Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1178/21.5T8FNC.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO DE OLIVEIRA
Descritores: SEGREDO PROFISSIONAL
ADVOGADO
TERCEIRO
VIOLAÇÃO DE SEGREDO
NEGOCIAÇÕES PRELIMINARES
DEPOIMENTO
TESTEMUNHA
PROVA PROIBIDA
NULIDADE PROCESSUAL
DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 12/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
O depoimento prestado em violação do sigilo profissional do advogado determina a aplicação do regime específico do artigo 92.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. — RELATÓRIO

1. AA, ao lado de quem figuram como intervenientes principais BB e CC, intentou contra DD a presente acção declarativa com processo comum, pedindo:

I. — que seja anulado o contrato de transacção concluído entre EE, pai da Autora, e a Ré DD;

II. — que, em consequeência, a Ré DD seja condenada a indemnizar a Autora em montante a liquidar em execução de sentença;

III. — que seja declarado que a fracção BX, integrada no prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número 679/960325 e inscrito na matriz sob o artigo 3266.º, foi adquirida exclusivamente por EE;

IV.— que, em consequência [da procedência do pedido enunciado em III], [seja cancelado], “a favor do mesmo” [i.e, a favor de EE], o registo de aquisição na parte lavrada a favor [da Ré DD] pela Ap. 58 de 20/05/1999;

ou, subsidiariamente em relação aos pedidos dedusidos III. e IV,

IV. — que seja declarado que a Ré DD deve à herança aberta por óbito de EE a quantia de € 64.843,73, “acrescida de juros à taxa supletiva legal a partir da citação até integral pagamento, correspondente ao contravalor em euros da metade do preço total de Esc. 26.000.000,00 (vinte e seis milhões de escudos) efectivamente pago pela aquisição da referida fracção”.

2. A Ré DD contestou, defendendo-se por impugnação e por excepção.

3. O Tribunal de 1.ª instância julgou improcedente a acção, absolvendo a Ré dos pedidos.

4. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação.

5. A Ré DD contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

6. O Tribunal da Relação de Lisboa confirmou, por unanimidade, a decisão proferida pelo Tribunal de 1.º instância.

7. O dispositivo do acórdão recorrido é do seguinte teor:

“Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e confirma-se a sentença recorrida”.

8. Inconformada, a Autora AA interpôs recurso de revista.

9. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1º Mostram-se preenchidos os requisitos gerais de recorribilidade exigidos pelo artigo 629º, nº 1, do CPC, bem como se verifica a oposição de julgados prevista no 672º, nº 1, al. c), também do CPC, concretamente entre o douto Acórdão recorrido, e o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 27/09/2018, proferido no processo 17/14.8TBVZL.C1.S1, 7ª Secção, publicado in www.dgsi.pt.

2º Com efeito, o douto Acórdão ora recorrido entendeu que: “Por outro lado, não se acompanha a jurisprudência e doutrina citadas nas alegações da apelante, no sentido de que estaríamos perante uma nulidade secundária inominada, sanada por não ter sido arguida ao abrigo do artigo 199º do CPC, tendo em atenção que a nulidade resultante da violação do artigo 92º do EOA não pode considerar-se uma simples irregularidade que se converte em nulidade por influir na decisão da causa, constituindo antes uma violação de norma que pretende assegurar a dignidade, segurança e confiança na actividade do advogado e que pode ser arguida pela parte em sede de recurso, mesmo que não o tenha sido no momento em foi cometida na sua presença”.

3º Já o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 27/09/2018, proferido no processo 17/14.8TBVZL.C1.S1, 7ª Secção, publicado in www.dgsi.pt, entendeuque:“O valor probatório de um depoimento prestado em infração do sigilo profissional não fica afetado de modo absoluto, podendo, quando muito, constituir nulidade processual inominada a ser invocada pelo interessado, sob pena de sanação”.

