Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2ª SECÇÃO | ||
Relator: | ÁLVARO RODRIGUES | ||
Descritores: | INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE CAUSA DE PEDIR PROCRIAÇÃO INCONSTITUCIONALIDADE TRÂNSITO EM JULGADO | ||
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Data do Acordão: | 09/09/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMILIA | ||
Doutrina: | - Antunes Varela, Código Civil anotado, Vol.5º, pg. 303. - M. Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pg. 322. - Paulo Cunha, Direito de Família, II, pg. 256 . | ||
Legislação Nacional: | CODIGO CIVIL : - ARTIGO 1871.º. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP):- ARTºS 26º, Nº 1, 36º, Nº 1 E 18º, Nº 2 E 282.º, N.º4. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL PROFERIDO EM PLENÁRIO, N.º 23/06, DE 10 DE JANEIRO DE 2006. ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 21-06-83, UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA, TIRADO EM PLENÁRIO, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT; - DE 19.01.1993 E DE 20.07.2003, PROFERIDOS, RESPECTIVAMENTE, NOS PROCESSOS Nº 082375 E Nº 04A1974,DISPONÍVEIS PARA CONSULTA EM WWW.DGSI.PT; - DE 11-12-2008, Pº 08B3692, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT. ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO, PUBLICADO NA REV. LEGISLAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA ( ANO 8º, PG 142). | ||
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Sumário : | I-A identidade da causa de pedir que caracteriza a repetição da causa e que está na base da oponibilidade do caso julgado, não se confunde nem se relaciona directamente com a identidade das palavras, argumentos ou razões tecidas nos petitórios respectivos ou a configuração do seu desenvolvimento no seio de cada um destes articulados. II-A causa de pedir é, como se sabe, «o acto ou facto jurídico (contrato, testamento, facto ilícito, etc.) donde o autor pretende ter derivado o direito a tutelar: o acto ou facto jurídico que ele aduz como título aquisitivo desse direito» (M. Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pg. 322). III- Ora como ensinava este emérito processualista, a causa de pedir nas acções de investigação de paternidade «é o facto natural da filiação ( relação factual, coisa diversa da relação jurídica correspondente ) e mais o facto que o autor invoque de entre os previstos no artº 1871º,nº1 do Código Civil (escrito do pai, posse de estado, abuso de confiança ou de autoridade, sedução ou convivência more uxorio). Isto porque a procedência da acção depende destes dois elementos». IV- Presentemente, a nossa Jurisprudência continua a entender que a causa petendi nas acções de investigação de paternidade é o facto jurídico da procriação, como, de resto, nem poderia deixar de ser ( por todos, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência deste Supremo Tribunal, de 21-06-83, tirado em plenário, disponível em www.dgsi.pt, onde se considerou: «concorda-se com o Recorrente em que nas acções de investigação de paternidade, a causa de pedir é o facto jurídico da procriação. Há muito que isso está assente»). Com efeito, a acção de investigação da paternidade tem como escopo a atribuição jurídica da paternidade do filho ao progenitor biológico deste, e como tal, o facto de onde emerge tal direito só pode ser a procriação ou geração. V- Porém, não se pode olvidar que o legislador da Reforma de 1977 ( Dec-Lei 496/77, de 25 de Novembro) veio a estabelecer que os legalmente denominados pressupostos da investigação da paternidade (epígrafe da primitiva versão do artº 1860º em cujo texto os mesmos constavam), passassem a funcionar, na epígrafe e no novo texto do artº 1871º, como presunções da relação biológica de paternidade do investigado, constituindo verdadeiras presunções legais, com valor probatório especialmente fixado na lei, como ensinou o Prof. Antunes Varela (Código Civil anotado, Vol.5º, pg. 303). VI-O conceituado Professor coimbrão considerava o valor probatório como especialmente fixado na lei, na medida em que, ao contrário do que acontece no regime geral das presunções juris tantum que são ilídíveis por prova em contrário ( artº 350º, nº 2 do C.Civil), no caso das presunções do