Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | HELENA MONIZ | ||
Descritores: | RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO ARGUIÇÃO DE NULIDADES VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL OMISSÃO DE PRONÚNCIA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO HOMICÍDIO QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO MATÉRIA DE FACTO NULIDADE DE ACÓRDÃO REENVIO DO PROCESSO | ||
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Data do Acordão: | 03/24/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | JULGAMENTO ANULADO. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO. | ||
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Sumário : | I - O recurso da matéria de facto impõe à 2.ª instância que, ainda que de modo sucinto, analise as alegações do recorrente, a sua interpretação dos factos, e explique porque, apesar de tudo se deve manter, a partir da prova produzida, e, em particular, da prova referida pelo recorrente para se ter um entendimento diverso, a interpretação dos factos e a sua subsunção jurídica tal como o fez o tribunal de 1.ª instância. II - Não constitui fundamentação bastante para a decisão de manutenção da decisão recorrida a simples afirmação de que o arguido não pode ilimitadamente impugnar a matéria de facto, pois tal não constitui um limite que tenha sido imposto pelo legislador quando admitiu o recurso da matéria de facto, maxime, segundo o disposto nos arts. 428.º e 412.º, n.os 3, 4 e 6, todos do CPP. III - Concordamos com o tribunal a quo quanto ao entendimento de que o tribunal de recurso não tem que fazer um segundo julgamento; porém, tal não obsta a que se responda ao recurso da matéria de facto apresentado e aos concretos pontos elencados, quando se considerou que o ónus de impugnação estava cumprido (e, portanto, viabilizada a apreciação requerida). IV - Tendo considerado que o ónus de impugnação estava cumprido e com isso viabilizado o recurso em matéria de facto, constitui omissão de pronúncia quando o tribunal apenas fundamenta que as provas indicadas pelo recorrente não impõem conclusão distinta; cabia ao tribunal de recurso esclarecer fundamentadamente porque não são atendíveis os argumentos do recorrente, esclarecendo se procedeu ao mesmo raciocínio analítico da 1.ª instância , não bastando indicar que os dados objetivos apresentados na fundamentação do acórdão recorrido foram colhidos na prova produzida. V - Não compete ao STJ ir verificar exatamente o que era impugnado naquele recurso e ver se de alguma maneira consegue retirar as respostas do acórdão agora recorrido nas outras partes da decisão que não se referem à impugnação da matéria de facto; não compete ao STJ ir verificar qual a argumentação probatória que foi invocada para contrariar o dado como provado pela 1.ª instância, e porque entende o tribunal da Relação que da prova produzida não pode haver outra conclusão senão os factos que foram dados como provados. VI – Responde-se à impugnação da matéria de facto num recurso de matéria de facto quando se analisa os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, vícios que são analisados apenas através do texto da decisão recorrida, sem que se proceda a uma reanálise da prova produzida? Não podemos concluir que a resposta àquelas outras alegações seja o bastante para se considerar que o tribunal de recurso, em sede de recurso da matéria de facto, cumpra o ónus que se lhe impõe na apreciação do recurso da matéria de facto que não se confunde com a mera apreciação da decisão recorrida a partir do seu texto e sem uma reanálise da prova nos pontos alegados pelo recorrente. | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc. n. º 398/19.7GCSTR.E1.S1 Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça: I Relatório 1. Nestes autos, por acórdão de 17.03.2021, do Tribunal Judicial da Comarca ... (Juízo Central Criminal ..., Juiz …), o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de homicídio, nos termos dos art. 131.º do Código Penal (CP), na pena de prisão de 12 (doze) anos. Foi ainda condenado no pagamento de indemnização civil por danos patrimoniais e não patrimoniais aos demandados (que se constituíram assistentes), num valor global de 196 514, 50 euros. 2. Deste acórdão, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação … que, por acórdão de 07.09.2021, decidiu: «- corrigir o lapso material quanto ao montante compensatório que é de 156.514,50 € (cento e cinquenta e seis mil, quinhentos e catorze euros e cinquenta cêntimos). - negar provimento ao recurso.» 3.1. Inconformado, o arguido interpõe agora recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apenas restrito à decisão em matéria penal, e apresentando as seguintes conclusões (transcrição): «a) A decisão de que ora se recorre, tem na base decisão do Tribunal Coletivo no processo à margem melhor identificado, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... – JC Criminal … – J…. b) E do qual o arguido AA recorreu para o Tribunal da Relação …, que, no essencial, limitou-se a reproduzir o acórdão de 1.ª Instância, mantendo inalterável a pena aplicada ao ora recorrente. c) Seria de esperar que a aplicação de uma pena única de prisão em medida concreta tão elevada, 12 anos (doze anos), conduzisse o Tribunal da Relação, (e, antes dele, o Tribunal de 1.