Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
727/17.8PASNT.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: MARGARIDA BLASCO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
DECISÃO PENAL ABSOLUTÓRIA
PENA PARCELAR
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL
CONSTITUCIONALIDADE
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
HOMICÍDIO
TENTATIVA
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
IN DUBIO PRO REO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
DOCUMENTO AUTENTICADO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
DIREITO DE DEFESA
DOLO
Data do Acordão: 01/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REENVIADO O PROCESSO À RELAÇÃO DE LISBOA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O acórdão do Tribunal da Relação é recorrível no que concerne aos crimes pelos quais os arguidos foram condenados. No que se reporta ao crime de homicídio tentado, ultrapassando a pena parcelar aplicada ao 1.º arguido os 5 anos de prisão, e tendo sido revertida a decisão absolutória da 1.ª instância, não se verifica o requisito da confirmação que vedaria o recurso ao abrigo do art. 400.º, n.º 1, al. f), conjugado com o art. 432.º, n.º 1, al. b), ambos do CPP.
II - Em relação à pena parcelar de 4 anos e 6 meses de prisão aplicada ao 2.º arguido pela prática de um crime de homicídio tentado, e ainda as penas relativas aos crimes de detenção de arma proibida (a ambos os arguidos), justamente tendo em consideração a reversão de decisão absolutória na condenação em prisão efectiva pelo TRL, também é recorrível, por força do TC 595/2018, que julgou inconstitucional o art. 400.º, n.º 1, do CPP, nessas circunstâncias.
III - Questão diversa da i (recorribilidade) são os poderes cognitivos do STJ, ou seja, os limites da sua competência.
IV - O STJ apenas tem competência para o reexame da matéria de direito (artigo 434.º, do CPP). A alusão na primeira parte do art. 434.º, do CPP não significa que o STJ possa sindicar e alterar a matéria de facto. O que lhe é permitido é aferir, oficiosamente, se do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugado com as regras da experiência, se verificam os vícios elencados no art. 410.º, n.º 2, do CPP.
V - Para além disso, o STJ tem, ainda, competência para conhecer questões que oficiosamente deva apreciar, como sejam as nulidades do acórdão do Tribunal da Relação – arts. 379.º, n.º1 e 425.º, n.º 4, do CPP - , ou nulidades que deva conhecer – art. 410.º, n.º 3 - , proibições de prova, ou outras invalidades - inexistência, irregularidade ao abrigo do art. 123.º, n.º 2 - , ou seja, pelo menos daquelas que não foram objecto de dupla conforme e não estejam abarcadas pela irrecorribilidade.
VI - Esta competência do STJ limitada ao reexame da matéria de direito não sofre qualquer ampliação nos casos de reversão de uma decisão absolutória na condenação em prisão efectiva pelo Tribunal da Relação.
VII - A apreciação de Direito, e a válvula de segurança conferida pela possibilidade de conhecer dos erros vício elencados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, e outros vícios de conhecimento oficioso, é considerado como suficiente para acautelar as garantias de defesa do arguido no terceiro grau de jurisdição.
VIII - Sendo certo que, esta restrição de competência do STJ não foi colocada em causa pelo citado acórdão do TC (595/2018). Este acórdão apenas julgou inconstitucional a impossibilidade de acesso ao STJ quando o arguido se vê confrontado com uma condenação no Tribunal da Relação, após ter sido absolvido pela 1.ª Instância, mas não a norma que cinge o poder cognitivo do STJ ao reexame de Direito. Não obstante, o grau de sindicância de tais vícios por parte do STJ tem de ser exigente, já que é a única forma de apreciar justiça da condenação em pena de prisão de que o arguido é alvo por decisão de Tribunal da 2.ª Instância.
IX - A interpretação do recurso, destarte das suas conclusões, enquanto acto jurídico - artigo 295.º CC -, permite desdobrá-lo em duas dimensões. Num plano fáctico: ou seja, uma pretensão no sentido de que o STJ reexamine as provas existentes nos autos, reavalie e analise as provas de que se socorreram os tribunais da 1.ª instância e o Tribunal da Relação e, a partir desse exame, conclua se existiu, ou não, erro de julgamento. Ora, este pedido vai para além da competência do STJ. Nomeadamente, exarceba a sua competência, emitir pronúncia sobre a existência de violação do princípio do in dubio pro reo por reporte à matéria de facto. Ora, o STJ está impedido de avaliar a prova dos autos, concatená-la, e decidir se da sua conjugação resulta uma dúvida insuperável, que deveria ter conduzido a que se dessem como não provados factos nos quais a condenação se baseou.
X - Se nessa vertente o STJ não poderá conhecer do recurso, existe uma outra dimensão, que emana do mesmo, sobre o qual existe dever de pronúncia, (ainda para mais) numa situação de reversão de absolvição, em condenação em prisão efectiva. Os recorrentes apelam à existência do erro notório de apreciação da prova plasmado no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, erro – vício, que defendem emergir do texto da decisão recorrida, bem como invocam a inconstitucionalidade da interpretação da valoração da prova por reconhecimento. Se é certo, como já vimos, que não é admissível o recurso com fundamento nos erros - vício do art. 410.º, n.º 2, do CPP, quando deriva da análise de recurso, em que os recorrentes almejam um reexame de facto, nada proíbe que os recorrentes pugnem por um reexame de Direito por via de tais vícios, assente na análise do texto da decisão recorrida, por si só, ou em conjugação com as regras da experiência. Tanto para mais, quando o recurso também assenta em outros fundamentos, como seja, a validade de interpretação de norma probatória. E, é patente que também os recorrentes pretendem uma sindicância do STJ, sob este prisma - erro vício adveniente de notório erro na apreciação da prova -, como resulta evidente, quando aludem ao “texto da decisão recorrida”. Aliás, o conhecimento de todos os vícios elencados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, é oficioso para o STJ – acórdão do STJ n.º 7/95, em que se fixou jurisprudência no seguinte sentido: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
XI - O que ainda é mais premente para garantir o processo equitativo, fair trail, as garantias de defesa, o exercício efectivo do direito ao recurso, o acesso ao Direito e aos Tribunais, quando o recorrente apenas pode apelar ao STJ para reverter uma condenação, que o foi, em pena de prisão efectiva – arts. 20.º, n.ºs 1 e 4, 32.º, n.º 1, ambos da CRP, art. 6.º, n.º 1, da CEDH, art. 14.º, n.º 1, do PIDCP, art. 47.º, da CDFUE, e art. 10.º, da DUDH. Razões de justiça que, aliás, estiveram subjacentes à prolação do referido acórdão do STJ n.º 7/95, para fixar jurisprudência no sentido do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP.
XII - Também a invocação de interpretação inconstitucional fica sob a alçada do reexame de Direito, estando conexionada com a questão da prova proibida, e interligada com o vício do erro notório na apreciação da prova.
XIII - Não obstante, também é dever do STJ conhecer oficiosamente de nulidades que inquinem o acórdão do Tribunal da Relação, conforme resulta do art. 379.º, conjugado com o art. 425.º, n.º 4, ambos do CPP. Tal como ocorre em relação ao conhecimento oficioso dos erros vício elencados no art. 410.º, n.º 2, do CPP (se tal resultar do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugados com as regras da experiência), esta sindicância do STJ, reafirma-se, revela especial importância para acautelar as garantias de defesa dos arguidos e o exercício efectivo do direito do recurso, quando estão em causa reversões de absolvição em penas de prisão efectivas, permitindo detectar quaisquer vícios que possam inquinar a decisão condenatória. Vícios esses que se não forem expurgados não permitem concluir pela existência de uma condenação justa ou, dito de outro modo, de uma decisão processualmente válida e, como tal, legítima, ao abrigo dos valores de um estado de Direito democrático e que se rege pelos valores de tutela da dignidade da pessoa humana. Acresce que, solução diversa da obrigação de conhecer tais nulidades “permitiria a subsistência de sentenças nulas, não obstante as mesmas terem sido reexaminadas pelos tribunais superiores.”.
XIV - O acórdão recorrido padece de nulidade relacionada com vícios de fundamentação, nos termos dos arts. 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, al. a) e 425.º, n.º 4, todos do CPP. O dever de fundamentação do Tribunal da Relação, em regra, não é coincidente com o da 1.ª instância, não só, porque o âmbito da competência é divergente, mas também, porque quando sindica a matéria de facto, por regra, abordam questões pontuais. No entanto, essa maior aproximação à fundamentação exigida a um tribunal de 1.ª instância, já existe nos casos em que o Tribunal da Relação condena ex novo, em virtude de um reexame das provas. A condenação, inovatória, apenas ocorreu na 2.ª Instância, por via de um julgamento da matéria de facto pelo Tribunal da Relação dissonante daquele que a 1.ª Instância tinha realizado. Ou seja, ao dar como provados factos anteriormente dados como não provados, e nos quais assentou a condenação dos arguidos pela prática do crime de homicídio tentado e detenção de arma proibida, o Tribunal da Relação julgou e examinou prova, tal qual o fez o Tribunal da 1.ª instância. Na prática, funcionou como uma nova análise do material probatório e formação de uma nova convicção, que divergiu do Tribunal de 1.ª Instância. Nessa medida não pode existir qualquer afrouxamento no dever de fundamentação, quer por imperativo constitucional – art. 205.º, n.º 1, da CRP -, quer por imperativo legal – arts. 97.º, n.º 5 e 374.º, n.º 2, ambos do CPP-. A fundamentação não tem de ser exaustiva. Pode ser sucinta. Mas, da mesma tem de emergir o percurso lógico seguido pelos julgadores da Relação para considerar provados factos que a 1.ª Instância considerou que não o estavam. A fundamentação deve revelar as razões da bondade da decisão, permitindo que ela se imponha, dentro e fora do processo, sendo uma exigência da sua total transparência, já que através dela se faculta aos respectivos destinatários e à comunidade, a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador. Assim, o dever de fundamentação apresenta uma dupla finalidade, extraprocessual e intraprocessual: extraprocessual, uma vez que constitui condição de legitimação externa da decisão, ao permitir a verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; e, intraprocessual, porque permite a reapreciação da decisão por via do sistema de recursos.
XV - Não o tendo feito, padece o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de uma nulidade, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, correspondentemente aplicável ex vi art. 425.º, n.º 4, do mesmo Código. Não podendo ser suprida pelo STJ, por respeitar a matéria de facto subtraída à sua competência, implica que seja proferida nova decisão no tribunal recorrido, tendo em vista o suprimento desta nulidade, devendo, de igual forma, serem retiradas as consequências que se venham a revelar necessárias, nos termos do n.º 3, do art. 403.º, do CPP, relativamente a toda a decisão (art. 379.º, n.º 2 e 3, do CPP, e isto, sem prejuízo da anulação do julgamento que adiante analisaremos, infra 47.).
XVI - Resulta do acórdão do TRL o aditamento de um facto provado, para além daqueles que foram julgados provados/ não provados pelo Tribunal da 1.ª Instância. Assim, a Relação julgou também provado que os arguidos “agiram deliberada, livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram previstas e punidas pela lei penal”. Trata-se de factualidade atinente à culpabilidade. Uma vez que o AFJ n.º 1/2015 decidiu que o dolo culpa não pode ser integrada por via do art. 358.º, do CPP, para lograr o acrescento de tal factualidade no objecto do processo, pelo menos deveria chamar-se à colação o art. 359.º, do CPP. O que não pode suceder é condenar inovatoriamente utilizando um facto novo que nem sequer se deu conhecimento aos arguidos, o que inquina, também, o acórdão do TRL, desta nulidade. Acresce que, na fundamentação de Direito, não se explicita as razões da pena única, aplicada aos arguidos, sendo que a menção genérica a “personalidade” e a “culpa” não se pode considerar como uma pronúncia expressa exigível a um tribunal (ainda mais patente quando estão em causa in casu privações da liberdade- prisão- de vários anos). Por fim, na fundamentação de direito, apesar de se aludir à verificação dos elementos subjectivos dos crimes de homicídio tentado e de detenção de arma proibida, omite-se qualquer referência ao conhecimento e vontade (em qualquer das modalidades de dolo) de matar e deter arma proibida (a única referência é à culpabilidade, mas que, como salientámos, são realidades diversas).
XVII - Enferma o acórdão recorrido do vício de erro notório na apreciação da prova, ínsito no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP. O STJ não pode examinar as provas dos autos e daí retirar a sua convicção no que se reporta aos factos. Tarefa que no nosso sistema processual penal apenas pertence à 1.ª Instância e ao Tribunal da Relação. O erro - vício do art. 410.º, n.º 2, do CPP, tem de emergir do texto da decisão recorrida, por si, ou conjugada com as regras da experiência. É, portanto, um exame que não tem por reporte as provas em si mesmo, mas o objecto da análise, sendo o próprio texto que as examina.
XVIII - Deve, contudo, desde já, afastar-se o princípio do in dubio pro reo a que os recorrentes apelam como causa do erro notório na apreciação da prova. Apenas se pode apreciar da violação desse princípio na vertente jurídica. Ou seja, somente se pode concluir uma afronta ao mesmo, quando do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugado com as regras de experiência, resulta que os julgadores ficaram com dúvidas sobre determinada factualidade, mas, não obstante, deram os factos como provados. Ora, neste aspecto, o Coletivo de Juízes da Relação que alterou a matéria de facto, foi peremptório, no sentido que a prova que indicam, demonstra a facticidade que usaram para condenar os arguidos pela prática do crime de homicídio tentado e de detenção de arma proibida.
XIX - Mas, oficiosamente, o STJ pode aferir se do texto do acórdão é possível descortinar tal erro vício com sustentáculo num outro fundamento que não a violação do in dubio pro reo. O erro notório da apreciação da prova é um juízo subsequente ao exame da prova. Ou seja, partir do texto da decisão recorrida, da sua interpretação e análise emerge um lapso evidente na apreciação da prova. O que é firmado no texto contende com as próprias conclusões que foram retiradas da prova ou a sua análise fere princípio jurídico ou direito material probatório. O erro notório na apreciação da prova é um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, nomeadamente, através da leitura da matéria de facto e da fundamentação da matéria de facto.
XX - A prova por reconhecimento é um meio de prova pré-constituído, que é documentado em auto, e que, enquanto documento autêntico (arts. 99.º e 169.º, do CPP), prova que foram prestadas as declarações que ali constam (as de reconhecimento, sendo que as demais estão sujeitas ao regime do art. 356.º, do CPP). Ou seja, sem prejuízo da prova da falsidade, presume-se que as declarações que constam do auto de reconhecimento correspondem ao declarado pela pessoa que procedeu àquele. Se quisermos, deve considerar-se provado que a pessoa que reconheceu, o fez nos termos por si declarados e que constam do auto. Questão diversa é se essa declaração de reconhecimento corresponde à realidade. É que, a prova por reconhecimento está sujeita à livre apreciação da prova, nos termos do disposto no art. 127.º, do CPP, e deve ser conjugada com a demais prova. A mesma não prova, por si só, o crime. Pelo que, tal como outra prova, poderá ser descredibilizada.
XXI - Foi o que fez o Tribunal da 1.ª Instância, depois de a interligar com as declarações antagónicas no julgamento. O acórdão do Tribunal da Relação ao afirmar que o Tribunal de 1.ª instância violou o disposto no artigo 147.º, do CPP “ao afastar a força probatória dos referidos autos de reconhecimento” e que dessa forma cometeu um “erro notório na apreciação da prova ao julgar não provados os factos constantes dos pontos 1 a 10 dos factos não provados”, aponta no sentido de que a prova por reconhecimento tem uma força probatória tarifada, vinculativa, no sentido incriminatório de um arguido, interpretação essa, que divergindo do artigo 127.º, do CPP é, efectivamente, como salientam os recorrentes, limitadora das garantias de defesa e da presunção de inocência, e como tal, violadora da CRP, concretamente do art. 32.º, n.º 1, da CRP.
XXII - A valoração de declarações de uma testemunha prestadas na fase anterior ao julgamento está submetida ao regime do art. 356.º, do CPP. Assim, não se enquadrando nessas condições de valoração, não poderia ser utilizado o por si anteriormente declarado, para descredibilizar o por si declarado em audiência de julgamento, momento processual em que vigora o pleno contraditório, e onde, em regra, todas as provas devem ser produzidas e examinadas , nos termos do disposto no art. 355.º, do CPP. Ainda dentro dos limites da análise do texto da decisão recorrida, poderá concluir-se que a mesma padece de um erro na parte em que atribuiu à prova por reconhecimento, uma força probatória inequívoca no sentido da incriminação dos arguidos, e na decisão de afastar a credibilidade da testemunha HG em audiência de julgamento, tendo por base as provas que invoca no acórdão e a análise que faz das mesmas.
XXIII - O acórdão do TRL condenou os arguidos pela prática de um crime de homicídio tentado. Contudo, se percorrermos os factos dados como provados não consta nenhuma factualidade atinente ao dolo de matar (em qualquer uma das modalidades). A factualidade é insuficiente para concluir pela verificação do elemento subjectivo da tentativa. Ou seja, desde logo, para se verificar a componente cognitiva da vontade de matar, os arguidos teriam de saber que poderiam atingir zonal letal do corpo do visado. Se assim não for, o elemento intelectual apenas pode sustentar uma tentativa de ofensas corporais (qualificadas). Aliás, a menção “causando-lhe perigo para a vida e integridade física”, ainda mais acentua esse vício. O crime de homicídio pelo qual foram condenados é um crime de dano, e não um crime de perigo.Logo, têm de saber que o disparo é apto a atingir zona letal do corpo, causando a morte do visado. Se o seu conhecimento apenas se situa na aptidão para causar perigo de morte, mas não a morte em si, então não se verifica o elemento cognitivo da tentativa (para percepcionar esta destrinça basta pensar no crime de condução, perigo em que o elemento subjectivo se reconduz ao conhecimento de perigo daquele modo de conduzir; mas, quando o veículo é utilizar para matar, entramos, aí sim, na esfera da tentativa de homicídio).
XXIV - Os factos são totalmente omissos em relação ao elemento volitivo da tentativa de matar. Trata-se de matéria relativa à culpabilidade, que não supre a ausência de factos relativos ao elemento volitivo da tentativa de matar.
XXV - Verificam-se todos os erros- vício elencados nas als. a), b) e c), do n.º 2, do art. 410.º, do CPP. Ora, os erros apontados implicam alteração da matéria de facto e reanálise da prova que não compete ao STJ, que pela abrangência dos vícios implica um novo julgamento.
XXVI - O acórdão recorrido padece ainda das nulidades acima apontados. Sendo certo que os erros vício se sobrepõem as nulidades.
XXVII - Determina-se o reenvio do processo para o Tribunal da Relação de Lisboa, para a realização de novo julgamento, atendendo a todos os vícios assinalados neste acórdão, nos termos e de acordo com o supra aduzido. No acórdão final a proferir deverá considerar-se o expendido no que concerne às nulidades apontadas, sendo que, em relação aos aditamentos factuais, deverá respeitar-se o estatuído nos arts. 358.º, 359.º, do CPP, sem prejuízo da jurisprudência plasmada no AFJ n.º 1/2015.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 727/17.8PASNT.L1. S1

