Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B1105
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA INÊS
Nº do Documento: SJ200205020011057
Data do Acordão: 05/02/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1074/01
Data: 06/21/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A, e mulher B, por apenso a acção executiva que Banco C, hoje Banco D move a E, mulher F e outros reclamaram, a 12 de Março de 1998, o pagamento do capital de 73000000, acrescido de 21900000 escudos a título de juros, garantido por hipoteca sobre um prédio penhorado, o descrito na Conservatória do Registo Predial de Caldas da Rainha sob o n.º 01906/090994 da freguesia de Caldas da Rainha - Nossa Senhora do Pópulo.
Juntaram certidão de escritura notarial.
O respectivo requerimento foi subscrito apenas pelos próprios reclamantes.
Foi ordenada a notificação dos reclamantes para constituírem mandatário judicial nos termos do art.º 33º do Cód. de Procº. Civil.
Entretanto, foram apresentadas mais duas reclamações de créditos, uma pelo Estado, outra pelo próprio exequente que a instruiu com fotocópia de certidão da descrição do aludido prédio e respectivas inscrições (entre as quais a da hipoteca acima mencionada).
Em resposta à já aludida notificação, os reclamantes A e mulher juntaram procuração constituindo advogado.
Foram proferidos dois despachos a admitir liminarmente as reclamações apresentadas pelo Estado e pelo exequente, nos termos do art.º 866º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil; mas, por evidente lapso, não se proferiu idêntico despacho com referência à reclamação de A e mulher.
Não obstante, a secretaria, a 29 de Junho de 1998 e a 15 de Setembro de 1998, notificou os mandatários constituídos nos autos daqueles despachos e das reclamações apresentadas de que enviou cópia.
Mediante requerimento de 1 de Outubro de 1998, o exequente, noticiando ter recebido cópia do respeitante à reclamação de A, por mera cautela de patrocínio impugnou o crédito e a totalidade dos documentos juntos com o requerimento apresentado em juízo no dia 12 de Março de 1998 por A e mulher B.
Notificados, nos termos do art.º 867º do Cód. de Procº. Civil, os reclamantes A e mulher não responderam.

O Terceiro Juízo do Tribunal Judicial de Caldas da Rainha, por sentença de 6 de Março de 1999, julgou verificados os três créditos reclamados que, com o crédito do exequente, graduou pela seguinte ordem:
1º - os créditos do Estado;
2º - o crédito de A e mulher no montante de 73000000 escudos, de capital, e de 21900000 escudos de juros contados desde 13 de Janeiro de 1995 até 13 de Janeiro de 1998;
3º - o crédito do exequente;
4º - o crédito do mesmo exequente reclamado no apenso (1).