ª instância), a uma análise detida e cuidada de todos os factos, das provas existentes e válidas, e, no final, da sua subsunção ao Direito, em particular às normas incriminadoras aplicáveis. d) O arguido está convicto, contudo, que V. Exas. repararão as injustiças e os erros de que o mesmo tem sido alvo, aplicando o Direito como é apanágio deste Supremo Tribunal de Justiça, em respeito por uma ideia de processo penal garantístico e de um Direito Penal de última ratio e de natureza fragmentária, ambos enquadrados num ESTADO de DIREITO como é o nosso. e) É por isso que o arguido AA pede: que o processo seja lido e analisado, que o acórdão recorrido seja analisado, bem como a presente motivação de recurso e as respectivas conclusões, e, a partir daí, que este Supremo Tribunal aplique a Lei e o Direito e, no final, que se cumpra sempre a almejada JUSTIÇA. f) O arguido AA, foi condenado, por acórdão de 17 de Março de 2021, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio p.p pelo art. 131.º do C. Penal, na pena de prisão de 12 anos (doze anos). g) Dessa decisão interpôs o arguido, AA, recurso para o Tribunal da Relação …, tendo esse tribunal em 07 de Setembro de 2021, proferido acórdão recorrido, nos termos do qual manteve a decisão de primeira instância. h) É essa decisão do Tribunal da Relação …, recorrível (em toda a sua extensão), que o arguido pretende, com a interposição do presente recurso, que seja reexaminada por este Supremo Tribunal de Justiça. I- Nulidades do Acórdão recorrido A) Da omissão de pronúncia e erro na aplicação do Direito i) Acontece que apesar de tal recurso ter sido admitido pelo Tribunal a quo reconhecido no Acórdão recorrido, e apesar de a referida invocação de irregularidades constar das conclusões do recurso interlocutório transcritas no Acórdão recorrido, a verdade é que o Tribunal a quo não se pronunciou quanto a tais irregularidades e omissão de pronuncia, como se impunha. j) A este propósito dispõe o artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, que é nula a sentença “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. k) A omissão de pronúncia traduz-se, assim, na violação do preceituado no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na medida em que este preceito estatui sobre o poder-dever, estritamente vinculado, dos tribunais conhecerem de todas as questões que lhe sejam submetidas pelos sujeitos processuais para tal fim. l) Segundo o entendimento do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ( ): “a nulidade resultante de omissão de pronúncia, patologia da decisão prevista na al. c) do n.º 1 do art. 379.º do CPP, ocorre quando a decisão é omissa ou incompleta relativamente às questões que a lei impõe o tribunal conheça, ou seja, às questões de conhecimento oficioso e àquelas cuja apreciação é solicitada pelos interessados processuais – art. 660.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi art. 4.º do CPP.” m) Para mais, “como uniformemente tem sido entendido neste Supremo Tribunal, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que, como tal, tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença; a pronúncia cuja omissão conduz à nulidade é referida ao concreto objeto submetido à cognição do Tribunal e não aos motivos ou às razões alegadas. n) Ora, ao ter omitido a pronúncia sobre a irregularidade invocada pelo Arguido, a este propósito, no seu recurso, o Tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre questão que deveria apreciar e decidir, o que constitui causa de nulidade, ainda para mais, quando – e conforme se demonstrou nesse recurso – o Tribunal a quo deveria ter, não só apreciado, mas também decidido sobre a questão em sentido favorável ao Arguido. Assim, e em suma: o) Sobre a aludida irregularidade por falta de fundamentação invocada pelo Arguido, o Acórdão ora em crise é simplesmente omisso, Subsidiariamente, p) E ainda que assim não se entenda – o que apenas se equaciona por mero dever de cautela de patrocínio – sempre estaremos perante uma irregularidade do Acórdão recorrido, nos termos do artigo 123.º, n.º 1, do CPP, e com os mesmos fundamentos, a qual, para todos os efeitos, se deixa também desde já expressamente invocada. q) Com o devido respeito, o arguido entende que o Tribunal a quo decidiu mal, errando tanto na interpretação como na aplicação do Direito, mas, sobretudo no que concerne à correta interpretação da matéria de facto. r) Ora, salvo melhor entendimento, apenas a prova produzida em audiência de discussão e julgamento deve ser tida em consideração na decisão condenatória, conforme estatui o art. 355.