citado artº 1871º, o nº 2 do aludido preceito exige dúvidas sérias para a ilisão da presunção, o que, na opinião do citado Mestre, leva a crer que o legislador tenha querido « colocar a fasquia probatória das presunções formuladas no nº 1 um pouco acima da altura própria das meras presunções de facto» ( ibidem). VII- Talvez por isso, algum sector doutrinal considerou a alegação dos factos tendentes ao preenchimento dos conceitos jurídicos contidos em tais presunções, tais como os conceitos de posse de estado, convivência notória, comunhão de vida em condições análogas às dos cônjuges, etc., como causas de pedir autónomas da procriação, uma vez que tais presunções, se não abaladas pelas duvidas sérias sobre a paternidade do investigado, permitem o estabelecimento judicial do vínculo da filiação. Não cremos que se trate, em rigor, de novas causas de pedir autónomas ou distintas da procriação, porque a causa de pedir nas acções de investigação de paternidade é sempre integrada pela alegação factual da procriação biológica, como fenómeno gerador que é, embora possa haver a alegação de outros factos reforçantes e conducentes à demonstração judicial da causa petendi, sobretudo se o autor pretende beneficiar de qualquer das presunções legais indicadas no falado preceito legal. VIII- É que, como bem salientou Antunes Varela, o fenómeno natural da procriação continua a ser o alvo fundamental da investigação judicial, mas sendo a procriação um facto, a convicção acerca da existência desse facto (facto de onde emerge o direito do autor a ser reconhecido judicialmente como filho do investigado, portanto, a causa de pedir), «só pode em regra alegar-se, na ordem decisória, com base em juízos de experiência ( ilações ou presunções) ou até em conceitos jurídicos» ( A. Varela, op.cit, pg. 303). IX- A circunstância de o Tribunal Constitucional ter proferido, em Plenário, o Acórdão 23/06, de 10 de Janeiro de 2006, no qual foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável por força do artº 1873º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito a investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artºs 26º, nº 1, 36º, nº 1 e 18º, nº 2 da Constituição, em nada tal afecta a decisão judicial já transitada em julgado que declarou a caducidade de tal direito da Autora, na acção anterior referida no pressente Acórdão. X- Com efeito, é a própria Constituição da República que, no nº 4 do seu artº 282º, ressalva os casos julgados, de modo a assegurar a intangibilidade de tais decisões pelos efeitos da declaração de inconstitucionalidade das normas, com força obrigatória geral. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: RELATÓRIO AA propôs, no 2º Juízo Cível da Comarca de Vila do Conde, a presente acção declarativa com processo comum ordinário, contra BB, ambos com os sinais dos autos, pedindo que se declare que o Réu é pai da Autora e se altere o seu assento de nascimento, em conformidade. Alegou, em suma, que propôs, em 1982, acção com o mesmo pedido contra o mesmo Réu (Proc. 3/82, que correu termos no Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim); que nessa acção o Réu foi absolvido do pedido, por se verificar a excepção de caducidade prevista nos nºs 1 e 4 do artigo 1817º do Código Civil; que esse prazo foi entretanto declarado inconstitucional pelo Acórdão n.9 23/2006 do Tribunal Constitucional; que à Autora assiste o direito de propor nova acção; que se mantém tudo quanto alegou na anterior acção e que a relação de paternidade entre o Réu e a Autora é também demonstrável por exame ao ADN. Citado para o efeito, veio o Réu contestar, defendendo-se por impugnação (negando os factos alegados pela Autora como fundamento da paternidade do Réu) e por excepção (invocando que existe caso julgado e que isso impede a apreciação do mérito da causa, devendo o Réu ser absolvido da instância). À excepção deduzida pelo Réu, veio a Autora responder, sustentando inexistir caso julgado, em virtude de não ser idêntica a causa de pedir, porquanto na acção agora proposta se acrescenta aos fundamentos anteriormente invocados a circunstância de a paternidade do Réu poder ser comprovada através de exame ao ADN. Após a legal tramitação, procedeu-se à prolação do despacho saneador, onde foi