Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
138/02.0PASRQ.L1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE DIREITO
COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
EXTEMPORANEIDADE
LESADO
REPRESENTAÇÃO EM JUÍZO
ADVOGADO AUSENTE
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
ADIAMENTO
NULIDADE
IRREGULARIDADE
PRINCÍPIO DA INVESTIGAÇÃO
PRINCÍPIO DA ADESÃO
EXAME
PERITO
PERÍCIA MÉDICO-LEGAL
MEIOS DE OBTENÇÃO DA PROVA
PROVA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/03/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - É entendimento comum que não é da competência do STJ conhecer dos vícios aludidos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, como fundamento de recurso, quando invocados pelos recorrentes, uma vez que o conhecimento de tais vícios sendo do âmbito da matéria de facto, é da competência do Tribunal da Relação (arts. 427.º e 428.º, n.º 1, do CPP).
II - Daí que o STJ como tribunal de revista, apenas conheça de tais vícios oficiosamente, se os mesmos se perfilarem no texto da decisão recorrida ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, uma vez que o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 434.º do CPP).
III -O tribunal vocacionado para o reexame da matéria de facto é o da Relação, a quem cabe, em última instância, decidir a matéria de facto. Se o agente intenta ver reapreciada a matéria de facto, esta e a de direito, ou só a de direito, recorre para a Relação; se pretende ver reapreciada exclusivamente a matéria de direito recorre para o STJ, no condicionalismo restritivo vertido nos arts. 432.º e 434.º do CPP, pois que este tribunal, salvo nas circunstâncias exceptuadas na lei, não repondera a matéria de facto.
IV - A questão da tempestividade ou não de apresentação de pedido de indemnização civil é questão de facto estranha aos poderes de cognição do STJ, que apenas pode sindicar se a decisão recorrida se pronunciou sobre ela, uma vez que constituía fundamento de recurso interposto.
V - O lesado pode fazer-se representar por advogado, sendo obrigatória a representação sempre que, em razão do valor do pedido, se deduzido em separado fosse obrigatória a constituição de advogado, nos termos da lei do processo civil – cf. art. 76.º, n.º 2, do CPP.
VI - A falta do assistente ou das partes civis à audiência não confere direito ao adiamento desta “o assistente e as partes civis são, nesse caso, representados para todos os efeitos legais pelos respectivos advogados constituídos” - art. 331.º, n.º 1, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3, do CPP.
VII - E, mesmo que haja falta do representante do assistente ou das partes civis, não sendo o procedimento dependente de acusação particular, “a audiência prossegue, sendo o faltoso admitido a intervir logo que comparecer ”- cf. art. 330.º, n.º 2, do CPP.
VIII - O não cumprimento formal do estabelecido no art. 348.º do CPP, não integra nulidade, por não se encontrar legalmente prevista, nem a falta do sujeito processual que apresentou a testemunha, ou do seu advogado, constitui nulidade, uma vez que dessa falta não decorre a obrigatoriedade do adiamento da audiência, pelo que a situação a verificar-se integra mera irregularidade que se não for arguida no acto fica suprida, nos termos do art. 123.º do CPP.
IX - Como salienta Maia Gonçalves in CPP, anotado, Legislação complementar, 17.ª ed., 2009, pág. 797, “manteve-se o sistema que anteriormente vigorava quanto à inquirição de testemunhas na audiência de julgamento. Designadamente, não se evoluiu para um sistema marcadamente acusatório e de passividade judicial, porque se entendeu que isso prejudicaria uma correcta incidência do princípio da investigação”.
X - E, é nessa óptica do princípio da investigação, que os juízes e jurados podem, a qualquer momento, formular à testemunha as perguntas que entenderem necessárias para esclarecimento do depoimento prestado e para boa decisão da causa, como resulta do disposto no n.º 5 do referido art. 348.º.
XI - A apresentação do pedido de indemnização civil em processo penal, decorre do princípio da adesão e subordina-se às regras do processo penal, onde a intervenção processual do lesado restringe-se à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos assistentes.
XII - Um exame médico-legal tem valor de prova pericial, uma vez que assenta em juízos científicos. Não constitui um meio de obtenção de prova, uma vez que não é um exame que se resuma a descrição de vestígios e suas características, mas sim, um meio de prova – pericial – na medida em que valora cientificamente os vestígios observados.
XIII - A perícia é realizada em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado ou, quando tal não for possível ou conveniente, por perito nomeado de entre pessoas constantes de listas de peritos existentes em cada comarca, ou na sua falta ou impossibilidade de resposta em tempo útil, por pessoa de honorabilidade e de reconhecida competência na matéria em causa – art. 152.º, n.º 1, do CPP.
XIV - Apenas quando a perícia se revelar de especial complexidade ou exigir conhecimentos de matérias distintas, pode ela ser deferida a vários peritos funcionando em moldes colegiais ou interdisciplinares – n.º 2 do mesmo preceito.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
-
Nos autos de processo comum. (intervenção do Tribunal Colectivo) com o n.º 138/02.0PASRQ.L1 do Tribunal de São Roque do Pico, o arguido AA, com os demais sinais dos autos, foi acusado pelo Ministério Público que lhe imputou a prática dos seguintes crimes:
- um crime de roubo, p. p. pelo artº 210° , n° 2 , com referência ao artº 144° , al.s b) e c);
- um crime de sequestro, p. p. pelo artº 158° , n° 2 , alínea b) , com referência ao artº 144° , al.s b);
- um crime de coacção, p. p. pelo artº 154° , n° 1;
- dois crimes de ameaça , p. p. pelo artº 153° , n° 1, todos do Código Penal.

Deduziram pedido de indemnização civil contra o arguido:

O Assistente BB, dele reclamando o pagamento da quantia global de € 257.382,22, dos quais € 100.000 por danos não patrimoniais.

O Instituto de Gestão de Regimes de Segurança Social, peticionando a quantia de € 22.731,11 referente a subsídio provisório de doença e, a pensão de invalidez - paga pelo demandante desde 01.11.2005 a Abril de 2008 - a quantia de € 13.046,35, pedindo a condenação do arguido no pagamento da quantia global de € 35.777,46, bem como do valor das pensões que se vencerem até ao encerramento da audiência de julgamento.

Realizado o julgamento, foi proferido acórdão em 6 de Dezembro de 2008, que decidiu

“- absolver o arguido AA da prática de um crime de roubo, um crime de sequestro, um crime de coacção e de dois crimes de ameaça de que vinha acusado;
- condenar o arguido AA autor material da prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. p. pelo artº 143º, nº 1 e, consequentemente, condená-lo na pena de duzentos e oitenta (280) dias de multa, à taxa diária de € 12 (doze euros);
Na parcial procedência do pedido de indemnização civil, condena-se o demandado AA a pagar:
- ao demandante BB a quantia global de quarenta mil quinhentos e sete euros e cinquenta e seis cêntimos (€ 40.507,56), a título de danos patrimoniais e a quantia de quarenta mil euros (€ 40.000) a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros à taxa de 4% , contados da notificação para a contestação, até integral pagamento ;
- e ainda os valores que forem apurados em liquidação em execução de sentença referentes às deslocações efectuadas em Lisboa, à alimentação, às consultas, aos exames médicos e aos medicamentos suportados pelo assistente, que não tiverem sido já considerados, bem como os valores que deixou de auferir mensalmente contabilizados desde 01.01.2009 até atingir os 70 anos de idade e os lucros referentes à sociedade de que é co-titular;
- ao demandante Instituto de Gestão de Regimes de Segurança Social a quantia global de trinta e oito mil e noventa e quatro euros e vinte e quatro cêntimos (38.094,24), acrescida de juros à taxa de 4%, contados da notificação para a contestação, até integral pagamento.
Mais se condena o arguido nas custas do processo, que se fixa em 4UC, no mínimo de procuradoria e 1% da taxa de justiça a favor das vítimas.
Custas do pedido civil do assistente na proporção do decaimento e do pedido civil do demandante Instituto de Gestão de Regimes de Segurança Social a cargo do demandado.”

O arguido, inconformado com a decisão e, também com o despacho de fls. 567/568, que indeferiu a perícia médico-legal que tinha requerido a fls. 469, recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que por seu douto acórdão de 10 de Novembro de 2009, proferiu a seguinte decisão:
“Em conformidade com o exposto, julga-se improcedente o recurso intercalar e parcialmente procedente o recurso da decisão final, interpostos pelo arguido AA e, em consequência:
- revoga-se o acórdão recorrido na parte em que condenou o arguido a pagar ao assistente “os valores que forem apurados em execução de sentença referentes … aos lucros da sociedade de que é co-titular”;
- confirma-se, quanto ao mais, a mesma decisão.

Custas pelo recorrente, pelo decaimento parcial, fixando-se a taxa de justiça em seis (6) UC – art. 87.º, n.ºs 1, al. b) e 3, do CCJ.”

