Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
204/19.2PAMDL-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: EDUARDO LOUREIRO
Descritores: HABEAS CORPUS
PRESSUPOSTOS
PRISÃO PREVENTIVA
DESPACHO
NULIDADE
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 04/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/NÃO DECRETAMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - O art. 31.º, n.º 1, da CRP, figura o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegais.
II - Visando reagir contra tal abuso de poder, o habeas corpus constitui, não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, ostensiva e fora de toda a dúvida de privação da liberdade e, não, de toda e qualquer ilegalidade, essa sim, objecto de recurso ordinário ou extraordinário.
III - Concretizando-se o abuso de poder em prisão ilegal, há-de a ilegalidade resultar – art. 222.º, n.º 2, do CPP – ou de a prisão ter sido efectuada por entidade incompetente – al. a) –, ou de ser motivada por facto por que a lei a não permite – al. b) – ou de se manter para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial - al. c).
IV - E há-de a privação de liberdade manter-se no momento em que providência é apreciada.
V - Podendo o fundamento da al. b) do n.º 2 do art. 222.º do CPP abranger uma multiplicidade de situações – v. g., a não punibilidade dos factos imputados; a prescrição do procedimento ou da pena; a amnistia da infracção ou o perdão da pena; a inimputabilidade do agente; a falta de trânsito da decisão condenatória; a inadmissibilidade legal de prisão preventiva –, estão, porém, excluídos da sua previsão (alegadas) nulidades ou irregularidades cometidas na condução do processo ou na prolação de decisões e (alegados) erros de indiciação ou de qualificação jurídica, apenas sindicáveis através de recursos, de requerimentos e em incidentes próprios, deduzidos no tempo e na sede apropriada.
Decisão Texto Integral:



Proc. n.º 204/19.2PAMDL-A.S1

5ª Secção

Habeas Corpus

acórdão


Acordam na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: 

I. relatório.
1. AA, BB, CC e DD, arguidos nos autos de Inq. n.º 204/19.2PAMDL do DIAP ............ – doravante, Requerentes –, sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva, peticionam «a concessão imediata da providência DE HABEAS CORPUS» nos termos que seguem transcritos:
«[…].
AA, BB, CC e DD Arguidos melhor identificados nos autos em epígrafe, tendo sido apresentados a Primeiro Interrogatório de Arguido Detido no dia 17 de março de 2021, e ficado todos eles sujeitos à medida de coação de Prisão Preventiva, vêm requerer a concessão imediata da providência DE HABEAS CORPUS em razão da sua prisão ilegal, nos termos da alínea b) do n° 2 do art.° 222° do CPP, na medida em que o despacho que decretou-lhes a MC de Prisão Preventiva não fundamentou a qualificação que entendeu fazer dos factos que deu como fortemente indiciados e não fundamentou em factos concretos e objectivos nenhum dos perigos que deu como verificados, tendo-os justificado em termos gerais e absolutamente aplicáveis em qualquer processo de tráfico de droga independentemente dos seus autores, a saber: na gravidade do crime, na elevada moldura penal, nos lucros que tal actividade em geral trás a quem a pratica, no flagelo social que é o tráfico e consumo de drogas e nos crimes secundários associados, em regra, ao crime de tráfico de droga.

A prisão preventiva dos requerentes é ilegal porque foi decretada por ter entendido o Tribunal ............ que o crime de tráfico de estupefacientes do art. 21º e 24º do DL 15/93 de 22 de janeiro incaucionável.

E este é um facto pelo qual a lei não admite a prisão preventiva – ilegalidade da imposição da medida coactiva aos recorrentes.
 
PRESSUPOSTOS EXIGÍVEIS PARA SOLVÊNCIA DA PROVIDÊNCIA DE HABEAS CORPUS.

"A providência (excepcional) de habeas corpus – cfr. artigos 220º a 223º do Código de Processo Penal – é qualificada como um expediente jurídico-constitucional de reacção perante uma situação de evidente/ostensiva violação do direito que, a qualquer cidadão, é constitucionalmente reconhecido de não ser privado de acção e movimentação individual, fora dos casos em que a lei permite o decretamento de privação de liberdade (indiciação de acções penalmente puníveis nas situações previstas no artigo 202º do Código de Processo Penal ou após confirmação judicial, por sentença, de cometimento de crimes – previamente imputados a um individuo – por que o tribunal tenha imposto uma condenação em pena de prisão efectiva).

A vulneração dos prazos legalmente estatuídos, possibilita aquele que se encontre privado de liberdade – detenção ou prisão – por razão, ou motivo, que se não quadre com o quadro legal estabelecido no ordenamento jurídico vigente pode pedir a apreciação da situação em que se encontra ao Supremo Tribunal de Justiça.

O habeas corpus é uma providência, independente do sistema de recursos penais. Uma providência urgente, conforme resulta da brevidade do prazo estipulado para a sua decisão.

Mas deverá qualificar-se como "extraordinária", no sentido que lhe era atribuído pelo DL n.º 35043, ou seja, como subsidiária dos recursos judiciais?

A autonomia do habeas corpus relativamente aos recursos dificilmente se coaduna com a sua subsidiariedade, entendida como exigindo o esgotamento dos recursos ordinários para que seja legítima a intervenção da providência. O habeas corpus deve servir para as situações mais graves, as mais carecidas de tutela urgente, ou seja, aquelas em que a privação da liberdade se mostrar claramente ilegal, sendo então o meio adequado, e não excecional, de fazer frente à ilegalidade.

A providência só pode ser entendida como “extraordinária” no sentido da sua singularidade relativamente aos recursos penais, pela sua exclusiva finalidade de meio de reação à privação ilegal da liberdade e pelo seu processamento específico, não como mecanismo supletivo ou subsidiário de tutela da liberdade.

Como fundamento desta pretensão, de carácter excepcional, o peticionante pode convocar uma das sequentes situações:
a) incompetência da entidade que ordenou ou efectuou a prisão;
b) ter a prisão uma razão, ou substrato jurídico-factual, arredada do quadro legal estabelecido; e
c) ser a prisão mantida para além dos prazos que a lei determina e fixa ou que a decisão judicial haja determinado. - “Cfr, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 2007, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira, que se deixa transcrito, parte interessante.

“A providência de habeas corpus tem, como resulta da lei, carácter excepcional.

Não já, no sentido de constituir expediente processual de ordem meramente residual, como outrora aqui vinha sendo entendida, antes, por se tratar de providência vocacionada a responder a situações de gravidade extrema ou excepcional haja ou não ainda aberta a via dos recursos ordinários.

“E é precisamente por pretender reagir contra situações de excepcional gravidade que o habeas corpus tem de possuir uma celeridade que o torna de todo incompatível com um prévio esgotamento dos recursos ordinários”.

Porque assim, a petição de habeas corpus, em caso de prisão ilegal, tem os seus fundamentos taxativamente previstos no n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal: a) Ter sido a prisão efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; c) Manter-se para além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial.

Confrontamo-nos, pois, com situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade, ambulatória (...) a reposição da legalidade tem um carácter urgente”.

Mas a providência excepcional em causa, não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão.

Está reservada, quanto mais não fosse por implicar uma decisão verdadeiramente célere – mais precisamente «nos oito dias subsequentes» ut art.º 223.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível sem margem para dúvidas, como o são os casos de prisão «ordenada por entidade incompetente», «mantida para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial», e como o tem de ser o «facto pela qual a lei a não permite».

Pois, não se esgotando no expediente de excepção os procedimentos processuais disponíveis contra a ilegalidade da prisão e correspondente ofensa ilegítima à liberdade individual, o lançar mão daquele só em casos contados deverá interferir com o normal regime dos recursos ordinários. Justamente, os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, por serem-no, impõem e permitem uma decisão tomada com imposta celeridade. Sob pena de, a não ser assim, haver o real perigo de tal decisão, apressada por imperativo legal, se volver, ela mesma, em fonte de ilegalidades grosseiras, porventura de sinal contrário, com a agravante, agora, de serem portadoras da chancela do Mais Alto Tribunal.