º do CPP. s) Da prova produzida nas várias sessões, nomeadamente com o depoimento das testemunhas arroladas, dos documentos juntos aos autos, e da acareação entre duas testemunhas que o Arguido entende serem cruciais no caso em apreço (e tanto assim é que o Tribunal “a quo”, ainda que ao contrário da opinião do Ministério Público, e dos assistentes, admitiu a referida produção de prova por entender ser relevante, para a boa decisão da causa), não resulta inequivocamente que os factos se tenham passado conforme o Tribunal “a quo” erradamente julgou. t) Inexiste claramente, matéria probatória suficiente da qual pudesse o Tribunal “a quo” condenar o Arguido nos termos do Douto Acórdão. u) Existe sim, matéria probatória que demonstre, que os factos se passaram de forma diferente, da matéria factual que foi dada como provada pelo Tribunal “a quo”. v) Isto porque, e muito resumidamente, tentou criar-se a convicção de que os confrontos físicos finais que originaram a morte da vítima, tiveram apenas como intervenientes, dois indivíduos: O Arguido e a vítima. w) Para além do arguido e da vítima, ficou claramente demonstrado que a testemunha BB também se encontrava envolvido, juntamente com a vítima nas agressões que ambos efetuaram contra o arguido, ora recorrente. x) Facto que o Tribunal não poderia ter ignorado e que, era por demais evidente e importante para a boa decisão da causa. y) No nosso entendimento, o n.º 2 do art. 374.º está intimamente ligado ao art. 127.º do CPP, nos termos em o referido artigo estatui que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. B) Da falta de fundamentação i) Enquadramento: a magreza de toda a fundamentação z) No entanto, a livre convicção do juiz não se pode confundir com a sua íntima convicção, caprichosa e emotiva. aa) Dever esse, que axiologicamente se impõe ao julgador por força, do princípio do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana. bb) Mas antes deve perspetivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento. cc) É, pois, na fundamentação da sentença, sua explicitação e exame crítico que se poderá avaliar a consistência, objetividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjetivo da formação da convicção do julgador. dd) Não é suficiente a mera indicação das provas, sendo necessário revelar o processo racional que conduziu à expressão da convicção. ee) O princípio do processo equitativo é compatível com motivação sumária, sendo, porém, indispensável uma fundamentação adequada e proporcional à complexidade da hipótese inerente a cada caso concreto. ff) O exame crítico das provas deve indicar, no mínimo, e não necessariamente por forma exaustiva, os elementos de prova e as razões de ciência a partir deles que tenham, na perspetiva do tribunal, sido relevantes, dando a conhecer, deste modo, o processo de formação da convicção do tribunal. gg) Enunciados estes princípios e analisado o Acórdão em crise, objeto do presente recurso, é patente que a análise crítica da prova é inexistente. hh) Não só é inexistente, como também a própria matéria de facto dada como provada é contraditória entre si. ii) Da leitura do Acórdão em questão, facilmente damos conta de que o mesmo se limita a enunciar em súmula o conteúdo do depoimento do arguido, embora de uma forma manifestamente abstrata. jj) Referindo muito sucintamente, e de uma forma muito pouco detalhada, que a versão sustentada pelo arguido não tem qualquer acolhimento, nem qualquer correspondência com a verdade. kk) Quando na verdade, e pelo que se assistiu nas longas sessões de Audiência de Julgamento, a versão do Arguido é a única versão que faz qualquer sentido, em consonância com a testemunha que, muito embora estivesse “contra” o arguido, referiu, que em abono da verdade estavam dois amigos contra o arguido. ll) Abstrata, é também a forma, como é descrito o conteúdo do depoimento das testemunhas, ouvidas. mm) Não se poderá deixar de referir que o Tribunal não ponderou, em nossa opinião, de forma consciente, o efeito medo na produção do resultado típico, como hoje é sobejamente pacifico em toda a doutrina de Direito relacionando o ato, o medo e a necessária análise jurídica fundamentada na moderna neurociência. (“A negligencia inconsciente entre a dogmática penal e a neurociência”, Bárbara Sousa Brito) nn) No entanto, não pode o Arguido deixar de evidenciar a excessiva magreza que assola toda a fundamentação do Acórdão recorrido, dirigindo ao Tribunal a quo uma firme e merecida crítica, que ultrapassa as questões de seguida analisadas em detalhe, e que se estende à totalidade da decisão, pelo deficiente – praticamente inexistente – cumprimento do dever de fundamentação. oo) Com efeito, não só nos casos infra indicados merece censura o (não) cumprimento do dever constitucional de fundamentação a que está adstrito o Tribunal a quo. A escassez de fundamentação perpassa todo o Acórdão recorrido, o que se torna especialmente chocante quando se tenha em consideração que através do Acórdão recorrido o Arguido é condenado por um crime de homicídio, sendo-lhe aplicada uma pena de 12 anos de prisão. pp) No entanto, no Acórdão recorrido, assiste-se, com alguma estupefacção e igual inquietação, a uma total ligeireza e superficialidade na análise das questões suscitadas, nas mais da vezes bastando-se a fundamentação com sequências de transcrições da decisão do Tribunal de 1.ª instância, acolhidas automática e acriticamente, e intercaladas com meras frases de interligação, o que, naturalmente, não se coaduna com a seriedade, densidade e profundidade exigível na análise das questões jurídicas a um tribunal superior, no julgamento de um recurso em que o Arguido vem condenado a uma tão elevada pena privativa da liberdade. ii) Nulidade - Relativamente à subsunção dos factos ao crime qq) Como evidenciou o Tribunal Constitucional, a fundamentação das sentenças penais “deve ser susceptível de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da sua livre apreciação pelo julgador, devendo também indicar as razões de direito que conduziram à decisão concretamente proferida. Afigura-se ser este o núcleo central da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais” ( ) (realce nosso). rr) Acontece que, se não sendo mentira que o Acórdão recorrido nos proporciona, através da transcrição da decisão de 1.