Recurso penal

Acordam, precedendo conferência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I.

1. Por acórdão proferido, em 21.11.2018, pelo Colectivo do Juízo Central ….. – Juiz …. – foi decidido:

i. absolver os arguidos AA e BB dos crimes de homicídio tentado, previsto e punido (p. e p.) pelos artigos 131.º, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal (CP), e de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei 5/2006 de 23/2 de que vinham acusados;

ii. absolver o arguido AA da prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do DL 2/98, de 3.01;

iii. condenar o arguido AA pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 25.º, alínea a) e 21.º, n.º1, ambos do DL n.º 15/93, de 22.01, com referência à Tabela I-C, anexa a este diploma, na pena de dois anos de prisão;

iv. condenar o arguido AA pela prática de um crime de detenção de arma proibida (faca de ponta e mola), p. e p. pelo artigo 86.º, n.ºs 1, alínea d), 2.º, n.º 1 al. m), 3.º, n.º, alínea e),  e  4.º, n.º1 , da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, alterado pela Lei n.º 17/2009, de 6.05, na pena de seis meses de prisão;

v. e, em cúmulo jurídico, na pena única de dois anos e três meses de prisão.

Este acórdão teve um voto vencido, onde se argumenta, em suma, que os autos de reconhecimento deveriam conduzir à conclusão de que os arguidos em co-autoria efectuaram o disparo, pelo que, deveriam ser condenados pelo crime de detenção de arma proibida, mas não pelo homicídio tentado. Mais foi consignado, neste voto, que a matéria de facto que na sua óptica deveria ser dada como assente, justificou o motivo pelo qual não se poderia dar como provada a intenção de matar, referindo, essencialmente, que a direcção para o qual foi disparado o projéctil e a proximidade do tiro, demonstram que a vontade não consistia em tirar a vida, pelo que, apenas deveriam ser condenados pela prática do crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1, do CP, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 3.02.

2. O Ministério Público recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação …. (TR….), na parte em que absolveu os arguidos dos crimes de homicídio tentado e de detenção de arma proibida, baseado em erro no julgamento da matéria de facto (artigo 412.º, n.º 3, alínea a), do CPP), sustentando terem sido desconsideradas provas que impunham decisão diversa: os autos de reconhecimento pessoal, o auto de denúncia, as fotografias apresentadas pelo queixoso para identificar os arguidos como autores dos factos, e outros documentos constantes dos autos, segmentos de declarações prestadas pelos arguidos perante o Juiz de instrução e segmento do depoimento da testemunha CC.

Pede a revogação do acórdão e a condenação do arguido BB pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, em 5 anos e 6 meses de prisão e de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada em 2 anos de prisão, e em cúmulo, na pena única de 6 anos e 3 meses de prisão.

E, a condenação do arguido AA pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, em 4 anos e 6 meses de prisão e de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada em 1 ano de prisão, e em cúmulo, na pena única de 7 anos de prisão.

3. Igualmente, o arguido AA interpôs recurso para o TR…., tendo pugnado no sentido de que a pena de prisão em que foi condenado em 1.ª instância seja reduzida, sustentando que foi condenado como reincidente quando o acórdão reconheceu que não se verificavam os pressupostos da reincidência, peticionando que a pena de prisão seja suspensa na sua execução e sujeita a regime de prova.

4. Em 20.2.2020, foi proferido acórdão pelo TR… que julgou:

- Improcedente o recurso deduzido por AA; e,

- Procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, condenando:

- o arguido BB como co-autor de um crime de homicídio tentado p. e p. pelo artigo 131.º, 22, 23.º e 73.º do CP, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão e como autor de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei 5/2006, de 23/2, em 2 anos de prisão; e, em cúmulo na pena única de 6 anos e 3 meses de prisão;

- o arguido AA como autor de um crime de homicídio na forma tentada, p. e p pelos artigos 131.º, 22.º, 23.º e 73.º do CP, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão e como autor de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei 5/2006, de 23/2 na pena de 1 ano de prisão e, em cúmulo dessas penas parcelares com outras aplicadas nos autos [penas relativas ao tráfico de estupefaciente de menor gravidade e detenção de arma proibida (faca de ponta e mola)], na pena única de 7 anos de prisão.

Este acórdão teve voto de vencido da Relatora, que defendeu que deveria ter improcedido o recurso quanto à matéria de facto, por inexistir qualquer erro objectivo de julgamento ou violação de norma ou princípio geral, considerando justificada a dúvida do tribunal recorrido quanto à autoria, pelos arguidos, dos factos relativos ao crime de homicídio na forma tentada.

5. Os arguidos AA e BB vieram interpor recurso deste acórdão, alegando, em suma, que o tribunal de 1.ª instância não incorreu em nenhum erro de julgamento, ao absolver os recorrentes, e que a condenação pelo TR…. assenta unicamente numa convicção pessoal, que afronta o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência, consubstanciando um erro notório na apreciação da prova, enquadrável no artigo 410.º, n.º 1, al. c), do CPP. Apresentam as seguintes conclusões à sua motivação de recurso, que se transcrevem:

(…)

1ª – A reapreciação da matéria de facto, é excepcional, e destina‐se, aos denominados “erros de julgamento” e não a permitir uma impugnação fáctica daquela que é a eventual apreciação/valoração do recorrente, baseada em critérios subjectivos/parciais.

2ª ‐ Da leitura do texto do acórdão recorrido, facilmente se consta que, o Tribunal a quo estribou a condenação dos recorrentes, pelos crimes que haviam sido absolvidos com base em:

a) Auto de denúncia, o qual atesta, só e apenas, que foi realizada a denúncia nas circunstâncias de tempo e lugar nele exaradas, pela pessoa ali identificada, mas não constitui meio de prova da ocorrência desses mesmos factos, os quais terão de ser provados por outro meio;

b). Quanto ás fotografias de fls. 95 e 96, resultantes de pesquisa realizada no facebook, pelo ofendido, o reconhecimento de seguida realizado em relação a essas pessoas por ele próprio indicadas é merecedor de sérias reservas quanto à sua fiabilidade como prova da identidade dos autores dos factos ilícitos, por falta de um pressuposto essencial à prova por reconhecimento: a indeterminação prévia do agente.”

Quanto ao reconhecimento pessoal feito em inquérito:
a)

c1). quando a decisão recorrida afirma que estamos ante uma prova pré‐constituída, pretendeu impor, uma forma tabelada de apreciação da prova e, de certa forma, revogar o artigo 127º do Código de Processo Penal.

c2). Tal concepção constituiria uma inversão do «ónus» probatório e enfim uma violação da presunção de inocência.

c3). Aliás o auto de reconhecimento como documento que é, para além de conter declarações prestadas por testemunhas em inquérito, está como qualquer outro documento, sujeito ao princípio do contraditório (n. 2 do art.º 328º do CPP).

c4). E, em sede de julgamento, claramente, das declarações da única testemunha, a credibilidade de tal documento, foi completamente posta em causa, tendo a testemunha afirmado que não reconheceu os arguidos.

c5). Assim, não se podendo vaIorar o depoimento desta testemunha prestado em sede de inquérito perante inspectora da Policia Judiciária, também não se pode valorar a que a testemunha disse aquando do reconhecimento pessoal dos arguidos que efectuou perante a Policia Judiciária, quanto ao especifico modo de actuação de cada um deles.

d). Quanto às declarações dos arguidos AA e BB, prestadas no JIC, apenas permitem concluir que os arguidos admitiram ter estado no local e não que tivessem praticado os factos.

3º ‐ A decisão recorrida olvidou o facto de os fundamentos do recurso do M.P., criticamente apreciados se poderem resumir à impugnação da convicção do julgador, não de acordo com um erro de julgamento, mas de acordo com a interpretação subjectiva da prova feita pelo recorrente.