Exactamente por isso, a matéria de facto sobre que há-de assentar a decisão de habeas corpus tem forçosamente de ser certa, ou, pelo menos, estabilizada, sem prejuízo de o Supremo Tribunal de Justiça poder ordenar algumas diligências de última hora - art.º 223.º, n.º 4, b), do Código de Processo Penal - mas sempre sem poder substituir-se à instância de julgamento da matéria de facto, e apenas como complemento esclarecedor de eventuais lacunas de informação do quadro de facto porventura subsistentes, com vista à decisão, ou seja, na terminologia legal, cingidas a esclarecer «as condições de legalidade da prisão».

Como afirmou o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 16 de Dezembro de 2003, proferido no procedimento de habeas corpus n.º 4393/03-5, trata-se aqui de «um processo que não é um recurso mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpus este, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis (…)».

Como se assinalou no acórdão supra citado – de 1 de Fevereiro de 2007, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira – o procedimento (providência) de habeas corpus não assume carácter ou natureza residual, antes se perfila como um procedimento autónomo e com identidade própria que pode coexistir com o recurso. A providência de habeas corpus não se destina a reagir contra uma decisão reputada injusta de aplicação de uma medida de privação de liberdade, rectius prisão preventiva, antes se destina a pôr cobro a uma situação de ilegalidade e abuso de poder por parte das autoridades. A providência de habeas corpus não se destina a corrigir ou reavaliar as decisões judiciais que dentro da legalidade apliquem a medida coactiva de prisão preventiva. Ela surge no universo do direito como meio de ilaquear um estado patológico decorrente de uma actuação contrária à lei e ao arrepio dos adequados e correctos modos de apreciação e avaliação de uma situação factual (em que uma medida de coacção como a prisão preventiva não pode ser aplicada).

“Por outro lado, a providência de habeas corpus, por alegada prisão ilegal, tem os seus fundamentos taxativamente previstos no n.º 2 do art. 222.º do CPP, perante situações de violação ostensiva da liberdade das pessoas, seja por incompetência da entidade que ordenou a prisão, seja por a lei não permitir a privação da liberdade com o fundamento invocado ou sem ter sido invocado fundamento algum,  seja ainda por se mostrarem excedidos os prazos legais da sua duração.

São tais razões - e só elas - que justificam a celeridade e premência na apreciação extraordinária da situação de privação de liberdade com vista a aquilatar se houve abuso de poder ou violação grosseira da lei, na privação da liberdade, que imponha de imediato a reposição da legalidade.

A providência de habeas corpus, enquanto remédio de urgência perante ofensas graves à liberdade, que se traduzam em abuso de poder, ou por serem ofensas sem lei ou por serem grosseiramente contra a lei, não constitui no sistema nacional um recurso dos recursos e muito menos um recurso contra os recursos. (v.v.g Ac. deste Supremo de 20-12-2006, proc. n. º 4705/06 - 3.ª)

Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira a uma determinada situação processual do requerente, se os actos de um determinado processo - valendo os efeitos que em cada momento ali se produzam e independentemente da discussão que aí possam suscitar, a decidir segundo o regime normal dos recursos - produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos da petição referidos no artigo 222º, nº 2 do CPP.

A providência em causa assume, assim, uma natureza excepcional, a ser utilizada quando falham as demais garantias defensivas do direito de liberdade, para estancar casos de detenção ou de prisão ilegais. Por isso, a mesma não pode ser utilizada para sobrestar outras irregularidades ou para conhecer da bondade de decisões judiciais que têm o recurso como sede própria para reapreciação.

Na verdade, a essência da providência em causa reside numa afronta clara, e indubitável, ao direito à liberdade. Deve ser demonstrado, sem qualquer margem para dúvida, que aquele que está preso não deve estar e    que a sua prisão afronta o seu direito fundamental a estar livre.

Tal como está estruturado, o habeas corpus constitui um remédio contra a privação ilegal da liberdade. O que significa desde logo que o habeas corpus está exclusivamente direcionado para pôr termo à ilegalidade, quando constatada, restituindo o detido à liberdade.

Em síntese: desde que verificados os requisitos do habeas corpus (prisão ilegal por algum dos fundamentos previstos na lei), a providência é admissível, independentemente de ter sido interposto recurso ordinário da mesma decisão.

O prazo estabelecido para a decisão da providência é de 8 dias, conforme a própria Constituição, no n.º 3 do art 31.º, determina. Esse prazo é válido para qualquer das modalidades da providência. Contudo, para o caso da detenção ilegal, deve entender-se que só excecionalmente esse prazo deve ser esgotado.

Por último, refira-se que, respeitando o sentido do texto constitucional, a Lei n.º 44/86, de 30-09, que regula o estado de sítio e o estado de emergência, assegura expressamente o direito de habeas corpus às pessoas detidas ou com residência fixa com fundamento em violação das normas de segurança em vigor após a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência (n.º 2, al. a) do art. 2.º). Ou seja, no nosso ordenamento jurídico, o habeas corpus não pode, em caso algum, ser suspenso. ” - Cfr. Maia Costa, in Revista Julgar, Ano 2016, Ano 29, pags. 218-246.

Como afirmou este Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 16 de dezembro de 2003, trata-se aqui de «um processo que não é um recurso, mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpus este, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis (…)».

A natureza sumária da decisão de habeas corpus, por outro lado, não se deve conjugar com a definição de questões susceptíveis de um tratamento dicotómico e em paridade de defensibilidade. É que, em tal hipótese e como se acentua em decisão deste Tribunal de 1 de Fevereiro de 2007, o Supremo Tribunal de Justiça não se pode substituir, de ânimo leve, às instâncias, ou mesmo à sua própria eventual futura intervenção no caso, por via de recurso ordinário, e, sumariamente, ainda que de modo implícito, censurar aquelas por haverem levado a cabo alguma ilegalidade, que, como se viu, importa que seja grosseira.

Até porque, permanecendo discutível, e não consensual, a solução jurídica a dar à questão, dificilmente se pode imputar, com adequado fundamento - ainda para mais numa apreciação pouco menos que perfunctória -, à decisão impugnada, qualquer que ela seja - mas sempre emanada de uma instância judicial -, o labéu de ilegalidade, grosseira ou não. ” (Disponível em www.dgsi.pt.)

De acordo com o que vem sendo uma posição jurisprudencial constante e uniforme, o presente caso admite a presente providência de Habeas Corpus.

Vejamos, então, a decisão proferida e que decretou aos requerentes a MC de prisão preventiva:

A decisão que decretou a MC de prisão preventiva aos Requerentes começou, para o que aqui importa, por dar como fortemente indiciado um conjunto de factos (todos os que vinham no requerimento de apresentação dos arguidos a primeiro interrogatório) depois indicou a prova que teve em conta para dar aqueles factos como fortemente indiciados (todos os que estavam, igualmente, no requerimento de apresentações dos arguidos a primeiro interrogatório, sendo que muitos dos indicados nada têm a ver com os factos dados como fortemente indiciados, estamos a pensar, desde logo, no relatório de dano corporal de fls. 44 e 45; e toda a prova indicada do apenso 244/19.1PAMLD que nada tem a ver com tráfico de droga).

Depois a Decisão em causa no seu ponto 5 e quanto à qualificação jurídica daqueles mesmos factos limita-se a dizer o seguinte:

Da analise da posição do(s) arguido(s) perante os factos e prova supra exposta, conjugado com o que se deve entender por indícios resulta suficientemente indiciado que o (s) arguido (s) EE e FF, CC e DD, AA e BB, GG e HH, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22.01, com a referência às tabelas I-A e I-C anexa ao citado diploma

Percorremos depois cuidadosamente toda a decisão para sabermos qual a fundamentação apresentada pelo Tribunal............ para integrar os factos que deu como fortemente indiciados no crime de tráfico de estupefacientes do art. 21º agravado pela alínea b) do art. 24 do DL 15/93 de 22 de janeiro.

Constamos que nenhuma fundamentação, nem muita nem pouca, é apresentada pelo Tribunal...........