ª instância, uma listagem de factos que foram julgados provados e não provados, a verdade é que falha pela total ausência de uma exposição concretizada e individualizada que permita sustentar (e perceber) o juízo decisório que é extraído a final relativamente à subsunção dos (inúmeros) factos dados por provados ao crime de homicídio pelo qual o Arguido vem condenado. ss) Com efeito, a este propósito, o Acórdão recorrido limita-se a transcrever as normas incriminadoras e a caracterizar, de forma totalmente geral e abstracta, o tipo de crime imputado ao Arguido AA, sem cuidar proceder, ainda que sumariamente, à necessária subsunção dos (inúmeros) factos dados por provados a tal crime. tt) De forma simples: no Acórdão recorrido não é estabelecida – sequer remotamente – qualquer correlação entre todos os factos dados por provados e o crime imputado ao Arguido. uu) Vejamos que assim é:”Nesta senda, dúvidas inexistem que o arguido AA praticou em autoria material e na forma consomada um crime de homicídio, p.p pelo art. 131.º do CP nos termos pelo qual vinha pronunciado e pelo qual deve ser condenado.” vv) Entendimento do qual discordamos, uma vez que o resultado espelhado no acórdão não está minimamente de acordo com o conjunto da prova quando analisada na sua totalidade. ww) E com a fundamentação que se exige. xx) A título meramente exemplificativo, pergunta-se, atenta a remissão que é feita em bloco para a matéria de facto dada como provada, e por resultar verdadeiramente ininteligível do Acórdão recorrido: dos 53 factos considerados provados e 5 considerados não provados que integram o acórdão de 1.ª Instância, quais os concretos factos que preenchem a conduta típica do crime de homicídio p. e p. pelo artigo 131.º do CP, pelo qual vem condenado o Arguido? yy) E não pelo crime de ofensas à integridade física agravada pelo resultado morte, 143.º C. Penal? zz) Da mesma forma que se pergunta, por resultar verdadeiramente ininteligível do Acórdão recorrido: porque é que esses factos (que permanecem por individualizar) juntamente com as provas, não respondem à questão essencial, ou tão pouco, justificam a conduta típica do crime de homicídio por si só? aaa) A existência de três e não dois intervenientes na ação final não é essencial à descoberta da verdade? bbb) E à tipificação do crime? ccc) E porquê dolo necessário? ddd) O Acórdão recorrido não responde. eee) Resulta assim do exposto que o Acórdão recorrido, para além de não proceder à identificação individualizada dos factos que no seu entender integram a prática do crime de homicídio, não justifica ou descreve, de forma cabal, completa e adequada, como se impõe, o iter metodológico prosseguido que terá culminado na decisão de considerar preenchidos os tipos objectivos e subjectivos desse mesmo crime. fff) A partir da leitura e análise do Acórdão recorrido, não é possível ao Arguido perceber quais as razões de direito que determinaram a sua condenação em tal crime. ggg) Resulta assim absolutamente claro que o Acórdão recorrido não respeita ou cumpre as exigências mínimas de fundamentação que se esperam de uma decisão judicial a ser proferida em processo penal, de forma a potenciar a necessária sindicância da própria decisão. hhh) Prejudicando, inclusive, diversos direitos de que é titular, desde logo, o arguido, e que recebem consagração constitucional, como sucede com o direito ao recurso ou o direito de defesa e ao contraditório (cfr. artigo 32.º, n.ºs 1e 5, da Lei Fundamental). iii) Como parece óbvio, através da remissão, em bloco e sem mais, para os factos dados como provados, não é possível ao Arguido AA compreender quais os factos por si praticados que sustentam a condenação do crime imputado desta forma, nem as razões pelas quais tais factos se subsumem ao crime em causa, o que sempre seria imprescindível para o exercício cabal e completo do seu direito de Defesa. jjj) Acresce que, tais exigências de fundamentação são de tal forma relevantes e preponderantes que o ordenamento jurídico sanciona a sua ausência ou incumprimento com o vício de nulidade. kkk) Isso mesmo resulta do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, norma que qualifica como “nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F”. lll) E o momento processual para a tempestiva arguição de tal vício corresponde, precisamente, à interposição de recurso da decisão em causa, como dispõe o n.º 2 do mesmo artigo 379.º do CPP (“As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º”). mmm) É precisamente esse o vício manifesto e grave de que enferma o Acórdão recorrido. nnn) Pelo que, nestes termos, estamos perante um vício que, por si só, invalida toda a decisão judicial em apreço, a qual é, assim, nula, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), ex vi artigo 425.º, n.º 4, do CPP, por violação do disposto no já mencionado n.