4ª - A prova legalmente admissível, prevista no art.º 355º nºs 1 e 2 do CPP, analisada criticamente e devidamente conjugada com as regras da experiência comum, facilmente se constata, ao contrário do decidido de forma arbitrária na decisão recorrida, que a primeira instância não incorreu em nenhum erro de julgamento, ao absolver os recorrentes.

5ª ‐ Pois a matéria fáctica dada como provada, na 1ª Instância, foi a que efectivamente, resultou da prova realizada em julgamento, sendo a mesma insuficiente para a condenação.

6ª ‐ Resulta claro do texto da decisão da 1ª instância, a dúvida razoável do Tribunal, dúvida essa que, atento os princípios do in dúbio pro reo e da presunção de inocência deveriam ter conduzido, á absolvição dos recorrentes, por o recurso a não ter minimamente beliscado.

7ª‐  Da correcta e isenta análise crítica da prova produzida em julgamento não resultou prova, com o grau de certeza e segurança necessários para efeitos de condenação, que os recorrentes tivessem sido os autores dos factos.

8ª - A condenação dos recorrentes baseou‐se, exclusivamente, na convicção dos julgadores e não em factos concretos e objectivos.

9ª ‐ Aliás a fundamentação da decisão recorrida, patenteia uma clara violação de dois princípios basilares do nosso ordenamento processual penal: o já mencionado princípio do in dubio pro reo e o da presunção de inocência.

10ª ‐ A não aplicação destes princípios consubstancia um vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no art.º 410º, nº 2, al. c), do CPP.

11ª‐ O Tribunal a quo tal como a 1ª Instância deveria ter chegado á conclusão que, inexistindo qualquer erro de julgamento, da análise da prova legalmente permitida, conjugada com os princípios anteriormente mencionados;

12ª‐ Pelo que a impugnação da matéria de facto deveria ter sido considerada improcedente, e inexistindo, na decisão da 1ª instância qualquer dos vícios do art.º 410º do CPP, os factos deveriam ter sido considerados definitivamente assentes, logo inatacáveis.

13ª ‐ E deveria ter sido negado provimento ao recurso, e como corolário lógico de tal decisão, mantida a decisão de absolvição.

14ª ‐ A decisão recorrida é ilegal por violação do disposto nos artigos 127º, 355 nºs 1 e 2, 410 nº 2 al. c), princípios do in dúbio pro reo e da presunção de inocência.

15ª ‐ A interpretação do disposto nos art.º 355 nº 1 e 327 nº 2 do CPP, segundo a qual os autos de reconhecimento pessoal valem de per si;

16ª ‐ E não estão sujeitos ao contraditório, podendo, com base neles um arguido ser condenado, ainda que o reconhecedor, em julgamento os negue;

17ª ‐ É materialmente inconstitucional por violação do disposto nos nºs 2 e 5 do artigo 32º da CRP.

(…).

6. O recurso foi admitido por despacho de 25.06.2020.

7. O Ministério Público, junto do TR…., não apresentou resposta.

8. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça, onde a Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer nos termos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, no sentido da improcedência do recurso, referindo, ainda, a jurisprudência constitucional inserta no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018, publicado em DR n.º 238/2018, Série  I, de 11/12.

9. Cumprido o disposto no n.º 2, do artigo 417.º do CPP, vieram os recorrentes manter no essencial o alegado em sede de recurso.

10. Colhidos os vistos, de acordo com o exame preliminar, foram os autos presentes a conferência.

II.

11. O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º, do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida – que devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência – e a nulidades processuais não sanadas, a que se refere o artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP (Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), bem como quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, com a alteração introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).

Tendo em conta a motivação e respectivas conclusões, de recurso, as questões colocadas são as seguintes:
i. O acórdão do TR…. é ilegal por violação do disposto nos artigos 127.º, 355.º, n.ºs 1 e 2, 410.º, nº 2, al. c), todos do CPP, ou seja, dos princípios do in dúbio pro reo e da presunção de inocência (em violação dos dispositivos legais que admitem a alteração da matéria de facto).
ii. A interpretação do disposto nos artigos 355.º, n.º 1 e 327.º, n.º 2, do CPP, segundo a qual os autos de reconhecimento pessoal valem de per si, e não estão sujeitos ao contraditório, é materialmente inconstitucional por violação do disposto nos n.ºs 2 e 5, do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP);
iii. Os arguidos devem ser absolvidos pela prática em co-autoria de um crime de homicídio tentado e de detenção de arma proibida, pelos motivos que sustentaram a decisão prolatada em 1.ª instância.

12. Foram dados como provados no acórdão proferido na 1.ª Instância, os seguintes factos:

(…)

1. Em 14 de Junho de 2017, DD explorava o estabelecimento comercial ….. designado por "E......", sito na Avenida ….., em …….

2. No dia 14 de Junho de 2017, a hora não concretamente apurada mas anterior às 05h45m os arguidos AA e BB e um terceiro indivíduo de identidade não apurada deslocaram-se àquele estabelecimento comercial.

3. O arguido AA conduzia o veículo automóvel de marca ... modelo …, com a matrícula …-SG-…..

4. Nas circunstâncias de tempo e de lugar supra descritas quando os arguidos AA e BB e o indivíduo de identidade não apurada se preparavam para abandonar o bar houve uma ligeira altercação com o pagamento do cartão de consumo, a qual ficou sanada.

5.Após os arguidos AA e BB saíram do estabelecimento e permaneceram nas imediações do mesmo, em conversa com outros indivíduos de identidade não apurada.

6.Entretanto o arguido AA iniciou a marcha do veículo automóvel de marca …. modelo …., com a matrícula ….-SG-…..

7. Pelas 05h45m, do referido dia 14 de Junho de 2017, indivíduos não identificados que se encontravam no interior de um veículo automóvel munidos de uma arma de fogo de características não apuradas mas apta a efectuar disparos de projécteis de calibre 7,65mm …., dispararam a referida arma de fogo na direcção de DD, que se encontrava no interior do veículo automóvel de marca ….., com a matrícula …-BA-…, sentado no banco reservado ao condutor.

8. Uma munição de 7,65mm ….. perfurou a janela do lado do banco reservado ao passageiro da frente do veículo automóvel de marca …., com a matrícula …-BA-…., DD baixou-se e a munição foi alojar-se no cinzeiro da consola central do referido veículo automóvel.

9. Após, efectuarem o disparo os indivíduos cuja identidade não se logrou apurar colocaram-se em fuga no veículo automóvel.

10.O arguido AA é titular de carta de condução emitida em …….

11. O local onde o arguido AA conduziu o veículo é via pública e por ele transitam veículos.

12. No dia 08 de Novembro de 2017, pelas 07h30m no interior da residência sita na Av. …..…… o arguido AA tinha na sua posse:

. 482,300 gramas de canabis (resina);

. 97,600 gramas de camabis (resina); e

. uma navalha de abertura automática com dispositivo de fixação da lâmina, com o comprimento total de 22,5 cm, dos quais 9,5 de lâmina.

13.O arguido AA agiu de modo livre, deliberado e consciente.

14.O arguido AA conhecia a característica estupefaciente da resina de canábis que detinha, tendo-o feito de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a respectiva detenção e cedência a terceiros, o fazia incorrer em crime.

15.O arguido AA destinava parte da resina de canabis que lhe foi apreendida ao seu consumo e a outra parte à cedência a um indivíduo.

16. O arguido AA sabia que não estava autorizado a deter na sua posse a faca de abertura automática, vulgo "ponta e mola" e mesmo assim não se coibiu de a deter, bem sabendo que a faca de abertura automática que detinha na sua posse, não tem aplicação definida, pode ser utilizada como arma de agressão, não tendo justificado a. sua posse.

16. O arguido AA agiu sempre deliberada, livre e conscientemente, ciente que as suas condutas eram previstas e punidas por lei penal.

17. O certificado de registo criminal do arguido AA averba as seguintes condenações:

a)Na pena de 02 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período e sujeita a regime de prova, por decisão de 07.01.2010, transitada em julgado em 08.02.2010, proferida no âmbito do processo com o n.º 1313/07…. da (extinta) 7.'1 Vara Criminal de ….., por factos de 12.12.2007, pela prática de um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210.°, n.º 1, do Código Penal.

b) Por decisão transitada em julgado em 08.02.2010, a pena suspensa foi declarada extinta, nos termos do artigo 57.°, do Código Penal.

c)Na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período e sujeita a regime de prova, por decisão de 16.03.2010, transitada em julgado em 29.06.2010, proferida no âmbito do processo com o n.º 1001/08…… da (extinto) ….. Juízo Criminal ….., por factos de 28.06.2008, pela prática de um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210.°, n.º 1, do Código Penal.

d)Por decisão de 03.06.2013, a pena suspensa foi revogada e determinado o cumprimento da prisão efectiva.

e) Por decisão de 14.01.2015, a pena de prisão foi declarada extinta pelo cumprimento.

f)Na pena única de 250 dias de multa, substituída por 250 horas de trabalho em favor da comunidade, por decisão transitada em julgado em 21.04.2010, proferida no âmbito do processo com o n.º 188/07….., do (extinto) ……. Juízo Criminal …., do Tribunal Judicial  …., por factos de 18.08.2007, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.°, do DL n.º 2/98 de 3 de Janeiro e um crime de falsificação de documento.

g) Na pena de 36 períodos de prisão por dias livres, por decisão transitada em julgado em 14.02.2013, proferida no âmbito do processo com o n.º 13/13…., do (extinto) ….. Juízo Criminal …., do Tribunal Judicial ….., por factos de 17.01.2013, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.°, do DL n.º 2/98 de 3 de Janeiro.

h) Por decisão de 17.10.2016, a pena de prisão por dias livres foi declarada extinta pelo cumprimento.

i) Na pena de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e sujeita a regime de prova e de 190 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, por decisão de 27.01.2012, transitada em julgado em 16.02.2012, proferida no âmbito do processo com o n.º 230/10….. do (extinto) …... Juízo Criminal ……., por factos de 04.07.2010, pela prática de três crimes de injúria agravada e um crime de ofensa à integridade física qualificada.

j) Por decisão de 09.01.2014, a pena suspensa foi revogada e determinado o cumprimento da prisão efectiva.

k) Por sentença proferida no processo n.º 337/12…., do (extinto) …... Juízo Criminal de ….., transitada em julgado em 11 de Outubro de 2012, por factos praticados em 18 de Setembro de 2012 o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3 do DL n.º 2/98 de 3 de Janeiro, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano.

18. 0 arguido AA antes de ser preso preventivamente à ordem destes autos exerceu a profissão de …… e trabalhou como……., auferindo € 550,00 mensais.

19. Vivia com a companheira e uma filha com 1 ano e 5 meses de idade, que frequenta um infantário e também vivia, pernoitando na casa da sua avó, onde também vive o seu irmão.

20. Tinha como habilitações literárias o 6.º ano de escolaridade e no Estabelecimento Prisional completou o 8.º ano de escolaridade.

21.0 certificado de registo criminal do arguido BB averba as seguintes condenações:

a) Na pena de 15 meses de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período, por decisão de 27.05.2010, transitada em julgado em 16.06.2010, proferida no âmbito do processo com o n.º 463/08…. do (extinto) …….  Juízo Criminal ….., do Tribunal Judicial  ….., por factos de 12.10.2008, pela prática de dois crimes de roubo, na forma tentada.

b) Na pena de 40 dias de multa à taxa diária de 6 euros, por decisão de 31.01.2011, transitada em julgado em 31.01.2011, proferida no âmbito do processo com o n.º 509/09…. do (extinto) …..  Juízo Criminal ……, do Tribunal Judicial ….., por factos de 15.08.2008, pela prática de um crime de ameaça.

Por despacho de 28.10.2011 a pena foi declarada extinta, pelo pagamento.

c) Na pena de 140 dias de multa à taxa diária de 7 euros, por decisão de 04.07.2011, transitada em julgado em 05.01.2012, proferida no âmbito do processo com o n.º 87/11…. do (extinto) …...  Juízo Criminal …., do Tribunal Judicial …., por factos de 12.03.2011, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal.

Por despacho de 09.03.2012 a pena foi declarada extinta, pelo pagamento.

d) Na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e sujeita a regime de prova e 70 dias de multa à taxa diária de e 6,00, por decisão de 06.04.2011, transitada em julgado em 22.09.2011, proferida no âmbito do processo com o n.º 171/10…. do (extinto) …... Juízo Criminal …., do Tribunal Judicial ..…., por factos de 18.05.2010, pela prática de um crime de injúria agravada e um crime de resistência e coacção sobre funcionário.

Por despacho de 10.12.2013 o prazo da suspensão da execução da pena foi prorrogado por mais um ano.