conhecida a excepção de caso julgado deduzida pelo Réu e julgada a mesma procedente com a consequente absolvição de instância. Inconformada, a Autora apelou daquela decisão para o Tribunal da Relação do Porto que, julgando a Apelação procedente, revogou a decisão recorrida, por entender inexistir caso julgado, ordenando o prosseguimento dos autos com vista à produção da prova e demais termos processuais. Foi a vez de o Réu, inconformado com a referida decisão da 2ª Instância, interpor recurso de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as alegações apresentadas, com as seguintes: CONCLUSÕES 1) É jurisprudência uniforme e reiterada dos nossos Tribunais Superiores - utilizando os termos vertidos na sentença de 4/2/2009- que nas acções de investigação de paternidade, a causa de pedir é o facto jurídico da procriação, que se estrutura no acto gerador da gravidez: relações sexuais de cópula completa entre a mãe da A. e o investigado, no período legal da concepção. 2) Na primeira acção de investigação de paternidade intentada pela A, contra o Réu, aqui recorrente, foi claramente articulado -como flui dos autos – aquele facto da procriação, o vínculo biológico da filiação, bem caracterizado na súmula factual seguinte: namoro da mãe da A. com o Réu desde 1946 até 1950; relações sexuais entre ambos, repetidamente, que se prolongaram após aquela ter ficado grávida; a A. nasceu dessa gravidez; a mãe da a. sempre foi rapariga séria e só namorou com o Réu durante o período de namoro que com ele manteve. Donde: - relações sexuais + exclusividade. – Donde: - filiação biológica. 3) Quer na primeira acção, quer na presente, para além da facticidade aludida na precedente conclusão, múltiplos factos integradores das presunções das alíneas a) e b) do n° l do art° 1671° do C. Civil -"presunções legais de relação biológica de paternidade",na expressão de P. de Lima e A. Varela, Cod. C. Anot. atrás referido, foram articulados pela Autora. 4) Os factos-base das presunções mencionadas funcionam, como dimana do teor do referido n° l do art° 1871°,como meios de prova indirecta do vínculo biológico, tendo "ipso facto" a natureza de factos instrumentais. 5) Como bem demonstram os autos, na segunda acção invocam-se exactamente os factos articulados na primeira. 6) A simples alegação de que o Réu é pai biológico da A. traduz-se num mero juízo conclusivo, a inferir da factualidade articulada atrás mencionada na conclusão segunda, nada acrescentando, no aspecto substancial, a essa factualidade, não podendo, obviamente, configurar, de per si, uma nova causa de pedir. 7) Nem a pretensão da A. se socorrer na presente acção de qualquer meio de prova directa poderá dar origem à substanciação de uma causa de pedir nova e autónoma, já que não devem confundir-se os factos da causa de pedir com as provas ou meios que os sustentam ou demonstram, consoante ressalta da sentença proferida em primeira instância, citando Alberto dos Reis. 8) É ,assim, manifesta a identidade da causa de pedir em ambas as acções; mesmo que aquela se configure como complexa ou composta, na terminologia dos Acs. desse Supremo Tribunal de 8 de Fevereiro e 10 de Março de 1966 (BMJ 134 e 135,pgs. 501 e 458,respectivamente) abrangendo, para além da procriação, os factos-base das presunções das alíneas a) e b) do n° l do art° 1871 do C.Civil, estes teriam sempre um carácter instrumental, sendo o facto da procriação biológica -facto presumido – o facto essencial e constitutivo do direito alegado (UT ac. STJ de l6/Julho/198l (BMJ,309-349). 9) O acórdão recorrido, ao considerar que, na presente acção, existe uma nova causa de pedir fundada na filiação biológica, incorre, como resulta do atrás referido, designadamente nas conclusões sexta e sétima, em errada determinação e qualificação jurídica dos factos que constituem a causa de pedir a qual, como se referiu, é idêntica em ambas as acções. 