º 2 do artigo 374.º do mesmo diploma legal. ooo) Nulidade essa que se deixa, desde já, expressamente invocada, para os devidos efeitos legais, e a qual deve ser reconhecida e declarada. Subsidiariamente, ppp) E ainda que assim não se entenda – o que apenas se equaciona por mero dever de cautela de patrocínio –, sempre estaremos perante uma irregularidade do Acórdão recorrido, nos termos do artigo 123.º, n.º 1, do CPP, e com os mesmos fundamentos, a qual, para todos os efeitos, se deixa também desde já expressamente invocada. iii) Nulidade - Da medida da pena e do crime imputado qqq) Como vimos supra, o artigo 374.º do CPP, concretizando o comando constitucional constante do artigo 205.º da CRP, obriga à fundamentação da sentença, sendo que como vem sendo reconhecido pela jurisprudência do TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, tal fundamentação tem de ser “completa” e conduzir à “transparência do processo e da decisão”. rrr) Como vimos supra, o artigo 374.º do CPP, concretizando o comando constitucional constante do artigo 205.º da CRP, obriga à fundamentação da sentença, sendo que como vem sendo reconhecido pela jurisprudência do TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, tal fundamentação tem de ser “completa” e conduzir à “transparência do processo e da decisão”. sss) É exactamente por essa razão, aliás, que se determina expressis verbis, no artigo 71.º, n.º 3, do CP, que “na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”. ttt) Embora sejam esses os critérios que o Acórdão recorrido convoca nas (escassas) páginas (três) que dedica à fundamentação da determinação da medida da pena, o que aí se refere não cumpre, sequer minimamente, as exigências legais de fundamentação de que acima demos nota. uuu) Ou seja, o Acórdão recorrido não contém fundamentação específica – nem mesmo por adesão ou remissão para a decisão de 1.ª instância – que justifique a medida fixada. vvv) Também por essa razão, a Decisão final é nula, resultante da absoluta falta de fundamentação da medida pena, e assim deve ser declarada, decorrendo tal nulidade da conjugação dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), ex vi artigo 425.º, n.º 4, todos do CPP, o que, desde já, se invoca para todos os efeitos legais. www) Tudo em razão da apontada falta de fundamentação, sem a qual – repetimos – fica irremediavelmente prejudicada, à partida, a possibilidade de plena sindicância jurisdicional e contraditório, pelo Arguido. II – Da ausência de preenchimento do tipo legal do crime imputado xxx) Com efeito, do Acórdão recorrido, o Tribunal da Relação, para além de não ter procedido a uma subsunção concretizada e individualizada dos factos ao tipo criminal em causa, exercício a que estava obrigado e que determina a nulidade da decisão recorrida, como se deixou invocado, limitou-se a reproduzir expressis verbis os entendimentos anteriormente explanados e sufragados pelo Tribunal de 1.ª instância. yyy) A análise do Acórdão recorrido permite, pois, concluir sem escolhos que o Tribunal da Relação não aportou qualquer nova perspectiva ou entendimento jurídico face à posição já anteriormente assumida pelo Tribunal de 1.ª instância. zzz) Reproduzindo a decisão anterior proferida no âmbito dos mesmos autos, sem qualquer crivo ou ponderação adicional, o Tribunal da Relação … não ensaiou sequer um putativo esforço de procurar analisar a relevância criminal dos factos que foram julgados provados, o seu respectivo enquadramento e, por fim, a sua subsunção (ou não) aos preceitos incriminadores imputados ao Arguido AA. aaaa) Ainda que se aceitasse que o Arguido AA praticou os factos julgados provados, tal como estes se encontram descritos na decisão sobre a matéria de facto (o que, naturalmente, não se concede), a verdade é que esses factos não permitem suportar o enquadramento jurídico-penal que lhes é atribuído. Da impossibilidade de imputação do crime de homicídio bbbb) Como bem ensina Figueiredo Dias, “O tipo objetivo de ilícito do homicídio simples se consuma com a morte de outra pessoa, isto é, com o causar, por ação ou por omissão, a morte de pessoa diferente do agente (…) só sendo conveniente acentuar que ”causar a morte” implica a necessidade de se estabelecer o nexo de imputação objetiva (e subjetiva) do resultado à conduta.” cccc) Quer o acórdão de 1.ª Instância como o acórdão da Relação apontam para dolo direto de AA, ao analisar a factualidade descrita nos autos. dddd) Situação com que não nos é possível concordar pois, o dolo tem que existir no momento do facto. eeee) Abrangendo o período que vai do começo ao fim da ação, que realiza o correspondente tipo objetivo. ffff) Aqui denota-se gravemente a omissão de fundamentação quanto à escolha do tipo de dolo com que se conclui apenas com o intuito de condenar. gggg) O recorrente não tinha vontade do resultado muito menos conhecimento do momento da prática do facto, simplesmente, porque nunca o perspetivou ou preparou. hhhh) Estando certos que quanto aos elementos essenciais do dolo, ao objeto do mesmo, chega-se através da análise do art. 16.º, n.