De novo inconformado, veio o arguido recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões na motivação do recurso:

1. A nulidade da notificação ao Assistente para vir deduzir o seu pedido de indemnização civil, fica sanada se este vier apresentá-lo, ainda que fora de tempo, sem invocar a dita nulidade.
2. Apresentado o pedido de indemnização civil sem ser por articulado e fora de prazo, não pode este ser considerado em sede de audiência de julgamento.
3. O Pedido de Indemnização civil apresentado pela Segurança Social deveria, por isso, ter sido julgado extemporâneo, mesmo considerando a deficiente notificação, pois apesar dela a Segurança Sócia! apresentou-o {praticando o acto), e não invocou a dita nulidade.
4. Ao decidir como decidiu, o acórdão ora recorrido, tal como a primeira instância, violou o disposto no n.º 1 al. c) e 2 do art. 1202 do Cód. Proc. Penal.
5. Cabe ao Assistente e às partes cíveis, em sede de audiência de discussão e julgamento, promover a produção da prova de modo a dar como provados os factos que alegaram nos seus pedidos civis.
6. Não estando o Assistente Segurança Social presente em audiência de julgamento, nem devidamente representada por advogado, não podia o tribunal de primeira instância dar como provados os seus pedidos, por não ter sido produzida qualquer prova.
7. O Tribunal da Relação ao manter, nesta parte, a decisão de primeira instância, violou o arco normativo constituído pelos art. 330.^; 331.9, n.s 1 e 3; art. 79.9, n.s 1 e 2 e 365.º do Cód. Proc. Penal.
8. Os exames e as perícias são coisas distintas. Só estas valem como meio de prova, e devem ser realizadas por peritos, como tal reconhecidos, e pela forma vinculada constante dos art. 1619 a 1639 do CPP.
9. O perito é alguém que detém conhecimentos superiores ao homem médio, que é um especialista na sua área e na área sobre qual deve incidir a perícia a realizar, conhecimentos essenciais para poderem explicar a forma como determinados facto ou fenómenos ocorrem.
10. Não pode ser perito, nem ser considerado como tal, alguém que, em sede de julgamento declara não ser especialista na matéria sobre que recaiu a perícia. O Dr. CC, ouvido em julgamento como perito, declarou expressamente ser médico de clínica geral e não ter conhecimentos na área da psiquiatria forense e menos ainda do foro psico-traumático.
11. Considerando que o seu depoimento teve por objecto o saber se das lesões sofridas pelo assistente, poderiam resultar danos do foro psicológico, nem de que forma aqueles se produziram, é manifesto que o Sr. Perito não estava em condições para prestar ao tribunal o melhor esclarecimento sobre a matéria.
12. Arriscamo-nos a afirmar ser categoricamente impossível que o douto Tribunal ora recorrido tivesse conseguido perceber como se produziram as alegadas sequelas no ofendido e qual a sua relação com os factos imputados ao arguido: foram causa? Foram potenciadores? ou foram meramente incidentais de todo o processo?.
13. E essa omissão nada tem a ver com o sugerido ónus de defesa do arguido, na medida em que não se trata de um jogo mais ou menos especulativo entre médicos arrolados pelo o fendido e pelo arguido, mas sim com a descoberta pura e simples da verdade material de um facto, absolutamente essencial para a boa decisão da causa.
14. O Acórdão ora recorrido, ao ter mantido a decisão da primeira instância quanto à validade do depoimento do Dr. CC, como perito, violou o disposto nos art. 151º a 163º do Cód. Proc. Pena!.
15. O depoimento a prestar em audiência de julgamento por peritos tem necessariamente por objecto a perícia por eles anteriormente realizada, respondendo e clarificando quesitos, ou seja - prestando esclarecimentos complementares.
16. Nos presentes autos não foi realizada qualquer perícia ao Assistente, apesar de, por duas vezes, ter sido requerida pelo arguido. O que houve foi um exame médico, realizado pelo Dr. CC, ao assistente, ainda em sede de inquérito, para apuramento das lesões por ele sofridas em consequência das agressões.
17. Não havendo perícia, não pode haver perito a prestar esclarecimentos ou a confirmar perícias em sede de audiência de julgamento, conforme erradamente se pode ler do douto acórdão em recurso.
18. Neste ponto, o Tribunal da Relação, violou igualmente o disposto nos art. 151º a 153º do Cód. Proc. Penal.
19. Não valendo o depoimento do Dr. CC, não deve ser dado por provado o nexo causal entre as agressões e as lesões do foro psicológico sofrido pelo Assistente, que por isso, e por elas, não deve ser responsável.

Por tudo o exposto, deverá o presente recurso ser admitido por V.as Ex.as, julgado procedente e, em consequência, ser o Acórdão da Relação de Lisboa substituído por outro que
a) Julgue extemporâneo o pedido de indemnização civil apresentado pela assistente Segurança Social, ou caso assim não se entenda, julgue-o improcedente por não provado;
b) Considere nulo o depoimento prestado pelo Dr. CC e, em consequência, dê como não provadas as lesões do foro psicológicas que o Assistente apresenta, sendo nessa parte o arguido delas absolvido do pedido cível.
Tudo de forma a fazer-se a devida e costumada JUSTIÇA
O demandante Instituto de Gestão de Regimes de Segurança Social apresentou resposta, onde conclui:

1. O recorrido não apresentou fora de prazo o seu pedido, nem teria de arguir a nulidade da sua notificação.
2. A irregularidade ocorrida na notificação do recorrido foi sanada pelo Meritíssimo Juiz "a quo" ao conceder-lhe o prazo de 10 dias para apresentar o pedido de reembolso, devidamente, mandatado por advogado.
3. O recorrido beneficiava, para alem, daquele prazo a dilação de 15 dias pelo facto de o tribunal do pleito ser em outra Ilha que não a da comarca da sede do Instituto de Regimes de Segurança Social.
4. O recorrido fez-se representar por advogado como se comprova pela procuração junto aos autos que acompanha o Pedido de Reembolso, assinado pelo mandatário indicado na procuração.
5. O Pedido de Reembolso fundamenta-se nos factos deduzidos pelo Ministério Público na acusação e na prova acarretado por esta, na medida em que ficando provado em audiência de julgamento que a incapacidade para o exercício da actividade profissional ou morte do ofendido foi provocada pelo acusado.
6. Os montantes pagos pela Segurança Social ao ofendido ou seus representantes constam de Certidão emitida pela mesma.
7. A falta do advogado do Instituto de Gestão de Regimes de Segurança Social em audiência não determina a nulidade da mesma.
8. Porquanto, a falta de mandatário implicaria apenas o adiamento da audiência, como o prevê o artigo 330° n.2 do CPP conjugado com o artigo 651° n.° 5 do CPC.
9. Tal falta implicaria, apenas, as cominações previstas no artigo 116° do CPC, se entretanto o Mandatário do Instituto de Regimes de Segurança Social não tivesse justificado a sua falta como, efectivamente, fez.

Por todo o exposto, deverão V. Exa manter o Acórdão recorrido no que concerne ao Instituto de Regimes de Segurança Social, por nele não se encontrar qualquer nulidade e assim, se fazenda a devida,
JUSTIÇA!
-
Neste Supremo, o Dig,mo Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se nos termo de fls dos autos, no sentido de que “carece de legitimidade. para emitir parecer neste recurso limitado ao pedido de indemnização civil, por não representar qualquer das partes.”

Colhidos os vistos legais, e inexistindo requerimento para audiência, seguiram os autos para conferência
Consta do acórdão da Relação:
“a) O Tribunal declarou provados os seguintes factos (transcrição):
1 - Em dia e mês indeterminados do ano de 2001, o arguido comprou a BB um tractor agrícola, com a matrícula..-..-.., tendo este recebido como retoma o tractor agrícola com a matrícula ..-.., àquele pertencente.
2 - Como o tractor que recebeu do arguido não trazia alguns dos acessórios que lhe pertenciam, a saber, pesos frontais, cardan e fresa, o BB não entregou ao arguido o título de registo de propriedade referente ao tractor..-..-..L.
3 - O arguido devia ao BB a quantia de € 101,70 relativa a um serviço de manutenção efectuado no tractor por aquele adquirido.
4 - Tendo em vista que lhe fosse entregue o título de registo de propriedade do tractor que adquirira, o arguido, no dia 29 de Outubro de 2002, da parte da manhã, dirigiu-se ao estabelecimento comercial do BB e, como este não se encontrava no local, por motivos profissionais, falou com a mulher dele que lhe disse que só lhe entregavam o titulo de registo de propriedade quando o arguido entregasse os acessórios em falta, pelo que o arguido se foi embora sem ter deixado os acessórios supra-referidos.
5 - Nesse mesmo dia, em momento que não foi possível concretamente apurar, arguido e BB combinaram que este se deslocaria a casa daquele, ainda no mesmo dia, para receber a quantia em dívida e os acessórios do tractor e entregar o titulo de registo de propriedade .
6 - Assim, no dia 29 de Outubro de 2002, cerca da 20.30 horas, o BB deslocou-se no seu veículo automóvel à residência do arguido, sita na Estrada Regional n° 1-2ª, freguesia da Prainha, concelho e comarca de S. Roque do Pico.
7 - Aí chegado, entrou na cozinha da residência do arguido e depois de terem falado durante alguns momentos, verificou que este não tinha nem os acessórios do tractor nem a quantia de € 101,70 para lhe entregar.
8 - Ocorreu então uma troca de palavras entre ambos, no decurso da qual houve exaltação de ânimos, tendo o arguido empurrado o BB que embateu, para além do mais, contra um vaso que ali se encontrava, o qual caiu ao solo, partiu-se e espalhou a terra que continha no seu interior.
9 - Foi então que ambos se envolveram em luta, tendo o arguido, por forma que não foi possível concretamente apurar, atingido o BB, em várias zonas do corpo com socos e/ou pontapés, provocando-lhe escoriações no nariz, face, pescoço, braços e tornozelo direito, equimoses no flanco, anca e face anterior da perna, à esquerda, fractura dos 3º e 4º arcos costais esquerdos, luxação dos condrocostais esquerdos, entorse cervical com radiculite braquial à esquerda e contusão lombar.
10 - De seguida, o arguido telefonou para DD, mulher do BB, para que esta se deslocasse a casa do arguido e levasse o título de registo de propriedade. No decurso desta conversa o BB começou a gritar que estava todo cheio de sangue e que o arguido lhe estava a bater.
11 - A DD dirigiu-se à residência do arguido na companhia da sua empregada EE.
12 - Quando chegaram ao local o arguido e o BB encontravam-se na rua, à porta da cozinha, apresentando-se o BB com sangue no nariz e a camisa rasgada tendo ocorrido uma troca de palavras entre a DD e o arguido.
13 - Perante esta situação, a DD, utilizando o seu telemóvel, pediu a intervenção da PSP que, alguns momentos depois, chegou ao local e tomou conta da ocorrência.
14 - Já com a presença da PSP o arguido pagou ao BB a devida quantia de € 101,70 e colocou no veículo deste as peças agrícolas em falta.
15 - O título de registo de propriedade foi entregue pela DD, um ou dois dias depois, na esquadra da PSP, local onde o arguido o foi buscar.
16 - BB é beneficiário da segurança social com o nº 0000000.
17 - Em 23.12.2002 foi observado em psiquiatria e, em 29.10.2005, foi-lhe diagnosticado “Síndrome Ango-Depressivo”, constituído por humor melancólico e disfórico, redução intensa da actividade psicológica, restrição dos interesses pessoais, lentidão pronunciada do curso do pensamento, tendência ao isolamento relacional, manifesta incapacidade e controle da ansiedade da contenção do sentimento do medo.
Esta afecção é profundamente incapacitante de qualquer actividade profissional.
18 - Esta doença fica a dever-se a fenómenos de reactividade pós-traumática a partir da ocorrência dos factos ora em apreço.
19 - Presentemente apresenta como sequelas, instabilidade permanente de humor, redução intensa da capacidade da adaptação às modificações do seu ambiente, perturbação do sono e da alternância sono/vigília, alteração do registo e da evocação da memória, da capacidade de concentração e da atenção, humor triste, choro fácil, tendência para o isolamento e perca de iniciativa.
20 - As lesões sofridas pelo BB em consequência da actuação do arguido foram causa directa e necessária de 1.204 dias de doença com igual tempo de incapacidade para o trabalho.
21 - O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente pretendendo com a sua actuação ofender a integridade física do BB, o que conseguiu, bem sabendo da ilicitude da sua conduta que sabia ser proibida e punida pela lei penal.
Mais se provou que
22 - O arguido é o primeiro de três irmãos nascidos numa família de estrato socioeconómico e cultural indiferenciado, sendo os pais agricultores e apresentando um baixo índice de escolaridade.
23 - Este agregado debatia-se com algumas dificuldades económicas que fazia com que o arguido tivesse de conciliar as actividades escolares com a execução de tarefas agrícolas junto do progenitor.
24 - Aos 16 anos, após a conclusão do 6º ano de escolaridade, abandonou os estudos e começou a trabalhar, inicialmente ligado à agricultura, posteriormente e durante cerca de oito anos, como funcionário dos serviços florestais da Ilha do Pico.
25 - Posteriormente, por opção, retomou a anterior actividade, organizando-se como empresário agrícola apoiado por incentivos governamentais.
26 - Casou com cerca de 22 anos, relação da qual tem um filho, actualmente com 19 anos de idade.
27 - O relacionamento conjugal caracteriza-se pela afectividade e constituiu um importante suporte à estabilidade afectivo-emocional do arguido.
28 - Socialmente o arguido assume uma atitude participativa, com vários cargos no âmbito do associativismo - Direcção do Prainha Futebol Clube, Vice-presidente da Tertúlia Tauromáquica e Presidente da Associação dos Produtores de Queijo da Ilha do Pico -, sendo-lhe reconhecidos méritos e competências pessoais e sociais.
29 - Tem boa imagem social se bem que seja considerado pessoa impulsiva e temperamental.
30 - Evidencia autocrítica relativamente às suas actuações.
31 - O agregado familiar em que o arguido está inserido vive em casa própria com boas condições de habitabilidade e conforto.
32 - O arguido possui uma exploração agro-pecuária de média dimensão e, em conjunto com a mulher, uma queijaria.
Recebe subsídio de gasóleo.
33 - Os rendimentos do arguido como agricultor são o principal meio de subsistência deste agregado, que tem prestações bancárias no valor de cerca de € 3.000 mensais e mantém um nível de vida satisfatório.
34 - Não tem antecedentes criminais e não evidenciou arrependimento.