4º Integrou o objecto da Apelação da Recorrente, em relação a elementos probatórios da máxima relevância para a prova da respectiva causa de pedir – mormente a prova testemunhal constituída pelo depoimento da testemunha FF, Advogado – que a mesma não se encontrava sujeita a sigilo;

5º Mas, ainda que por hipótese se entendesse que o estivesse, designadamente nada havia sido a esse respeito sido invocado, e, como tal, a nulidade que daí derivasse já estaria sanada, por não haver sido invocada em devidotempo – tal como entendido no referido Acórdãodo SupremoTribunalde Justiça, expressamente invocado para o efeito, entendimento este do qual o douto Acórdão ora recorrido veio a divergir.

6º Na verdade, na senda do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, verifica-se que “o direito à prova está constitucionalmente consagrado no art. 20º, da Constituição da República Portuguesa, como princípio geral do acesso ao direito e aos tribunais, que a todos é assegurado para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegido” e “a protecção do segredo não constitui um valor absoluto, há que fazer caso a caso uma ponderação dos valores em conflito (averiguação da verdade ou a protecção de direitos dos cidadãos beneficiados pelo segredo), por forma a determinar qual deles deve prevalecer”.

7º A oposição respeita à natureza do vício que se considera afectar a prova produzida em violação do dever de sigilo, se é ou não dependente de invocação, se é ou não sanável.

8º No silêncio do depoente e das partes, não se pode fazer equivaler, sob pena de absoluta preterição do referido direito à prova ínsito ao art. 20º, da Constituição da República Portuguesa, à violação do sigilo profissional, o mesmo efeito que corresponde à recusa do seu levantamento, caso houvesse sido suscitado e requerido.

9º Assim, na senda do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo nº. 1178/21.5T8FNC, e, bem assim, na senda da doutrina citada, deve entender-se que está em causa uma “nulidade processual inominada a ser invocada pelo interessado, sob pena de sanação”.

10º Quando assim porventura se não entenda, isto é, se se entender que está em causa uma nulidade insanável, deve a mesma então determinar a anulação de todo o processado, a partir da sua prática, impondo-se para todos os efeitos o regresso do processado à fase processual em que devia então ter sido requerido o incidente de levantamento do sigilo profissional, seguindo-se os ulteriores termos processuais até final.

11º Assim se pugna pela efectiva admissão do presente Recurso de Revista excepcional, bem como pela respectiva procedência, devendo ser revogado o douto Acórdão recorrido, e determinada a baixa do processo para a respectiva prossecução em conformidade, de modo a se fazer Justiça.

10. A Ré DD contra-alegou, pugnando pela inadmissibilidade e, subsidiariamente, pela improcedência do recurso.

11. A Formação prevista no artigo 672.º do Código de Processo Civil admitiu o recurso de revista por via excepcional.

12. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigo 608.º, n.º 2, por remissão do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:

— se, de acordo com o artigo 92.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados, o depoimento do Dr. FF e os documentos juntos à petição inicial com os n.ºs 21 e 22 podem fazer prova em juízo;

— se o depoimento prestado em violação do sigilo profissional determina a aplicação do regime das nulidades principais, ou a aplicação do regime das nulidades secundárias, ou a aplicação de um regime autónomo, distinto do regime das nulidades processuais.

— se deve ser determinada a anulação de todo o processo a partir do depoimento do Dr. FF e o regresso à fase processual em que deveria ter sido requerido o incidente de levantamento do sigilo profissional.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

13. O Tribunal de 1.ª instância deu como provados os factos seguintes:

A. AA, aqui Autora, nasceu a ... de Janeiro de 1969 e foi registada como filha de EE e AA;

B. AA e EE casaram a ... de Outubro de 1960;

C. AA faleceu a ... de Outubro de 1998, no estado de casada com EE;

D. A ... de Setembro de 2000, EE e DD (aqui Ré) celebraram casamento civil, sob o regime imperativo de separação de bens;