º 1 do CPenal: “são os elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, a consciência da ilicitude do facto de que o que faz está proibido” iiii) O recorrente apenas se defendia de dois jovens, cada um deles com metade da sua idade, que de forma selvática, alcoolizados, o atacavam (um cidadão com 58 anos) sem sentido. jjjj) Quando este (AA), já se tinha afastado do local do desentendimento e por isso, a contenda final, ocorreu uns metros abaixo do local onde o BB (terceiro interveniente) o confrontou e foi agarrado por outra testemunha. kkkk) Já quanto ao momento intelectual do dolo (o lado da representação) exige o conhecimento das características que integram o tipo de ilícito, o que, contende com a questão de saber quais são, em cada caso, essas características. llll) O arguido, ora recorrente, nunca poderia representar um facto que simplesmente desconhecia, não pretendia efetuar e tão pouco podia perspectivar. mmmm) O elemento volitivo, supõe uma decisão de vontade do agente para a realização do ilícito típico. nnnn) O arguido, não decidiu, não perpectivou e não tinha vontade. oooo) Simplesmente porque não o provocou, nem perspetivou. pppp) Apenas, quando sovado por dois jovens com metade da sua idade e o dobro da energia, naturalmente, sentiu medo e reagiu de acordo com o pânico demonstrado e natural naquela situação – de acordo com as regras da experiência comum, deveria ter-se dado como provado. qqqq) Aquele que atua com dolo homicida, sabe que mata outra pessoa e quer isso mesmo, ou, pelo menos, confronta-se com o correspondente resultado. rrrr) Situação que nunca aconteceu e os acórdãos não fundamentam a razão pela qual assim não se entendeu, mas mais, nem sequer consideraram como possíveis outras formas de agir, impedindo ou não valorando a prova na globalidade. ssss) Tão pouco tentaram esclarecer para afastar essas possibilidades. tttt) Bastaram-se com o dolo de 1.º grau, grosso modo, colando a intenção criminosa prevista no art. 14.º, n.º 1 do CPenal àquilo que o agente nunca quis obter. uuuu) O coletivo, na análise da fita do tempo, mostrou ser incapaz de decidir de acordo com a real produção dos factos. vvvv) Como bem ensina o prof. Figueiredo Dias “o agente prevê a realização do facto criminoso e tem como fim essa realização”, “a realização do tipo objetivo de ilícito, surge como o verdadeiro fim da conduta” wwww) O que manifestamente, no recurso em análise não se verificou. xxxx) Andou mal o coletivo a não analisar o dolo necessário ou de segundo grau, “dolo de consequência necessária” do 14.º, n.º 2 CPenal. Dirige-se àqueles efeitos colaterais que o agente sabe necessariamente ligados à obtenção da sua finalidade última que, no pressente caso apenas se tratava da defesa da integridade física do arguido efetivamente ameaçada por dois jovens alcoolizados e agressivos. yyyy) “Produz-se um facto típico indissoluvelmente ligado ao almejado pelo autor e que, por isso mesmo, é conhecido e querido por ele” – a defesa da sua integridade física. zzzz) Como bem ensina Cavaleiro Ferreira “a mera suspeita de que, eventualmente, possa advir a realização de um crime exigirá nova prova mais segura da conformação da vontade com essa realização, o que infelizmente, quer o coletivo de1.ª Instância, como o da Relação, estranhamente não fizeram. (sublinhado nosso) aaaaa) Seguindo a opinião por nós subscrita, age com dolo eventual, quem, tendo previsto um certo resultado – como consequência possível da conduta (elemento intelectual), toma a sério a possibilidade de violação dos bens jurídicos respectivos e, não obstante isso, decide-se pela execução do facto. bbbbb) Agredido e humilhado perante os seus pares, temendo pela vida, pela agressividade desmedida da vítima e do seu amigo, empunhou o seu pequeno canivete, nunca podendo perspectivar o resultado morte que infelizmente ocorreu. ccccc) Conforme factos provados, é a vítima que sai do interior do café, pois terá sido alertado dos confrontos com o seu amigo. ddddd) Sem aviso, imediatamente se juntou aos desacatos. eeeee) Não era pois possível, ao arguido prever o resultado morte. fffff) E deste modo, e tendo em conta que é a vítima que interpela o arguido, nunca poderia o Tribunal a quo, afirmar que existiu dolo em relação ao crime de homicídio. – Factos provados 8 e 9 ggggg) Muito menos dolo direto ou necessário. hhhhh) Pelo exposto, não poderia o julgador, ter condenado o arguido pelo crime de homicídio. iiiii) Nunca tendo sido justificado como possível a previsão do art. 151.º do CPenal, participação em rixa, quando os factos provados apontam para tal. jjjjj) Tão pouco a previsão dos arts. 143.º, 144.º, 145.º, conjugada com o art. 147.º do CPenal, foi posta como hipótese. kkkkk) Sendo que, e sem prescindir, sempre se dirá que o Tribunal a quo, após ver toda a prova produzida, deveria ter alterado a qualificação jurídica dos factos nos termos do art. 358.º, n.º 1 e 3 do CPP, o que não fez. lllll) Estamos a cingir-nos apenas a fundamentos retirados dos factos provados. III) Da medida da pena aplicável mmmmm) A moldura penal do crime de homicídio simples p. e p. pelo artigo 131º do Código Penal, isto é, nos termos em que o arguido fora condenado, vai de 8 (oito) a 16 (dezasseis) anos de prisão. nnnnn) A pena de 12 (doze) anos de prisão efetiva, situa-se na metade da moldura penal prevista para este tipo de crime. ooooo) Pena, com a qual o Arguido não pode de todo concordar. ppppp) O Tribunal a quo, violou o disposto no artigo 71º do Código Penal, na medida em que não teve em conta todas as circunstâncias que depuseram a favor do agente, nem a gravidade (ou a sua falta) das suas consequências. qqqqq) O Tribunal a quo, considerou que o Arguido agiu com dolo necessário, ou seja, o segundo grau de dolo nos termos do artigo 14º n.