Dos Pedidos de Indemnização Civil:

35 - Em consequência das agressões do demandado o demandante partiu os óculos e rasgou a camisa que então vestia.
36 - A recuperação do demandante foi efectuada de forma lenta, sempre sob controlo médico e com recurso às especialidades de ortopedia, oftalmologia e psiquiatria.
37 - O estado definitivo do foro ortopédico do demandante só foi atingido ao fim de 6 meses, com sub luxação de condrocostais à esquerda, radiculalgia lombar e moderada rigidez cervical e lombar .
38 - O demandante mantém tratamento psiquiátrico.
39 - Desde as agressões do demandado tem sido observado por vários médicos em várias ocasiões.
40 - Isola-se, evitando o convívio com a esposa, familiares e amigos, sendo que antes era alegre e amigo de conviver.
41 - Era comerciante, com vida activa e, desde então, não mais trabalhou.
42 - Continua a apresentar dores torácicas, desencadeadas por pequenos/médios esforços e dificuldade na atenção/concentração, com diminuição da capacidade de memorizar, perturbações do sono e sono/vigília, alteração comportamental com instabilidade emocional, prostração, perda de capacidade de adaptação e sentimento de menor-valia pessoal e isolamento social.
43 - O demandante teve um período de 30 dias de incapacidade total.
44 - Um período de 1204 dias de incapacidade temporária genérica e parcial de 90%.
45 - A data da consolidação da doença foi em 16.03.2006.
46 - Apresenta incapacidade definitiva e absoluta para a actividade profissional.
47 - O demandante teve dores consideráveis, dentro duma escala de 1) muito ligeiro; 2) ligeiro; 3) moderado; 4) médio; 5) considerável; 6) importante e 7) muito importante.
48 - Apresenta dano estético ligeiro, tendo em conta a escala antes referida e um prejuízo de afirmação pessoal apreciável classificável em 3, numa escala de 1 a 5.
49 - O demandante deslocou-se a Lisboa para consultas e exames médicos por diversas vezes, bem como tomou diversos medicamentos.
50 - Assim, deslocou-se a Lisboa de 18 de Dezembro de 2002 a 5 de Janeiro de 2003, sendo acompanhado pela esposa, tendo feito as seguintes despesas:
a) pagou à Transmaçor de idas e voltas Madalena-Horta € 0,60 e € ,50 de transporte de mercadorias;
b) em transportes públicos em Lisboa (metro e carris) gastou € 77,40;
c) Aerohorta — viagem de ida e volta Horta-Lisboa na TAP € 366;
d) adquiriu um par de calças por € 60 e um casaco de pele por € 508;
f) adquiriu um par de óculos por se terem partido os tinha quando da ocorrência dos factos, o que importou em € 542;
g) em consultas médicas gastou € 330;
h) em medicamentos gastou € 280,41;
i) em refeições gastou € 662,75;
j) gastou de transporte em táxis € 13,15.
51 - Deslocou-se a Lisboa de 11 a 26 de Abril de 2003, sendo acompanhado pela esposa, tendo feito as seguintes despesas:
a) pagou à Transmaçor de idas e voltas Madalena-Horta € 11;
b) em transportes públicos em Lisboa (metro e carris) gastou € 43,50;
c) Aerohorta — viagem de ida e volta Horta-Lisboa na TAP €384,08;
d) em consultas médicas gastou €142;
e) em medicamentos gastou €120,72;
f) em refeições gastou €662,73;
52 - Deslocou-se a Lisboa de 16 de Agosto de 2003 a 15 de Setembro de 2003, sendo acompanhado pela esposa, tendo feito as seguintes despesas:
a) pagou à Transmaçor de idas e voltas Madalena-Horta €11;
b) em transportes públicos em Lisboa (metro e carris) gastou €47,25;
c) Aerohorta — viagem de ida e volta Horta-Lisboa na TAP €406,08;
d) em consultas médicas gastou €277;
e) em refeições gastou €1.239,05;
53 - Deslocou-se a Lisboa de 19 de Dezembro de 2003 a 4 de Janeiro de 2004, sendo acompanhado pela esposa, tendo feito as seguintes despesas:
a) pagou à Transmaçor de idas e voltas Madalena-Horta €11;
b) em transportes públicos em Lisboa (metro e carris) gastou €19,25;
c) transporte em táxis €15,70;
d) Aerohorta — viagem de ida e volta Horta-Lisboa na TAP €406,08;
e) em consultas médicas gastou €132;
f) em medicamentos gastou €363,77;
g) em refeições gastou €438,27;
54 - Deslocou-se a Lisboa de 28 de Maio a 11 de Junho de 2004, sendo acompanhado pela esposa, tendo feito as seguintes despesas:
a) pagou à Transmaçor de idas e voltas Madalena-Horta €11,20;
b) em transportes públicos em Lisboa (metro e carris) gastou €53,55;
c) transporte em táxis €32,05;
d) Aerohorta — viagem de ida e volta Pico-Terceira-Lisboa na TAP €662,40;
e) em consultas médicas gastou €85;
f) em medicamentos gastou €94,36;
g) em refeições gastou €615,40;
55 - Deslocou-se a Lisboa de 21 de Julho a 20 de Agosto de 2004, sendo acompanhado pela esposa, tendo feito as seguintes despesas:
a) pagou à Transmaçor de idas e voltas Madalena-Horta €11,20;
b) em transportes públicos em Lisboa (metro e carris) gastou €73,15;
c) transporte em táxis €7,60;
d) Aerohorta — viagem de ida e volta Horta-Lisboa na TAP €422,64;
e) em consultas médicas gastou €85;
f) em medicamentos gastou €124,79;
g) em refeições gastou €224,29;
56 - Deslocou-se a Lisboa de 10 de Dezembro de 2004 a 5 de Janeiro de 2005, sendo acompanhado pela esposa, tendo feito as seguintes despesas:
a) pagou à Transmaçor de idas e voltas Madalena-Horta €11,20;
b) em transportes públicos em Lisboa (metro e carris) gastou €77,65;
c) transporte em táxis €8,50;
d) Aerohorta — viagem de ida e volta Horta-Lisboa na TAP €422,64;
e) em consultas médicas gastou €85;
f) em medicamentos gastou €156,69;
g) em refeições gastou €517,90;
57 - Deslocou-se a Lisboa de 4 de Junho a 24 de Julho de 2005, sendo acompanhado pela esposa, tendo feito as seguintes despesas:
a) pagou à Transmaçor de idas e voltas Madalena-Horta €12;
b) em transportes públicos em Lisboa (metro e carris) gastou €146,75;
c) transporte em táxis €43;
d) Aerohorta — viagem de ida e volta Horta-Lisboa na TAP €440,64;
e) em consultas médicas gastou €90;
f) em medicamentos gastou €263,31;
g) em refeições gastou €487,37;
58 - Deslocou-se a Lisboa de 17 de Setembro a 16 de Outubro de 2005, sendo acompanhado pela esposa, tendo feito as seguintes despesas:
a) pagou à Transmaçor de idas e voltas Madalena-Horta €12;
b) em transportes públicos em Lisboa (metro e carris) gastou €165,60;
c) transporte em táxis €8,80;
d) Aerohorta — viagem de ida e volta Horta-Lisboa na TAP €441,24;
e) em consultas médicas e exames gastou €564,80;
f) em medicamentos gastou €41,71;
g) em refeições gastou €481,45;
59 - Deslocou-se Lisboa de 27 de Dezembro de 2005 a 31 de Janeiro de 2006, sendo acompanhado pela esposa, tendo feito as seguintes despesas:
a) em transportes públicos em Lisboa (metro e carris) gastou €14,50;
b) Aerohorta — viagem de ida e volta Pico-Lisboa na TAP €441,02;
c) em consultas médicas gastou €90;
d) em medicamentos gastou €292,86;
e) em refeições gastou €311,44;
60 - Deslocou-se a Lisboa de 2 de Junho a 4 de Julho de 2006, sendo acompanhado pela esposa, tendo feito as seguintes despesas:
a) pagou à Transmaçor de idas e voltas Madalena-Horta €12,80;
b) em transportes públicos em Lisboa (metro e carris) gastou €51,70;
c) Aerohorta — viagem de ida e volta Horta-Lisboa na TAP €447,56;
d) em consultas médicas gastou €90;
e) em medicamentos gastou €24,48;
f) em refeições gastou €476,13;
61 - Deslocou-se a Lisboa de 9 de Dezembro de 2006 a 9 de Janeiro de 2007, sendo acompanhado pela esposa, tendo feito as seguintes despesas:
a) em transportes públicos em Lisboa gastou €5,90;
b) Aerohorta — viagem de ida e volta Pico-Lisboa na TAP €497,34;
c) em consultas médicas gastou €90;
d) em medicamentos gastou €227,91;
e) em refeições gastou €382,10;
62 - O demandante, em 29 de Outubro de 2002, era sócio gerente da sociedade FF , Ltdª, auferindo nesta data a quantia de €750;