Em apelação do exequente, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 21 de Junho de 2001, confirmou a sentença.
Ainda inconformado, o exequente pede revista, mediante o qual pretende que seja declarada nula a sentença e, em consequência, se revoguem o acórdão recorrido e a sentença e ordenado que a mesma seja substituída por outra que dê cumprimento às disposições do Cód. de Proc.º Civil violadas ou, quando assim se não entenda, se revoguem aqueles arestos, julgando não reclamado o crédito de A e não admitido, ou indeferida a reclamação .
Na alegação o recorrente formula as seguintes conclusões:
1. A sentença é nula porque não especificou os fundamentos que levaram a tratar como reclamado um crédito graduado em 2° lugar na sentença de graduação de créditos.
2. A sentença recorrida é nula porque apresenta como fundamento a existência de um crédito reclamado nos autos que não foi sequer admitido pelo juiz do processo como prescreve o Art.º 866 do C.P.Civil.
3. A sentença recorrida é nula porque tendo tratado um crédito não admitido como crédito reclamado, aceitou que, em relação ao mesmo, tenha sido deduzida oposição e decidiu de mérito sem previamente decidir da questão controvertida proveniente da oposição deduzida.
4. Não havendo despacho de admissão, também não se iniciou a contagem do prazo de quinze dias para efeitos de impugnação, e o recorrente não tinha legitimidade para impugnar o crédito não admitido, razão porque nenhuma nulidade haveria de ser arguida no requerimento de fls. 37.
5. As duas notificações efectuadas ao mandatário do recorrente contendo cópias do requerimento de fls. 2 a 10 que motivaram o requerimento de fls.. 37, são verdadeiros actos inúteis praticados pela secretaria, ou seja, não produzem qualquer efeito processual em relação ao recorrente, não lhes sendo aplicável o regime das nulidades, nomeadamente o disposto no art.º 205º do C.P.Civil.
6. O recorrente foi induzido em erro pela secretaria judicial que lhe remeteu, por duas vezes, cópia do requerimento de fls.. 2 a 12, sem que o crédito estivesse admitido ou que tal lhe fosse ordenado pelo juiz e sem que os respectivos requerentes estivessem devidamente patrocinados por mandatário.
7. O Art.º 161º., n ° 6, do C. P. Civil dispõe que os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.
8. O momento processual em que se verifica a violação da lei é na fase da prolação da sentença, ou seja, quando senhor juiz do processo faz consignar na decisão impugnada que todos os créditos foram liminarmente admitidos quando, na verdade, não os admitiu, sendo esse o acto que ordem jurídica reprova.
9. A sentença impugnada padece de manifesto erro de julgamento pois faz-se consignar na sentença que todos os créditos foram admitidos quanto o crédito alegadamente atribuído a A e mulher não se mostra admitido em parte alguma dos autos.
10. O crédito identificado como de A não é um crédito legitimamente reclamado nos termos dos art°s. 865º., 866º. e 867º., do C.P.Civil, e, consequentemente, não pode figurar como crédito graduado na sentença de graduação de créditos proferida nos termos do art.º. 868º, do mesmo diploma legal.
11. A sentença recorrida é nula porque o crédito alegadamente atribuído a A foi graduado com base numa inscrição registral hipotecária que não se mostra devidamente comprovada por certidão junta pelos alegados reclamantes, tudo em violação da lei processual.
12. O registo da hipoteca deve ser alegado na petição de reclamação de créditos e só pode ser provado através da junção da certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial competente.
13. O requerimento de 12 de Março de 1998 é inepto enquanto petição inicial de reclamação de créditos por nele nada se afirmar quanto à origem, proveniência, natureza, prazo em que o crédito foi constituído, data do vencimento, lugar de pagamento e garantia real ou preferência de pagamento e não identifica os imóveis alegadamente objecto de garantia.
14. A sentença recorrida é nula porque graduou um crédito apenas com base num requerimento que junta uma escritura de constituição de hipoteca em que se convencionam prestações futuras, a efectuar pelo credor, o que por si só não comprova a constituição de uma obrigação.
15. Para que a escritura pública de hipoteca possa funcionar como título executivo a mesma carece de prova complementar da realização de alguma prestação em cumprimento do negócio, nomeadamente que o capital alegadamente mutuado foi posto à disposição dos devedores.
16. A escritura pública de hipoteca apresentada por A carece de prova complementar que poderia ser feita através de documento passado em conformidade com as cláusulas do negócio jurídico consubstanciado no documento em causa ou através de documento revestido de força executiva própria, pelo que nos presentes autos deveria ter sido dado cumprimento ao disposto no art.º 868º., nº1, do C. P. Civil.

NORMAS VIOLADAS
Foram violados os art.º 3º., art.º 50º, art.º 137º., art.º 161º., n° 5, art.º 193º., art°s 264, art.º 514º., e art.º 664º., Art.º 668º., n° 1, alíneas b), c) e d), art.º 865º., n° 1, art.º 866º., n° 1 e 2, art.º 867º. e art.º 868º., n° 1 todos do C. P. Civil, e art.º 371º., n° 1, e artº 687º., ambos do C. Civil.
Os reclamantes A e mulher não alegaram.
O recorrente, no presente recurso, adiciona um novo fundamento à sua impugnação do crédito de A e mulher, o da falta de título executivo, com violação do preceituado dos artºs. 50º e 865º, n.º 2, do Cód. de Procº. Civil.
Acontece que de harmonia com o disposto no art.º 676º, n.º 1, do Cod. de Proc. Civil, os recursos destinam-se a impugnar as decisões proferidas pelo tribunal recorrido pelo que não pode apresentar-se ao tribunal de recurso questão que não tenha sido submetida ao tribunal recorrido (cfr. acórdãos deste Tribunal de 24 de Março de 1992, no Boletim n.º 415, pag. 547, e de 21 de Junho de 1994, no Boletim n.º 438, pág. 390).
Por isto, e sem prejuízo do conhecimento da questão da ineptidão da petição inicial, o recurso não merece conhecimento quanto à questão da falta de título executivo.
Quanto às demais questões, o recurso merece conhecimento.