E. EE faleceu a ... de ... de 2019, no estado de casado com DD;

F. A 09 de Abril de 1999, EE celebrou contrato-promessa de compra e venda, incidente sobre a fracção autónoma designada pelas letras “BX”, integrada no prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número 679/960325 e inscrito na matriz sob o artigo 3266º, mediante o qual prometia comprar a referida fracção pelo valor de Esc. 26.000.000$00;

G. Para pagamento do preço referido em F., EE emitiu os cheques número 23976034-0, no valor de Esc. 5.000,000,00, e número 28976032-4, no valor de Esc. 3.220.000$00, sacados sobre o Banco Internacional do Banif, conta número .........11, por si titulada;

H. A 10 de Maio de 1999 foi celebrada escritura de compra e venda, mediante a qual GG declarou vender, pelo valor de Esc. 19.000.000$00, a EE e DD, que lha declaram comprar, a fracção autónoma designada pelas letras “BX”, integrada no prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número 679/960325 e inscrito na matriz sob o artigo 3266º;

I. Pela Apresentação 58, de 20 de Maio de 1999, foi registada sobre a fracção referida em H., a aquisição a favor de EE e DD;

J. Na sequência da morte de EE foi instaurado inventário para partilha de bens no Cartório Notarial de ...;

K. Nos autos de inventário referido em J., foi apresentada reclamação à relação de bens, em que se alegava que a fracção referida em H. pertencia apenas a EE, por ter sido adquirida, na sua totalidade, com dinheiro deste e proveniente do seu anterior casamento;

L. Em Dezembro de 2019 foi efectuado relatório de avaliação da fracção identificada em H., que concluiu por um valor de mercado de € 175.350,00;

M. No dia 10 de Novembro de 2020, no âmbito do inventário referido em J. na presença dos mandatários forenses de ambas partes, foi realizada transacção, mediante a qual foram repartidos os valores monetários depositados e atribuída a DD a metade da fracção identificada em H.;

N. Na transacção referida em M., as partes acordaram que integrava os bens a partilhar a metade da fracção identificada H.;

O. Na transacção referida em M., à metade da fracção urbana identificada em H., foi atribuído o valor de € 31.500,00;

P. A Autora e sua filha residem na fracção identificada em H.;

Q. A Autora é um dos três proprietários registados do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 3159, sito à Ribeira ...;

R. A Autora solicitou à Ré, por missiva escrita datada de 06 de Janeiro de 2021 que procedesse à assinatura, em dois dias, de contrato-promessa incidente sobre a fracção referida em H., referindo que essa assinatura fora condição imprescindível para aceitação da transacção no processo de inventário 4711/19, no dia 10 de Novembro de 2020.

14. Em contrapartida, o Tribunal de 1.ª instância deu como não provados os factos seguintes:

1. Na sequência do falecimento de AA não houve partilha integral dos bens em relação às respectivas poupanças e contas bancárias do casal, as quais, por entendimento de todos, se mantiveram na posse, gestão e fruição do pai da Autora;

2. O contrato referido em F. foi celebrado com as respectivas poupanças de EE e de AA;

3. O cheque número 28976033-2, no valor de Esc. 17.750.000$00, sacado sobre o Banco Internacional do Banif, conta número .........11 destinou-se ao distrate de hipoteca registada sobre a fracção a favor da "Caixa Geral de Depósitos, S.A.”;

4. O valor referido em F., foi pago exclusivamente pelo pai da Autora;

5. A conta referida em G. integrava as poupanças do casal constituído por EE e de AA;

6. Em vida, EE, sempre agiu em relação à fracção identificada em H., como único e exclusivo dono, designadamente tudo destinando quanto à mesma, inclusivamente, tendo manifestado a sua vontade de que ficasse para a Autora e sua filha;

7. A avaliação referida em L. foi solicitada nos autos de inventário referidos em J. pela Autora;

8. O referido em P. ocorre desde 2018 e com a autorização de EE;

9. A Autora e a respectiva filha não dispõem de alternativa habitacional;

10. O imóvel referido em Q. está para venda;

11. Os dois irmãos da Autora dispõem de casa própria;

12. O interesse essencial da Autora no inventário por óbito do respectivo Pai residia primeira e fundamentalmente na aquisição aos restantes herdeiros da fracção identificada em H.;