63 - Em consequência das agressões perpetradas pelo arguido, o demandante ficou definitivamente impossibilitado de voltar a exercer a sua profissão e deixou de auferir a referida quantia.
64 - No período compreendido entre 30 de Outubro de 2002 e 31 de Outubro de 2005, o demandante recebeu um subsídio de doença da Segurança Social no valor global de €22.731,11;
65 - A partir de 01 de Novembro de 2005, o demandante passou a receber a quantia de €171,73 mensais, a título de pensão provisória por invalidez, por ter atingido o período máximo de concessão de subsídio de doença legalmente previsto.
66 - Esta situação perdurou até 4 de Janeiro de 2007, tendo no entanto recebido posteriormente a diferença para a pensão definitiva de €375,83.
67 - A partir de Fevereiro de 2007, o demandante passou a receber a pensão de reforma por invalidez no valor de €375,83, por mês, actualmente actualizada para €386,13 mensais.
68 - A sociedade de que o demandante é sócio, até ao ano de 2003 apresentou lucros e, nos anos seguintes, passou a apresentar prejuízos.
69 - Lucros que eram repartidos na proporção de metade para o assistente e metade para a outra sócia.
70 - O demandante, em consequência da doença de que padece em consequência da agressão do demandando, tem de continuar a deslocar-se a Lisboa para consulta e tratamento médicos.
71 - O demandante continua com dores torácicas.
72 - Em consequência da agressão de que foi vítima pelo demandado, BB sofreu as lesões já supra descritas.
73 - Em consequência, entrou de baixa médica em 30.10.2002.
74 - Desde 30.10.2002 a 31.10.2005, o Centro de Prestações Pecuniárias da Horta pagou a BB, a título de subsídio provisório de doença, a quantia global € 22.731,11 .
75 - As lesões provocadas pelo demandado no BB resultaram em incapacidade permanente para o exercício da sua profissão, tendo-lhe sido atribuído pensão por invalidez.
76 - O Centro Coordenador de Prestações Diferidas, desde 0.11.2005, paga ao BB uma pensão de invalidez , em prestações mensais e iguais no valor de €386,13 cada e , no período compreendido entre 01 de Novembro de 2005 e 30 de Setembro de 2008 , entregou ao BB a quantia global de €15.363,13».
*
b) Factos não provados:
«- o arguido devia ao BB a quantia de €101,70 a título de pagamento do tractor ;
- a partir do momento em que ocorreu o negócio entre o arguido e o BB as relações entre ambos deterioraram-se e passaram a ser quezilentas ;
- o arguido telefonou ao BB dizendo-lhe que nesse mesmo dia , da parte da tarde , ia ter com ele ao seu estabelecimento comercial , sito na ilha do Faial , a fim de lhe entregar as peças em falta , a saber , os pesos frontais , o cardan e a fresa , tendo-se este comprometido a fazer a entrega do título do registo de propriedade do tractor que lhe havia vendido ;
- após breve troca de palavras entre o BB e o arguido , em casa deste , aquele decidiu abandonar o local , pelo que se dirigiu ao seu veículo automóvel e entrou no mesmo com o intuito de regressar a sua casa e , quando já se encontrava sentado ao volante o arguido , após ter aberto a porta do veículo automóvel , agarrou-o pelo blusão de cabedal , rasgando-o bem como à camisa , puxou-o para o exterior , no que não foi bem sucedido porque o BB se agarrou ao volante ;
- de Seguida o arguido desferiu-lhe um soco na cara , após o que lhe deitou as mãos ao pescoço , apertando com tal violência que desmaiou ;
- quando recuperou os sentidos , o BB encontrava-se deitado no solo , com a; carteira que trazia no bolso das calças aberta no solo , com todos os documentos espalhados ;
- o arguido agrediu o ofendido ao ponto de o pôr inconsciente com o propósito concretizado de se apoderar da carteira que o mesmo trazia consigo no bolso das calças e na qual pensava estar o título do registo de propriedade do tractor que aquele lhe vendera , com o intuito de se apoderar do mesmo contra a sua vontade e conhecimento e , como não encontrou o documento que pretendia , aproveitando-se do facto do BB se encontrar prostrado no solo , agrediu-o violentamente a pontapé , atingindo-o indiscriminadamente em várias partes do corpo , após o que o agarrou pelos pés e arrastou-o cerca de quatro metros pelo asfalto até à entrada da cozinha do sua residência que fica ao nível do rés-do-chão , tendo , porém que subir dois a três degraus , sempre a arrastá-lo até ao interior da aludida dependência ;
- de seguida , o arguido pegou numa lanterna , dirigiu-se ao veículo do ofendido que se encontrava aberto e regressou com uma pasta na mão , a qual obrigou o BB a abrir sob ameaça de mais agressões físicas , para verificar se o título de registo de propriedade ai se encontrava ;
- como tal documento não se encontrava na referida pasta , o arguido voltou a agredir violentamente o BB a soco e a pontapé , atingindo-o em diversas partes do corpo , impedindo-o de abandonar a sua residência e de contactar com quem quer que fosse , retirando-lhe o seu telemóvel , o qual colocou no veículo deste ;
- depois de o agredir disse-lhe “que ia buscar uma faca para o matar se não lhe desse o título de registo de propriedade” , expressão que proferiu em voz alta , deliberada , livre e conscientemente , com foros de seriedade e por forma a perturbar o sentimento de segurança do ofendido e a afectá-lo na sua liberdade ;
- o BB esteve retido na cozinha do arguido contra a sua vontade e sem o seu consentimento , impedido pela força física de abandonar o local e de contactar com alguém cerca de trinta minutos ;
- quando a DD chegou a casa do arguido bateu à porta da cozinha , que lhe foi aberta por este , entrou e deparou com o seu marido encostado a um móvel ;
- a EE questionou de imediato o arguido sobre a razão de comportamento tão cruel , tendo-se este virado para si dizendo-lhe : “que havia de dar cabo daquilo que ela mais queria” , referindo-se ao marido e à filha do casal , o que fez em voz alta , deliberada , livre e conscientemente , com foros de seriedade e por forma a perturbar o sentimento de segurança da ofendida e a afectá-la na sua liberdade ;
- o arguido quis apoderar-se da carteira do BB com o intuito de se apoderar do título de registo de propriedade do tractor de matrícula ..-..-.. que pensava estar no seu interior , sem o consentimento e contra a vontade daquele , sem que cumprisse a sua obrigação negocial , isto é , a entrega àquele da quantia em dívida de €101,70 e das peças do tractor que lhe havia vendido , a saber , pesos frontais , cardan e fresa ;
- o arguido quis privar e privou o BB da sua liberdade , de forma a pressioná-lo a fazer a entrega do aludido documento ;
- quis e conseguiu que o ofendido contra a sua vontade , sob ameaça de mais agressões físicas , abrisse a pasta preta que fora buscar ao seu veículo automóvel para verificar se o título de registo de propriedade se encontrava no seu interior para , em caso afirmativo , se apoderar do mesmo ;
- quis e conseguiu afectar o sentimento de segurança de BB e mulher DD e a afectá-los na sua liberdade ;
- o demandante sofreu traumatismo craniano e apresentava escoriações na região lombo sagrada ;
- o demandante necessitava da companhia da mulher nas suas deslocações a Lisboa , dado o seu estado de saúde que não permitia deslocar-se sozinho ;
- adquiriu uma camisa para substituir a danificada pelo arguido por €105 ;
- nos anos de 2001 , 2002 e 2003 , os lucros da sociedade de que o demandante é sócio foram , respectivamente, de €4.050,99 , €1.698,42 e €3.447,99 e que a parte dos lucros que cabia ao demandante era de €1.532,90 ;
- o demandante , nas deslocações a Lisboa para consultas e tratamentos gastará , no mínimo por ano , €1.500.»