10) A presente acção repete a anterior, dada a verificação de tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir. 11) Na primeira das acções foi sempre o Réu ,aqui recorrente, absolvido da pedido, sendo que, na decisão proferida em 1ª instância e subsequente Ac.RLP foi julgada procedente a excepção de caducidade da acção, como se consta das respectivas certidões juntas nos presentes autos com a p.i. e no Ac. do STJ, junto, por certidão, a estes autos com a contestação do Réu,. foi decretada expressamente a "improcedência da acção",alicerçada na motivação expendida nesse acórdão no sentido de que «os requisitos estabelecidos nos n°,2,3 e 4 do art° 1817° do CC não são prazos de caducidade ,mas requisitos mistos, com uma componente temporal, cujo anos de prova recai sobre o investigante e que a Autora não conseguiu provar» 12) O decretamento por esse Supremo Tribunal da improcedência da anterior acção de Autora foi ,assim, a resposta final dada à sua pretensão ,sendo a esta resposta final que se estende a força e autoridade de CASO JULGADO que, como bem decidiu o M° Juiz de 1a instância, se verifica na presente acção. 13) O acórdão recorrido, ao declarar a improcedência da excepção de caso julgado ,incorreu em violação, para além do mais, do disposto nos arts.497°, l e 498°,nº 4 do Cod. Proc. Civil. Foram apresentadas contra alegações pela Recorrida/Autora, pugnando pela manutenção da decisão recorrida. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal. FUNDAMENTOS Na 1ª Instância havia sido dada, como provada, a seguinte factualidade: a) Em 03.06.1982, a Autora intentou contra o ora Réu uma acção, pedindo que este fosse declarado seu pai e invocando, em suma que a sua mãe, no período legal de concepção, só com o Réu manteve relações sexuais, e que o Réu chegou a assumir socialmente a paternidade (cf. a certidão da petição inicial, a fls. 10 e segs.); b) Por sentença de 08.08.1985, o Réu foi absolvido do pedido, por se verificar a excepção de caducidade prevista no n.º 1 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável ex vi do artigo 1873º do mesmo Código (cf. a certidão da sentença, a fls. 18 e segs.); c) A Autora recorreu dessa decisão, sucessivamente, para o Tribunal da Relação do Porto e para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo este, por acórdão proferido em 26.01.1988 e transitado em julgado em 11.02.1988, confirmado integralmente a decisão da primeira instância (cf. a certidão do acórdão, a fls. 49 e segs.). A Relação substituiu tal factualidade, pelos factos seguintes: a) – Em 3-6-1982, a A. Intentou contra o ora Réu uma acção nos termos da petição inicial constante da certidão de fls. 9 a 17 destes autos, aqui dada como reproduzida. b) - Por sentença de 8-08-1985, o Réu foi absolvido do pedido, nos termos da certidão de fls. 9 e 18 a 27 destes autos, aqui dada por reproduzida. Antes do mais, cumpre equacionar, com o devido rigor, a única questão decidenda que se debate no presente recurso de Revista: Consiste a mesma em saber se a decisão judicialmente proferida e já transitada em julgado, na Acção de Investigação de Paternidade anteriormente intentada entre as mesmas partes, e que decidiu que o direito da investigante à referida investigação já havia caducado, é oponível como excepção de caso julgado ( exceptio rei judicatae) na presente acção. Sustenta o Réu, ora Recorrente, a tese afirmativa, defendendo a identidade da causa de pedir em ambas as acções (para além da identidade dos outros elementos), como se colhe das conclusões 2ª a 8ª das suas alegações no presente recurso, do mesmo passo em que a Autora/Recorrida pugna em defesa de tese oposta. Tem razão o ora Recorrente, adiante-se desde já! Efectivamente, como resulta do simples cotejo das petições iniciais, a da presente acção e a da acção anterior (junta aos presentes autos, por cópia), em ambas as acções a Autora alegou factualidade idêntica, com algumas diferenças de redacção, não substanciais, que não permitem a conclusão de que são diversas as causas de pedir em cada uma das acções interpostas, como passaremos a demonstrar. É importante ter-se presente que a identidade da causa de pedir que caracteriza a repetição da causa, que está na base da oponibilidade do caso julgado, não se confunde nem se relaciona directamente com a identidade das palavras, argumentos ou razões tecidas nos petitórios respectivos ou a configuração do seu desenvolvimento no seio de cada um destes articulados. A causa de pedir é, como se sabe, «o acto ou facto jurídico (contrato, testamento, facto ilícito, etc.) donde o autor pretende ter derivado o direito a tutelar: o acto ou facto jurídico que ele aduz como título aquisitivo desse direito» (M. Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pg. 322). Ora como ensinava este emérito processualista, a causa de pedir nas acções de investigação de paternidade «é o facto natural da filiação ( relação factual, coisa diversa da relação jurídica correspondente ) e mais o facto que o autor invoque de entre os previstos no artº 1871º,nº1 do Código Civil (escrito do pai, posse de estado, abuso de confiança ou de autoridade, sedução ou convivência more uxorio). Isto porque a procedência da acção depende destes dois elementos». Este autor, com a lucidez e o sentido das realidades práticas da vida que timbraram o seu ensino, advertia que a causa de pedir nestas acções é complexa, citando um aresto da Relação do Porto publicado na Rev. Legislação e Jurisprudência ( ano 8º, pg 142) e ainda o Prof. Paulo Cunha in Direito de Família, II, pg.256 ( ibi, ibidem). Presentemente, a nossa Jurisprudência continua a entender que a causa petendi nas acções de investigação de paternidade é o facto jurídico da procriação, como, de resto, nem poderia deixar de ser ( por todos, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência deste Supremo Tribunal, de 21-06-83, tirado em plenário, disponível em www.dgsi.pt, onde se considerou: «concorda-se com o Recorrente em que nas acções de investigação de paternidade, a causa de pedir é o facto jurídico da procriação. Há muito que isso está assente»). Com efeito, a acção de investigação da paternidade tem como escopo a atribuição jurídica da paternidade do filho ao progenitor biológico deste, e como tal, o facto de onde emerge tal direito só pode ser a procriação ou geração. Porém, não se pode olvidar que o legislador da Reforma de 1977 ( Dec-Lei 496/77, de 25 de Novembro) veio a estabelecer que os legalmente denominados pressupostos da investigação da paternidade (epígrafe da primitiva versão do artº 1860º em cujo texto os mesmos constavam), passassem a funcionar, na epígrafe e no novo texto do artº 1871º, como presunções da relação biológica de paternidade do investigado, constituindo verdadeiras presunções legais, com valor probatório especialmente fixado na lei, como ensinou o Prof. Antunes Varela (Código Civil anotado, Vol.5º, pg. 303). O conceituado Professor coimbrão considerava o valor probatório como especialmente fixado na lei, na medida em que, ao contrário do que acontece no regime geral das presunções juris tantum que são ilídíveis por prova em contrário ( artº 350º, nº 2 do C.Civil), no caso das presunções do citado artº 1871º, o nº 2 do aludido preceito exige dúvidas sérias para a ilisão da presunção, o que, na opinião do citado Mestre, leva a crer que o legislador tenha querido « colocar a fasquia probatória das presunções formuladas no nº 1 um pouco acima da altura própria das meras presunções de facto» ( ibidem). Talvez por isso, algum sector doutrinal considerou a alegação dos factos tendentes ao preenchimento dos conceitos jurídicos contidos em tais presunções, tais como os conceitos de posse de estado, convivência notória, comunhão de vida em condições análogas às dos cônjuges, etc., como causas de pedir autónomas da procriação, uma vez que tais presunções, se não abaladas pelas duvidas sérias sobre a paternidade do investigado, permitem o estabelecimento judicial do vínculo da filiação. Não cremos que se trate, em rigor, de novas causas de pedir autónomas ou distintas da procriação, porque a causa de pedir nas acções de investigação de paternidade é sempre integrada pela alegação factual da procriação biológica, como fenómeno gerador que é, embora possa haver a alegação de outros factos reforçantes e conducentes à demonstração judicial da causa petendi, sobretudo se o autor pretende beneficiar de qualquer das presunções legais indicadas no falado preceito legal. É que, como bem salientou Antunes Varela, o fenómeno natural da procriação continua a ser o alvo fundamental da investigação judicial, mas sendo a procriação um facto, a convicção acerca da existência desse facto (facto de onde emerge o direito do autor a ser reconhecido judicialmente como filho do investigado, portanto, a causa de pedir), «só pode em regra alegar-se, na ordem decisória, com base em