13. O valor atribuído à metade da fracção identificada em H. foi de modo a garantir o pagamento à Ré de tornas acordadas no montante de € 27.500,00;

14. A par do referido em M., N. e O. foi acordada a venda pela Ré à Autora, da dita fracção, na sua totalidade, pelo valor de € 100.000,00 (cem mil euros), ficando de ser celebrado o respectivo contrato promessa logo de seguida – não estando o mesmo então pronto, tendo ficado combinado nessa altura entre o mandatário da Ré e o da Autora que seria este ultimo a elaborar a respectiva minuta, para a subsequente verificação por aquele primeiro;

15. Enquanto que para os respectivos irmãos estava em causa um interesse exclusivamente financeiro, para a Autora estava em causa a tentativa de salvaguardar a respectiva habitação e da sua filha, por via da referida fracção;

16. Para a Autora, o respectivo acordo quanto à transacção teve como pressuposto absolutamente necessário a dita promessa da venda a seu favor da fracção pelo dito valor então acordado com a Ré de € 100.000.00;

17. Uma vez que a Autora tinha a necessidade de recorrer, para esse efeito, em parte, a financiamento bancário, mais foi, em conformidade, acordado o prazo de quatro meses para a conclusão da venda;

18. Para acautelar qualquer eventual incumprimento da parte da Autora (em relação ao próprio contrato promessa a celebrar), foi exigido, pelo mandatário da Ré, que ficasse na transacção estipulada, a par da adjudicação de metade da dita fracção, a obrigação da sua entrega a esta última no dito prazo de quatro meses;

19. Se não fosse a prometida promessa de venda da parte da Ré a favor da Autora, esta não teria subscrito a transacção em causa, o que a Ré bem sabia;

20. A Ré, acompanhada pelo respectivo mandatário, comprometeu-se à celebração da promessa de venda a favor da Autora, bem sabendo que, sem a mesma, esta não teria aceite nem celebrado a dita transacção;

21. No próprio dia da conferência em que foi celebrada a transacção, o mandatário da Autora nesses Autos de Inventário, elaborou e remeteu ao mandatário da Ré, a minuta do contrato promessa, tal como havia sido entre ambos combinado;

22. A minuta não mereceu qualquer reparo da parte do mandatário da Ré;

23. A Ré mantinha-se a laborar no respectivo estabelecimento comercial;

24. Nunca foi intenção da Ré assinar o contrato-promessa mas apenas levar a Autora a aceitar a transacção, estando pressionada e condicionada pela sua necessidade habitacional e da sua filha.

15. O Tribunal da Relação julgou improcedente a impugnação da matéria de facto deduzida pela Autora, agora Recorrente.

O DIREITO

16. A primeira questão consiste em averigar se, de acordo com o artigo 92.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados, o depoimento do Dr. FF e os documentos juntos à petição inicial com os n.ºs 21 e 22 podem fazer prova em juízo.

17. A Autora, agora Recorrente, deduz como causa de pedir da presente acção o facto de o contrato de transacção descrito nos factos dados como provados sob as letras M-O ter sido concluído na pressuposição de que a Ré, agora Recorrida, concluiria com a Autora, agora Recorrente, um contrato de compra e venda de toda a fracção autónoma designada pelas letras BX, integrada no prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número 679/960325 e inscrito na matriz sob o artigo 3266.

Ou seja — a metade da fracção autónoma designada pelas letras BX teria sido atribuída à Ré, agora Recorrida, DD1, para que a Ré, agora Recorrida, a vendesse, na totalidade, à Autora, agora Recorrente, AA.