Por despacho de 25.03.2015 a pena foi declarada extinta, nos termos do artigo 57. °, do Código Penal.

e) Na pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e sujeita a regime de prova, por decisão de 21.05.2013, transitada em julgado em 21.10.2013, proferida no âmbito do processo com o n.º 65/13…. do (extinto) …... Juízo da Pequena Instância Criminal ….., por factos de 31.03.2013, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples.

f) Na pena de 6 meses de prisão, por decisão de 11.02.2015, transitada em julgado em 13.03.2015, proferida no âmbito do processo com o n.º 55/13…., do Juízo Local Criminal de ….. — Juiz ….-, do Tribunal Judicial da Comarca .……, por factos de 01.03.2013, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.°, nos 1 e 2, do DL n.º 2/98 de 3 de Janeiro.

g) Na pena de 2 meses e 15 dias de prisão, por decisão de 24.02.2015, transitada em julgado em 26.03.2015, proferida no âmbito do processo com o n.º 865/12….., do Juízo Local Criminal ….. — Juiz ….-, do Tribunal Judicial da Comarca .…., por factos de 30.11.2012, pela prática de um crime de receptação.

h) Na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 5 euros, por decisão de 08.02.2013, transitada em julgado em 19.02.2013, proferida no âmbito do processo com o n.º 26/13…. do (extinto) …...  Juízo Criminal ..…., do Tribunal Judicial ……., por factos de 12.03.2011, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal.

i) Na pena de 9 meses de prisão substituídos por 50 períodos de prisão, a cumprir em 50 fins de semana, por decisão de 19.06.2013, transitada em julgado em 25.09.2013, proferida no âmbito do processo com o n.º 123/13….. do (extinto) …..  Juízo Criminal de …., do Tribunal Judicial ..…., por factos de 31.05.20113, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal.

j) Na pena de 8 meses de prisão substituídos por 48 períodos de prisão, por decisão de 19.03.2013, transitada em julgado em 17.04.2011, proferida no âmbito do processo com o n.º 58/13….. do (extinto) …..  Juízo Criminal ….., do Tribunal Judicial ….., por factos de 02.02.2013, pela prática de um crime de ameaça agravada e injuria agravada.

k) Na pena de 01 ano de prisão, por decisão de 12.02.2014, transitada em julgado em 14.03.2014, proferida no âmbito do processo com o n.º 105/13….., do Juízo Local Criminal …. - Juiz ….. - do Tribunal Judicial da Comarca ….., por factos de 30.11.2012, pela prática de um crime de auxílio material.

1) Na pena de 9 meses de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período, por decisão de 17.10.2018, transitada em julgado em 05.12.2014, proferida no âmbito do processo com o n.º 408/13….. do Juízo Local Criminal ……., por factos de 22.10.2012, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal

m) Na pena única de 21 meses de prisão, por decisão de 23.10.2014, transitada em julgado em 24.11.2014, proferida no âmbito do processo com o n.º 343/10…. do Juízo Central Criminal ….., por factos de 22.10.2009, pela prática de três crimes de ameaça agravada, um crime de ameaça e um crime de detenção de arma proibida, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, por decisão de 28.03.2017, transitada em julgado em 08.05.2017, proferida no âmbito do processo com o n.º 311/17….. do Juízo de Pequena Criminalidade ..…., por factos de 12.03.2017, pela prática de um crime de condução de desobediência         

22. Tem a profissão de ……. e dois filhos de 5 e 8 anos de idade. O filho de 8 anos vive em …. com a mãe e o arguido só está com ele uma vez por ano, nas férias.

23. 0 filho mais novo vive com a mãe a quem entregava a título de alimentos o montante de C 150,00 quando trabalhava e entregava alguns bens consumíveis para a criança, nos momentos de desemprego.

24. Tem uma companheira que neste momento encontra-se desempregada.

(…)

13.  E, como não provados, os seguintes factos:

(…)

1.Os arguidos que se encontravam nas imediações do Bar após avistarem DD a entrar no seu veículo automóvel, introduziram-se no veículo automóvel de marca …. modelo …., com a matrícula …..-SG-…., tendo o arguido AA se sentado no lugar do condutor e o arguido BB sentou-se no lugar reservado ao passageiro da frente, e munidos de uma arma fogo de características não apuradas mas apta a efectuar disparos de projécteis de calibre 7,65mm … combinaram entre eles, disparar a referida arma de fogo na direcção de DD.

2. Após e, na execução do plano urdido, o arguido AA iniciou a marcha do veículo automóvel de marca … modelo …., com a matrícula ….-SG-…., tendo o arguido BB empunhado a referida arma de fogo de características ainda não apuradas, mas apta a efectuar disparos de projécteis de calibre 7,65mm …….

3. Nessa sequência o arguido AA posicionou o veículo automóvel de marca …. modelo …, com a matrícula ….-SG-…. paralelamente do lado direito ao veículo automóvel de marca ….., com a matrícula …..-BA-….., no interior do qual se encontrava DD, sentado no banco reservado ao condutor.

4. De seguida, o arguido AA abriu a janela do lado do condutor e o arguido BB que empunhava a referida arma de fogo de características ainda não apuradas mas apta a efectuar disparos de projécteis de calibre 7,65mm …., introduziu uma munição 7,65mm … na câmara, fez pontaria à janela do banco reservado ao passageiro da frente do veículo automóvel de marca …., com a matrícula …..-BA-…. ao lado do qual se encontrava sentado DD, o que os arguidos sabiam e premiu o gatilho.

5. A referida munição de 7,65mm ….. perfurou a janela do lado do banco reservado ao passageiro da frente do veículo automóvel de marca …., com a matrícula ….-BA-…., DD baixou-se e a munição foi alojar-se no cinzeiro da consola central do referido veículo automóvel.

6. Após, efectuarem o disparo os arguidos AA e BB colocaram-se em fuga no veículo automóvel de marca ….. modelo ….., com a matrícula …-SG-….

7. Os arguidos AA e BB agiram de forma concertada e em conjugação de esforços, de acordo com um plano traçado entre eles bem sabendo que ao apontarem a referida arma de fogo na direcção de DD, e ao disparar na sua direcção, o podiam atingir no corpo, causando-lhe perigo para a vida e integridade física, o que apenas não veio a acontecer por motivos alheios à vontade daqueles.

8. Os arguidos AA e BB sabiam que não lhes era permitido deter a arma de características ainda não apuradas mas apta a efectuar disparos de projécteis de calibre 7,65mm …….

9. Bem sabendo que a referida arma é uma arma de fogo e que podia ser usada como arma letal de agressão, como foi utilizada, para ferir ou para matar

10. O arguido AA bem sabia não ser titular de qualquer licença que o habilitasse a conduzir veículos automóveis na via pública.

(…).

14.  É a seguinte a motivação deste acórdão:

(…)

Na formação da sua convicção o Tribunal tomou em consideração os meios de prova disponíveis, mormente as declarações dos arguidos, depoimentos prestados pelas testemunhas, exames periciais e elementos fornecidos pelos documentos dos autos. Toda a prova produzida foi conjugada e apreciada segundo as regras da experiência comum.

Os arguidos primeiramente não quiseram prestar declarações quanto aos factos em sede de julgamento e, posteriormente, esclareceram a sua condição pessoal e económica. No entanto ouviram-se em sede de julgamento as primeiras declarações que os mesmos prestaram perante Juiz de Instrução criminal, tendo o arguido AA admitido que conduzira o veículo automóvel, sendo titular de carta de condução desde 2013 anos de idade, obtida em …., título que foi analisado em sede de julgamento, conforme cópias de fls. 934 e 935. Admitiu ter comprado a resina de canais apreendida na sua residência para si e para um amigo, cuja parte ir-lhe-ia entregar (o arguido viria a admitir tal no decurso do julgamento). Por sua vez, quanto aos factos ocorridos junto do bar, admitiu nessa noite ter estado nesse bar, terá havido um problema com o cartão de consumo de um amigo, tendo, entretanto, sido resolvido. Posteriormente ouviu dizer que um rapaz efectuou dois disparos e ausentou-se do local. Por sua vez o arguido BB aquando as primeiras declarações prestadas perante Juiz de Instrução criminal referiu ter estado no bar com o arguido AA e uns amigos, tendo um deles perdido o cartão de consumo, tendo, entretanto, aparecido e o problema sido resolvido. Terá ouvido dizer que houve uma confusão com um irmão do organizador da festa e que teria efectuado disparos.

A testemunha DD à data dos factos explorava o bar "E......", na noite dos factos quando chegou ao bar ainda se encontravam no seu interior alguns clientes, entre eles os dois arguidos. No bar verificou-se uma zaragata envolvendo um terceiro individuo, conhecido dos arguidos, por motivos relacionados com um cartão de consumo e que não teria dinheiro para proceder ao pagamento do que consumira, questão que se resolveu através dos próprios arguidos, cujo pagamento efectuaram. Já no exterior, quando estava no interior do seu veículo automóvel, ao telemóvel, escutou o ruído de um veículo automóvel a aproximar-se pelo seu lado direito e, de seguida, o som de um disparo e o do vidro do seu veículo a partir-se. Não viu os indivíduos que se encontravam no interior do outro veículo (os vidros eram escuros), nem tão pouco a sua matrícula. Uma senhora que se encontrava na via pública afirmou ter visto a matrícula do veículo e transmitiu-lha, matrícula essa que esta testemunha também veio a transmitir à autoridade policial. Mais referiu, esta testemunha, que posteriormente, na Polícia Judiciária, procedeu ao reconhecimento dos dois arguidos como sendo clientes que naquela noite estiveram no bar e não como sendo os indivíduos que estariam no interior do veículo de onde foram efectuados os disparos.

A testemunha CC, Inspectora da P.J., foi ao local onde os factos ocorreram e procedeu a exame ao veículo automóvel. Referiu terem ouvido a "vítima" que desde logo referiu que conhecia o condutor da viatura, o qual tinha estado na ….. naquela noite. Assim como transmitiu-lhes a matrícula do veículo de cujo interior teriam sido efectuados os disparos. Posteriormente veio a identificar quer o condutor da viatura quer a pessoa que disparou.

FF, de 34 anos de idade, empregado ……, irmão do arguido AA referiu que aquando da busca realizada à sua residência foi apreendida uma navalha no quarto onde costumava dormir e desde logo chamou o arguido pois só este podia saber de quem era aquele objecto e demais apreendido. Na casa apenas residia esta testemunha, a avó de 93 anos e uma tia de 45 anos de idade e o arguido AA, que tanto pernoitava na casa da sua companheira, como na residência da sua família, dormindo no quarto desta testemunha, pelo que a navalha seria do arguido, bem como o demais apreendido (a resina de canábis).

As testemunhas GG, tendo tido a posição de chefe do arguido BB, quando este exercia a actividade de ……, descreveu-o como boa pessoa e HH, companheira do arguido BB, esclareceu os factos relativos à sua situação pessoal.

- Também se valoraram os seguintes documentos, exames e relatórios periciais: relatório de inspecção judiciária de fls. 60 a 71; auto de apreensão do projéctil, de fls. 72; ficha de registo automóvel de fls. 83; ficha de identificação civil de fls. 84 a 87; folhas de suporte de fls. 95 a 97; auto de busca e apreensão da resina de canábis, de fls. 168 e 169; reportagem fotográfica de fls. 170 a 175, onde é visível a navalha de abertura automática; auto de reconhecimento de pessoas-arguido AA, cf. fls. 183 e 184; auto de reconhecimento de pessoas — arguido BB, cf. fls. 186 e 187; CRC do arguido BB, fls. 893 a 924; CRC do arguido AA, de fls. 872 a 892; informação da segurança social de fls. 236 a 238; auto de exame directo da navalha de abertura automática, de fls. 249 a 251; informação do S.E.F. de fls. 256; informação da P.S.P‐ Departamento de armas e explosivos, a fls. 300; apenso de certidões.

Pericial: relatório de exame pericial de fls. 104 a 110, 142 a 147; relatório de exame pericial de fls. 113 a 124; relatório pericial de fls. 390 a 393; relatório de exame de toxicologia de fls. 400 (resina de canábis); exame pericial de fls. 446.

Em face do teor do depoimento da testemunha DD em sede de julgamento, negando ter reconhecido os dois arguidos como tendo algum envolvimento nos factos que foi "vítima", a questão que se coloca é a de saber qual o valor a atribuir aos autos de reconhecimento dos arguidos, efectuado por esta testemunha, junto aos autos a fls. 183 e 184 e 186 e 187, quando neles refere reconhecer um deles como o autor do disparo e o outro como sendo o condutor da viatura a partir do qual foi efectuado o disparo. Ora, o reconhecimento de pessoas é um dos meios de prova previstos no C.P.P cuja finalidade é apurar o responsável pelo crime, ou seja, identificar a pessoa que foi vista a praticar o facto criminoso, ou que tenha sido vista antes ou depois do facto, em circunstâncias fortemente indiciadoras de ter sido o seu autor.

O cuidado que o legislador pôs na regulamentação do acto de reconhecimento evidencia a importância e falibilidade deste meio de prova, quando não forem tomadas as devidas precauções. Prescreve o artigo 147. ° do C.P. Penal:

«1 - Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação.

2 - Se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual.

3 - Se houver razão para crer que a pessoa chamada a fazer a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento e este não tiver lugar em audiência, deve o mesmo efectuar-se, se possível, sem que aquela pessoa seja vista pelo identificando.

4 - As pessoas que intervierem no processo de reconhecimento previsto no n.º 2 são, se nisso consentirem, fotografadas, sendo as fotografias juntas ao auto.

5 -O reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito da investigação criminal só pode valer como meio de prova quando for seguido de reconhecimento efectuado nos termos do n.º 2.

6 - As fotografias, filmes ou gravações que se refiram apenas a pessoas que não tiverem sido reconhecidas podem ser juntas ao auto, mediante o respectivo consentimento.

7 - O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer.»

A minúcia da norma quanto ao formalismo que deve ser seguido, cominando-se que o reconhecimento não vale como meio de prova caso não obedeça a esse formalismo amplamente descrito e rigorosamente exigido, resulta da compreensão da importância e das dificuldades do reconhecimento. Desse modo, o legislador, prudentemente e de forma cuidadosa, assegura as necessárias condições de genuinidade e seriedade do acto, impondo a observância de regras através das quais minimiza o risco de precipitação ou de falta de rigor.