Cumpre apreciar e decidir.

I - O recorrente, na motivação de recurso - sem que depois inscreva nas respectivas conclusões - refere que este tem por objecto “ainda, nos termos do artº 410º, ao erro na apreciação da prova e insuficiência de factos provados para estabelecimento do nexo causal entre as ofensas sofridas pelo assistente e as alegadas sequelas delas decorrentes, no que tange ao suposto depoimento da testemunha/perito médico, Dr. CC.”

Ora, é entendimento comum que não é da competência do Supremo Tribunal de Justiça conhecer dos vícios aludidos no artigo 410º nº 2 do CPP, como fundamento de recurso, quando invocados pelos recorrentes, uma vez que o conhecimento de tais vícios sendo do âmbito da matéria de facto, é da competência do tribunal da Relação. (artºs 427º e 428º nº 1 do CPP)
Daí que o Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de revista, apenas conheça de tais vícios oficiosamente, se os mesmos se perfilarem no texto da decisão recorrida ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, uma vez que o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame da matéria de direito (artº 434º do CPP).
Como decidiu o Acórdão de 8-11-2006, deste Supremo Tribunal, in Proc. n. 3102/06- desta 3.a Secção, os vícios elencados no art. 410º, nº 2, do CPP, pertinem à matéria de facto; São anomalias decisórias ao nível da confecção da sentença, circunscritos à matéria de facto, apreensíveis pelo seu simples texto, sem recurso a quaisquer outros elementos a ela estranhos, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito. Também o apelo ao princípio in dubio pro reo respeita à matéria de facto.
O tribunal vocacionado para o reexame da matéria de facto é o da Relação, a quem cabe, em última instância, decidir a matéria de facto - arts. 427º e 428º do CPP.
Se o agente intenta ver reapreciada a matéria de facto, esta e a de direito, ou só a de direito, recorre para a Relação; se pretende ver reapreciada exclusivamente a matéria de direito recorre para o STJ, no condicionalismo restritivo vertido nos arts. 432º e 434º do CPP, pois que este tribunal, salvo nas circunstâncias exceptuadas na lei, não repondera a matéria de facto.
O entendimento expresso não foi alterado pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto, que procedendo a alterações ao Código de Processo Penal, manteve nos precisos termos o conteúdo dos artigos 410º, 427º, 428º, exclusivamente com referência ao seu anterior nº 1 e e, 434º do CPP.
Sobre matéria de facto, o artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, não confere a obrigatoriedade de um terceiro grau de jurisdição, assegurando-se o direito ao recurso nos termos processuais admitidos pela lei ordinária.

Acresce que a Relação sindicou a decisão recorrida quanto aos vícios constantes do artº 410º nº 2 do CPP e concluiu pela sua inexistência, nomeadamente no que ora foi invocado.
Diga-se aliás, que não se perfilam no texto do acórdão da Relação, conjugado com as regras da experiência comum, qualquer desses vícios.
II - Alega o recorrente que:
A nulidade da notificação ao Assistente para vir deduzir o seu pedido de indemnização civil, fica sanada se este vier apresentá-lo, ainda que fora de tempo, sem invocar a dita nulidade.
Apresentado o pedido de indemnização civil sem ser por articulado e fora de prazo, não pode este ser considerado em sede de audiência de julgamento.
O pedido de Indemnização civil apresentado pela Segurança Social deveria, por isso, ter sido julgado extemporâneo, mesmo considerando a deficiente notificação, pois apesar dela a Segurança Sócia! apresentou-o {praticando o acto), e não invocou a dita nulidade.
Ao decidir como decidiu, o acórdão ora recorrido, tal como a primeira instância, violou o disposto no n.º 1 al. c) e 2 do art. 120º do Cód. Proc. Penal.

Analisando:

Desde logo cumpre dizer que as disposições legais citadas pelo recorrente não se conjugam com o suporte da fundamentação que invoca, pois que o nº 1 do artº 120º do CPP não tem alíneas, e se a alínea c) invocada pretende referir-se ao nº 2 do mesmo artigo, verifica-se que alude essa alínea “A falta de nomeação de intérprete, nos casos em queda lei a considerar obrigatória”, situação não aplicável à questão suscitada.
Poderia porventura entender-se que pretendeu invocar a alínea b) do nº 2 do mesmo preceito que se refere “A ausência por falta de notificação, do assistente e das partes civis, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência.”
Mas se assim for, este desiderato também não se verifica pois que assistente e parte civil intervieram no processo, sendo que se se discutisse qualquer nulidade decorrente da notificação da assistente, relacionada com a dedução do pedido de indemnização civil, sempre estaria suprida por força da alínea b) do nº 2 do mesmo preceito,

O recorrente porém, invoca a nulidade com fundamento em omissão de pronúncia, pois a fls 953 da motivação do recurso alega que “essa questão não foi apreciada no douto acórdão agora em recurso” (que reitera a fls 954), o que remete para o artº 379º nº 1 al. c) do CPP.

Ora, examinando o acórdão recorrido, verifica-se que o mesmo se pronunciou acerca da questão posta, que tinha sido colocada no recurso interposto para a Relação,
Como se escreve no acórdão da Relação:

“d) Invoca o recorrente haver nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia relativamente à contestação do pedido civil apresentado pela Segurança Social, nomeadamente quanto à sua extemporaneidade.

No despacho que recebeu a acusação (fls. 368 v.º) foi ordenado o cumprimento do disposto no art. 2.º, n.º 3. do DL 59/89, de 22/02. Cumprido a fls. 397, veio a Segurança Social apresentar pedido de reembolso, conforme resulta de fls. 415.

Porém, por despacho de 4/3/2008 (fls. 431), considerou-se que o pedido não sido correctamente formulado e ainda que aquela instituição não tinha sido correctamente notificada, pelo que foi ordenada a repetição da sua notificação para, em 10 dias, apresentar novo pedido de reembolso em requerimento devidamente articulado e subscrito por advogado.

Tentada uma primeira notificação para uma morada incorrecta, foi ela repetida, via postal, em 10/03/2008 (fls. 444 e 451).

A Segurança Social apresentou o respectivo pedido de reembolso das prestações pagas em 28/03/2008 (fax de fls. 511 e segs.), o qual foi liminarmente admitido por despacho de fls. 567.

Notificado o arguido para contestar, veio este arguir a intempestividade do pedido, alegando que foi apresentado apenas em 3/4/2008.

O arguido teve em consideração a data de apresentação em tribunal do original do articulado respectivo, não atentando na data do envio da mesma peça processual por fax.

Efectuado o julgamento, o tribunal não rejeitou o pedido da Segurança Social, antes pelo contrário, dele conheceu, condenando o demandado a pagar àquela a quantia peticionada.

Embora não haja uma declaração expressa nesse sentido por parte do tribunal, terá de entender-se que este considerou tempestivo o pedido, caso contrário dele não teria conhecido.

Pelo que o que está neste momento em causa não é um problema de nulidade por não ter o tribunal conhecido de uma questão que devia conhecer, porquanto, ao conhecer do mérito do pedido, está pressuposto que o considerou tempestivo, o que resta como questão controvertida é a de saber se aquele pedido foi efectivamente tempestivo ou se, pelo contrário, foi apresentado fora de prazo, como alega o recorrente.

Desde logo há lapso deste, quando refere a data de 3/4/2008 como sendo a da prática do acto, quando este foi realmente praticado em 28/3/2008.

Por outro lado, o respectivo prazo esteve suspenso durante as férias judiciais da Páscoa - de domingo de Ramos à segunda-feira após a Páscoa (de 16 a 24 de Março) -, pelo que, tendo em conta a data de envio da carta e o disposto nos arts. 113.º, n.ºs 2 e 3, 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 1, do CPP, não pode deixar de considerar-se tempestivo o pedido formulado, improcedendo, também nesta parte, o recurso.”

A questão da tempestividade ou não de apresentação de pedido de indemnização civil é questão de facto estranha aos poderes de cognição do Supremo, que apenas pode sindicar se a decisão recorrida se pronunciou sobre ela, uma vez que constituía fundamento de recurso interposto.

A Relação equacionou devidamente a questão e dela conheceu pelo que não houve omissão de pronúncia, inexistindo a nulidade invocada.

III- Alega o recorrente que:
Cabe ao Assistente e às partes cíveis, em sede de audiência de discussão e julgamento, promover a produção da prova de modo a dar como provados os factos que alegaram nos seus pedidos civis.
Não estando o Assistente Segurança Social presente em audiência de julgamento, nem devidamente representada por advogado, não podia o tribunal de primeira instância dar como provados os seus pedidos, por não ter sido produzida qualquer prova.
O Tribunal da Relação ao manter, nesta parte, a decisão de primeira instância, violou o arco normativo constituído pelos art. 330.º; 331., n.s 1 e 3; art. 79.º, n.s 1 e 2 e 365.º do Cód. Proc. Penal.

Analisando:

O lesado pode fazer-se representar por advogado, sendo obrigatória a representação sempre que, em razão do valor do pedido, se deduzido em separado fosse obrigatória a constituição de advogado, nos termos da lei do processo civil. – artº 76º nº 2 do CPP

A falta do assistente ou das partes civis á audiência não confere direito ao adiamento desta. “o assistente e as partes civis são, nesse caso, representados para todos os efeitos legais pelos respectivos advogados constituídos.”- artº 331º nº 1, sem prejuízo do disposto nos nº 2 e 3, do CPP,

E, mesmo que haja falta do representante do assistente ou das partes civis, não sendo o procedimento dependente de acusação particular, “a audiência prossegue, sendo o faltoso admitido a intervir logo que comparecer.”- artº 330º nº 2 do CPP.

Ora como refere o acórdão recorrido:

“e) Foi invocada a nulidade da decisão recorrida no que concerne ao pedido cível, decorrendo aquele vício da falta de patrocínio da Segurança Social em audiência de julgamento.

A demandante constituiu mandatária, que subscreveu o respectivo pedido.

