão de precedência lógica pela subsunção jurídica dos factos. O recorrente, ora acompanhado pelo MP no Supremo Tribunal, assentando numa citação do Prof. Costa Andrade, insiste em que o crime que cometeu é o de dano simples, e não o qualificado, já que o artigo 213.º há-de, no dizer daquele autor, ser objecto de ponderada e decidida interpretação restritiva e correctiva. Isto porque, ante o teor literal do preceito, e para além do resultado da cláusula do diminuto valor prescrita no n.º 4 do artigo 204.º, haverá casos em que o valor da coisa ultrapasse o valor diminuto «mas não atinge o valor elevado que define o limiar do dano qualificado na direcção da propriedade alheia». Avança depois com exemplos de condutas que, dificilmente, deixariam de poder incluir-se na previsão qualificada do artigo 213.º, mas que, por entendimento unânime, devem ser apenas punidas como dano simples, do artigo 212.º, «por não atingirem o limiar do ilícito criminal típico do artigo 213.º» É o caso do riscar com um canivete um banco de um jardim público ou furar com uma ponta do cigarro o estofo de uma carruagem do combóio, partir o espelho ou o caixote do lixo de uma estação rodoviária, rasgar a lista telefónica de uma cabina, ou pintar graffiti na estação de caminhos de ferro, retirar uma peça ou parte facilmente substituível, destruir uma lâmpada da iluminação pública cuja falta não prejudica a iluminação. Assim, por estas razões tem sido entendido que o preceito qualificativo do dano (art.º 213.º) só deve aplicar-se quando o facto atinge a função da coisa. E cita Samson, segundo o qual o facto só é típico "quando prejudica a função específica a que a coisa está votada", ou, citando Kienapfel, segundo o qual não é típica a "lesão indiferente ao fim", ou ainda SS Stree, para quem tal tipicidade só exista quando "quando a acção põe em causa o fim específico que a coisa serve". Pois bem. No caso, a situação de facto que se nos apresenta não é de molde a equipará-la aos exemplos apresentados supra em que o dano não compromete o fim específico da coisa (e, por isso, quando o não compromete, deve ser incluído apenas na previsão do dano simples). É que, com efeito, como consequência directa do embate, a roulote oscilou e deslocou-se cerca distância não apurada do local em que inicialmente se encontrava. Vários frascos de produtos alimentares, copos e pratos que se encontravam no interior da roulote caíram para o chão, partindo-se. Igualmente a frigideira onde estavam a ser cozinhadas bifanas, caiu. A referida roulote, incluindo o equipamento que a compõe e o alvará necessário o seu funcionamento, tem o valor de € 51.000 e, em consequência da conduta do arguido, a respectiva carroçaria ficou amolgada na parte lateral direita, tendo ocorrido um prejuízo de € 2.350. Por virtude do comportamento do arguido SG teve alguns dias sem poder utilizar a roulote. Logo, o objecto danificado - roulote de farturas - foi claramente atingido no fim específico a que se destinava, não apenas por ter sido objecto de amolgadela na parte lateral direita, como, sobretudo, por, em função dele, ter estado alguns dias sem poder ser utilizado, naturalmente, o tempo necessário à sua reparação. Portanto, por esta via, não haveria a almejada desqualificação. O certo, porém, é que tendo a roulote e seus componentes o valor total de € 51.000, o valor dos danos não ultrapassou o de € 2.350. Se a roulote tivesse sido totalmente destruída pelo arguido, o valor a ter em conta seria elevado e a qualificação operada pelo tribunal a quo não mereceria censura. Porém, como escreve o Prof. Costa Andrade, (2) - (3) «Ao contrário do que o teor literal parece linearmente sugerir, nem todo o dano que atinge coisa alheia de valor elevado ou consideravelmente elevado determina a punibilidade nos termos do artigo 213.