As questões a decidir são as sintetizadas nas conclusões 1º a 13º da alegação do recorrente, acima transcritas.
A matéria de facto a tomar em consideração é a adquirida no acórdão recorrido para o qual aqui se remete, nos termos do disposto nos artºs. 713º, n.º 6, e 726º, ambos do Cód. de Proc. Civil.
Aliás, a situação que ocorre é a que acima ficou descrita no relatório deste acórdão.
O aresto que vem posto em crise no presente recurso de revista não é a sentença, mas sim o acórdão recorrido. Por isto, o que cabe verificar é se a decisão proferida no acórdão se encontra viciada ou errada. A sentença, neste contexto, encontra-se ultrapassada; o que releva é que no acórdão se tenham conhecido e decidido as questões cuja resolução coubesse, mediante fundamentação coerente. O acórdão substitui a sentença.
Ora, no acórdão recorrido foram julgadas todas as questões suscitadas pelo recorrente, tendo-se apontado os respectivos fundamentos de facto e de direito. Assim, o acórdão recorrido mostra-se válido.
O que verdadeiramente cabe decidir é verificar se os desvios processuais que alegadamente ocorreram integram nulidade.
A este respeito, o Cód. de Procº. Civil, nos artºs 193º e ss, distingue entre nulidades principais e outras nulidades, as secundárias (irregularidades).
Quanto a estas, de harmonia com o disposto no art.º 200º, n.º 1, do Cód. de Procº. Civil, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

Note-se que esta possibilidade de a irregularidade ter tido influência no exame ou na decisão da causa deve ser apreciada em concreto, consoante este Tribunal decidiu mediante acórdão do Pleno de 29 de Fevereiro de 2000 (recurso n.º 88134/95).

Só relevam as irregularidades que possam ter reflexos de ordem substancial, sendo irrelevantes as infracções quando o preterido não impediu que o acto em questão atingisse o seu fim (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1956, p. 165 e Acórdão deste Tribunal de 8 de Janeiro de 1986, Boletim n.º 353, pág. 207 a 209).

Na presente espécie, sucedeu que o Mmº Juiz, por evidente lapso, não proferiu o despacho de admissão da reclamação de A e mulher a que se refere o art.º 866º, n.º 1, do Cód. de Procº. Civil.
Em lugar de proferir um só despacho a respeito das três reclamações apresentadas, o Mmº Juiz proferiu dois despachos, um para cada uma das outras reclamações, não tendo sido proferido qualquer despacho a respeito da reclamação aqui em causa.
Não obstante, a secretaria, ao proceder à notificação a que se refere o art.º 866º, n.º 2, in fine, do Cód. de Procº. Civil, inclui nela (aliás, até repetidamente) a reclamação apresentada por A e mulher, com o respectivo documento.
E o recorrente não só recebeu esta notificação como a compreendeu, tendo impugnado a reclamação de A e mulher.
Deste modo, aquele desvio processual, a omissão de um despacho de admissão da reclamação de A e mulher mediante uma fórmula meramente tabelar, idêntica às utilizadas em relação às outras duas reclamações, não impediu que a apresentação da reclamação tivesse chegado ao conhecimento do recorrente, que este a tivesse impugnado, como impugnou, e que o Tribunal houvesse depois julgado de harmonia com as provas existentes nos autos (incluindo os principais) e o direito.