Acontece que o depoimento prestado pelas testemunhas em sede de inquérito não pode ser valorado em julgamento, a não ser nas situações limitadas previstas no artigo 356.º, do CPP e, no caso em apreço, não se trata de uma delas. Assim, não se podendo valorar o depoimento desta testemunha prestado em sede de inquérito perante inspector da Polícia Judiciária, também não se pode valorar o que a testemunha disse aquando do reconhecimento pessoal dos arguidos que efectuou, perante a Policia Judiciária, quanto ao específico modo de actuação de cada um deles. Assim sendo, apenas se pode ter por certo que os dois arguidos, na noite em questão, estiveram no bar que DD explorava, considerando-se como não provado o seu envolvimento na factualidade ali ocorrida.

Assim, no que respeita aos factos não provados, importa desde já salientar que o Tribunal baseou a sua convicção na ausência de elementos probatórios que o confirmasse com um mínimo de segurança e na prova dos factos contrários, conforme suprarreferido.

(…).

15. Perante estes factos (provados e não provados) e respectiva motivação, diz-se no acórdão agora em recurso (do TR…..), o seguinte:

(…)

A prova produzida, nomeadamente, os autos de reconhecimento e as declarações referidas no texto transcrito, vista à luz das regras da experiência e da lógica, não deixam dúvidas de que os arguidos praticaram os factos constantes dos pontos 1 a 10 que o Tribunal recorrido julgou não provados.

A fls. 10 a 12, 26 e 27 encontra-se um auto de denúncia do qual conta  que o DD comunicou a um agente da polícia que, quando estava no interior do seu veículo, então estacionado, uma pessoa que se fazia transportar no veículo de matrícula ….-SG-…. disparou uma arma de fogo na sua direcção; que a pessoa que disparou e a que conduzia esse veículo tinham estado no interior do bar de que é proprietário, acompanhado de um terceiro indivíduo que tivera um desentendimento com os empregados do bar devido ao cartão de consumo;

- no primeiro interrogatório judicial os dois arguidos admitiram que estiveram no mesmo bar, onde um amigo se tinha desentendido com os empregados devido ao cartão de consumo e que tinham ido para o bar utilizando o veículo de matrícula ……;

- o próprio DD entregou à Polícia Judiciária as fotografias constantes de fls. 95 e 96 como sendo as das pessoas que praticaram os factos descritos no auto de denúncia;

- no auto de reconhecimento pessoal de fls.183 a 185, DD reconhece “para além de toda a dúvida” o arguido AA como sendo “o condutor da viatura a partir da qual foi efectuado um disparo de arma de fogo contra si”;

- no auto de reconhecimento pessoal de fls.186/187 DD reconhece “para além de toda a dúvida” o arguido BB como sendo “o autor do disparo de que foi alvo”;

- nas declarações que prestou ao Juiz de Instrução Criminal no dia 9 de Novembro de 2015 o arguido BB também confirmou que esteve no bar de DD com o co-arguido AA e com o II, que se fez transportar para lá no veículo de modelo …., pertença da sua irmã e de cor prateado/cinza, que o II perdeu o cartão de consumo e gerou um problema com os seguranças, que acabou por se resolver porque o II encontrou o cartão, e que sabia que o veículo do ofendido DD era um …… de cor …...

Toda essa prova retira qualquer credibilidade às declarações que DD na audiência contrárias ao que constava dos autos de reconhecimentos que ele próprio assinou. Não deixa a mínima dúvida de que os arguidos praticaram os factos imputados na acusação e constantes dos pontos 1 a 10 como não provados.

Como diz o Ministério Público, os autos de reconhecimento em que DD reconheceu os arguidos como as pessoas que praticaram esses factos constituem documento público exarado por funcionário no âmbito das suas funções - um documento autêntico, que faz prova dos factos exarados pelo funcionário como tendo sido por si percepcionados (arts. 363.º, 369.º, 370.º e 371.º n.1 do Código Civil).  Em processo penal rege a regra de que os factos materiais constantes de documento autêntico se consideram provados excepto se fundadamente postos em causa (art.169.º do Código de Processo Penal).

O Tribunal recorrido confunde dois diferentes meios de prova, o depoimento em inquérito, que é acto da testemunha e insusceptível de ser valorado em audiência de discussão e julgamento, salvo determinadas circunstâncias (artigo 356.º do CPP) e o reconhecimento que é prova autónoma e distinta do depoimento e que segue um regime próprio. Como é entendida na jurisprudência citada no voto de vencido, o reconhecimento realizado em inquérito e que obedece ao formalismo estatuído no art.147.º do Código de Processo Penal, é prova pré-constituída, que vale por si mesmo e deve ser valorado em julgamento.

O Tribunal violou o disposto no artigo 147.º do CPP ao afastar a força probatória dos referidos autos de reconhecimento e cometeu um erro notório na apreciação da prova ao julgar não provados os factos constantes dos pontos 1 a 10 dos factos não provados.

Assim, nos termos do artigo 431.º, alínea a), do CPP, temos que alterar a decisão recorrida no sentido de se julgar provados os factos que o Tribunal recorrido julgou não provados sob os pontos 1 a 10.

Temos também que julgar provado, também em relação a esses factos, que os arguidos agiram deliberada, livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram previstas e punidas pela lei penal.

3.Se, perante os factos provados os arguidos devem ser condenados pelos crimes de homicídio tentado e de detenção de arma proibida e na pena proposta pelo Ministério Público ou na proposta pelo recorrente AA.

O Ministério Público defende que, perante os factos provados, o arguido BB deve ser condenado, como co-autor de um crime de homicídio tentado previsto e punido pelos artigos 131.º, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal, em 5 anos e 6 meses de prisão, como autor de um crime de detenção de arma proibida previsto e punido pelo artigo 86.º, n.1, al. c) da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, em 2 anos de prisão, e, no cúmulo dessas penas, na pena única de 6 anos e 3 meses de prisão, e o arguido AA deve ser condenado, como co-autor de um crime de homicídio na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal, em 4 anos e 6 meses de prisão, de um crime de detenção de arma proibida previsto e punido pelo artigo 86.º, n.1, al. c) da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, em 1 ano de prisão, e, no cúmulo dessas penas parcelares com as outras aplicadas neste processo, na pena única de 7 anos de prisão.

E tem razão.

Está provado que, deliberada livre e conscientemente e sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e agindo segundo plano traçado e em conjugação de esforços, o arguido AA posicionou o veículo automóvel ……, que conduzia, paralelamente ao veículo automóvel ….. dentro do qual DD estava sentado no banco do condutor e abriu a janela e o arguido BB, empunha uma pistola, aponta-a e dispara projécteis de calibre 7,65 em direcção a DD; o disparo só não causou perigo para a vida a integridade física de DD porque entretanto se baixou.

Portanto, praticaram factos que integram os elementos objectivos e subjectivos do crime de homicídio tentado previsto e punido pelos artigos 131.º, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal.

Está provado também que, deliberada livre e conscientemente e sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei os arguidos detinham uma pistola que sabiam poder ser utilizada para matar ou ferir, sem ter licença para o efeito.

Portanto, praticaram factos que integram os elementos objectivos e subjectivos do crime de detenção de arma proibida.

(…).

16. Em suma: O acórdão do TR…… decidiu que a prova produzida, nomeadamente os autos de reconhecimento, pelos fundamentos que aduz supra 15., vista à luz das regras da experiência e da lógica, não deixam dúvidas de que os arguidos praticaram os factos constantes “dos pontos 1 a 10 que o tribunal recorrido julgou não provados”. Justifica a sua convicção, essencialmente, na força probatória que atribuiu aos reconhecimentos, considerando que o Tribunal de 1.ª instância violou o disposto no artigo 147.º, do CPP “ao afastar a força probatória dos referidos autos de reconhecimento” e, por isso, “cometeu um erro notório na apreciação da prova ao julgar não provados os factos constantes dos pontos 1 a 10 dos factos não provados”. Mais julgou provado que os arguidos “agiram deliberada, livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram previstas e punidas pela lei penal”. E com fundamento na alteração da decisão da matéria de facto, ao abrigo do artigo 431.º, al. a), do CPP, entendeu subsumir a factualidade dada como provada nos crimes de homicídio tentado e detenção de arma proibida pelos quais os arguidos foram condenados, nos termos supra em 4. deste acórdão.

17. Examinadas a motivação e as conclusões dos recorrentes, e o Parecer lavrado pela Sra. Procuradora-Geral Adjunta, junto deste Supremo Tribunal de Justiça, há previamente de dizer o seguinte:

O acórdão do Tribunal da Relação é recorrível no que concerne aos crimes pelos quais os arguidos foram condenados.

No que se reporta ao crime de homicídio tentado, ultrapassando a pena parcelar aplicada ao arguido BB os 5 anos de prisão, e tendo sido revertida a decisão absolutória da 1.ª instância, não se verifica o requisito da confirmação que vedaria o recurso ao abrigo do artigo 400.º, n.º 1, al. f), conjugado com o artigo 432.º, n.º 1, al. b), ambos do CPP.

Em relação à pena parcelar de 4 anos e 6 meses de prisão aplicada ao arguido AA pela prática de um crime de homicídio tentado, e ainda as penas relativas aos crimes de detenção de arma proibida (a ambos os arguidos), justamente tendo em consideração a reversão de decisão absolutória na condenação em prisão efectiva pelo TR…., também é recorrível, por força do Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) 595/2018, que julgou inconstitucional o artigo 400.º, n.º 1, do CPP, nessas circunstâncias.

Questão diversa da i (recorribilidade) são os poderes cognitivos do Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, os limites da sua competência.

O STJ apenas tem competência para o reexame da matéria de direito (artigo 434.º, do CPP).

A alusão na primeira parte do artigo 434.º, do CPP e cita-se: “Sem prejuízo do disposto no n.º s 2 e 3 do artigo 410.º”, não significa que o STJ possa sindicar e alterar a matéria de facto.

O que lhe é permitido é aferir, oficiosamente, se do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugado com as regras da experiência, se verificam os vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP.

Para além disso, o STJ tem, ainda, competência para conhecer questões que oficiosamente deva apreciar, como sejam as nulidades do acórdão do Tribunal da Relação - artigos 379.º, n.º1 e 425.º, n.º 4, do CPP - , ou nulidades que deva conhecer - artigo 410.º, n.º 3 - , proibições de prova, ou outras invalidades - inexistência, irregularidade ao abrigo do artigo 123.º, n.º 2 - , ou seja, pelo menos daquelas que não foram objecto de dupla conforme e não estejam abarcadas pela irrecorribilidade.

Esta competência do STJ limitada ao reexame da matéria de direito não sofre qualquer ampliação nos casos de reversão de uma decisão absolutória na condenação em prisão efectiva pelo Tribunal da Relação.

A apreciação de Direito, e a válvula de segurança conferida pela possibilidade de conhecer dos erros vício elencados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, e outros vícios de conhecimento oficioso, é considerado como suficiente para acautelar as garantias de defesa do arguido no terceiro grau de jurisdição.

Sendo certo que, esta restrição de competência do STJ não foi colocada em causa pelo citado acórdão do TC (595/2018). Este acórdão apenas julgou inconstitucional a impossibilidade de acesso ao STJ quando o arguido se vê confrontado com uma condenação no Tribunal da Relação, após ter sido absolvido pela 1.ª Instância, mas não a norma que cinge o poder cognitivo do STJ ao reexame de Direito. Não obstante, o grau de sindicância de tais vícios por parte do STJ tem de ser exigente, já que é a única forma de apreciar justiça da condenação em pena de prisão de que o arguido é alvo por decisão de Tribunal da 2.ª Instância.

18. Dito isto.

O presente recurso não assenta na discordância quanto às penas parcelares e/ou conjunta. Nada é dito a esse respeito, pelo que, extravasa o âmbito de conhecimento deste STJ apreciar essa temática (sem prejuízo da nulidade por omissão de pronúncia que adiante assinalaremos, infra 32. e 33.).

O que os arguidos pretendem com o recurso por si interposto, é a reversão da condenação em prisão efectiva determinada pelo acórdão do TR….., pela prática, por ambos os recorrentes, do crime de homicídio (na forma tentada) e de detenção de arma proibida.

19. Como se disse supra em 11., os recorrentes sustentam o seu pedido, na discordância do exame da prova realizado pelo TR….., e invocam uma inconstitucionalidade relativa à interpretação da valoração da prova por reconhecimento.

20. Vejamos.

A interpretação do recurso, destarte das suas conclusões, enquanto acto jurídico - artigo 295.º CC -, permite desdobrá-lo em duas dimensões.

Num plano fáctico: ou seja, uma pretensão no sentido de que o STJ reexamine as provas existentes nos autos, reavalie e analise as provas de que se socorreram os tribunais da 1.ª instância e o Tribunal da Relação e, a partir desse exame, conclua se existiu, ou não, erro de julgamento.

Ora, este pedido vai para além da competência do STJ. Nomeadamente, exarceba a sua competência, emitir pronúncia sobre a existência de violação do princípio do in dubio pro reo por reporte à matéria de facto.

Ora, o STJ está impedido de avaliar a prova dos autos, concatená-la, e decidir se da sua conjugação resulta uma dúvida insuperável, que deveria ter conduzido a que se dessem como não provados factos nos quais a condenação se baseou[1].

21. Se nessa vertente o STJ não poderá conhecer do recurso, existe uma outra dimensão, que emana do mesmo, sobre o qual existe dever de pronúncia, (ainda para mais) numa situação de reversão de absolvição, em condenação em prisão efectiva.

Os recorrentes apelam à existência do erro notório de apreciação da prova plasmado no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, erro – vício, que defendem emergir do texto da decisão recorrida, bem como invocam a inconstitucionalidade da interpretação da valoração da prova por reconhecimento.