juízos de experiência ( ilações ou presunções) ou até em conceitos jurídicos» ( A. Varela, op.cit, pg. 303). Porém, no caso sub judicio, ressalta à evidência que em ambas as acções intentadas com vista ao reconhecimento pelo Réu da sua paternidade em relação à Autora, foram alegados núcleos factuais substancialmente idênticos. Note-se que a 1ª Instância já havia constatado tal identidade, ao considerar expressis verbis que: «É jurisprudência uniforme e reiterada dos nossos tribunais superiores que a causa de pedir nas acções de investigação da paternidade é o facto jurídico da procriação - cf., neste sentido, designadamente, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19.01.1993 e de 20.07.2003, proferidos, respectivamente, no processo nº 082375 e nº 04A1974 (disponíveis para consulta em www.dgsi.pt). Ora, tanto na presente acção como na que a Autora propôs em 1982, o que está em causa é determinar a paternidade do Réu, sendo a causa de pedir a procriação, isto é, o facto de a Autora ter sido gerada através de cópula fecundante entre a sua mãe e o Réu. Daqui decorre existir igual causa de pedir nas duas acções propostas pela Autora». Também o Tribunal da Relação reconheceu a alegação da factualidade referente à procriação na primitiva acção, ao afirmar no Acórdão recorrido que «é verdade que na dita petição inicial a Autora alegou factos relativos à filiação biológica», embora tenha qualificado tais factos como meramente instrumentais relativamente às verdadeiras causas de pedir - tratamento de filho pelo pai e reputação como filho pelo público e existência de carta escrita na qual o pretenso pai declara inequivocamente a sua paternidade. Nas conclusões 2º e 3ª das contra-alegações do presente recurso, afirma a Autora que «na 1ª acção, a filiação biológica não foi alegada como causa de pedir e na 2ª foi-o e não apenas no artº 46º, como também nos artigos 12º a 18º da p.i». Só por manifesto equívoco, ressalvado o respeito devido, pode a Autora afirmar que não alegou a filiação biológica na 1ª acção como causa de pedir. Para que não subsistam dúvidas sobre tal alegação, basta transcrever os artºs 4º a 10º daquela peça processual da acção anterior ( a tal 1ª acção), que está junta aos presentes autos a fls. 10 a 17 ( 1º volume deste processo) e que são do seguinte teor: «4º Na verdade, a mãe da A. iniciou o namoro com o Réu em 1942, namoro que perdurou até cerca de um ano para além do nascimento da A. 5º Residindo então sua mãe no largo da Senra, o R com ela vinha ter todos os Domingos e por vezes à semana. 6º Passeavam-se em público, por festas e bailes. 7º Ente ambos, R. e mãe da A, nasceu e cimentou-se forte amizade e intimidade, até que ala acedeu a cerca de 2 anos após o início do namoro, a ter com ele cópula de sexo completa. 8º Ficando a mãe da A. desonrada, pela fractura do hímen, pois era menina virgem e não havia tido ainda contacto com qualquer outro homem. 9º Das relações sexuais completas repetidamente havidas entre a mãe da A. e o Réu, veio aquela a ficar grávida em Março de 1949, no temo de cuja gravidez nasceu a A.» Tais factos, designadamente os 6º a 9º (os restantes ilustram o percurso antecedente do acto gerador) de nenhuma forma se podem considerar factos instrumentais numa acção de investigação de paternidade, antes se devendo considerar factos materiais integrantes da causa de pedir da referida acção, pelas razões acima expostas. Para além dessa factualidade, naquela acção alegou também a Autora a posse de estado, a existência de uma carta do investigado e outros aspectos que pudessem levar ao sucesso da acção, como se pode ver dos artºs 11º e seguintes da petição inicial respectiva. Também na presente acção, vem alegada a procriação (artºs 12º a 18º), a posse de estado ( artºs 19ºa 29º), o escrito do pretenso pai ( artº 33º a 39ª), etc. Razão assiste, pois, ao Recorrente, ao defender nas suas alegações, condensadas essencialmente nas já apontadas conclusões 2ª a 8ª, que se verifica identidade da causa de pedir, como já o havia decidido a 1ª Instância, recordando o ensinamento sempre actual do eminente processualista que foi José Alberto dos Reis, que doutamente ensinou, citando Baudry e Barde: « Não se deve confundir a causa de pedir com os meios de que a