Não compareceu aquela efectivamente no julgamento, o que não só não constitui fundamento para adiamento deste, como não integra tal ausência qualquer nulidade. Estas obedecem ao princípio da legalidade (art. 118.º, do CPP), não estando prevista na lei, como tal, a falta do mandatário de um demandante à audiência de julgamento, cuja presença, aliás, não é obrigatória (art. 330.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPP).

Por outro lado, as nulidades, quando não têm a natureza de insanáveis – e só o são as do art. 119.º, do CPP ou as expressamente previstas como tal em outra disposição legal – só podem ser arguidas por quem delas possa tirar proveito, neste caso o próprio Instituto da Segurança Social, o qual, após ter tomado conhecimento da decisão final proferida, não reagiu – obteve total provimento o respectivo pedido -, tendo respondido ao recurso do arguido sem que tenha vindo invocar qualquer nulidade.

Nessa conformidade, consigna-se que não ocorreu a nulidade invocada pelo recorrente.”


Como conclui o demandante Instituto de Gestão de Regimes de Segurança Social nas conclusões 4 e 6 “o recorrido fez-se representar por advogado como se comprova pela procuração junto aos autos que acompanha o Pedido de Reembolso, assinado pelo mandatário indicado na procuração.” “A falta do advogado do Instituto de Gestão de Regimes de Segurança Social em audiência não determina a nulidade da mesma.”

Por outro lado, e em outra perspectiva:
O artigo 348º dispõe que a testemunha é inquirida por quem a indicou, sendo depois sujeita a contra-interrogatório, conforme nº 4 do artº 348º do CPP.
Mas o não cumprimento formal desta determinação legal, não integra nulidade, por não se encontrar legalmente prevista, nem a falta do sujeito processual que apresentou a testemunha, ou do seu advogado, constitui nulidade, uma vez que dessa falta não decorre a obrigatoriedade do adiamento da audiência, pelo que a situação a verificar-se integra mera irregularidade que se não for arguida no acto fica suprida, nos termos do artº 123º do CPP.
Como salienta Maia Gonçalves in Código de Processo Penal, anotado – Legislação complementar, 17ª edição – 2009, p. 797, “manteve-se o sistema que anteriormente vigorava quanto à inquirição de testemunhas na audiência de julgamento. Designadamente, não se evoluiu para um sistema marcadamente acusatório e de passividade judicial, porque se entendeu que isso prejudicaria uma correcta incidência do princípio da investigação.”
E, é nessa óptica do princípio da investigação, que os juízes e jurados podem, a qualquer momento, formular à testemunha as perguntas que entenderem necessárias para esclarecimento do depoimento prestado e para boa decisão da causa., como resulta do disposto no nº 5 do referido artº 348º
Aliás, conforme artº 323º do CPP, Para disciplina e direcção dos trabalhos cabe ao presidente, sem prejuízo de outros poderes e deveres que por lei lhe forem atribuídos: a) Proceder a interrogatórios, inquirições, exames e quaisquer outros actos de produção da prova, mesmo que com prejuízo da ordem legalmente fixada para eles, sempre que o entender necessário à descoberta da verdade.
Os únicos limites impostos, são definidos pelo objecto do processo nos termos descritos no artigo 339º nº 4 do CPP (Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação ou da pronúncia, tendo em vista s finalidades a que se referem os artigos 368º e 369º.) e, 355º do mesmo diploma legal adjectivo, quando, sem prejuízo da ressalva do nº 2 , determina no nº 1 que: “Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.”
Note-se que se a apresentação do pedido de indemnização civil em processo penal, decorre do princípio da adesão, conforme artº 71º do CPP., subordina-se às regras do processo penal, onde a intervenção processual do lesado restringe-se à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos assistentes. – artº 74º nº 2 do CPP
Aliás, os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao princípio do contraditório, mesmo que tenham sido oficiosamente produzidos pelo tribunal. – artº 327º nº 2 do CPP:
E dos termos da acta de audiência não consta ter sido afectado o exercício do contraditório..

IV- Nas conclusões 8ª a 18ª, insurge-se o recorrente contra a validade do depoimento do Dr. CC, como perito, pois que o seu depoimento teve por objecto saber se das lesões sofridas pelo assistente, poderiam resultar danos do foro psicológico, nem de que forma aqueles se produziram, sendo manifesto que o Sr. Perito não estava em condições para prestar ao tribunal o melhor esclarecimento sobre a matéria. Alega que o Acórdão ora recorrido, ao ter mantido a decisão da primeira instância quanto à validade do depoimento do Dr. CC, como perito, violou o disposto nos art. 151º a 163º do Cód. Proc. Pena!, aduzindo que o depoimento a prestar em audiência de julgamento por peritos tem necessariamente por objecto a perícia por eles anteriormente realizada, respondendo e clarificando quesitos, ou seja - prestando esclarecimentos complementares, e nos presentes autos não foi realizada qualquer perícia ao Assistente, apesar de, por duas vezes, ter sido requerida pelo arguido. O que houve foi um exame médico, realizado pelo Dr. CC, ao assistente, ainda em sede de inquérito, para apuramento das lesões por ele sofridas em consequência das agressões. Não havendo perícia, não pode haver perito a prestar esclarecimentos ou a confirmar perícias em sede de audiência de julgamento, conforme erradamente se pode ler do douto acórdão em recurso.
Diz que neste ponto, o Tribunal da Relação, violou igualmente o disposto nos art. 151º a 153º do Cód. Proc. Penal e, que .não valendo o depoimento do Dr. CC, não deve ser dado por provado o nexo causal entre as agressões e as lesões do foro psicológico sofrido pelo Assistente, que por isso, e por elas, não deve ser responsável. Por isso pretende que se considere nulo o depoimento prestado pelo Dr. CC e, em consequência, dê como não provadas as lesões do foro psicológicas que o Assitente apresenta, sendo nessa parte o arguido delas absolvido do pedido cível.

Analisando:
Da motivação de recurso, ressalta que o recorrente ao efectuar a distinção entre prova e meio de obtenção de prova, entende que o exame médico realizado na pessoa do ofendido não equivale a perícia, porque só esta constitui prova enquanto aquele é apenas meio de prova.
Mas aqui, com o devido respeito o recorrente parece confundir meios de prova com meios de obtenção de prova e , ignorar o significado de prova pericial e, as características do exame médico-legal efectuado pelo perito da comarca .

Para cabal esclarecimento cumpre dizer :
O recorrente tinha requerido a realização de uma perícia médico-legal ao Gabinete Médico-Legal de Ponta Delgada, para avaliação do dano na pessoa do Assistente pretendendo em relatório pericial respostas circunstanciadas a questões que formulou., a que se opuseram o Ministério Público e o Assistente,
A perícia veio a ser indeferida por no caso não ser admissível, considerando que nos termos do art.º 151º do Código de Processo Penal, “A prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos”.e, “perante aos factos que o demandante pretende provar através dos quesitos formulados e os casos em que, segundo a citada norma legal, a prova pericial tem lugar, a mesma não é admissível “in casu.”

O despacho de indeferimento fundamentou assim:

“Com efeito, relativamente aos factos constantes das alíneas b), c), d) e f) facilmente se constata que para apreciação dos mesmos não são exigíveis especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, podendo os mesmos ser provados por qualquer meio de prova.

Já quanto à alínea e), efectivamente, o que o arguido pretende provar com a requerida perícia, é se as alegadas lesões sofridas pelo ofendido são causa da conduta do arguido ou não. Ora, aferir se um conduta é causa adequada de um evento, em ordem a estabelecer-se o competente nexo de causalidade, far-se-á, segundo a teoria da causalidade adequada, com recurso a um juízo de prognose póstuma, em ordem a determinar-se se, para o homem médio, colocado na posição do agente, era previsível a produção dos danos verificados. Assim, para a aferição do nexo de causalidade, é feita segundo os conhecimentos do homem médio, e não segundo os especiais conhecimentos técnicos de um perito.

Por fim, relativamente, aos factos a que se reportam as alíneas a) e g), trata-se de matéria de exame e não de perícia, o qual já se mostra efectuado nos autos, nos quais, de resto, existe suficiente e esclarecedora documentação clínica relativa à situação de saúde e assistência médica ao ofendido/assistente, referente ao período de tempo a que se reportam as lesões por aquele alegadamente sofridas em consequência da conduta do arguido, Sendo certo que tal documentação clínica não se mostra impugnada pelo arguido.

Nos termos do art. 340°, n.º 4, als. a), b) e c), do Código de Processo Penal, os requerimentos de prova são indeferidos quando for notório que “as provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas”, o meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa” ou “o requerimento tem finalidade meramente dilatória”

Ora, não se exigindo, para a apreciação dos factos objecto da requerida perícia os apontados conhecimentos especiais referidos no art.º 151.º do Código de Processo Penal, necessariamente ter-se-á de concluir pela inadmissibilidade legal da perícia requerida pelo arguido e pelo seu carácter manifestamente dilatório e impertinente, razão pela qual será a mesma indeferida e devidamente tributada.”