18. Os factos essenciais para a procedência da pretensão da Autora, agora Recorrente, eram os factos dados como não provados sob os n.ºs 12-14:

12. O interesse essencial da Autora no inventário por óbito do respectivo Pai residia primeira e fundamentalmente na aquisição aos restantes herdeiros da fracção identificada em H.;

13. O valor atribuído à metade da fracção identificada em H. foi de modo a garantir o pagamento à Ré de tornas acordadas no montante de € 27.500,00;

14. A par do referido em M., N. e O. foi acordada a venda pela Ré à Autora, da dita fracção, na sua totalidade, pelo valor de € 100.000,00 (cem mil euros), ficando de ser celebrado o respectivo contrato promessa logo de seguida – não estando o mesmo então pronto, tendo ficado combinado nessa altura entre o mandatário da Ré e o da Autora que seria este ultimo a elaborar a respectiva minuta, para a subsequente verificação por aquele primeiro.

19. Entre os meios de prova relevantes para o efeito encontrar-se-iam o depoimento do Dr. FF e os documentos n.ºs 21 e 22.

— o depoimento do Dr. FF incidiu sobre as negociações com o advogado da Ré, agora Recorrida, acerca da venda da fracção autónoma designada pelas letras BX;

— os documentos n.ºs 21 e 22 confirmariam o seu depoimento, ao darem conta de que entre os dois foram trocados e-mail, em que se discutiam as razões por que o contrato-promessa de compra e venda não fora concluído.

20. Ora, o artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados é do seguinte teor:

Artigo 92.º— Segredo profissional

1. — O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2. — A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3. —O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4. — O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.

5. — Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

6. — Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

7. — O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.

8. — O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.

21. O Tribunal de 1.º instância e o Tribunal da Relação consideraram que o depoimento do Dr. FF e os documentos n.ºs 21 e 22 incidiam sobre factos “cujo conhecimento lhe [advinha] do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços” 2 3 — e os argumentos deduzidos pelas instâncias devem subscrever-se, sem qualquer reserva.

22. Em primeiro lugar, o artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados não permite que o advogado seja dispensado dos seus deveres de sigilo pela parte que representa, ou que o advogado seja dispensado dos seus deveres de sigilo para que seja feita a prova de que, no decurso das negociações, foi concluído um acordo, ainda que não formalizado, com o advogado que representa a contraparte 4.

23. Em concreto, a prova de que foi concluído um acordo, ainda que não formalizado, sempre seria condição necessária da prova de que o acordo foi ou não foi cumprido.

24. Em segundo lugar, a convicção de que o depoimento prestado pelo Dr. FF nunca poderia determinar uma confiança justificada da Autora, agora Recorrente, sempre significaria uma convicção contrária a disposições legais que a Autora, agora Recorrente, conhecia ou, ainda que não conhecesse, devia conhecer 5 6.

25. A decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância e pelo Tribunal da Relação não pode de forma nenhuma representar-se como uma capaz de frustrar uma confiança justificada da Autora, agora Recorrente — e, em especial, que a decisão proferida pelas instâncias não pode de forma nenhuma representar-se como uma decisão surpresa.

26. O raciocínio só pode ser reforçado pela circunstância de a questão do segredo profissional ter sido evocada na audiência de julgamento.

27. O Tribunal de 1.ª instância chama a atenção para que, “no decurso do depoimento da testemunha foi a questão do sigilo relembrada e referidas as necessárias repercussões de tal circunstância teria na ponderação da prova” e o Tribunal da Relação para que “o tribunal, apesar de ter ouvido a testemunha sem declarar logo a prova inadmissível”:

I. — “foi sempre perguntando [à testemunha] se as negociações entre os advogados foram públicas, levadas a cabo à frente de todos os intervenientes, nomeadamente da notária que presidiu ao acordo, ao que a testemunha foi sempre dizendo que sim”,

II. — foi sempre perguntando aos mandatários das partes “se estavam conscientes de que o depoimento em questão poderia eventualmente estar a violar o sigilo profissional”.