º O problema não se coloca, naturalmente, para a modalidade de conduta destruir (no todo). Mas já se coloca nas demais modalidades da conduta e, particularmente, na de danificação. Brevitatis causa, nem toda a lesão de uma coisa de valor elevado ou consideravelmente elevado configura um caso de Dano qualificado: um simples risco na pintura de um valioso automóvel não configura necessariamente um Dano qualificado. Significa isto que o referente do valor elevado ou consideravelmente elevado há-de ser não a coisa-objecto-da-acção mas o prejuízo causado pela acção (...). É a interpretação correctiva de que se mostra carecida a lei portuguesa». Na verdade, a aceitar-se o valor do dano pelo da coisa danificada, sem cuidar do prejuízo concreto, chegaríamos à conclusão inaceitável de que, a mera danificação parcial de uma coisa de grande valor seria punida, sempre, em função daquele valor, quer o dano fosse grande quer fosse pequeno, e receberia mesmo a moldura penal abstracta da sua danificação total, o que seria um absurdo. A ser assim, como se aceita que seja, tendo em conta o valor provado do prejuízo causado na roulote (€ 2.350), não pode aceitar-se como boa a qualificação do crime pelo n.º 1, a), do artigo 213.º do Código Penal. Isto posto, não se atinge, sem mais, que o dano praticado pelo recorrente se fique pela previsão do crime de dano simples (art.º 212.º). Com efeito, está ainda em causa a acusação de violência contra pessoas (art.º 214.º, do Código Penal). O conceito de violência, tradicionalmente ligado à simples violência física sobre o corpo da vítima, é hoje um conceito mais abrangente, já que tanto a doutrina como a jurisprudência se inclinam para o englobamento da violência psíquica (4). Para o caso que nos ocupa, há que assinalar que a violência, tal como noutros casos, como por exemplo no crime de coacção, também pode consistir numa intervenção física sobre coisas, que tanto podem ser do ofendido como de terceiro. (5) Ponto é que, sendo exercida directamente sobre coisas, atinja por via indirecta a(s) pessoa (s). (6) A Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, assentando no comentário do Prof. Costa Andrade, a que se fez referência, conclui que "para preenchimento da norma incriminadora do dano qualificado pela violência esta tem de constituir um dos meios de cometimento do crime de dano e não, apenas, «mero facto típico acompanhante da acção do agente»", o que não aconteceria no caso. Sem necessidade de discutir esta interpretação da lei substantiva e a conclusão proposta nela assente, ressalvado o devido respeito, não se tem por ajustada a concreta aplicação que dela se pretende fazer no caso sub judice. Com efeito, convém relembrar a génese da investida do arguido contra a roulotte de farturas: não foi qualquer estorvo ou empecilho que esta para si representasse, que motivou o arguido à acção, antes, essencialmente, uma reacção violenta contra o dono que, com razão, lhe negou vender a cobiçada bifana ante o prévio anúncio do arguido de que não a pagava. No fundo, embora segundo os factos apurados, quisesse causar danos à roulotte (7), o arguido reagiu contra a (s) pessoa (s) do(s) dono(s), a quem, causando aqueles danos, concomitantemente, também conseguiu atingir fisicamente. Mais que um dano com violência contra pessoas, do que se tratou, no caso, foi, verdadeiramente, de violência contra pessoas com dano em coisas. Tanto assim que, segundo se sabe, no momento do embate, intencionalmente provocado pelo arguido, estavam dentro da roulote o SG e a AM e no exterior, junto à mesma, CACL e JFHV que, ao se aperceberem de que a viatura conduzida pelo arguido tinha arrancado, desviaram-se. E sabe-se ainda que como consequência directa do embate, a roulote oscilou e deslocou-se cerca distância não apurada do local em que inicialmente se encontrava. Vários frascos de produtos alimentares, copos e pratos que se encontravam no interior da roulote caíram para o chão, partindo-se. Igualmente a frigideira onde estavam a ser cozinhadas bifanas, caiu. Sabe-se enfim que o arguido bem sabia que no momento do embate se encontravam no interior da roulote SG e AM. O arguido actuou com o objectivo de danificar a roulote, como efectivamente danificou e actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei. Este quadro é elucidativo no que respeita à existência deste elemento típico violência contra pessoas. Salvo sempre o devido respeito, contrariamente ao que sustentam