O Tribunal........... logo no ponto seguinte (ponto 6) refere expressamente que:

“6) Feito o enquadramento factual e jurídico, impõe-se apreciar a medida de coacção adequada ao caso concreto”

E, portanto, nem uma palavra quanto ao porquê de tal qualificação jurídica.

Mas a falta de fundamentação da decisão em causa abrange também, de forma intolerável, o porquê de o Tribunal ter entendido que se verificam, em concreto, cada um dos perigos que fixou como verificados, a saber perigo de perturbação da ordem e tranquilidades públicas, o perigo de fuga, perigo de continuação da actividade criminosa, perigo de perturbação do inquérito (nomeadamente perigo para a aquisição e consolidação da prova) e o perigo de fuga.

Quanto aos perigos diz a decisão em causa, o seguinte:

Assim, todos os elementos indiciam fortemente a prática do crime imputado aos arguidos, e assim, permitem concluir com grande segurança pela forte probabilidade de condenação dos arguidos pela prática do crime de tráfico de produtos estupefacientes.

O crime indiciado e imputado aos arguidos é grave, gravidade essa que resultada elevada moldura penal e gerador de forte alarme social e perturbador da ordem e tranquilidade públicas, atento o elevado, manifesto e generalizado repúdio da população por crimes desta natureza e da elevada danosidade social de tais condutas, crime este atinge uma grande parte da população jovem e com efeitos muito nocivos quer para estes quer para as suas famílias, crime esse que está também associado à onda de criminalidade contra o património que se tem vindo a verificar, igualmente geradora de forte e elevado alarme social e perturbação da ordem pública, atento o elevado sentimento de insegurança vivido pela população na sequência da prática de tais crimes, sendo o consumo de cocaína, heroína e haxixe altamente danoso para a saúde física e psíquica dos consumidores.

Tendo em conta a conjugação de todos os elementos constantes dos autos, e sendo os arguidos referenciado como traficantes de produtos estupefacientes, e sendo o produto estupefaciente apreendido na sua posse considera-se que efetivamente tal produto estupefaciente se destinava, essencialmente e na quase totalidade à sua venda a vários consumidores, por um valor superior ao valor da sua aquisição, assim obtendo os arguidos lucros com a sua venda, como é usual, lucros elevados, em face dos rendimentos normais do exercício de uma actividade profissional remunerada auferidos por um qualquer cidadão, evidenciados na quantidade de produto estupefaciente apreendido. As personalidades dos arguidos, manifestada na ilicitude dos factos e a natureza do crime vêm reforçar o perigo de continuação da actividade criminosa, sendo esta uma actividade que permite a obtenção de lucros fáceis, por si só potenciadora da continuação da actividade criminosa.

Existe ainda um perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente perigo para a aquisição e consolidação da prova, uma vez que a prova neste tipo de crimes é essencialmente testemunhal, sendo conhecida a pressão, ainda que sem violência, que normalmente é exercida sobre os consumidores no sentido de não testemunharem a venda de produto estupefaciente, exercendo sobre os mesmos diversos tipos de pressão por forma a evitar um depoimento livre. São conhecidas as naturais dificuldades de êxito na investigação de um crime de tráfico de estupefacientes, e, no caso em apreço, não se exclui, de todo, a possibilidade de os arguidos, se em liberdade, vir a exercer tais pressões sobre as testemunhas, designadamente as pessoas que são indicadas como tendo a ele adquirido o produto estupefaciente.

Atento os antecedentes criminais pelo mesmo e a perspetiva de lhes ser aplicada pena de prisão elevada cremos que também se encontra preenchido o perigo de fuga.

Nesta fase, e em face dos elementos constantes dos autos e da personalidade manifestada pelos arguidos, inexistem quaisquer elementos que permitam formular um juízo de prognose favorável aos arguidos.
Razões estas, a nosso ver, suficientes, para imporem, com excepção das arguidas FF e HH, a aplicação aos arguidos de uma medida de coacção detentiva da liberdade, (uma vez que nenhuma outra medida de coacção será suficiente, e eficaz para evitar a continuação da prática criminosa por banda dos arguidos, impondo-se de facto sujeitar os arguidos a medida de coacção adequada a impedir tais perigos, os quais se revelam num patamar muito elevado.

De acordo com o disposto no artigo 193º do Código de Processo Penal, e conforme supra, as medidas de coacção a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas, sendo que, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção.

Ora, manifestamente, quanto aos arguidos, com excepção das arguidas FF e HH,, as medidas de coacção não detentivas da liberdade, pelos factores supra expostos e perigos enunciados, revelam-se totalmente inadequadas e insuficientes, sendo que se considera que a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, mesmo que com vigilância electrónica, não seria suficiente nem adequada para acautelar os enunciados perigos, pois que, a experiência vem demonstrando que a aplicação de tal medida não obsta à continuação da actividade criminosa, uma vez, que o tráfico de produtos estupefacientes pode ser praticado a partir da residência dos arguidos e seria inviável controlar a frequência por terceiros da habitação dos arguidos, possuindo os arguidos   o   contacto   dos   fornecedores   de   produtos   estupefacientes   e   dos consumidores, o que desaconselha por completo a aplicação daquela medida de coacção, impondo-se a aplicação aos arguidos, com excepção das arguidas FF e HH, da medida de coacção de prisão preventiva, por apenas esta se revelar como adequada a acautelar os concretos perigos que se fazem sentir.

7) Perante o exposto, o Tribunal decide sujeitar o(s) arguido(s), EE, CC E DD, AA E BB, GG para além do termo de já prestado - Prisão preventiva.

Ora, com todo o respeito que é muitíssimo pelo Tribunal.........., nunca tínhamos visto nada assim!

Segundo o Tribunal..........., sempre que esteja em causa a prática de um crime de tráfico de droga do art. 21º e ou do art. 24º a única MC que se pode aplicar é a MC de prisão preventiva, isto desde que hajam factos fortemente indiciados de que vendem droga e isto porquê? porque o crime de tráfico de droga.

> é grave, gravidade essa que resultada elevada moldura penal e gerador de forte alarme social e perturbador da ordem e tranquilidade públicas, atento o elevado, manifesto e generalizado repúdio da população por crimes desta natureza e da elevada danosidade social de tais condutas, crime este atinge uma grande parte da população jovem e com efeitos muito nocivos quer para estes quer para as suas famílias, crime esse que está também associado à onda de criminalidade contra o património que se tem vindo a verificar, igualmente geradora de forte e elevado alarme social e perturbação da ordem pública, atento o elevado sentimento de insegurança vivido pela população na sequência da prática de tais crimes, sendo o consumo de cocaína, heroína e haxixe altamente danoso para a saúde física e psíquica dos consumidores.
>        proporciona elevados lucros económicos - Tendo em conta que quem vende droga vende por um valor superior ao valor da sua aquisição, assim obtendo os arguidos lucros com a sua venda, como é usual, lucros elevados, em face dos rendimentos normais do exercício de uma actividade profissional remunerada auferidos por um qualquer cidadão, evidenciados na quantidade de produto estupefaciente apreendido e, portanto, teremos sempre o perigo de continuação da actividade criminosa, sendo esta uma actividade que permite a obtenção de lucros fáceis, por si só potenciadora da continuação da actividade criminosa.
>        tem como prova essencialmente a prova testemunhal - Existindo, assim, ainda um perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente perigo para a aquisição e consolidação da prova, uma vez que a prova neste tipo de crimes é essencialmente testemunhal, sendo conhecida a pressão, ainda que sem violência, que normalmente é exercida sobre os consumidores no sentido de não testemunharem a venda de produto estupefaciente, exercendo sobre os mesmos diversos tipos de pressão por forma a evitar um depoimento livre. São conhecidas as naturais dificuldades de êxito na investigação de um crime de tráfico de estupefacientes, e, no caso em apreço, não se exclui, de todo, a possibilidade de os arguidos, se em liberdade, vir a exercer tais pressões sobre as testemunhas, designadamente as pessoas que são indicadas como tendo a ele adquirido o produto estupefaciente.
>        tem uma moldura penal elevadíssima, perspetivando-se que a quem pratique este tipo de crime lhe será aplicada pena de prisão elevada pelo que existe também sempre o perigo de fuga. Note-se isto independentemente de os arguidos terem ou não registo criminal -A arguida BB não tem registo criminal e foi-lhe aplicada a MC de PP.