28. Em resposta à primeira questão, dir-se-á que, de acordo com o artigo 92.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados, o depoimento do Dr. FF e os documentos juntos à petição inicial com os n.ºs 21 e 22 não podem fazer prova em juízo.

29. A segunda questão consiste em averiguar se o depoimento prestado em violação do sigilo profissional determina a aplicação do regime das nulidades principais, ou a aplicação do regime das nulidades secundárias, ou a aplicação de um regime autónomo, distinto do regime das nulidades processuais.

30. A Autora, agora Recorrente, alega que está em causa uma nulidade processual secundária, dependente de invocação pelo interessado e, sobretudo, sanável.

31. Ora, entre o caso comum de prestação de um depoimento em violação de um dever de sigilo profissional e o caso específico de prestação de um depoimento em violação do dever de sigilo profissional do advogado há uma diferença fundamental.

32. Os casos comuns de prestação de depoimento em violação de um dever de sigilo profissional podem porventura reconduzir-se ao conceito e ao regime das nulidades processuais secundárias — daí que o conhecimento da nulidade dependa de uma reclamação do interessado 7, dentro dos prazos do artigo 199.º do Código de Processo Civil 8.

33. O caso específico em violação do dever de sigilo profissional do advogado, esse, não pode reconduzir-se ao conceito e, sobretudo, não pode reconduzir-se ao regime das nulidades processuais secundárias:

34. O artigo 92.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados ao determinar que “[os] actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”, contém uma cominação específica 9.

35. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2022 — proceso n.º 126/20.4T8OAZ-A.P1.S1 — di-lo de forma explícita:

“O n.º 5, do […] artigo 92.º, estabelece como consequência da violação do sigilo profissional do advogado, que as provas que desrespeitem o dever de segredo não são idóneas a fundamentar a demonstração dos factos revelados nas negociações […].

“com esta cominação específica, a produção dos meios de prova com esta incidência não constitui uma simples nulidade inominada secundária, a ser arguida, nos termos dos artigos 195.º e 199.º do Código de Processo Civil […], revelando-se antes uma violação de uma proibição de produção de prova, cuja consequência é a proibição da sua valoração, tendo essa violação um tratamento autónomo do que se encontra previsto para as nulidades processuais, podendo, designadamente, tal infração ser conhecida em recurso, sem que a nulidade da produção do respetivo meio de prova tenha que ser arguida nos termos previstos no artigo 199.º do Código de Processo Civil”.

36. Entendendo-se, como se entende, que o depoimento prestado em violação do sigilo profissional do advogado determina a aplicação de um regime autónomo, distinto do regime das nulidades processuais, deve conhecer-se do vício e decidir-se a terceira questão — se deve ser determinada a anulação de todo o processo a partir do depoimento do Dr. FF e o regresso à fase processual em que deveria ter sido requerido o incidente de levantamento do sigilo profissional.

37. Ora, não há nenhuma razão para dar à Autora, agora Recorrente, uma segunda oportunidade para fazer a prova dos factos dados como não provados sob os n.ºs 12-14.

38. A consequência jurídica da prestação de depoimento em violação do dever de sigilo profissional do advogado é a inidoneidade do meio de prova para a demonstração dos factos alegados.

39. O juízo sobre se o facto está ou não provado deve formular-se como se não tivesse sido prestado o depoimento, ou como se não tivessem sido apresentados os documentos relacionados com factos sujeitos a sigilo profissional — se o facto tiver sido dado como provado com fundamento exclusivo no depoimento do advogado, deverá ser dado como não provado 10; se não, poderá ser dado como provado ou como não provado, em função dos demais meios de prova.

40. O resultado só pode ser reforçado pela circunstância de ter sido perguntado aos mandatários das partes “se estavam conscientes de que o depoimento em questão poderia eventualmente estar a violar o sigilo profissional” — se a Autora, agora Recorrente, decidiu correr o risco, não há razão, para que, depois de concretizado o risco, lhe seja concedida uma segunda oportunidade para fazer com que o depoimento do Dr. FF e os documentos n.ºs 21 e 22 sejam considerados na decisão final.