Se é certo, como já vimos, que não é admissível o recurso com fundamento nos erros - vício do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, quando deriva da análise de recurso, em que os recorrentes almejam um reexame de facto, nada proíbe que os recorrentes pugnem por um reexame de Direito por via de tais vícios, assente na análise do texto da decisão recorrida, por si só, ou em conjugação com as regras da experiência.

Tanto para mais, quando o recurso também assenta em outros fundamentos, como seja, a validade de interpretação de norma probatória.

E, é patente que também os recorrentes pretendem uma sindicância do STJ, sob este prisma - erro vício adveniente de notório erro na apreciação da prova -, como resulta evidente, quando aludem ao “texto da decisão recorrida”.

Aliás, o conhecimento de todos os vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, é oficioso para o STJ – acórdão do STJ n.º 7/95,  em que se fixou jurisprudência no seguinte sentido: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.

O que se torna ainda mais premente para garantir o processo equitativo, fair trail, as garantias de defesa, o exercício efectivo do direito ao recurso, o acesso ao Direito e aos Tribunais, quando o recorrente apenas pode apelar ao STJ para reverter uma condenação, que o foi, em pena de prisão efectiva - artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, 32.º, n.º 1, ambos da CRP, artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), artigo 14.º, n.º 1, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), artigo 47.º, da Carta  dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), e artigo 10.º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).

Razões de justiça que, aliás, estiveram subjacentes à prolação do referido acórdão do STJ n.º 7/95, para fixar jurisprudência no sentido do conhecimento oficioso dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP.

Como ali se escreveu, a decisão do STJ assentou “no princípio constitucional de se não punir criminalmente um inocente”, implicando que “o ordenamento jurídico não aceite, em princípio” (…), “que os tribunais criminais se contentem com uma verdade formal, dissociada da realidade, e tenham de, como imperativo legal e de consciência, procurar, na medida do possível, averiguar a verdade material, por forma que só possa ser aplicada uma punição a quem, efectivamente, tenha cometido um acto ilícito criminalmente punível.” ”E, porque se encontram em jogo a segurança, o bom nome e a liberdade dos cidadãos, o julgamento de direito a que os tribunais criminais têm de proceder não permite que a decisão se baseie em factos falseados, incorrectos ou incompreensíveis, desde que os respectivos vícios se enquadrem nas previsões do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, já que a estas últimas o legislador atribuiu gravidade suficiente para originarem uma declaração de nulidade do julgamento e uma repetição, total ou parcial, deste último”, pelo que, se tem de “concluir, assim, que a própria natureza intrínseca do julgamento de direito em matéria criminal impõe a necessidade de se proceder oficiosamente à análise da matéria de facto (ainda que com observância dos condicionalismos impostos pela lei processual), mesmo que o recurso seja limitado à matéria de direito”.

22. Também a invocação de interpretação inconstitucional fica sob a alçada do reexame de Direito, estando conexionada com a questão da prova proibida, e interligada com o vício do erro notório na apreciação da prova, pelo que tal questão será analisada adiante a este propósito (infra 34., 35., e 36.).

23. Não obstante, também é dever do STJ conhecer oficiosamente de nulidades que inquinem o acórdão do Tribunal da Relação, conforme resulta do artigo 379.º, conjugado com o artigo 425.º, n.º 4, ambos do CPP.

Tal como ocorre em relação ao conhecimento oficioso dos erros vício elencados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP (se tal resultar do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugados com as regras da experiência), esta sindicância do STJ, reafirma-se, revela especial importância para acautelar as garantias de defesa dos arguidos e o exercício efectivo do direito do recurso, quando estão em causa reversões de absolvição em penas de prisão efectivas, permitindo detectar quaisquer vícios que possam inquinar a decisão condenatória. Vícios esses que se não forem expurgados não permitem concluir pela existência de uma condenação justa ou, dito de outro modo, de uma decisão processualmente válida e, como tal, legítima, ao abrigo dos valores de um estado de Direito democrático e que se rege pelos valores de tutela da dignidade da pessoa humana. Acresce que, solução diversa da obrigação de conhecer tais nulidades “permitiria a subsistência de sentenças nulas, não obstante as mesmas terem sido reexaminadas pelos tribunais superiores.[2].

24. Continuemos.

Ora, desde logo, afigura-se que o acórdão recorrido padece de nulidade relacionada com vícios de fundamentação, nos termos dos artigos 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, al. a) e 425.º, n.º 4, todos do CPP.

O dever de fundamentação do Tribunal da Relação, em regra, não é coincidente com o da 1.ª instância, não só, porque o âmbito da competência é divergente, mas também, porque quando sindica a matéria de facto, por regra, abordam questões pontuais.

No entanto, essa maior aproximação à fundamentação exigida a um tribunal de 1.ª instância, já existe nos casos em que o Tribunal da Relação condena ex novo, em virtude de um reexame das provas.

Foi o que sucedeu no caso em concreto.

A condenação, inovatória, apenas ocorreu na 2.ª Instância, por via de um julgamento da matéria de facto pelo Tribunal da Relação dissonante daquele que a 1.ª Instância tinha realizado. Ou seja, ao dar como provados factos anteriormente dados como não provados, e nos quais assentou a condenação dos arguidos pela prática do crime de homicídio tentado e detenção de arma proibida, o Tribunal da Relação julgou e examinou prova, tal qual o fez o Tribunal da 1.ª instância.

Na prática, funcionou como uma nova análise do material probatório e formação de uma nova convicção, que divergiu do Tribunal de 1.ª Instância.

25. Nessa medida não pode existir qualquer afrouxamento no dever de fundamentação, quer por imperativo constitucional - artigo 205.º, n.º 1, da CRP -, quer por imperativo legal - artigos 97.º, n.º 5 e 374.º, n.º 2, ambos do CPP-.

E que, se torna ainda mais premente nos casos de reversão de uma absolvição em condenação.

Nestes casos, ainda se revelam mais acentuadas as necessidades de justificar os motivos para uma posição diversa da 1.ª instância, de modo a que a decisão seja compreensível, permita um efectivo exercício do direito ao recurso e uma sindicância pelo STJ, destarte sobre a (in) existência dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, ou de nulidades insanáveis e proibições de prova.

Entendimento diverso afronta, clamorosamente, e repete-se, o direito a um processo equitativo, contraditório em que sejam verificadas as garantias de defesa do arguido - artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, 32.º, n.º 1, ambos da CRP, artigo 6.º, n.º 1, da CEDH, artigo 14.º, n.º 1, do PIDCP, artigo 47.º da CDFUE, artigo 10.º DUDH.

26. Dispõe o artigo 97.º, n.ºs 2 e 5 do CPP, que no acórdão devem ser “especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.

Por seu turno, preceitua o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, a necessidade de “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”.

A fundamentação não tem de ser exaustiva. Pode ser sucinta.

Mas, da mesma tem de emergir o percurso lógico seguido pelos julgadores da Relação para considerar provados factos que a 1.ª Instância considerou que não o estavam.

A fundamentação deve revelar as razões da bondade da decisão, permitindo que ela se imponha, dentro e fora do processo, sendo uma exigência da sua total transparência, já que através dela se faculta aos respectivos destinatários e à comunidade, a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador.

Assim, o dever de fundamentação apresenta uma dupla finalidade, extraprocessual e intraprocessual: extraprocessual, uma vez que constitui condição de legitimação externa da decisão, ao permitir a verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; e, intraprocessual, porque permite a reapreciação da decisão por via do sistema de recursos.

27. Ora, se percorrermos a fundamentação do acórdão do TR….., deparamo-nos com lacunas no confronto com os factos dados como provados.

No acórdão elencam-se um conjunto de provas, nomeadamente, os autos de reconhecimento, mas, todas elas com o objectivo de justificar porque se entende que os arguidos são o condutor e a pessoa que disparou.

Contudo, é apenas um segmento da factualidade que o Tribunal da Relação deu como provada.

A motivação omite a razão pelo qual considerou provados os demais factos e na qual assentou a sua decisão de condenação pela prática de crime de homicídio tentado e de detenção de arma proibida.

28. Desde logo, omite as razões pelos quais, entende que os arguidos actuaram no âmbito de um plano gizado pelos dois.

Por exemplo, no voto vencido prolatado em 1.ª instância, o Sr. Juiz justificou porque entende existir uma co-autoria explicitando que, ao abrigo do artigo 26.º, do CP, aquela consiste em tomar parte directa na execução do facto, por acordo ou juntamente com outro. E fê-lo, porque divergindo da restante posição do Colectivo em relação à valoração dos autos de reconhecimento, entendeu, e bem, que deveria fundamentar a razão pela qual o arguido que não tinha a arma na sua posse, e não efectuou o disparo, podia ser responsabilizado criminalmente. O que revela, desde logo, a pertinência da explanação de tais motivos.

A este propósito, o Tribunal da Relação, omitiu qualquer exposição sobre os motivos e o exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção.

É que não se pode confundir a prova que permite demonstrar quem conduz e dispara, com a prova da co-autoria.

E, tal não pode resultar apenas do uso de uma arma pela pessoa que estava no mesmo veículo do condutor. Basta pensar que tal pessoa efectue o disparo apenas por sua iniciativa sem conhecimento da pessoa que conduz.

29. Também não se fundamenta a razão pelo qual se deu como provado os factos relativos à tentativa de matar, na sua vertente objectiva e subjectiva (embora, como adiante se salientará, os mesmos sejam insuficientes, infra  39., 40. e 41.).

Foi dado como provado que os arguidos sabiam que disparavam na direcção de DD, este baixou-se, e o projétil alojou-se no cinzeiro da consola central do veículo.

Ora, o Tribunal da Relação não explicita o porquê desta convicção. Na verdade, volta-se a frisar, o acórdão apenas elenca os motivos pelo qual entende que se deve dar como provado que os arguidos foram o condutor e a pessoa que efectuou o disparo.

Mas nada expõe quanto às concretas razões e provas que sustentam que:

a) o disparo foi efectuado na direcção do corpo de DD;

b) este baixou-se;

c) foi só pelo facto de se ter baixado que o projéctil não o atingiu, alojando-se no cinzeiro da consola central do veículo.

Aliás, foi justamente a dinâmica pelo qual terá ocorrido o tiro (posição do veículo, proximidade) e local onde embateu primeiramente o projéctil, que o Sr. Juiz da 1.ª Instância se socorreu, para no seu voto vencido, exarar porque entendia que não se poderia dar como provada a vontade (intenção) de matar. 

Justificou o Sr. Juiz que:

a) tendo sido um disparo na diagonal;

b) quando os veículos estavam lado a lado;

c) o ponto de embate do projéctil foi no tablier frontal acima do porta-luvas (sendo que a munição, por ricochete se foi alojar no fole da manete de velocidades), não permitiam dar como provada a intenção de matar.

De onde emerge a crucialidade de tal fundamentação.

Ainda mais acentuada, como já salientámos, quando se trata de uma reversão de uma absolvição em condenação e existem diversas posições dos julgadores (para tal basta ler os acórdãos e os votos de vencido).

30. Aliás, em relação à tentativa de matar, os factos acabam por se revelar insuficientes, já que tem de se apurar se o tiro foi disparado para zona letal.

E isso, mais uma vez, aponta para a necessidade de um cuidado exame crítico e exposição das razões que sustentam a convicção de que a vontade dos arguidos era tirar a vida, o que não ocorreu por razões estranhas à sua vontade (o que também acentua a necessidade de densificar que o condutor executou um plano que tinha por fito matar DD).

Também se omite um facto essencial para o correcto enquadramento jurídico. O projétil atingiu que parte do veículo? É que a matéria dada como provada apenas refere que a munição se veio alojar no cinzeiro da consola central do veículo. Mas não refere onde embateu, primeiramente, o projéctil, antes de ali se alojar. Aliás, os factos dados como provados dão a entender que o projéctil vai directamente embater no cinzeiro da consola central, só não atingindo o referido DD por este se ter baixado (o que é ilógico como adiante analisaremos, infra 46.). Neste ponto e dizendo por outras palavras haveria ainda de esclarecer qual o ponto do vidro perfurado para se saber se o tiro foi disparado na direcção do DD e qual a zona corporal deste.

Daí que a menção de qual a parte do veículo danificada que o projéctil atingiu primeiramente, seja importante para a reconstrução da verdade, como resulta, nomeadamente do voto vencido do Sr. Juiz da 1.ª Instância, que aborda essa questão.

Por fim, o TR… também deu como provado que “em relação a esses factos” (atinentes aos crimes de homicídio tentado e de detenção de arma proibida) “os arguidos agiram deliberada, livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram previstas e punidas pela lei penal”. Mas nada se aduz na motivação no que concerne às concretas razões que convenceram o julgador a dar como provada esta factualidade concernente à culpabilidade (sendo que, como se referiu em relação ao dolo da tentativa, não basta a menção da prova que justificou o entendimento do TR…. no sentido de que os arguidos, seriam o condutor e o autor material do disparo: são realidades factuais diversas).

31. Por tudo o exposto, emerge a omissão de fundamentação do acórdão da Relação … que deveria, pelo menos, aduzir as concretas razões pelo qual entende que a prova demonstra:

a) a existência de um plano conjunto;

b) o disparo foi na direcção do corpo de DD e só não o atingiu porque se baixou;

c) vontade de matar (sem prejuízo da insuficiência de factos que adiante analisaremos);

d) agiram deliberada, livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram previstas e punidas pela lei penal.