Pelo exposto, entendemos que a decisão em causa é totalmente omissa quanto aos fundamentos que estiveram na base da qualificação jurídica efetuada e, ainda, nos perigos que em concreto se verificam no âmbito dos presentes autos e em relação a cada um dos arguidos.

Por outras palavras, a prisão preventiva dos aqui arguidos foi decretada como se o crime em causa fosse, em regra, incaucionável.

E este é um facto pelo qual a lei não admite a prisão preventiva – ilegalidade da imposição da medida coactiva aos recorrentes.

O que vem a ser, então, uma prisão motivada por facto pelo qual a lei não a admite?

Anotam SIMAS SANTOS E LEAL-HENRIQUES no seu Código de Processo Penal, Vol. 1º, 2ª edição, que, cifrando-se o referido fundamento em motivação imprópria, "verifica-se (ele) sempre que a prisão tenha assentado em razões ou motivos não consentidos ou não previstos na lei (v.g., falta de alguns requisitos enunciados no art. 204.º)".

A prisão preventiva tem natureza excepcional, só podendo ser aplicada quando ocorram determinados pressupostos, uns de carácter geral e outros de carácter especial.

A Constituição, depois de enunciar o princípio-regra, que é o direito de todos à liberdade e à segurança, exceptua a possibilidade de detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a cinco anos de prisão. E ainda mais: pelo tempo e nas condições que a lei determinar.

Quer dizer: um dos requisitos da prisão preventiva está directamente fixado na lei fundamental: crime a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a cinco anos de prisão.

Daí que a fundamentação da parte da decisão que integra os factos dados como fortemente indiciados na prática destes ou daquele crime assuma no momento da aplicação de uma MC uma importância verdadeiramente crucial, pois a falta de fundamentação ou a fundamentação deficiente têm implicação directa na própria admissão ou não da MC aplicada, contendendo com as exigências constitucionais e legais requeridas para a determinação dela.

No caso em apreço, por exemplo, os requerentes não têm dúvida alguma que os factos dados como fortemente indiciados pelo Tribunal........... consubstanciam, no máximo, a prática de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo art. 25º do DL 15/93 de 22 de janeiro – que como sabemos não admite a aplicação de uma MC privativa da liberdade.

Porém, o Tribunal qualificou aqueles mesmos factos como integrando o crime de tráfico do art. 21º agravado, vejam só, pelo art. 24º alínea b) da Lei da Droga, não explicando –nem muito nem pouco – o porquê e aplica aos requerentes, efetivamente, a MC mais  grave  do  nosso ordenamento jurídico,  precisamente,  a  MC  de  prisão preventiva.

Tendo em conta os factos fortemente indiciados, as quantidades de produto estupefaciente apreendidos, o número de consumidores que a decisão dá como fortemente indiciado que terão comprado droga aos arguidos - num total de 10 consumidores - a venda de pequenos panfletos de produto estupefaciente a 10,00 C cada panfleto directamente ao consumidor final, sem recurso a qualquer intermediário, a partir da própria residência dos arguidos, à luz do dia sem a utilização de qualquer sofisticação de meios e por um período de 6 meses (setembro de 2020 a Janeiro de 2021), não tendo sido apreendidos aos requerentes quaisquer instrumentos relacionados com o tráfico de droga, nomeadamente, balança e material de corte, bem como não lhe foram apreendidos quaisquer veículos ou bens de luxo ou de valor - não se pode concluir, jamais, pela prática de um tráfico de droga que se situe no patamar do art. 21º, muito menos do art. 24º do DL 15/93 de 22 de janeiro!

E, assim sendo, como é, sempre tal actividade pela sua amplitude e demais circunstancialismo envolvente, SÓ PODEM INTEGRAR UM CRIME DE TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE, p. p. pelo artigo 25º, alínea a), do DL 15/93, de 22-01.

Assim, entendemos que no caso sub judice não é aplicável a medida de coação de prisão preventiva por não se mostrarem preenchidos os pressupostos previstos no n.º 1 do art.º 202.º do C.P.P, designadamente os previstos na sua alínea a) [fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos]), nem os previstos na sua alínea c) [fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos].

Quanto aos demais, o legislador constituinte deixou ao legislador ordinário a possibilidade da sua conformação concreta - liberdade que não é total, visto que há que atender ao disposto no n.º 2 do art. 18º da mesma lei fundamental, de acordo com o qual "a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos".

De outra banda, há que considerar que os condicionalismos impostos em tal matéria pela lei ordinária são a materialização de injunções constitucionais e, como tal, todos os pressupostos de que depende a medida coactiva de prisão preventiva têm de ser havidos como fazendo parte do núcleo de excepcionalidade de que se pretendeu revestir a mais severa das restrições à liberdade dos cidadãos.

Ora, de entre os pressupostos de carácter geral estabelecidos pela lei, há que destacar o que vem estatuído no art. 204º do CPP:
"Nenhuma medida de coacção prevista no capítulo anterior, à excepção da que se contém no artigo 196°, pode ser aplicada se em concreto se não verificar:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa".

Quanto aos de natureza específica, diz o art. 202.º do mesmo diploma legal:
1. Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando:
a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos;


Trata-se aqui de reprodução da exigência que já vimos constar do texto constitucional e ainda da enunciação do princípio da subsidiariedade, como decorrência da natureza excepcional da medida - princípio que, por sua vez, se complementa noutros, nomeadamente o princípio da adequação e proporcionalidade, os da necessidade e provisoriedade, não devendo a medida ser fixada ou manter-se, sempre que possa ser substituída por outra medida menos gravosa, e o princípio da imediata cessação, devendo a medida coactiva (maxime, de prisão) ser imediatamente revogada, sempre que se verifique ter sido aplicada fora das hipóteses ou condições previstas na lei ou terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação (art. 212.º do CPP).

Ora, decorre de todo o exposto que a medida de coacção consistente na prisão preventiva só pode ser aplicada quando, em concreto, se verifiquem todos os requisitos (gerais e especiais) exigíveis (crime doloso a que corresponda pena de prisão de máximo superior a cinco anos; concreto perigo de fuga, ou de perturbação do processo, ou de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, ou ainda de continuação da actividade criminosa) e, para além deles, que seja necessária, adequada e proporcional, e que não possa ser substituída por outra medida menos gravosa.

Daí que a fundamentação da decisão que fixa uma tal medida de coação aqui uma importância verdadeiramente crucial, não só quanto à qualificação jurídica dos factos dados como fortemente indiciados, mas também quanto aos concretos factos integram cada um daqueles perigos, pois a falta de fundamentação ou a fundamentação deficiente têm implicação directa nos fundamentos da própria prisão, contendendo com as exigências constitucionais e legais requeridas para a determinação dela.

Ora, no caso sub júdice, o despacho determinativo da prisão preventiva dos recorrentes padece de manifesta falta de fundamentação não só quanto à qualificação jurídica feita, como também dos factos que integram os perigos ali elencados, o que foi devidamente salientado supra.

Mais: essa falta de fundamentação, no caso em concreto, corresponde à patente omissão de todos os fundamentos exigíveis para a aplicação referida medida coactiva, inclusivamente do requisito traduzido na forte indiciação de prática de crime doloso (tráfico de estupefacientes) punível com pena superior a 5 anos, pois como sabemos há o tráfico de droga de menor gravidade que é punido com uma moldura penal até 5 anos.

A prisão preventiva foi apenas decretada pelo facto de haver suficiente indiciação de os recorrentes terem praticado o referido crime de tráfico de estupefacientes, imediatamente se tendo concluído que a única medida adequada e proporcional era aquela medida de coação, por se tratar de um crime grave, de grande alarme social, sendo o mesmo um flagelo social e que permite avultados lucros económicos e potencializa a existência do perigo de fuga por ser punível com elevada pena de prisão.