Por isto, a omissão que ocorreu não produziu nulidade.
O acto praticado pela secretaria não se apresenta com um erro (e muito menos como omissão) no sentido do art.º 161º, n.º 6, do Cód. de Proc. Civil, nem como acto inútil, no sentido do art.º 137º do mesmo Código; nem induziu o recorrente em erro; pelo contrário, deu-lhe conhecimento da realidade da reclamação para que a pudesse impugnar, como aliás impugnou. Tratou-se de acto que a secretaria sempre deveria praticar, embora não por sua iniciativa.
E o princípio do contraditório, consignado genericamente no art.º 3º do Cód. de Procº. Civil, foi respeitado, precisamente porque o recorrente foi notificado de teor da reclamação apresentada e do documento oferecido com ela.
O acórdão recorrido, ao julgar verificado o crédito de A e mulher e ao graduá-lo em segundo lugar, fundamentou estas decisões, a partir da última linha de fls. 160 vº, de facto (mediante prova documental existente nos autos) e de direito.
Mais concretamente, quanto à documentação do registo da hipoteca, não resulta dos presentes autos (apenso da reclamação de créditos) que a respectiva certidão se não encontrasse nos autos principais (como é de crer que se encontrasse, atento o disposto no art.º 864º, n.º 1, segundo segmento, do Cód. de Procº Civil).
Aliás, mesmo nestes autos de reclamação de créditos foi o próprio recorrente quem juntou fotocópia dessa certidão, a qual se encontra de fls. 21 a 25, dela se alcançando a inscrição da hipoteca.

De harmonia com o princípio da aquisição processual, o meio de prova de um facto releva independentemente de ter sido carreado ao processo pela parte a quem aproveita.
Quanto à questão respeitante ao patrocínio judiciário, o caso foi de falta de constituição de advogado, a qual é regulada pelo art.º 33º, do Cód. de Procº. Civil, e não de falta insuficiência ou irregularidade de procuração, esta sim, regulada pelo art.º 40º do mesmo Código. Na verdade, a reclamação vinha assinada pelos próprios reclamantes e não por advogado. Por isto, após a constituição de advogado de harmonia com despacho proferido nos termos do art.º. 33º do Cód. de Procº. Civil, não cabia a ratificação do processado pelos mandantes, a que se refere o art.º 40º do mesmo Código. Tal ratificação careceria de qualquer sentido útil precisamente porque a reclamação já vinha subscrita pelos próprios reclamantes.
Finalmente, a decisão do acórdão recorrido enquanto considerou a reclamação apta, não se mostra violadora do disposto no art.º 193º do Cód. de Procº Civil.
Ainda que de modo sintético, os reclamantes apresentaram o pedido de admissão do crédito, que identificaram por modo suficientemente inteligível, e a sua graduação, bem como a respectiva causa de pedir, o mútuo com hipoteca que garante o seu pagamento.

É preciso não esquecer que as reclamações de crédito não iniciam a acção executiva, apenas abrem uma fase dessa acção, surgindo no seu desenvolvimento, já depois de efectuada a penhora de determinados bens e de juntar aos autos certidão dos direitos, ónus ou encargos inscritos, como se dispõe no art.º. 864º, n.º 1, do Cód. de Procº. Civil.

Por isto, o requerimento mediante o qual se formula a reclamação deve ser interpretado à luz dos elementos já existentes nos autos, nomeadamente dos factos documentados.

Daí que fosse fácil compreender o exacto alcance da reclamação apresentada e que o recorrente tivesse impugnado o crédito reclamado sem ter sentido necessidade de arguir a ineptidão do requerimento da reclamação.
Conclui-se, desta sorte, que no acórdão recorrido se não violou qualquer dos preceitos legais apontados pelo recorrente.

Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em :
a) não tomar conhecimento do recurso quanto à questão da falta de título executivo;
b) negar revista quanto às demais questões
Custas pelo recorrente

Lisboa, 2 de Maio de 2002
Agostinho Manuel Pontes de Sousa Inês,
Ilídio Gaspar Nascimento Costa,
Dionísio Alves Correia.
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(1) - Ao proferir a sentença aquele Tribunal teve presentes todos os documentos existentes nos autos, nomeadamente os dos autos principais de que a reclamação de créditos constitui apenso.