Não o tendo feito, padece o acórdão do Tribunal da Relação …. de uma nulidade, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, correspondentemente aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do mesmo Código. Não podendo ser suprida pelo STJ, por respeitar a matéria de facto subtraída à sua competência, implica que seja proferida nova decisão no tribunal recorrido, tendo em vista o suprimento desta nulidade, devendo, de igual forma, serem retiradas as consequências que se venham a revelar necessárias, nos termos do n.º 3, do artigo 403.º, do CPP, relativamente a toda a decisão (artigo 379.º, n.º 2 e 3, do CPP, e isto, sem prejuízo da anulação do julgamento que adiante analisaremos, infra 47.).

32. Dispõe, ainda, o artigo 379.º, n.º 1, al. b) ex vi artigo 425.º, n.º 4, ambos do CPP, que é nula a sentença: “b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;”.

Ora, resulta do acórdão do TR….. o aditamento de um facto provado, para além daqueles que foram julgados provados/ não provados pelo Tribunal da 1.ª Instância. Assim, a Relação julgou também provado que os arguidos “agiram deliberada, livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram previstas e punidas pela lei penal”. Trata-se de factualidade atinente à culpabilidade.

Uma vez que o AFJ n.º 1/2015 decidiu que o dolo culpa não pode ser integrada por via do artigo 358.º, do CPP, para lograr o acrescento de tal factualidade no objecto do processo, pelo menos deveria chamar-se à colação o artigo 359.º, do CPP[3] .

O que não pode suceder é condenar inovatoriamente utilizando um facto novo que nem sequer se deu conhecimento aos arguidos, o que inquina, também, o acórdão do TR…., desta nulidade.

33. De igual modo, também enferma o acórdão recorrido da nulidade por omissão de pronúncia.

Com efeito, o arguido AA suscitou no seu recurso em relação às penas em que foi condenado em 1.ª Instância, pelos crimes de tráfico de menor gravidade e de detenção de arma proibida (faca ponta e mola) duas questões:

a) ter sido condenado por reincidente quando o tribunal de 1.ª instância menciona que não se verificam os pressupostos;

b) pede a redução do quantum das penas.

Como se viu, o acórdão do TR….. não analisa nenhuma das duas questões.

Sendo que, em relação ao quantum das penas parcelares, apenas aduz fundamento no que se reporta aos crimes de homicídio tentado e de detenção de arma proibida pelo qual condenou inovatoriamente.

Acresce que, na fundamentação de Direito, não se explicita as razões da pena única, aplicada aos arguidos, sendo que a menção genérica a “personalidade” e a “culpa” não se pode considerar como uma pronúncia expressa exigível a um tribunal (ainda mais patente quando estão em causa in casu privações da liberdade- prisão- de vários anos).

Por fim, na fundamentação de direito, apesar de se aludir à verificação dos elementos subjectivos dos crimes de homicídio tentado e de detenção de arma proibida, omite-se qualquer referência ao conhecimento e vontade (em qualquer das modalidades de dolo) de matar e deter arma proibida (a única referência é à culpabilidade, mas que, como salientámos, são realidades diversas).

34. De todo modo, também enferma o acórdão recorrido do vício de erro notório na apreciação da prova, ínsito no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP.

Já referimos que este vício não se confunde com o erro de julgamento.

O STJ não pode examinar as provas dos autos e daí retirar a sua convicção no que se reporta aos factos.

Tarefa que no nosso sistema processual penal apenas pertence à 1.ª Instância e ao Tribunal da Relação.

O erro - vício do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, tem de emergir do texto da decisão recorrida, por si, ou conjugada com as regras da experiência.

É, portanto, um exame que não tem por reporte as provas em si mesmo, mas o objecto da análise, sendo o próprio texto que as examina.

35. Deve, contudo, desde já, afastar-se o princípio do in dubio pro reo a que os recorrentes apelam como causa do erro notório na apreciação da prova.

Já notámos supra que na sua interligação com a matéria de facto extravasa a competência do STJ.

Apenas se pode apreciar da violação desse princípio na vertente jurídica. Ou seja, somente se pode concluir uma afronta ao mesmo, quando do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugado com as regras de experiência, resulta que os julgadores ficaram com dúvidas sobre determinada factualidade, mas, não obstante, deram os factos como provados[4].

Ora, neste aspecto, o Coletivo de Juízes da Relação que alterou a matéria de facto, foi peremptório, no sentido que a prova que indicam, demonstra a facticidade que usaram para condenar os arguidos pela prática do crime de homicídio tentado e de detenção de arma proibida.

36. Mas, oficiosamente, o STJ pode aferir se do texto do acórdão é possível descortinar tal erro vício com sustentáculo num outro fundamento que não a violação do in dubio pro reo.

O erro notório da apreciação da prova é um juízo subsequente ao exame da prova. Ou seja, partir do texto da decisão recorrida, da sua interpretação e análise emerge um lapso evidente na apreciação da prova. O que é firmado no texto contende com as próprias conclusões que foram retiradas da prova ou a sua análise fere princípio jurídico ou direito material probatório. O erro notório na apreciação da prova é um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, nomeadamente, através da leitura da matéria de facto e da fundamentação da matéria de facto[5].

Ou seja, o Tribunal da Relação descredibiliza as declarações de DD em sede de audiência de julgamento, favoráveis aos arguidos (e que corroboram as suas declarações), por entender que não merecem credibilidade, já que, não são coincidentes com o declarado na denúncia, acto de entrega de fotografias e autos de reconhecimento. No entanto, a análise dessa mesma prova, se partirmos da perspectiva inversa, redunda numa conclusão probatória contrária. Num raciocínio probatório antagónico também se poderia afirmar que as declarações de DD em audiência de julgamento, ao corroborarem as declarações dos arguidos em 1.º interrogatório judicial (e que também consistem num meio de prova), descredibilizariam os anteriores autos de denúncia, acto de entrega de fotografias e autos de reconhecimento. É que, tanto podem ter sido feitas declarações consubstanciadoras da denúncia, entrega de fotografias ou visando o reconhecimento verdadeiras e declarações em julgamento que infirmam a prova anterior falsas.

Como ter ocorrido precisamente o contrário.

Diversa seria a situação se existisse prova atestando que motivos havia para DD prestar um depoimento falso em audiência de julgamento (v.g. ameaças de represálias), o que não consta do texto da decisão recorrida.

Em suma, a prova que é mencionada na decisão recorrida não permite conclusão, de forma lógica, e evidente, ao contrário do que se assinala no acórdão, que não “deixa a mínima dúvida” que os arguidos praticaram os factos imputados na acusação e constantes dos pontos 1 a 10 dados como não provados pela 1.ª Instância.

37. O que ficou dito, em nada afronta o artigo 147.º, do CPP, como refere o acórdão recorrido.

A prova por reconhecimento é um meio de prova pré-constituído, que é documentado em auto, e que, enquanto documento autêntico (artigos 99.º e 169.º, do CPP), prova que foram prestadas as declarações que ali constam (as de reconhecimento, sendo que as demais estão sujeitas ao regime do artigo 356.º, do CPP).

Ou seja, sem prejuízo da prova da falsidade, presume-se que as declarações que constam do auto de reconhecimento correspondem ao declarado pela pessoa que procedeu àquele. Se quisermos, deve considerar-se provado que a pessoa que reconheceu, o fez nos termos por si declarados e que constam do auto.

Questão diversa é se essa declaração de reconhecimento corresponde à realidade.

É que, a prova por reconhecimento está sujeita à livre apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 127.º, do CPP, e deve ser conjugada com a demais prova.

A mesma não prova, por si só, o crime.

Pelo que, tal como outra prova, poderá ser descredibilizada.

Foi o que fez o Tribunal da 1.ª Instância, depois de a interligar com as declarações antagónicas no julgamento.

Ora, o acórdão do Tribunal da Relação ao afirmar que o Tribunal de 1.ª instância violou o disposto no artigo 147.º, do CPP “ao afastar a força probatória dos referidos autos de reconhecimento” e que dessa forma cometeu um “erro notório na apreciação da prova ao julgar não provados os factos constantes dos pontos 1 a 10 dos factos não provados”, aponta no sentido de que a prova por reconhecimento tem uma força probatória tarifada, vinculativa, no sentido incriminatório de um arguido, interpretação essa, que divergindo do artigo 127.º, do CPP é, efectivamente, como salientam os recorrentes, limitadora das garantias de defesa e da presunção de inocência, e como tal, violadora da CRP, concretamente do artigo 32.º, n.º 1, da CRP.

Tanto mais quando, para além das declarações de reconhecimento terem sido objecto de retratação em julgamento pela pessoa que reconheceu, existem circunstâncias, não clarificadas, que não permitem atribuir a dimensão valorativa que o Tribunal da Relação atribuiu aos autos de reconhecimento:

a) era de noite o que indicia uma menor dificuldade de visão;

b) DD mencionou em julgamento que os vidros seriam escuros, sendo certo que este facto não foi apurado;

c) os factos dados provados apontam no sentido de que, muito dificilmente, DD conseguiria ver as pessoas do veículo de onde proveio os disparos.

Repare-se que este apercebe-se do barulho da chegada do veículo, logo de seguida é efectuado um disparo (declarações em audiência transcritas no acórdão), este ter-se-á baixado e, logo de seguida, o veículo de onde provieram os disparos arranca (factos dados como provados).

Ou seja, se tivermos presente esta dinâmica vivencial dificilmente é concebível um momento temporal em condições de visão que permitissem um reconhecimento cabal. Perante isto, o que, na essência se apurou, é a condenação dos arguidos, com sustento nas declarações de uma única testemunha (onde se inclui as declarações de reconhecimento) numa fase prévia ao julgamento, que as infirma em julgamento.

O que acentua, ainda mais, a afronta às garantias de defesa dos arguidos pela força probatória que o TR….. atribuiu aos reconhecimentos.

Por outro lado, o texto do acórdão recorrido, para retirar credibilidade ao depoimento de DD em audiência, chama à colação as declarações prestadas no auto de denúncia e declarações prestadas no acto de entrega de fotografias.

Ora, a valoração de declarações de uma testemunha prestadas na fase anterior ao julgamento está submetida ao regime do artigo 356.º, do CPP.

Assim, não se enquadrando nessas condições de valoração, não poderia ser utilizado o por si anteriormente declarado, para descredibilizar o por si declarado em audiência de julgamento, momento processual em que vigora o pleno contraditório, e onde, em regra, todas as provas devem ser produzidas e examinadas , nos termos do disposto no artigo 355.º, do CPP.

38. Atento o exarado, ainda dentro dos limites da análise do texto da decisão recorrida, poderá concluir-se que a mesma padece de um erro na parte em que atribuiu à prova por reconhecimento, uma força probatória inequívoca no sentido da incriminação dos arguidos, e na decisão de afastar a credibilidade da testemunha DD em audiência de julgamento, tendo por base as provas que invoca no acórdão e a análise que faz das mesmas.

39. É, ainda, possível, vislumbrar outros erros vício.

Desde logo, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos da alínea a), do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP, a qual ocorre, quando da factualidade vertida na decisão se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição, sendo, pois, a matéria de facto provada insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.

O acórdão do TR….. condenou os arguidos pela prática de um crime de homicídio tentado.

Contudo, se percorrermos os factos dados como provados não consta nenhuma factualidade atinente ao dolo de matar (em qualquer uma das modalidades).

Foi dado como provado, no que ora releva, que os arguidos “bem sabendo que ao apontarem a referida arma de fogo na direcção de DD, e ao disparar na sua direcção, o podiam atingir no corpo, causando-lhe perigo para a vida e integridade física, o que apenas não veio a acontecer por motivos alheios à vontade daqueles”.

Ora, tal factualidade é insuficiente para concluir pela verificação do elemento subjectivo da tentativa. Ou seja, desde logo, para se verificar a componente cognitiva da vontade de matar, os arguidos teriam de saber que poderiam atingir zonal letal do corpo do visado. Se assim não for, o elemento intelectual apenas pode sustentar uma tentativa de ofensas corporais (qualificadas).

Aliás, a menção “causando-lhe perigo para a vida e integridade física”, ainda mais acentua esse vício.

O crime de homicídio pelo qual foram condenados é um crime de dano, e não um crime de perigo.

Logo, têm de saber que o disparo é apto a atingir zona letal do corpo, causando a morte do visado.

Se o seu conhecimento apenas se situa na aptidão para causar perigo de morte, mas não a morte em si, então não se verifica o elemento cognitivo da tentativa (para percepcionar esta destrinça basta pensar no crime de condução, perigo em que o elemento subjectivo se reconduz ao conhecimento de perigo daquele modo de conduzir; mas, quando o veículo é utilizar para matar, entramos, aí sim, na esfera da tentativa de homicídio).

40. Aliás, mesmo quanto ao tipo objectivo da tentativa, não basta a prova de que o disparo foi feito na direcção de DD, mas sim, que foi feita pontaria para zona letal do corpo do visado (v.g. cabeça, coração, etc. as chamadas zonas vermelhas, expressão vulgarmente utilizada no “jargão” policial).

Acresce que, quanto a este aspecto, sempre teria de constar dos factos provados a dinâmica do disparo.

Foi dado como provado que foi feita pontaria no sentido da janela. E, que a munição veio a alojar-se no cinzeiro da consola central do veículo.

Mas, para concluir que foi efectuado disparo para zona letal que apenas não atingiu o visado por circunstâncias alheias, teria de constar dos factos dados como provados, onde o projéctil foi embater, sendo insuficiente dizer onde ficou alojado, depois de ter perdido toda a energia cinética.