Ou seja, a decisão recorrida: partiu duma regra geral, abstracta (ou duma presunção genérica) de apenas a MC de prisão preventiva ser aplicável ao crime de tráfico de estupefacientes.

Por outras palavras: decretou a prisão preventiva, como se o crime em causa fosse, em regra, incaucionável.
E este é um facto pelo qual a lei não admite a prisão preventiva - ilegalidade da imposição da medida coactiva aos recorrentes.
É que deixou de haver crimes incaucionáveis, não podendo a prisão preventiva impor-se como simples decorrência duma pressuposta regra geral ligada à prática de certo tipo de crimes.

Assim, os requerentes alegam a ilegalidade da sua prisão preventiva, por falta de fundamentação do despacho recorrido e por terem sido cerceados assim os seus mais elementares direitos de defesa.

O despacho judicial recorrido não indicou qual dos requisitos gerais da prisão preventiva, enumerados no art.º 204.º do CPP, estava presente no caso, não fundamentando a sua verificação em concreto.
A fundamentação é insuficiente, já que este não apontou em concreto porque é que procedeu à qualificação jurídica que procedeu, e porque é que existia o perigo de fuga, o perigo de continuação da actividade criminosa, o perigo de perturbação do inquérito de alarme social e perturbação da ordem e tranquilidade públicas caso os arguidos/requerente fossem libertados.

No nosso antigo Direito Penal havia crimes "incaucionáveis", porém, essa solução foi afastada, por ser considerada inconstitucional.

A prisão preventiva é a última das medidas de coação e tem de ser justificada, caso a caso, com a insuficiência de todas as restantes.

O que não foi feito, de todo, na decisão agora em causa, sendo ilegal a prisão preventiva dos recorrentes pelo que se requer a libertação imediata dos requerentes.

Face ao supra exposto, devem ser emitidos com CARÁTER DE URGÊNCIA OS RESPETIVOS MANDADOS   DE LIBERTAÇÃO dos requerentes, os quais deverão ser (após a sua emissão) imediatamente enviados pela via mais expedita, para o Estabelecimento Prisional..........................., onde se encontram as requerentes mulheres, e para o estabelecimento Prisional ........... onde estão os outros dois requerentes.

São estes, ressalvada alguma correcção emergente da informação a que alude a última parte do n.º 1 do art. 223º do Cód. de Processo Penal e o Doutíssimo Suprimento de Vossas Excelências, os factos que permitem apontar ilegalidade à prisão preventiva dos requerentes pelo que “deverá ser considerada, nos termos da al. b) do nº 2 do art. 222º do Cód. Processo Penal, a ilegalidade da prisão preventiva dos requerentes.

Pede a V. Exas. deferimento,
[…]».

2. No momento previsto no art.º 223º n.º 1 do CPP o Senhor Juiz do Juiz .. do Juízo de Competência Genérica ..........., lavrou informação do seguinte teor:
«[…].
Petição de Habeas Corpus deduzida pelos arguidos AA, BB, CC e DD:

Vieram os arguidos supra identificados requerer petição de Habeas Corpus, alegando, se bem se compreende, que o Juiz de Instrução não fundamentou a qualificação do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos artigos 21.º e 24.°, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22.01, com a referência às tabelas I-A e I-C anexa ao citado diploma, imputado àqueles.
Para cumprimento do disposto no n° l do artigo 223° do CPP, informa-se o Supremo Tribunal de Justiça que os arguidos supra identificados foram detidos no dia 16/3/2021, pelas 07h05 no cumprimento de mandados para detenção fora de flagrante delito, conforme oficio da PSP de 16/3/2021, tendo sido apresentados a 1º Interrogatório onde lhes foi imputada a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos artigos 21.° e 24.°, n.º 1, alínea b). do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22.01, com a referência às tabelas 1-A e I-C anexa ao citado diploma, tendo-lhes ainda sido aplicada a medida coactiva de prisão preventiva por se considerar que se verificavam os perigos de fuga, de continuação da actividade criminosa, de perturbação do decurso do inquérito a e de alarme social, não sendo as demais medidas menos gravosas suficientes para acautelar tais perigos.
Em razão de tal decisão, os arguidos encontram-se a cumprir tais medidas coactivas desde 17/3/2021.
*
É o que cumpre informar nos termos do n° 1 do artigo 223" do CPP, considerando-se em função do exposto não ocorrer qualquer um dos fundamentos previstos no artigo 222° n° 2 do mesmo diploma que justifiquem dar provimento ao requerimento deduzido pelos arguidos, razão pela qual se mantém a medida de prisão preventiva.
Crie traslado com a petição, o auto de interrogatório (contendo o despacho que decretou as medidas coactivas), bem como o presente despacho, remetendo de imediato o referido traslado ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.».

3. O procedimento vem instruído com certidão dos auto de primeiro interrogatório judicial dos Requerentes e do despacho de aplicação de medidas de coacção.  

Já neste Supremo Tribunal de Justiça, providenciou-se pela junção de certidão dos mandados de condução dos Requerentes a estabelecimento prisional para execução das medidas de prisão preventiva que lhes foram aplicadas bem como despacho de 6.4.2021 que admitiu o recurso por eles interposto para o Tribunal da Relação…………. do despacho de aplicação da medida de coacção.

4. Convocada esta 5ª Secção Criminal e notificados o Ministério Público e o Defensor dos Requerentes, realizou-se a audiência pública – art.os 223º n.os 2 e 3 e 435.º do CPP.   
Cumpre, assim, publicitar a respectiva deliberação e, sumariamente, a discussão que a precedeu.

II. Fundamentação.

A. Factos.
5. Dos elementos documentais que instruem o processo e da informação prestada ao abrigo do art.º 223º n.º 1 do CPP, emerge a seguinte factualidade:

(1). Os Requerentes e quatro outros arguidos, todos familiares entre si, foram submetidos a primeiro interrogatório judicial de arguido detido em 17.3.2021 no âmbito do Inq. n.º 204/19.2PAMDL do Departamento de Investigação e Acção Penal ............

(2). E assim sob imputação da prática, conjunta e concertada entre todos, de diversos actos de detenção e venda de produtos estupefacientes – mormente, heroína e cocaína –, a terceiros consumidores, ocorridos em ............ e áreas limítrofes entre 3.9.2019 e 16.3.2021, tudo como melhor descrito em 3. do auto de interrogatório – fls. 7 a 28 –, que aqui se dá por reproduzido.

(3). Bem como sob imputação a um dos outros co-arguidos da detenção, ilegal, de uma arma de fogo.

(4). Por despacho do Senhor Juiz em funções de instrução proferido no acto, foi aplicada a seis dos arguidos – entre eles, os quatro Requerentes –, a medida de coacção de prisão preventiva, a acrescer à de termo de identidade e residência que já tinham prestado, por se ter considerado fortemente indiciada a prática de crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos art.os 21º n.º 1 e 24 al.ª b) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.1, e verificados perigos de fuga, de continuação da actividade criminosa e de perturbação do inquérito, nomeadamente, para a aquisição e consolidação da prova, não acauteláveis por outras medidas de coacção.