parte se serve para a sustentar ou demonstrar. Os meios são as provas e os argumentos por via das quais se procura estabelecer a existência de um facto jurídico que serve de fundamento à acção». Deste modo, verificando-se identidade de sujeitos (as partes são rigorosamente as mesmas), do pedido ( em ambas as acções o pedido é o da declaração de que o Réu é o pai da Autora) e da causa de pedir (pelas razões amplamente supra referidas), é incontroverso que procede a excepção de caso julgado deduzida pelo Réu, ora Recorrente, nos termos do artº 498º, nº1 do CPC e que, tal como havia decidido a 1ª Instância, conduz à absolvição do mesmo da instância, por força do disposto no artº 288º, nº1, alínea e) do CPC. Na verdade, a circunstância de o Tribunal Constitucional ter proferido, em Plenário, o Acórdão 23/06, de 10 de Janeiro de 2006, no qual foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável por força do artº 1873º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito a investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artºs 26º, nº 1, 36º, nº 1 e 18º, nº 2 da Constituição, em nada tal afecta a decisão judicial já transitada em julgado que declarou a caducidade de tal direito da Autora, na acção anterior referida no pressente Acórdão. Com efeito, é a própria Constituição da República que, no nº 4 do seu artº 282º, ressalva os casos julgados, de modo a assegurar a intangibilidade de tais decisões pelos efeitos da declaração de inconstitucionalidade das normas, com força obrigatória geral. Não tem assim viabilidade a asserção da Recorrente, contida na conclusão 6ª das suas contra-alegações, no sentido de que as disposições dos artºs 493º, 494º e 497º e segs. do CPC, se devem ter também por inconstitucionais, na medida em que se proponham aplicar-se às acções de investigação de paternidade ou maternidade. Não é possível declarar-se inconstitucional o que é previsto e tutelado pela própria Constituição, como é bom de ver. Como foi doutamente afirmado pela Exmª Juiz da 1ª Instância, citando Gomes Canotilho e Vital Moreira, na sentença proferida nestes autos, esta disposição constitucional constitui um afloramento da intangibilidade do caso julgado ou da estabilidade das decisões dos tribunais, e desempenha um papel relevante na garantia da segurança jurídica, ínsita no princípio do Estado de direito, plasmado no artº 2º da Constituição. Neste sentido, aliás, também se pronunciou este Supremo Tribunal, no seu Acórdão de 11-12-2008 ( Relator, o Exmº Juiz Conselheiro Alberto Sobrinho), assim sumariado: «As decisões do Tribunal Constitucional que, de forma abstracta, declarem a inconstitucionalidade ou ilegalidade de uma norma têm força obrigatória geral, implicando a nulidade dessa norma e levando à repristinação das normas que ela haja, eventualmente, revogado (arts. 282°, n° l da Constituição e 66° LTC) Essas declarações de inconstitucionalidade reportam os seus efeitos à data de entrada em vigor da norma visada, acarretando a sua invalidação com efeitos ex tunc. Mas a retroactividade da declaração de inconstitucionalidade é logo afastada, pela própria Constituição, nas situações de caso julgado. O próprio legislador erigiu como princípio fundamental, com assento na constituição, o respeito pela intangibilidade das decisões definitivamente decididas. As decisões ancoradas na norma que posteriormente veio a ser declarada inconstitucional não são afectadas por essa declaração, mantendo a sua consolidação jurídica. Uma vez definida definitivamente a relação jurídica controvertida tem ela de ser acatada, sem nova discussão, mantendo-se os efeitos produzidos à sombra da respectiva sentença, não obstante a retroactividade da declaração de inconstitucionalidade da norma fundamento da decisão.» (Pº 08B3692, disponível em www.dgsi.pt). Em face do quanto longamente se expôs, é de reconhecer procedência ao recurso interposto. DECISÃO Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em conceder a Revista, revogando-se o Acórdão recorrido, assim se repristinando a sentença da 1ª Instância. Custas pela Recorrida. Processado e revisto pelo Relator. Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 9 de Setembro de de 2010 Álvaro Rodrigues (Relator) Bettencourt de Faria Pereira da Silva |