º2 do Código Penal. rrrrr) No entanto, e como já se referiu anteriormente, o Arguido de todo não concorda com esta qualificação. sssss) Abstratamente a pena é definida em função da culpa e da prevenção, intervindo, ainda, circunstâncias que não fazendo parte do tipo, atenuam ou agravam a responsabilidade do agente, conforme estatui o artigo 71º n.ºs 1 e 2 do CP. ttttt) Como refere Roxin, em perfeita consonância com os princípios basilares no nosso direito penal: “a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação revelem como desenlace uma detenção mais prolongada” uuuuu) Mais, refere ainda este autor que: “A sensação de justiça, à qual corresponde um grande significado para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que ninguém possa ser castigado mais duramente do que aquilo que merece; e “merecida” é só uma pena de acordo com a culpabilidade.” vvvvv) O Tribunal a quo, ao afirmar que foi o Arguido que originou todos os conflitos ocorridos naquela fatídica noite, está em erro. wwwww) Se a vítima não tivesse saído do estabelecimento e se tem dirigido ao Arguido, provavelmente não estaríamos perante este desfecho. xxxxx) Pelo que não se depreende o que motivou o Tribunal a quo, a afirmar o que afirmou. yyyyy) Se existisse uma escalada de violência por parte do arguido, a violência teria sido continua, sem interrupções. zzzzz) Mas é por demais evidente, que um grupo de indivíduos alcoolizados que não refrearão os seus impulsos face a qualquer tipo de diálogo racional, tem tendência a serem mais agressivos e impulsivos. aaaaaa) A vítima, conforme foi referido, tinha uma taxa de 1,12 gramas de álcool no sangue bbbbbb) O que de todo demonstra, que no momento em que este, se dirige ao arguido, foi tudo menos para ter um diálogo, calmo e racional e de forma a apaziguar os ânimos. cccccc) E como já tinha sido agredido violentamente, conforme resulta dos relatórios médicos juntos aos autos, que são claros e inequívocos, quanto a isto, é normal que o Arguido naquele momento estivesse com receio de se ver envolvido novamente em confrontos físicos. dddddd) Não se tratou claramente de indiferença por parte do arguido, mas antes de receio por um lado, e por outro não fazia ideia da gravidade da situação. eeeeee) Por todo o exposto, sopesando as circunstâncias agravantes e atenuantes de todo o caso em apreço, afigura-se-nos algo excessiva a pena efetiva de 12 (doze) anos. ffffff) O arguido, com a sua conduta, não manifesta, em momento algum um dolo homicida. Por tudo isto, e considerando que a prova é insuficiente, que persistem dúvidas insanáveis, após a produção da prova, nada mais há a requerer senão que: 1. Seja julgado o presente recurso procedente e declarar as nulidades invocadas, bem como a requalificação jurídica do crime do qual vem condenado, ou, caso assim não se entenda e por mera cautela de patrocínio, que seja a pena aplicada diminuída para os seus mínimos legais.» 3.2. O recorrente requereu a realização de audiência ao abrigo do disposto no art. 411.º, n.º 5, do CPP. 4. Por despacho de 18.10.2021 foi admitido o recurso. 5. O Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação … respondeu, tendo concluído nos seguintes termos: «1.º - O douto acórdão recorrido encontra-se devidamente fundamentado e não omite pronúncia relativamente a cada uma das questões suscitadas pelo arguido no recurso que interpôs do acórdão do tribunal colectivo do Juízo Central Criminal .... 2.º - À vista da realidade factual, objectiva e subjectiva, definitivamente assente, a conduta do recorrente foi correctamente subsumida ao crime de homicídio simples da previsão do artigo 131.º do Código Penal. 3.º - A pena aplicada na primeira instância e confirmada pelo douto acórdão recorrido não é exagerada e ajusta-se aos critérios e finalidades emergentes dos artigos 40.º, n.ºs 1 e 2, e 71.º do Código Penal.» 6. Notificados os recorridos/assistentes CC e DD, não responderam. 7. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, no uso da faculdade concedida pelo art. 416.º, n.º 1, do CPP, o Senhor Procurador-Geral Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça proferiu parecer no sentido da improcedência do recurso, porquanto: «(...) I - DA NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA Alega o recorrente, que o acórdão do Tribunal da Relação … não se pronunciou sobre a invocada falta de fundamentação do acórdão do Juízo Central Criminal ... e, como tal, é nulo nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal. Esforça-se, o recorrente, repetindo-se, para nos convencer sobre a existência da nulidade referida, mas, quanto a nós, e com o devido respeito pela argumentação despendida, sem sucesso. A questão suscitada foi apreciada pelo Tribunal recorrido, que se pronunciou da seguinte forma: (...) Ora, entendemos, que no acórdão em apreciação são analisadas as questões que se encontravam em causa, a saber: a invocada nulidade do