Desse despacho foi interposto recurso para a Relação, que confirmou a decisão recorrida, com a seguinte fundamentação::
“Contrariamente ao sustentado pelo recorrente, a razão do indeferimento da perícia assentou no facto de a mesma não ser admissível no presente caso, “perante os factos que o requerente pretende provar através dos quesitos formulados”, como detalhadamente se explica no despacho recorrido, e não por se tratar de uma diligência com carácter dilatório.
A questão que se coloca é, pois, a da necessidade ou não da pretendida perícia.
O tribunal recorrido foi de opinião que a mesma não só não se justificava, como não tinha qualquer utilidade perante a factualidade que o requerente pretendia, com ela, provar.
O que está em causa são as lesões sofridas pelo demandante, em consequência da conduta do arguido descrita na acusação, mais concretamente a extensão dessas lesões.
Os factos denunciados ocorreram em 29/10/2002, deles tendo apresentado queixa o arguido e o assistente BB. Na sequência da queixa deste, foi o mesmo notificado a 31/10/2002 “para comparecer, no dia 06/11/2002, no Tribunal de S. Roque do Pico, a fim de ser submetido a perícia médico-legal”.
Foi naquela data submetido a exame médico, levado a cabo pelo perito médico Dr. CC, o qual, após prestar o respectivo juramento para o efeito, relatou o resultado da sua observação, descrevendo as lesões físicas do examinando e sugerindo a solicitação ao Centro de Saúde de S. Roque do Pico de cópia da ficha de urgência do dia 29/10, relativa ao mesmo examinando.
Obtida cópia da aludida ficha de urgência, foi de novo observado pelo Sr. Perito médico, que relatou o constante de fls. 43, não proferindo qualquer veredicto quanto ás consequências das lesões verificadas, nomeadamente quanto ao tempo total de doença, por ainda não estar curado o examinando e por se mostrar necessária a audição de especialistas nas áreas de ortopedia, psiquiatria e oftalmologia.
O assistente foi então seguido por médico psiquiatra, que foi emitindo ao longo do tempo o seu parecer quanto ao estado de saúde psíquica do doente (cfr. fls. 86, 89-90, 92, 102, 120, 126, 129, 162, 167, 175 e 182), lavrando o relatório médico de fls. 175, que termina da seguinte forma: “A presente patologia encontra-se claramente, quer pelos conteúdos ideaticos, quer pela sua estrutura e evolução, em relação estreita de causalidade com a agressão de que foi vítima”.
O assistente fez exames radiográficos e foi observado por médico da especialidade de ortopedia, que elaborou relatório médico-legal, fixando a extensão dos danos nessa área e consequências para efeitos de incapacidade.
Munido dos elementos necessários, o Sr. Perito médico completou então o seu exame, relatando o que consta de fls. 199 a 202 dos autos.
Deduzida acusação, o MP indicou como meios de prova todos os exames médicos efectuados e relatórios produzidos, indicando também o Sr. Perito médico para ser ouvido em audiência.
Notificado da acusação e meios de prova indicados, o arguido não arguiu qualquer nulidade ou irregularidade, não requereu instrução nem invocou quaisquer motivos para recusa do médico que, até ao momento, vinha intervindo como perito, aceitando como válidos os actos processuais até ali praticados, nomeadamente os inerentes à perícia efectuada.
Veio aquele, em fase de julgamento, na respectiva contestação, pedir uma nova perícia.
Estamos no domínio do processo penal, a cujas regras se submete também o pedido cível enxertado, pelo que são aplicáveis ao caso as regras constantes dos arts. 151.º e segs. do CPP.
A perícia é um meio de prova que visa a avaliação de vestígios da prática do crime com base em especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos. Distingue-se do exame, o qual é um meio de obtenção de prova, este visa a detecção de vestígios, enquanto a perícia visa a avaliação desses vestígios.
Pode esta ser efectuada por perito nomeado de entre pessoas constantes de listas de peritos existentes em cada comarca, quando não é possível ou conveniente o recurso aos estabelecimentos, laboratórios ou serviços oficiais apropriados, sendo certo que, em casos como o presente, em que se impõe o exame imediato do ofendido, para detecção das lesões sofridas em consequência da acção ilícita e a avaliação do respectivo dano, é de toda a conveniência o recurso ao perito médico da comarca.
A crítica dirigida à perícia efectuada e que assenta na falta de preparação técnica do perito que nela interveio nas especialidades de ortopedia e psiquiatria deixa de fazer sentido a partir do momento em que aquele se socorreu, para o bom desempenho da sua função, da colaboração de especialistas nessas áreas, tendo obtido prévios pareceres destes especialistas, que examinaram o doente durante longo lapso de tempo, antes de o Sr. Perito formular as suas conclusões, as quais tiveram em devida conta tais pareceres.
A perícia efectuada apresenta-se, pois, válida, isenta de qualquer vício.
A questão relevante é, então, saber se deve haver lugar a nova perícia, conforme pretende o recorrente.
Dispõe o art. 158.º, do CPP que “em qualquer altura do processo pode a autoridade judiciária competente determinar, oficiosamente ou a requerimento, quando isso se revelar de interesse para a descoberta da verdade, que: a) os peritos sejam convocados para prestarem esclarecimentos complementares …; ou b) seja realizada nova perícia ou renovada a perícia anterior a cargo de outro ou outros peritos.”
A nova perícia é aquela que incide sobre o mesmo objecto, mas visando um detalhe, um pormenor distinto do anteriormente avaliado. A nova perícia pode ser realizada pelo mesmo perito ou por outro. A renovação da perícia é aquela que incide sobre os mesmos detalhes e pormenores do objecto anteriormente avaliado. A renovação da perícia só pode ser efectuada por perito ou peritos diferentes do anterior ou anteriores. A renovação da perícia deve ser recusada se a perícia inicial tiver feito prova do facto contrário ao que se pretende provar pela renovação da perícia. Ao invés, a renovação da perícia deve ser ordenada quando a capacidade técnica do perito inicial seja duvidosa, o relatório partir de pressupostos incorrectos, o relatório contiver contradições ou quando o perito possua meios de investigação que possam suplantar os do anterior perito (1).
Não se verifica, no presente caso, nenhuma destas situações, tendo-se já referido supra, relativamente aos conhecimentos técnicos do perito em algumas das áreas abrangidas pela perícia, a participação e elaboração de pareceres prévios nessas especialidades por médicos especialistas, tendo sido extraídas conclusões em conformidade com o teor e conclusões de tais pareceres.
O pressuposto fundamental para que seja ordenada nova perícia ou a renovação da anterior perícia, é que tal diligência se revele de interesse para a descoberta da verdade.
Quer o MP, ao pronunciar-se sobre o requerimento do arguido, quer o tribunal recorrido na respectiva decisão, demonstraram, de forma inequívoca, a irrelevância da diligência pretendida, face ao teor dos quesitos formulados pelo requerente, não exigindo a maior parte deles quaisquer especiais conhecimentos técnicos, podendo ser provados por qualquer meio de prova (caso da matéria das alíneas b), c), d) e f)), enquanto outros constituem matéria de exame - que foi feito no momento próprio - e não de perícia (casos das alíneas a) e g)), restando apenas a matéria do quesito da alínea e), que se refere ao nexo causal entre a conduta do arguido e as lesões verificadas no ofendido, quer a nível físico quer psíquico. Apesar de o perito médico, bem como os médicos especialistas que observaram o ofendido, em cujos pareceres assentou o juízo formulado pelo referido perito nessa matéria, terem concluído pela verificação do aludido nexo causal, este só pode ser declarado pelo julgador, com base na globalidade das provas, entre estas se incluindo, obviamente os aludidos pareceres e conteúdo do relatório pericial, que podiam ter sido contraditados pela defesa, a partir do momento que tomou conhecimento do respectivo teor, socorrendo-se, nomeadamente, de outros especialistas na respectiva matéria, que poderia ter apresentado em audiência.
Em suma: perante o teor dos quesitos formulados pelo requerente, a pretendida nova perícia não revela qualquer interesse para a descoberta da verdade, tendo sido bem indeferida.
Sendo, por isso, de confirmar a decisão recorrida.”

Com efeito, o exame médico-legal realizado pelo assistente, tem valor de prova pericial, uma vez que assenta em juízos científicos. Não constitui um meio de obtenção de prova, uma vez que não é um exame que se resuma a descrição de vestígios e suas características, mas sim, um meio de prova – pericial - na medida em que valora cientificamente os vestígios observados.
A perícia é realizada em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado ou, quando tal não for possível ou conveniente, por perito nomeado de entre pessoas constantes de listas de peritos existentes em cada comarca, ou na sua falta ou impossibilidade de resposta em tempo útil, por pessoa de honorabilidade e de reconhecida competência na matéria em causa. – artº 152º nº 1 do CPP
Apenas quando a perícia se revelar de especial complexidade ou exigir conhecimentos de matérias distintas, pode ela ser deferida a vários peritos funcionando em moldes colegiais ou interdisciplinares.-nº 2 do mesmo preceito.

Todavia, por não reconhecer a qualidade de perito ao Dr. CC): suscita o recorrente a ilegalidade desse depoimento.

Consta do acórdão da Relação
“b) Da pretensa ilegalidade do depoimento prestado pelo perito (Dr. CC):
O recorrente alegou, a tal propósito, o seguinte:

“- Em audiência de julgamento, porque viesse indicado como perito na acusação e como testemunha no pedido cível, o defensor do arguido opôs-se a que o Dr. CC prestasse o seu depoimento na qualidade de perito, uma vez que não reunia as condições para depor nessa qualidade, quer pela referida dupla condição, quer porque a sua especialidade médica é Clínica Geral quer ainda porque tinha conhecimento directo dos factos.

- A decisão do Tribunal a quo, quanto a esta questão, foi que,”(…) prevalece a característica de perito em que foi arrolado pela acusação, pelo que será única e exclusivamente nessa qualidade que essa pessoa será ouvida nos presentes autos. (Conforme acta de discussão e julgamento fls. 638 a 640)

- O referido Dr. CC não prestou compromisso de honra, nem foi nomeado pelo Tribunal oficiosamente ou por requerimento para a realização de perícia.

- Os depoimentos que os peritos venham a prestar em sede de audiência de julgamento, estarão, necessariamente, limitados ao teor constante da perícia que realizaram e poderão apenas ter como finalidade explicar e, ou, clarificar pormenores que tenham ficado menos claros na perícia que realizaram (v. art. 158.º, 1, a) e 133.º do Cód. Proc. Penal), o que no caso se não verificou, violando-se os citados preceitos.

- O médico ouvido como perito nestes autos não realizou qualquer perícia a mando do tribunal. Não fez qualquer exame às faculdades mentais do ofendido. O depoimento que prestou em sede de julgamento não foi no sentido de clarificar, comentar, explicar ou pormenorizar perícia constante dos autos, realizada por si ou por terceiro.