(5). Despacho esse de que com interesse para a presente decisão se destacam os seguintes passos:
«[…].
3) Decorre do presente interrogatório que o(s) arguido(s) foram interrogados sobre a factualidade descrita em 3) que aqui se dá por reproduzida.
4) A citada factualidade vem sustentada na prova descrita em 4), que aqui se dá por reproduzida
5) Da analise da posição do(s) arguido(s) perante os factos e prova supra exposta, conjugado com o que se deve entender por indícios resulta suficientemente indiciado que o (s) arguido (s) EE e FF, CC e DD, AA e BB, GG e HH, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22.01, com a referência às tabelas I-A e I-C anexa ao citado diploma.
O arguido EE ainda se encontra indiciado pela prática, em concurso efetivo, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.
6) Feito o enquadramento factual e jurídico, impõe-se apreciar a medida de coação adequada ao caso concreto
6.1 - Antes, porém, façamos uma breve resenha das razões justificativas para a sua aplicação.
[…].
As finalidades das medidas de coacção constam do artigo 204.º do CPP, que dispõe: nenhuma medida de coacção prevista no capítulo anterior, à excepção da que se contém no artigo 196.º [termo de identidade e residência] pode ser aplicada se em concreto se não verificar:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.
No artigo 192.º do CPP dispõe-se sobre as condições gerais de aplicação das medidas de coacção que deve, no entanto, ser conjugado com o artigo 204.º (e artigo 227.º, para as medidas de garantia patrimonial), do mesmo diploma legal.
A condição essencial para a aplicação de uma medida de coacção é a prévia constituição como arguido da pessoa que delas for objecto [artigos 192.º, n.º 1 e 58.º, n.º 1, al. b)], do mesmo diploma legal.
O n.º 2 do artigo 192.º, estabelece ainda como condição geral para aplicação de uma medida de coacção, a inexistência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal, existiam ou não indícios da prática de crime.
A expressão causas da isenção de responsabilidade é usada, no referido artigo 192.º, n.º 2, num sentido amplo, abrangendo todos os casos de afastamento da responsabilidade penal. São causas da isenção da responsabilidade penal as denominadas causas justificativas do facto, ou causas de justificação ou de exclusão da ilicitude ou da culpa, como verbi gratia, a legítima defesa [artigos 31.º e 32.º do Código Penal]. Artigo 31.º (exclusão da ilicitude) 1- O facto não é punível quando a sua ilicitude por executada pela ordem jurídica considerada na sua totalidade. 2- Nomeadamente não é ilícito o facto praticado: a) em legítima defesa; b) no exercício de um direito; c) No cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade; ou d) com o consentimento do titular do interesse jurídico lesado. Artigo 32.º (legítima defesa), Constitui legítima defesa o fato praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiros»; o direito de necessidade justificante (artigo 34.º, do mesmo diploma); o estado de necessidade desculpante (artigo 35.º do CP), o conflito de deveres (artigo 36.º do CP), a obediência indevida desculpante (artigo 37.º, do CP); o consentimento do ofendido (artigo 38.º, do C.P.).
In casu, as respectivas causas não se verificam
Em face do supra exposto, para a aplicação de uma medida de coacção torna-se necessário a imputação à pessoa que dela for objecto, de indícios (ou fortes indícios, nos casos dos artigos 200.º, 201.º e 202.º do CPP) da prática de determinado crime, ou seja, como afirma Prof. Germano Marques da Silva, «não pode ser aplicada uma medida de coacção ou de garantia patrimonial se não se indiciarem os pressupostos de que depende a aplicação ao sujeito de uma pena ou medida de segurança criminais».
Por outro lado, não basta a existência de indícios da prática do crime e os requisitos específicos definidos na lei para cada uma de tais medidas, importa ainda que se verifiquem os requisitos ou condições gerais referidos nas várias alíneas do artigo 204.º, do CPP. Este requisitos ou condições gerais, enumerados nas alíneas a), b) e c), são taxativos, bastando, consequentemente, a existência de algum deles para que a medida possa ser aplicada.
Os requisitos ou condições gerais referidos são, respectivamente, os seguintes: fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade ou de continuação da actividade criminosa.
Nos termos do artigo 204.º, al. a), a fuga ou perigo de fuga justifica a aplicação ao arguido de uma medida de coacção (á excepção do termo de identidade e residência).
[…].
À luz do direito actual, parece que, como refere o Prof. Germano Marques da Silva, «a medida de coacção actua neste caso (em caso de fuga) como um antídoto ex post, pela consideração de que a fuga já verificada constitui prova decisiva da existência de perigo de nova fuga. A ocorrência de fuga do arguido será por si só motivo para aplicação ao arguido de uma medida de coacção» [ob. cit. Vol II, 3ª Edição, p. 265].
Refere o citado professor que «importa ter bem presente que a lei não presume o perigo de fuga, exige que esse perigo seja concreto, o que significa que não basta a mera probabilidade de fuga deduzida de abstractas e genéricas presunções, v.g. da gravidade do crime, mas que se deve fundamentar sobre elementos de facto que incidem concretamente aquele perigo, nomeadamente porque revelam a preparação para a fuga».
Já o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução, prevista na alínea b), do artigo 204.º, é outro dos requisitos gerais que tornam admissível a aplicação ao arguido de uma medida de coacção.
O perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa há-de resultar: ou das circunstâncias do crime imputado ao arguido ou da sua personalidade.
Apenas das circunstâncias do crime imputado ao arguido ou então da sua personalidade há-de resultar o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, alarme social ou de continuação da actividade criminosa, elemento justificador da aplicação de uma medida de coacção, máxime a prisão preventiva.
As medidas de coacção só devem manter-se enquanto necessárias para a realização dos fins processuais que, observados os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, legitimam a sua aplicação ao arguido e, por isso, devem ser revogadas ou substituídas por outras menos graves sempre que se verifique a insubsistência das circunstâncias que justificaram a sua aplicação ou uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação (artigo 212.° do CPP).
6.2) NO PRESENTE CASO,
[…].
O arguido AA tem diversos antecedentes criminais, nomeadamente por tráfico de estupefaciente tendo neste caso sido condenado na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa, com regime de prova, cfr. fls. 1927 a 1932v;
 A arguida BB não tem antecedentes criminais, cfr. fls. 1953
O arguido CC tem antecedentes por tráfico de estupefaciente tendo neste caso sido condenado na pena de 3 anos de prisão efectiva cfr 1937 a 1939;
A arguida DD tem antecedentes por tráfico de estupefacientes, tendo neste caso sido condenado na pena de 1 ano e 9 meses de prisão, suspensa cfr. 1933 a 1934;
[…].