o arguido, e, agora, também, o MP, tal elemento típico tem de haver-se por verificado. Com efeito - e deixando de lado a violência de que também foram objecto os clientes que estavam no exterior, que tiveram de se desviar do trajecto do veículo atacante para não serem atingidos - encontrando-se os donos no interior da roulote, é apodíctico, pelo menos, que juntamente com ela foram deslocados contra a vontade, por acção do acto violento do arguido. Não falando, já, também, na indiscutível exposição ao perigo a que foram sujeitos pelo arguido, ante o aparato da queda da fervente frigideira onde, de momento, como consta dos factos provados, estavam a ser cozinhadas bifanas. Portanto, não apenas violência contra pessoas, como, além, disso, real perigo para a integridade física, ou, mesmo, para vida delas ou de algumas delas. E por aqui se pode ver que não há o risco de tal violência contra pessoas ser haver assumido como absorvente do «mero facto acompanhante da actuação do agente (8)», pois, se por um lado, fez parte dela, constituindo mesmo um elemento indeclinável dessa actuação, já que no caso, a danificação da coisa, na específica forma de violento arrastamento que revestiu, implicava - forçosamente - o atingir fisicamente as pessoas que estavam dentro, quanto mais não fosse, pelo arrastamento forçado a que, concomitantemente com a roulotte, seriam (foram) sujeitas, por outro, aquela figura de «mero acompanhante do atentado a bens patrimoniais», a que se reporta o Prof. Costa Andrade, (9) só teria lugar a valoração singular se, com a solução ora atingida tivesse sido posta de lado a possibilidade de punição autónoma do crime de ofensa à integridade física, o que não acontece. Com efeito, para aquele Mestre, «se a morte é valorada como evento agravante - e no caso do roubo (art.º 210.º), também as ofensas graves à integridade física - a lesão da integridade física terá de merecer aqui [na punição do crime de dano agravado], uma valoração autónoma para efeitos de concurso efectivo». Mas a solução a que se chega em nada afronta este entendimento que só não tem tratamento específico na discussão e decisão, por falta de queixa dos ofendidos, mormente os que estavam fora da roulote, o que - aí sim - implicaria falta de legitimidade do MP para sustentar essa eventual vertente da causa. Portanto, torna-se claro que não sendo embora caso de qualificação pelo artigo 213.º, a conduta do arguido é qualificada pelo artigo 214.º, n.º 1, do Código Penal, cabendo-lhe, por isso, a moldura abstracta que resulta da conjugação dos artigos 212.º e 214.º, n.º 1, a), do mesmo diploma, ou seja, 1 a 8 anos de prisão. E quanto elemento subjectivo, ou seja, o reclamado «conhecimento de todos os elementos que determinam a qualificação do facto», não parece ser difícil descortiná-lo na matéria de facto transcrita, pese, embora, o ter-se dado como não provado que «o arguido não ignorava que punha em perigo da integridade física de SG, AM, CL e JV». Pois, se o arguido, no descrito circunstancialismo, agiu voluntária e conscientemente, investindo com o seu automóvel contra a roulotte, arrastando-a violentamente, com as pessoas lá dentro, sabendo que elas lá se encontravam, que mais será preciso para concluir que ele «tinha conhecimento de todos os elementos que determinam a qualificação do facto», nomeadamente a violência do arrastamento a que estavam a ser sujeitas as pessoas que momentaneamente a habitavam? Logo, tratando-se de crime público, está assegurada a legitimidade do Ministério Público (art.º 48.º do Código de Processo Penal), ao invés do que agora defende a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta. No que toca à medida da pena, como se viu, defende o MP na 1.