III. — DECISÃO

Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente AA.

Lisboa, 12 de Dezembro de 2023

Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)

Sousa Lameira

Manuel Capelo

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1. Cf. facto dado como provado sob a letra M.

2. Cf. artigo 92.º, n.ºs 1 e 3, do Estatuto da Ordem dos Advogados.

3. Entre as afirmações contidas na fundamentação da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância está a de que, “[i]n casu, FF não prestou depoimento enquanto cidadão que presenciou os factos que relata, mas como pessoa que soube e adquiriu conhecimento dos factos que relatou por força da sua qualidade de advogado da aqui Autora, falando sobre assuntos e aspectos concretos que lhe foram relatados pela sua constituinte e que foram discutidos com o advogado da parte contrária (sendo irrelevante que tivesse sido na presença de outro advogado, de uma notária – o que se não comprovou, como supra se deixou já exarado - ou de outros constituintes, pois que as soube e as discutiu como Advogado e por ser advogado da Autora” e de que “[o] teor da comunicação de fls. 47, na medida em que o que ali se relata são circunstâncias de que se soube e se adquiriu noção por força da circunstância de se exercer mandato forense”. Em consequência, “[estão] em causa conhecimentos ou informações suportados no exercício da advocacia; em causa está falar sobre questões que foram discutidas e avançadas pela mandante ao advogado no exercício da sua profissão, pelo que está implícito estar abrangido pelo segredo profissional”.

4. Como se diz na fundamentação do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, “não se pode[] entender, como defende a Autora, que houve dispensa de sigilo por ela própria o ter dispensado na sua qualidade de mandante, já que a dispensa de sigilo neste caso implicaria também a revelação das negociações do advogado da parte contrária”.↩︎

5. Entre as afirmações contidas na fundamentação do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação está a de que “era previsível que a questão [do segredo profissional] pudesse vir a ser suscitada, pelo que a parte e o depoente que optaram por oferecer o respectivo depoimento sem recorrer ao incidente de levantamento de sigilo profissional correram um risco de que a prova pudesse vir a ser julgada nula, risco esse que não podiam ignorar”.

6. Em consequência, a decisão proferida pelas instâncias não pode de forma nenhuma representar-se como uma capaz de frustrar uma confiança justificada da Autora, agora Recorrente — e, em especial, não pode de forma nenhuma representar-se como uma decisão surpresa.

7. Cf. artigo 196.º do Código de Processo Civil.

8. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Setembro de 2018 — processo n.º 17/14.8TBVZL.C1.S1 —, em cujo sumário se escreve. “II – O segredo profissional apenas legitima a recusa a depor relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo (cf. artigo 497º, nº3 do CPC). III - O valor probatório de um depoimento prestado em infração do sigilo profissional não fica afetado de modo absoluto, podendo, quando muito, constituir nulidade processual inominada a ser invocada pelo interessado, sob pena de sanação”.

9. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2022 — proceso n.º 126/20.4T8OAZ-A.P1.S1.

10. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2022 — proceso n.º 126/20.4T8OAZ-A.P1.S1 —, em que se constatou que “a prova do facto n.º 12 resultou única e exclusivamente do depoimento testemunhal [do advogado] e que este apenas confirmou a existência dessa factualidade, por ter constatado que na base de dados da Exequente se encontrava registado que durante o ano de 2019 existiram contactos entre o Mandatário da CGD e o Mandatário dos Executados Embargantes, nos quais este efetuou propostas para pagamento dos valores em dívida, as quais não vieram a ser aprovadas pela Exequente”, para se concluir que, “a factualidade constante do ponto 12, atento o modo como foi obtido o seu conhecimento pela testemunha, cujo depoimento fundamentou a prova desse facto, não possa figurar nos factos provados, uma vez que tal depoimento estava sujeito a uma proibição de valoração, devendo ser excluído da lista dos factos provados o seu ponto 12”.