*

O arguido AA, não prestou declarações.
Existem, contudo, diversos factos descritos no despacho do MP, do crime de que vem indiciado, nomeadamente os factos descritos em 8.º, 9.º, 13.º, 14.º, 15, 17.º, que encontram sustentação nas escutas referidas em 27.º e na apreensão de artigo 19:
A arguida BB, não prestou declarações. Existem, contudo, diversos factos descritos no despacho do MP, do crime de que vem indiciada, nomeadamente os factos descritos em 9.º, 10.º, 12.º, 15.º, que encontram sustentação nas escutas referidas em 27.º e na apreensão de artigo 19.º:
O arguido CC , não prestou declarações.
Existem diversos factos descritos no despacho do MP, do crime de que vem indiciado, nomeadamente os factos descritos em 14.º, 16.º, 17.º, que encontram sustentação nas escutas referidas em 28.º e na apreensão de artigo 21.º e 22.º e 19.º:
A arguida DD , não prestou declarações.
Existem, contudo, diversos factos descritos no despacho do MP, do crime de que vem indiciado, nomeadamente os factos descritos em 14.º, 17.º, que encontram sustentação na apreensão de artigo 21.º e 22.º
[…].
Assim neste momento atenta a prova carreada para os autos, sem prejuízo de outra que venha ainda a ser junta e as declarações dos arguidos consideramos que, pelo menos desde Setembro de 2019 os arguidos se vêm dedicando à venda de produtos estupefacientes, a vários consumidores da cidade............ e nos concelhos limítrofes.
Por outro lado, o produto estupefaciente encontrava-se na posse destes e nas suas residências bem como objectos relacionados com esta actividade ilícita, todos típicos de uma actuação intensa.
Assim, todos os elementos indiciam fortemente a prática do crime imputado aos arguidos, e assim, permitem concluir com grande segurança pela forte probabilidade de condenação dos arguidos pela prática do crime de tráfico de produtos estupefacientes.
O crime indiciado e imputado aos arguidos é grave, gravidade essa que resultada elevada moldura penal e gerador de forte alarme social e perturbador da ordem e tranquilidade públicas, atento o elevado, manifesto e generalizado repúdio da população por crimes desta natureza e da elevada danosidade social de tais condutas, crime este atinge uma grande parte da população jovem e com efeitos muito nocivos quer para estes quer para as suas famílias, crime esse que está também associado à onda de criminalidade contra o património que se tem vindo a verificar, igualmente geradora de forte e elevado alarme social e perturbação da ordem pública, atento o elevado sentimento de insegurança vivido pela população na sequência da prática de tais crimes, sendo o consumo de cocaína, heroína e haxixe altamente danoso para a saúde física e psíquica dos consumidores.
Tendo em conta a conjugação de todos os elementos constantes dos autos, e sendo os arguidos referenciado como traficantes de produtos estupefacientes, e sendo o produto estupefaciente apreendido na sua posse considera-se que efetivamente tal produto estupefaciente se destinava, essencialmente e na quase totalidade à sua venda a vários consumidores, por um valor superior ao valor da sua aquisição, assim obtendo os arguidos lucros com a sua venda, como é usual, lucros elevados, em face dos rendimentos normais do exercício de uma actividade profissional remunerada auferidos por um qualquer cidadão, evidenciados na quantidade de produto estupefaciente apreendido.
As personalidades dos arguidos, manifestada na ilicitude dos factos e a natureza do crime vêm reforçar o perigo de continuação da actividade criminosa, sendo esta uma actividade que permite a obtenção de lucros fáceis, por si só potenciadora da continuação da actividade criminosa.
Existe ainda um perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente perigo para a aquisição e consolidação da prova, uma vez que a prova neste tipo de crimes é essencialmente testemunhal, sendo conhecida a pressão, ainda que sem violência, que normalmente é exercida sobre os consumidores no sentido de não testemunharem a venda de produto estupefaciente, exercendo sobre os mesmos diversos tipos de pressão por forma a evitar um depoimento livre.
São conhecidas as naturais dificuldades de êxito na investigação de um crime de tráfico de estupefacientes, e, no caso em apreço, não se exclui, de todo, a possibilidade de os arguidos, se em liberdade, vir a exercer tais pressões sobre as testemunhas, designadamente as pessoas que são indicadas como tendo a ele adquirido o produto estupefaciente.
Atento os antecedentes criminais pelo mesmo e a perspetiva de lhes ser aplicada pena de prisão elevada cremos que também se encontra preenchido o perigo de fuga
 Nesta fase, e em face dos elementos constantes dos autos e da personalidade manifestada pelos arguidos, inexistem quaisquer elementos que permitam formular um juízo de prognose favorável aos arguidos.
Razões estas, a nosso ver, suficientes, para imporem, com excepção das arguidas FF e HH, a aplicação aos arguidos de uma medida de coacção detentiva da liberdade, (uma vez que nenhuma outra medida de coacção será suficiente, e eficaz para evitar a continuação da prática criminosa por banda dos arguidos, impondo-se de facto sujeitar os arguidos a medida de coacção adequada a impedir tais perigos, os quais se revelam num patamar muito elevado.
De acordo com o disposto no artigo 193º do Código de Processo Penal, e conforme supra, as medidas de coacção a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas, sendo que, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção.
Ora, manifestamente, quanto aos arguidos, com excepção das arguidas FF e HH, as medidas de coacção não detentivas da liberdade, pelos factores supra expostos e perigos enunciados, revelam-se totalmente inadequadas e insuficientes, sendo que se considera que a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, mesmo que com vigilância electrónica, não seria suficiente nem adequada para acautelar os enunciados perigos, pois que, a experiência vem demonstrando que a aplicação de tal medida não obsta à continuação da actividade criminosa, uma vez que o tráfico de produtos estupefacientes pode ser praticado a partir da residência dos arguidos e seria inviável controlar a frequência por terceiros da habitação dos arguidos, possuindo os arguidos o contacto dos fornecedores de produtos estupefacientes e dos consumidores, o que desaconselha por completo a aplicação daquela medida de coacção, impondo-se a aplicação aos arguidos, com excepção das arguidas FF e HH, da medida de coacção de prisão preventiva, por apenas esta se revelar como adequada a acautelar os concretos perigos que se fazem sentir.
7) Perante o exposto, o Tribunal decide sujeitar o(s) arguido(s), EE, CC E DD, AA E BB, GG para além do termo de já prestado.
– Prisão preventiva.
[…].».

(6). Passados os pertinentes mandados, os Requerentes foram conduzidos a estabelecimento prisional, onde deram entrada no dia seguinte e onde permanecem, no momento actual, na situação de prisão preventiva.

(7). Os Requerentes requereram a interposição de recurso para o Tribunal da Relação de ……… do despacho que decretou a prisão preventiva, admitido por despacho de 6.4.2021.

B. Direito.
6. O artigo 31º n.º 1 da Constituição da República figura o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegais.

Visando reagir contra tal abuso de poder, o habeas corpus constitui – como, aliás, os próprios Requerentes assinalam –, «não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade» [1]: trata-se de «um processo que não é um recurso mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, de prisão e, não, de toda e qualquer ilegalidade, essa sim, objecto de recurso ordinário ou extraordinário» [2].

Os fundamentos do habeas corpus estão taxativamente enumerados nos artigos 220º n.º 1 e 222º nº 2 do CPP, consoante o abuso de poder derive de situação de detenção ilegal ou de prisão ilegal, respectivamente, só com base neles podendo ser deferido.
Sendo que, tratando-se de habeas corpus em virtude de prisão ilegal, há-de a ilegalidade resultar – art.º 222º n.º 2 do CPP – ou de a prisão ter sido efectuada por entidade incompetente – al.ª a) –, ou de ser motivada por facto por que a lei a não permite – al.ª b) – ou de se manter para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial - al.ª c).

E há-de tratar-se, ainda, de ilegalidade actual, de prisão ilegal que persista no momento em que é apreciado o pedido [3].

C. Apreciação.
7. Flui, então da factualidade assente que, sob apresentação do Ministério Público, os Requerentes foram submetidos a interrogatório judicial e viram ser-lhes aplicada a medida de coacção de prisão preventiva por referência à forte indiciação de crime de tráfico de estupefacientes agravado dos art.os 21º n.º 1 e 24 al.ª b) do Decreto-Lei n.º 15/83 , à existência de perigo de fuga, de continuação de actividade criminosa e de perturbação do inquérito é à insuficiência cautelar de medidas de coacção menos gravosas.
E – se bem se alcança! – resulta do petitório que serve de base à presente providência, que consideram a privação de liberdade a que se encontram sujeitos ferida pela ilegalidade prevista no art.º 222º n.º 2 al.ª b) do CPP – «Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite» – pelas seguintes ordens de razões:
O despacho de aplicação da medida de coacção não fundamentou, ou não fundamentou suficientemente, a integração dos factos que «deu como fortemente indiciados no crime de tráfico de estupefacientes do art. 21º agravado pela alínea b) do art. 24 do DL 15/93 de 22 de janeiro»;
O mesmo despacho não fundamentou, ou não fundamentou suficientemente, o «porquê de o Tribunal ter entendido que se verificam, em concreto, cada um dos perigos que fixou como verificados, a saber perigo de perturbação da ordem e tranquilidades públicas, o perigo de fuga, perigo de continuação da actividade criminosa, perigo de perturbação do inquérito (nomeadamente perigo para a aquisição e consolidação da prova) e o perigo de fuga», não indicando os «concretos factos integram cada um daqueles perigos».
As faltas, ou as deficiências, de fundamentação apontadas, «têm implicação directa nos fundamentos da própria prisão, contendendo com as exigências constitucionais e legais requeridas para a determinação dela»;
Repristinando soluções do passado declaradas inconstitucionais, o despacho sempre referido seguiu o entendimento de que o crime de tráfico de estupefacientes é uma infracção incaucionável;
Os factos indiciados integram, quando muito, a figura do tráfico de estupefacientes de menor gravidade do art.º 25º al.ª a) do Decreto-Lei n.º 15/93 que, punido com pena de prisão de máximo não superior a 5 anos, não admite prisão preventiva.
E, por tudo, querem que aqui se declare tal ilegalidade e que sejam de imediato restituídos à liberdade.