ª instância que a mesma deve ser fixada em 5 anos de prisão. Neste ponto, embora lidando com uma moldura abstracta de 3 a 15 anos de prisão, o tribunal recorrido discorreu do seguinte modo: «(...) O arguido assumiu em julgamento a prática dos factos, da forma que provada se considerou, sendo certo que a sua versão dos factos foi corroborada pelos depoimentos das testemunhas. Revela ter enquadramento familiar, tendo dois filhos menores e trabalha, embora não de forma certa. A vítima já foi ressarcida, embora não totalmente. O arguido parece revelar algum propensão para a prática de actos com alguma violência, pois que já foi anteriormente condenado por crime de ofensa à integridade física. No entanto, mostrou arrependimento dos factos por si praticados, atribuindo-os ao excesso de álcool. O arguido já sofreu várias condenações anteriores mas foram todas em pena de multa. Significa isto que o arguido ainda não foi alvo de qualquer condenação em pena de prisão. Ponderando tudo o referido, entende-se adequado fixar a pena no mínimo de 3 anos de prisão de modo a possibilitar a suspensão da sua execução nos termos do art.º 50º do Código Penal Com efeito, por um lado, face à atitude do arguido no julgamento de confissão dos factos na parte relevante e de demonstração de arrependimento e as demais circunstâncias do caso, julga-se adequado fixar a pena de 3 anos de prisão e, por outro lado, tendo o arguido enquadramento familiar, com dois filhos menores e nunca tendo sido condenado em pena de prisão, entende-se dever suspender a execução da pena de prisão, acreditando-se que, de uma vez por todas, o arguido adopte comportamento diferente. Julga-se, no entanto, adequado, condicionar essa suspensão da execução da pena ao pagamento de montante indemnizatório ao lesado (cfr. art.º 51º, n.º 1, al. a), do Código Penal).» Estas considerações não merecem censura e justificam, mesmo perante a nova moldura abstracta de 1 a 8 anos de prisão, a opção pela pena de 3 anos encontrada pelo colectivo de 1.ª instância. Até porque, nesta sede, o Supremo Tribunal de Justiça não deve ser buscado como meio de refinamento de decisões de outros tribunais. Como tem sido entendido neste Supremo Tribunal (10), "no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a sua desproporção da quantificação efectuada" (11). Ou, dizendo por outras palavras, "como remédios jurídicos, os recursos (salvo o caso do recurso de revisão que tem autonomia própria) não podem ser utilizados com o único objectivo de uma "melhor justiça". (...) A pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulta de violação do direito material". (12) Como se viu, o tribunal recorrido explicou, fundamentando, a razão da sua decisão, que, de resto, em obediência aos critérios de dosimetria do artigo 71.º do Código Penal, se mostra talhada, conforme o exigido pelo citado dispositivo, nos limites admitidos pela culpa do agente, conjugada com as finalidades da pena, proporcionada à gravidade da ilicitude dos factos, e proferida com sentido de justiça. Culpa que, como escreve a Doutora Anabela Miranda Rodrigues, (13) não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo desta, que, em caso algum, pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas. E se, como escreve a mesma autora (14), o limite mínimo da pena é «o absolutamente imprescindível para se realizar a finalidade de prevenção geral», sob a forma de defesa da ordem jurídica, (15) não se vê que a pena aplicada - porventura benevolente, mas nem por isso, como se viu, afectada por qualquer ilegalidade - o não contemple suficientemente, tendo em conta o, apesar de tudo, relevante comportamento confessório do arguido e o arrependimento patenteado, a darem nota de algum inconformismo da sua personalidade perante o acto grave que protagonizou. E se a decisão de substituir a pena de prisão por pena suspensa foi tomada « por um lado, face à atitude do arguido no julgamento de confissão dos factos na parte relevante e de demonstração de arrependimento e as demais circunstâncias do caso, julga-se adequado fixar a pena de 3 anos de prisão e, por outro lado, tendo o arguido enquadramento familiar, com dois filhos menores e nunca tendo sido condenado em pena de prisão, entende-se dever suspender a execução da pena de prisão, acreditando-se que, de uma vez por todas, o arguido adopte comportamento diferente. Julga-se, no entanto, adequado, condicionar essa suspensão da execução da pena ao pagamento de montante indemnizatório ao lesado (cfr. art.º 51º, n.