- Não tendo conhecimento técnico e cientifico especifico naquela valência médica, e tendo um envolvimento directo no caso em julgamento, não pode o seu depoimento, na qualidade de perito, ser tido em conta. È assim manifesto, ao contrário do que entendeu o colectivo de juízes, que o distinto médico não reúne as características e requisitos exigidos por lei para assumir a qualidade de perito.

- Logo o seu depoimento deverá ser considerado ilegal, por violação do disposto nos artigos 151.º e 158.º ambos do CPP.”

Efectivamente, o MP indicou, entre os meios de prova a produzir em audiência de julgamento, o Dr. CC, na qualidade de perito médico. O assistente, por sua vez, indicou a mesma pessoa com testemunha do pedido cível.
Em audiência, preparando-se o tribunal para ouvir aquele, foi pedida a palavra pelo ilustre mandatário do arguido, que tomou a seguinte posição:
“Parece incontornável que no Código de Processo Penal Português e no que tange à disciplina probatória vigora o princípio da prova livre, na medida em que são permitidas todas as provas que não forem proibidas. Contudo, tal princípio encontra-se mitigado com o princípio da ifungibilidade dos meios de prova que estabelece que, se para prova de determinado facto estiver tipificado meio probatório específico, ele não pode ser substituído por outro.
O incumprimento desse princípio ou o preterimento dessas formalidades legais específicas, perverteria as cautelas tomadas pelo legislador, com absoluto prejuízo para as garantias de defesa do arguido. E a prova pericial é justamente o paradigma desses meios de prova específicos e pormenorizadamente disciplinada. Uma das características fundamentais da qualidade de perito é não conhecer os factos concretos, não podendo por isso ser ao mesmo tempo indicado e ouvido como testemunha, pois são funções absolutamente inconciliáveis. Mesmo que tal não resultasse claro dos art.°s 151° a 163° do Código de Processo Penal, o que não é de todo verdade, é flagrante por expresso nos art. 39°, n° 1 al. d), articulado com o art. 47°, n° 1 do mesmo diploma, aplicando-se nomeadamente aos peritos o regime das incompatibilidades dos juízes. Pelo que foi resumidamente dito, e com os fundamentes legais invocados, oponho-me a que o Sr. Dr. CC indicado como perito seja nessa qualidade ouvido.”

Pronunciou-se o MP nos seguintes termos:

“Desde sempre, não só com a criação dos gabinetes medico legais mas mesmo antes da existência dos mesmos havia e há nos Tribunais, médicos, a quem os ofendidos são submetidos para exames médicos, nomeadamente para aferição das lesões sofridas, períodos de doença e de incapacidade. Tais médicos foram e são indicados como peritos e não como testemunhas. ---
Sendo certo que o Dr. Serpa foi indicado como perito pelo Ministério Público pretendendo-se desse modo esclarecer o Tribunal das lesões sofridas pelo ofendido e eventuais sequelas das mesmas, sendo a acusação pública a razão principal do processo em discussão, parece-me que o que se deveria opor o mandatário do arguido, com o devido respeito é que o Dr. Serpa não fosse ouvido como testemunha no pedido cível, uma vez que foi indicado como já se referiu pelo Ministério Público como perito, e que a exclusão desta função poderia e pode prejudicar a descoberta da verdade material, objectivo supremo deste julgamento. ---
Assim sendo entende o Ministério Público que o Dr. CC deverá ser ouvido como perito, decidindo o Tribunal se não haverá incompatibilidade de o mesmo, à posteriori, depor como testemunha no pedido cível.”

Após o que foi proferido o seguinte despacho:

“O Dr. CC, médico, foi indicado como perito médico como prova da acusação e como testemunha no pedido de indemnização civil deduzido contra o arguido neste processo. -
É manifesto que uma mesma pessoa, no mesmo processo, não pode depor com as duas qualidades, nos termos em que foi indicado. ---
A qualidade de perito médico tem as características que se encontram mencionadas nos art.°s 159° e seguintes do Código de Processo Penal e, revestindo o seu depoimento as especificas características que a lei lhe atribui, e sendo o pedido de indemnização civil um enxerto no processo crime, prevalece a característica do perito em que foi arrolado pela acusação pelo que será única e exclusivamente com esse estatuto que tal pessoa irá prestar o seu depoimento”.
Foram de seguida prestadas declarações pelo Sr. Perito.

Aquele despacho não foi impugnado.
Por outro lado, o Dr. CC foi efectivamente nomeado perito médico nos presentes autos - ao abrigo do art. 152.º, n.º 1, do CPP, pertencendo à lista de peritos da comarca -, com a missão que lhe foi determinada pela autoridade judiciária que o nomeou e que resulta do auto de fls. 38, tendo então prestado o respectivo compromisso legal (arts. 156.º, n.º 1 e 91.º, do CPP). Procedeu ao exame do ofendido BB, solicitando elementos clínicos para avaliação posterior da situação. Voltou a examinar mais tarde o ofendido, solicitando a intervenção de especialistas nas áreas da psiquiatria e da ortopedia, face à natureza das queixas transmitidas e das lesões verificadas, que elaboraram os respectivos pareceres após seguirem o paciente em várias consultas, pareceres que foram tomados em consideração no relatório pericial final elaborado por aquele Sr. Perito.
Em qualquer altura do processo pode a autoridade judiciária competente determinar, oficiosamente ou a requerimento, que os peritos sejam convocados para prestarem esclarecimentos complementares, quando isso se revelar de interesse para a descoberta da verdade. Tais esclarecimentos terão, obviamente, por objecto a matéria do relatório pericial, de molde a apurar-se convenientemente a extensão das lesões causadas pelo arguido ao ofendido.
Argumenta o recorrente que o perito não é especialista nas áreas de psiquiatria e de ortopedia, pelo que não está devidamente habilitado para se pronunciar acerca das lesões respectivas. O Sr. Perito é licenciado em medicina, está autorizado a exercer a medicina, faz parte das listas de peritos médicos, socorreu-se dos pareceres e vários relatórios de médicos daquelas especialidades que assistiram o demandante, para além de ter examinado este mais do que uma vez, pelo que tinha todos os elementos necessários para se pronunciar sobre a matéria acerca da qual emitiu opinião.
Não se percebe o alcance da afirmação do recorrente ao alegar que o Sr. Perito tinha “conhecimento directo dos factos” e “um envolvimento directo no caso em julgamento”, porquanto os seus conhecimentos do caso decorrem exclusivamente do(s) exame(s) feito(s) ao ofendido no âmbito do presente processo e da análise do conteúdo dos relatórios apresentados pelos outros médicos de ortopedia e de psiquiatria, ou seja, matéria objecto da perícia. De qualquer forma, o recorrente não concretiza a que outra matéria, para além daquela, depôs o mesmo perito, na qualidade de testemunha, não resultando da respectiva acta de julgamento qualquer oposição da defesa a qualquer das perguntas que àquele foram formuladas em julgamento. Sendo certo que o contraditório foi devidamente garantido relativamente à matéria sobre a qual incidiram as declarações em causa.
Não vislumbramos, pois, qualquer ilegalidade nas declarações prestadas pelo Sr. Perito.”

Na verdade se o médico em referência foi ouvido na qualidade de perito, podendo sê-lo, inexiste qualquer ilegalidade no seu depoimento, e não constitui prova proibida.
Por outro lado, conforme artigo 158º do CPP:
Em qualquer altura do processo pode a autoridade judiciária competente determinar, oficiosamente ou a requerimento, quando isso se revelar de interesse para a descoberta da verdade, que:
a) Os peritos sejam convocados para prestarem esclarecimentos complementares, devendo ser-lhes comunicado o dia, a hora e o local em que se efectivar+á a diligência, ou
b) Seja realizada nova perícia ou renovada a perícia anterior a cargo de outro ou outros peritos.

Aliás, poderá até dizer-se que se a questão sub judicio foi decidida por despacho autónomo, que transitou em julgado, e se esse despacho definiu que” A qualidade de perito médico tem as características que se encontram mencionadas nos art.°s 159° e seguintes do Código de Processo Penal e, revestindo o seu depoimento as especificas características que a lei lhe atribui, e sendo o pedido de indemnização civil um enxerto no processo crime, prevalece a característica do perito em que foi arrolado pela acusação pelo que será única e exclusivamente com esse estatuto que tal pessoa irá prestar o seu depoimento”., significa que o recorrente aceitou o decidido, renunciando á sua impugnação.
E por isso ficou sem interesse em agir quanto ao recurso interposto da decisão final,

Diga-se ainda que não tem suporte legal a argumentação do recorrente ao concluir que: - “Não valendo o depoimento do Dr. CC, não deve ser dado por provado o nexo causal entre as agressões e as lesões do foro psicológico sofrido pelo Assistente, que por isso, e por elas, não deve ser responsável”, quer porque o depoimento foi válido, quer porque ainda que o não fosse, esquece-se ainda que a questão da valoração da prova é uma questão em matéria de facto estranha aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, que sem prejuízo do disposto no artigo 410º nºs 2 e 3 do CPP, procede exclusivamente ao reexame da matéria de direito, conforme artº 434º do CPP.,e, que como referiu o acórdão da Relação: - “Apesar de o perito médico, bem como os médicos especialistas que observaram o ofendido, em cujos pareceres assentou o juízo formulado pelo referido perito nessa matéria, terem concluído pela verificação do aludido nexo causal, este só pode ser declarado pelo julgador, com base na globalidade das provas, entre estas se incluindo, obviamente os aludidos pareceres e conteúdo do relatório pericial, que podiam ter sido contraditados pela defesa, a partir do momento que tomou conhecimento do respectivo teor, socorrendo-se, nomeadamente, de outros especialistas na respectiva matéria, que poderia ter apresentado em audiência.”

Do exposto resulta que o recurso não merece provimento.

Termos em que, decidindo:

Acordam os deste Supremo – 3ª Secção – em negar provimento ao recurso e confirmam o douto acórdão recorrido.

Tributam o recorrente em 6 Ucs de taxa de justiça


Supremo Tribunal de Justiça, 3 de Março de 2010

Pires da Graça (Relator)
Raul Borges
__________________________
(1) Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição, pags. 439-440.