Mas, salvo o muito devido respeito, não lhes assiste – diz-se já – o fundamento de habeas corpus que invocam – nem, aliás, qualquer outro dos previsto no art.º 222º n.º 2 CPP –, havendo a pretensão de ser indeferida.
Com efeito:

8. Como acaba de se ver, o que os Requerentes se propõem aqui discutir enquanto fundamento da ilegalidade da prisão que invocam são as, alegadas, nulidades de falta de fundamentação do despacho de aplicação da medida de coacção previstas no art.º 194º n.º 6 al.as a), c) e d) do CPP – «A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade: a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo; […] c) A qualificação jurídica dos factos imputados; d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º» –, se não a forte indiciação  do crime de tráfico de estupefacientes agravado cuja verificação a medida de prisão preventiva exige nos termos do art.º 202º n.º 1 al.as a) e c) do CPP – «Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando: a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos; […] c) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos» [4] –, ou, até, a qualificação jurídica dos factos, que sustentam caber na previsão do tipo, privilegiado do tráfico de estupefacientes de menor gravidade que, em função da pena abstracta que comina de prisão de 1 a 5 anos, não admite, sequer, a imposição da medida de prisão preventiva.
 
Sucede, todavia, que, como já resulta da natureza que acima se lhe assinalou – «não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade», recorde-se – o procedimento de habeas corpus não é lugar para discutir esse tipo de questões, mais próprios, isso sim de procedimentos recursórios ordinários e extraordinários.
Como, também, já se sublinhou [5], a ilegalidade da prisão que pode fundamentar a providência é – e só é – a que esteja prevista nas três alíneas do art.º 222º n.º 2 do CPP, é dizer, a ilegalidade que resulte ou de ter sido ordenada ou efectuada por entidade incompetente – e incompetente no sentido estatutário, no de se tratar de uma entidade não judicial –, ou de ter sido motivado por facto por que a lei a não permite ou de manter-se para além dos prazos fixados por lei ou decisão judicial.
Podendo o fundamento da al.ª b) do n.º 2 do art.º 222º do CPP invocado abranger uma multiplicidade de situações – v. g., a não punibilidade dos factos imputados ao preso; a prescrição do procedimento ou da pena; a amnistia da infracção imputada ou o perdão da respectiva pena; a inimputabilidade do preso; a falta de trânsito da decisão condenatória; a inadmissibilidade legal de prisão preventiva –, certo é que se há-de tratar de «uma ilegalidade evidente, de um erro directamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correcção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso» [6].
A providência de habeas corpus não pode, assim – insiste-se –, decidir sobre a regularidade de actos de processo com dimensão e efeito específicos, não constituindo um recurso dos actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos ou dos modos processualmente admissíveis de impugnação.
No objecto da providência apenas há que apurar, quando o fundamento se refira a uma dada posição processual do requerente, se os actos de um determinado processo, valendo os efeitos que em cada momento nele produzam e independentemente da discussão que aí possam suscitar e a dirimir segundo o regime normal dos recursos, reclamações, arguições e requerimentos, em geral, produzem alguma consequência que se possa acolher aos fundamentos previstos no art.º 222º n.º 2 referido.
O habeas corpus assume, desse modo, uma natureza excepcional, a ser utilizada quando falham as garantias defensivas do direito à liberdade.
Por isso que, e como é entendimento indiscutido na jurisprudência deste Supremo Tribunal, «não é o meio próprio para sindicar as decisões sobre medidas de coacção privativas de liberdade, ou que com elas se relacionem directamente», não se destinado «a formular juízos de mérito sobre a decisão judicial de privação de liberdade, ou a sindicar eventuais nulidades, insanáveis, ou não, ou irregularidades, cometidas na condução do processo ou em decisões, ou alegados erros de julgamento de matéria de facto», ou erros de qualificação jurídica,  servindo, «para esses fins», isso sim, «os recursos, os requerimentos e os incidentes próprios, deduzidos no tempo e na sede apropriada» [7].
Meio(s) próprio(s) esse(s) de que, de resto, o Requerentes (já) se valeram, interpondo, como assente em (7). dos factos, o competente recurso do despacho que decretou a respectiva prisão.
 
9. A presente providência – reinsiste-se, para concluir – não pode, em contrário do que os Requerentes pretendem, ser utilizada como meio para discutir as decisões tomadas no processo e das quais acabou por resultar o decretamento da sua prisão preventiva, que têm os efeitos que devam produzir de acordo com a ordenação e disciplina processual própria.
Não sendo essa a ilegalidade própria e específica que releva do abuso de poder de que fala o art.º 31º n.º 1 da CRP e que o art.º 222º do CPP concretiza no plano do direito ordinário, mormente na al.ª b) do seu n.º 2 de que os Recorrentes se socorrem.

D. Conclusão.
10. Vale tudo o que precede por dizer que improcede o fundamento em que os Requerentes apoiam o seu pedido de libertação imediata por via de habeas corpus, não havendo sombra de ilegalidade que, à luz do art.º 222º do CPP, afecte a privação de liberdade a que estão sujeitos, sendo muito evidente que a medida de coacção de prisão preventiva foi decretada por entidade competente – por um juiz de instrução criminal –, por factos pelos quais a lei a admite – pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes agravado, cuja forte indiciação foi judicialmente reconhecida – e que se contém dentro dos limites legais e judiciais – iniciada em 17.3.2021, pode-se prolongar, na actual fase de inquérito e até à dedução da acusação, por 6 meses nos termos do art.º 215º n.os 1 al.ª a) e 2 do CPP e 21º n.º 1, 24º al.ª b) e 51º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 –  portanto, até 17.9.2021 –, por isso que estando muito longe do seu termo final.

Motivos por que nada mais resta do que indeferir o pedido, como imediatamente segue.

III. decisão.


11. Pelo exposto, deliberando nos termos dos n.os 3 e 4 al.ª a) do art.º 223º do CPP, acordam os juízes desta secção criminal em indeferir o pedido da habeas corpus por falta de fundamento bastante.

Custas pelo Requerente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC's (art.º 8º n.º 9 do RCP e Tabela III anexa).

*

Digitado e revisto pelo relator (art.º 94º n.º 2 do CPP).

 *

Supremo Tribunal de Justiça, em 15.4.2021.



Eduardo Almeida Loureiro (Relator)



António Gama



Clemente Lima


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[1] Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal II", Editorial Verbo, p. 260. 
[2] AcSTJ de 11.11.2018 - Proc. n.º 601/16.SPBSTB-A.S1, aliás, citando o AcSTJ de 16.3.2003 - Proc. n.º 4393/03.
[3] Neste sentido, v. g., AcSTJ de 25.6.2020 - Proc. n.º 5553/19.7T8LSB-F.S1, in www.dgsi.pt.
[4] Esta por referência aos art.os 1º n.º 1 al.ª m) do CPP – que qualifica como «Criminalidade altamente organizada' as condutas que integrarem crimes de associação criminosa, tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas, tráfico de armas, tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas, corrupção, tráfico de influência, participação económica em negócio ou branqueamento» e 51º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 – que estipula que «Para efeitos do disposto no Código de Processo Penal, e em conformidade com o n.º 2 do artigo 1.º do mesmo Código, consideram-se equiparadas a casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada as condutas que integrem os crimes previstos nos artigos 21.º a 24.º e 28.º deste diploma.».
[5] E segue-se doravante muito de perto a exposição do AcSTJ de 10.4.2013, in SASTJ.
[6] AcSTJ de 20.11.2019 - Proc. n.º 185/19.2ZFLSB-A.S1, in www.dgsi.pt.
[7] AcSTJ de 20.11.2019 - Proc. n.º 185/19.2ZFLSB-A.S1, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido e para só citar alguns do mais recentes, Ac'sSTJ DE 14.10.2020 - Proc. n.º 116/18.7PAABT-B.S1, de 20.2.2020 - Proc. n.º 397/15.8GTABF-A.S1, de 8.4.2020 - Proc. n.º 679/18.7PALSB-B.S1, de 29.4.2020 - Proc. n.º 832/10.1TXCBR-R.S1 e de 22.4.2020 - Proc. n.º 4993/13.0TDLSB-J.S1, estes in ECLI - European Case Law Identifier.