º 1, al. a), do CÓDIGO PENAL).» não se vê que resulte daqui violado o regime legal respectivo (art.ºs 50.º. e 51.º, do Código Penal). O mais que se pode dizer é que o prognóstico favorável a que o tribunal chegou quanto ao futuro comportamento do arguido assenta em apoio fáctico pouco almofadado, mormente no tocante aos já muitos antecedentes criminais do arguido. Mas não é caso para entender que falham por inteiro os pressupostos de aplicação da referida pena de substituição, ou que tal prognóstico - afinal sempre objecto de risco, embora calculado - seja errado nos seus pressupostos. Decerto chegou-se aos confins do possível, sendo que esta decisão ficará doravante a constituir a última fronteira - digamos, a última oportunidade - que é conferida ao arguido, de optar entre a socialização em liberdade e as grades da prisão. Em suma: 1. O crime cometido pelo arguido é o do artigo 212.º, qualificado nos termos do n.º 1, a), do artigo 214.º do Código Penal, nesta medida se revogando o acórdão recorrido, ou seja, no ponto em que teve por verificada a qualificação do artigo 213.º, n.º 1, a) - valor elevado. 2. Improcede a excepção de ilegitimidade do Ministério Público suscitada no Supremo Tribunal. 3. A pena aplicada de 3 anos de prisão foi encontrada dentro dos parâmetros legais e o seu qantum não levanta ao Supremo Tribunal de Justiça objecções que justifiquem a sua alteração. 4. Não merece censura a decisão de suspender a pena de prisão aplicada, pelo período mencionado, com a condição de pagamento imposta, havendo, porém, o arguido de ficar ciente que, esta será, porventura, a última oportunidade de que dispõe para, em liberdade, dar novo rumo à sua vida em sociedade. 5. Improcedem assim as conclusões do recurso do MP e, salvo quanto ao focado aspecto de qualificação pelo valor do dano, também as do arguido. 3. Termos em que, no parcial provimento do recurso do arguido, alteram a qualificação jurídica dos factos nos termos supra expostos. Mas, negando-o no mais, e também ao recurso do MP, confirmam o mais decidido. O arguido recorrente, pelo decaimento pagará taxa de justiça que se fixa em 5 Uc. Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Janeiro de 2003 Pereira Madeira (relator) Simas Santos Abranches Martins Oliveira Guimarães __________________________ 1 Cfr. Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano IX, Tomo III, págs. 186. 2 Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, págs. 245, § 15 3 Também citado nas alegações escritas. 4 Afirmações que deixam longe entendimentos diversos, outrora indiscutíveis noutro quadro normativo, mas hoje sem actualidade, tal como o de Luís Osório, nas suas Notas ao Código Penal Português, vol. IV, 2.ª ed. Coimbra Editora, 1925, págs. 411, citado nas alegações escritas, quando afirmava peremptório, que com a expressão «violência contra as pessoas» [referida no artigo 478.º do Código de 1886] «compreende somente a violência física e não a moral, ou ameaça; (...) a lei só abrange a violência contra as pessoas. A violência contra as coisas não é de considerar violência (...). » 5 Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense cit., , Tomo I, págs. 355, § 12 6 Conceição Ferreira da Cunha, ibidem, Tomo II, págs. 167, §25. 7 Mas não está provado que só quisesse causar esses danos. 8 Ao invés da violência exercida contra os mencionados CACL e JFHV, que estavam no exterior e que foram objecto de tentativa de ofensa à respectiva integridade física que não aconteceu porque estes se desviaram a tempo. Esta sim, mero facto acompanhante daquela actuação. 9 Comentário, cit., págs. 257-8, § 10 10 Cfr. por todos, Ac. STJ de 9/11/2000, in Sumários STJ disponível em http://www.cidadevirtual.pt/stj/jurisp/bo14crime.html, e muitos outros que se lhe seguiram. 11 Cfr. a solução que, para o mesmo problema, aponta Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 197, § 255 12 Cfr. Cunha Rodrigues, Recursos, in Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 387. 13 Cfr., Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, n.º 2, pág. 182 14 Ibidem. 15 Que não se confunde com o limiar mínimo da moldura penal abstracta. |