É que, como se nota no voto vencido do Sr. Juiz na 1.ª Instância, se o projéctil embate primeiramente no tablier frontal,  acima do porta luvas, atendendo a que se dá como provado que o veículo foi colocado paralelo ao lado do veículo de DD (portanto a pessoa que dispara fá-lo por uma  janela que está lado a lado com a janela do veículo de DD), então esse facto indicia fortemente que se apontou não para o corpo, mas para o tablier frontal e, assim sendo, apenas poderia estar em causa o crime de dano ou ameaça (para além de detenção de arma proibida).

41. Acresce, ainda que, os factos são totalmente omissos em relação ao elemento volitivo da tentativa de matar.

Na verdade, não consta que os arguidos tinham:

a) a vontade de tirar a vida (dolo directo);

b) sabiam que a morte era uma consequência directa da sua conduta (dolo necessário);

c) conformaram-se com a morte (dolo eventual).

E, apesar do Tribunal da Relação ter acrescentando que os arguidos “agiram deliberada, livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram previstas e punidas pela lei penal” (acrescento este que faz incorrer o acórdão em nulidade, conforme se notou em supra  32.), trata-se de matéria relativa à culpabilidade, que não supre a ausência de factos relativos ao elemento volitivo da tentativa de matar.

42.Por fim, dispõe o artigo 22.º, n.º 1, do CP que “Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.”.

E preceitua o n.º 2, da mesma norma, que: “São actos de execução: a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.”.

Ora, em relação ao n.º 2, embora não se identifique em qual das alíneas se subsume a conduta dos arguidos, presume-se, pelos factos dados como provados, no acórdão do TR…, no ponto 7, que terá querido integrar na alínea b), do n.º 2.

Sucede que, para preenchimento de tal acto de execução seria necessário provar-se factos que demonstrassem ser “idóneos a produzir o resultado típico”.

Para isso, não basta provar-se que a arma foi apontada na direcção da janela e o tiro foi disparado na direcção de DD, mas sim que a arma foi apontada e o disparo efectuado em direcção a zona letal do corpo daquele.

Só assim seria “idóneo” a produzir o resultado morte.

Para além disso, não basta dar como provado que o disparo seria apto a causar perigo para a vida e integridade física. Se este apenas tiver aptidão para causar perigo, então não podemos concluir que é idóneo a produzir o resultado morte.

O que significa que falece o elemento cognitivo do dolo de matar, já que não está narrado o conhecimento de factos idóneos a produzir o resultado morte.

Por fim, não se narra o elemento volitivo que impõe o n.º 1, do artigo 22.º, do CP, que permita concluir que os arguidos decidiram matar. Para isso, deveria narrar-se, como se referiu, o dolo volitivo em qualquer das modalidades contempladas no artigo 14.º, do CP.

43. Por fim, também se denota no texto do acórdão do TR…. por si só, e conjugado com as regras da experiência, uma contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, contemplado na alínea b), do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP.

Este vício verifica-se quando no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas, simultaneamente, dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito.

Por sua vez, há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou seja, quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e, ainda, quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto.

E, ocorre contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados, ou, entre a fundamentação e o dispositivo da decisão, ou seja, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.

Conforme já notámos supra, resulta do texto da decisão recorrida que o tribunal deu como provados os factos 1 a 10 (que tinham sido dados como não provados na 1.ª instância), com fundamento na força probatória da prova por reconhecimento.

Ora, o reconhecimento, apenas poderia provar que os arguidos seriam: o condutor do veículo e a pessoa que efectuou o disparo.

não tem aptidão para provar a coautoria, a dinâmica de como ocorreu o disparo, o conhecimento de que a actuação era apta a matar ou que essa era a vontade dos arguidos. Pelo que é contraditório assentar a prova de toda essa factualidade na prova por reconhecimento, quando esta apenas é apta a provar uma parcela dos factos.

Por outro lado, também é contraditório decidir que existe uma tentativa de homicídio, quando nos factos dados como provados, não são narrados os factos atinentes à execução de actos idóneos a provocar a morte, e que os arguidos teriam a vontade de matar (o que é mais premente quando para a medida da pena se apela como agravante à existência de um dolo directo que não consta dos factos provados).

Bem como, lograr chegar a essa conclusão quando, apenas, se dá como provado que o disparo foi realizado em direcção ao corpo, mas não consta que foi direccionado a zona letal do corpo.

E, também ilógico é considerar que existe uma tentativa de matar, que pressupõe um acto idóneo a causar a morte, quando dos factos dados como provados apenas consta que, o disparo era apto a causar perigo para a vida. Aliás, ainda mais confuso são os factos provados, quando se alia o perigo para a vida a perigo para a integridade física.

É que são factos totalmente diversos uma conduta ser:

a) idónea a causar a morte;

b) apenas ser idónea a causar perigo para a vida;

c) somente ser idónea a causar perigo para a integridade física.

44. Do mesmo modo, não se pode concluir que a prova por reconhecimento demonstra inequivocamente a autoria dos crimes imputados, considerando os autos de reconhecimento, autos de denúncia, acto de entrega de fotografias, e declarações dos arguidos no 1º interrogatório judicial, quando as declarações de DD no momento da denúncia e no acto de entrega de fotografias, não podem ser valoráveis ao abrigo do artigo 356.º, do CPP, e as declarações dos arguidos que o acórdão do TR…. menciona, apenas, atestam algo que foi reconhecido por estes: estiveram no bar e deslocaram-se no veículo que consta dos factos dados como provados.

Sucede, conforme resulta do texto da motivação do tribunal da 1.ª instância transcrita no acórdão da Relação ……, que os arguidos admitiram esse facto, mas negaram ter sido os autores do disparo.

Acresce que, dos factos dados como provados consta que a altercação que existiu no bar ficou sanada, e do texto transcrito da motivação da 1.ª instância pelo acórdão do TR…., assinala-se, inclusive, que os problemas foram com um indivíduo que acompanhava os arguidos (e não com estes), porque tinha perdido o cartão de consumo, e que foram estes a pagar, pelo que também não resulta (provado) a existência de motivo para o disparo (aliás, ditam as regras da experiência, que o acto vingativo seria por parte do referido 3.º indivíduo que teve na génese do conflito dentro do bar atinente ao não pagamento).

Perante esta prova mencionada no texto do acórdão recorrido a conclusão de um juízo inequívoco implicaria explicar porque se desvaloriza as declarações dos arguidos que negaram os factos, corroborado pelas declarações de DD em audiência, e pela ausência de um motivo dado como provado.

Aliás, também se poderia afirmar que esta prova de forma inequívoca descredibiliza a prova por reconhecimento.

Pelo que, não se pode extrair a existência de uma conclusão lógica inequívoca tal qual o faz o acórdão proferido no TR…….

45. Por outro lado, os factos provados encerram incongruências.

Por um lado, dá-se como provado que a arma foi apontada na direcção da janela, sabendo-se que DD estava ao lado dela (facto provado n.º 4). Facto este muito lato. O tiro pode ser disparado para o centro da janela, para a sua extremidade, na diagonal, em ângulos diversos, em sentido ascendente ou descendente.

O que, atento as regras da experiência, gera resultados diversos (basta pensar que um tiro para a janela no sentido do tablier frontal acima do porta-luvas não é apto a causar a morte como notou o voto vencido do Sr. Juiz da 1.ª instância).

Mais à frente já se menciona que os arguidos sabiam que atiraram na direcção de DD (facto n.º 7).

O que para além de não coincidir com ter-se feito pontaria à janela (é factualidade diversa) também, por si é, um facto lato, considerando que está em causa uma tentativa de homicídio.

Um tiro na direcção de DD não é o mesmo que um tiro na direcção do corpo de DD.

E um tiro na direcção do corpo deste não coincide com um tiro na direcção de zona letal do corpo deste.

O que acarreta contradições com o elemento subjectivo (como dar provado que os arguidos sabiam que disparavam para o corpo e o seu comportamento seria causal de uma morte perante as imprecisões apontadas).

Tudo isto demonstrativo de que a factualidade dada como provada encerra contradições. O que, conforme referimos supra, acaba por ser contraditório com a conclusão de Direito.

46. Pode, ainda, assinalar-se uma outra ilogicidade nos factos dados como provados.

Dá-se como provado que o tiro é disparado na direcção de DD, que só não o atinge porque este se baixa, e a munição vai-se alojar no cinzeiro da consola central do veículo.

Primeiro, para saber que o projéctil só não atinge uma pessoa porque se baixa, é necessário apurar-se a direcção e para que parte do corpo foi disparado o projéctil. Acresce que, está dado como provado que os veículos estariam paralelamente, lado a lado. O veículo de onde proveio o disparo estava situado à direita do veículo de DD.

Ou seja, resulta dos factos dados como provados que a janela do passageiro do veículo de DD está lado a lado com a janela do condutor do veículo de onde proveio o disparo.

Ora, se o disparo provém da direita de DD, e só não o atinge porque se baixa (como se dá como provado), então o projéctil teria, necessariamente, que embater na porta ou janela do lado do condutor onde estava DD, ou seja, à sua esquerda.

Sucede que se dá como provado que a munição se aloja no cinzeiro da consola central após o disparo (à direita de DD), o que é contraditório com o facto provado de que o projéctil não atinge DD apenas porque este se baixa.

47. Em conclusão:

1. Verificam-se, assim, todos os erros- vício elencados nas alíneas a), b) e c), do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP.

Estipula o artigo 426.º, n.º 1, do CPP que: “Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.”.

E, atento o n.º 2 do mesmo preceito: “O reenvio decretado pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito de recurso interposto, em 2.ª instância, de acórdão da relação é feito para este tribunal, que admite a renovação da prova ou reenvia o processo para novo julgamento em 1.ª instância.

Ora, os erros apontados implicam alteração da matéria de facto e reanálise da prova que não compete ao STJ, que pela abrangência dos vícios implica um novo julgamento.

2. O acórdão recorrido padece ainda das nulidades acima apontados.

Sendo certo que os erros vício se sobrepõem as nulidades.

Acompanhamos, neste sentido, a posição expressa no ac. do STJ, em que foi relator o Conselheiro Nuno Gomes da Silva, de 29.11.2018, no Proc. n.º 854/10.2PCOER.L2. S1 - 5.ª Secção, de que se cita o seguinte:

 “XIII – O acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia, mas ainda a respeito das demais questões elencadas atinentes ao recurso dos arguidos. Mas que, com sobreposição a esse vício incorre ele também no de contradição insanável da fundamentação, previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. b) o que determina o reenvio do processo para novo julgamento. XIV - Como a contradição diz respeito a uma questão essencial para definir a qualificação jurídica e porque, a par disso, assume relevo o modo inextricável como as questões pertinentes do recurso interposto pela arguida foram tratadas considera-se que o reenvio deve ser relativo à totalidade do objecto do processo de acordo com o disposto no art. 426.º, n.º 1.

3. Destarte, determina-se o reenvio do processo para o Tribunal da Relação …., para a realização de novo julgamento, atendendo a todos os vícios assinalados neste acórdão, nos termos e de acordo com o supra aduzido.

No acórdão final a proferir deverá considerar-se o expendido no que concerne às nulidades apontadas, sendo que, em relação aos aditamentos factuais, deverá respeitar-se o estatuído nos artigos 358.º, 359.º, do CPP, sem prejuízo da jurisprudência plasmada no AFJ n.º 1/2015.

III.

48. Pelo exposto, acordam os juízes na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Anular o acórdão recorrido, nos termos do expendido no ponto 47. deste acórdão; e

b) Determinar o reenvio do processo para o Tribunal da Relação …., para a realização de novo julgamento, atendendo a todos os vícios assinalados neste acórdão, nos termos e de acordo com o supra aduzido.

c) Sem custas.

28 de Janeiro de 2021

Processado e revisto pela relatora, nos termos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP, e assinado eletronicamente pelos signatários.

Margarida Blasco (Relatora)

Eduardo Loureiro

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[1] É esta a posição unânime relativa à competência do STJ para sindicar tal princípio; entre outros ac. STJ, Rel. Manuel Augusto de Matos, 24.06.2020, Proc. n.º 1366/17.9SGLSB.L1. S1 - 3.ª Secção.
[2] Ac. STJ, Rel. Manuel Augusto de Matos, 10.04.2019, Proc. n.º 39/11.0GAPNF.P1. S1 - 3.ª Secção.
[3] Sendo certo que, o referido AFJ também afasta a aplicabilidade desta norma, por não estar em causa crime diverso, mas o mesmo crime, em que o acrescento de um facto transforma uma conduta não punível em não punível; contudo, são considerações aduzidas na motivação, e que não estão abrangidas no segmento decisório da fixação de jurisprudência; pelo que, compete ao Tribunal da Relação firmar a sua posição, assim se garantindo o reexame da matéria de Direito.
[4] Ac. STJ, Rel. Clemente Lima, Proc. n.º 989/17.0PZLSB.L1. S1 - 5.ª Secção.
[5] Ac. STJ, Rel. Helena Moniz, 18-06-2020, Proc. n.º 46/19.5PAPTM.E1. S1 - 5.ª Secção.


Se atentarmos no acórdão recorrido, o mesmo socorre-se do “auto de denúncia, acto de entrega de fotografias, declarações dos arguidos em 1.º interrogatório judicial e autos de reconhecimento pessoal” para concluir que “Toda essa prova retira credibilidade às declarações que DD na audiência contrárias ao que constava dos autos de reconhecimento que ele próprio assinou. Não deixa a mínima dúvida que os arguidos praticaram os factos imputados na acusação e constantes dos pontos 1 a 10 como não provados”.