acórdão proferido em primeira instância por suposta falta de fundamentação. Entendemos que o acórdão recorrido não deixa dúvidas quando assim se expressa: Isto é, a fundamentação do tribunal recorrido não sofre de “insuficiência intolerável”. Não ocorre, portanto, a nulidade referida no arto 379º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal. Assim, e sem necessidade de mais considerandos, por desnecessários, parece-nos ser de improcede o recurso nesta parte. II - DO ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA E CONSEQUENTE ERRO DE JULGAMENTO Para que se verifique o vicio da “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Ou seja, há insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto provada quando os factos dados como provados não permitem a conclusão de que o arguido praticou ou não um crime, ou não contém, nomeadamente, os elementos necessários ou à graduação da pena ou à elucidação de causa de exclusão da ilicitude ou da culpa ou da imputabilidade do arguido. Tem o aludido vício de ser aferido em função do objecto do processo traçado naturalmente pela acusação ou pronúncia. Isto significa que só quando os factos recolhidos e provados em julgamento, se ficam aquém do necessário, para concluir pela procedência ou improcedência da acusação se concretizará tal vício. Não é o caso destes autos, em que a matéria de facto provada se apresenta manifestamente suficiente à decisão de direito proferida. Por outro lado, para se verificar contradição insanável da fundamentação, têm de constar do texto da decisão recorrida, sobre a mesma questão, posições antagónicas e inconciliáveis, como por exemplo dar o mesmo facto como provado e como não provado, em situações que não possam ser ultrapassadas pelo tribunal de recurso. A contradição pode suceder entre segmentos da própria fundamentação – dão-se como provados factos contraditórios, dá-se como provado e não provado o mesmo facto, afirma-se e nega-se a mesma coisa, enfim, as premissas contradizem-se; A decisão não se encontra em sintonia com os factos apurados. Logo, a contradição só releva, juridicamente, quando existe uma oposição directa entre os factos qualquer que seja o sentido que se dê a cada um deles. Só então se está perante uma contradição insanável da fundamentação. Não se vislumbra no acórdão recorrido qualquer contradição, nos termos atrás definidos, não relevando para o efeito a invocada contradição entre a decisão e aquilo que pretensamente disseram as testemunhas, segundo a convicção formada pelo recorrente. Quanto ao erro notório na apreciação da prova, só existe, quando do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta com toda a evidência a conclusão contrária à que chegou o tribunal; isto é, quando se dão como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos, ou seja, quando se dá como provado um facto com base em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios, claramente violadores das regras da experiência comum. No caso dos autos, porém, não se detecta, na matéria de facto considerada provada na decisão recorrida, nenhuma irrazoabilidade patente aos olhos de qualquer observador comum, por se opor à normalidade dos comportamentos e às regras da experiência comum. Na verdade, o que a decisão recorrida indica como estando provado e não provado, em nada ofende o sentimento que o homem médio (e este homem médio é que serve de referência para o efeito de aferir da existência do falado erro notório) pode ter sobre a realidade ou irrealidade desses factos. Por outras palavras, do texto daquela decisão (por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum) não resulta que se apreciou de forma visivelmente descabida a prova, isto é, que os factos que vêm dados como tendo acontecido não podiam ter acontecido (ou não podiam ter acontecido do modo como a sentença diz que aconteceram). Da conjugação e valoração de todos os aludidos meios de prova chega-se à conclusão que a decisão recorrida está devidamente fundamentada em sede de decisão da matéria de facto - as testemunhas disseram o que se encontra resumido na sentença -, apresentando-se a versão declarada provada/não provada suficientemente consistente e apoiada naquela prova, não se vislumbrando qualquer infracção às aludidas regras ou princípios atinentes à prova. Pretende o recorrente, que este Venerando Tribunal Supremo reaprecie a prova e considere como não provados os factos atinentes à verificação do crime de homicídio p.p. nos termos do arto 131º do Código Penal. (...) Do que se vem dizendo não resulta, porém, que a apreciação da prova seja insindicável, atento o facto de o julgador a poder apreciar livremente e de acordo com a sua convicção. Efectivamente, o que o Recorrente pretende atacar não é uma eventual divergência ou contradição existente entre a prova produzida e a factualidade dada como provada, mas sim a valoração que o juiz da primeira instância fez relativamente aos diversos depoimentos diante si prestados. E esse seu inconformismo torna-se mais intenso quando vê o Tribunal de segunda instância confirmar a decisão da primeira instância. Com efeito, o recorrente sustenta, “que o Tribunal a quo decidiu mal, errando tanto na interpretação como na aplicação do Direito, mas, sobretudo no que concerne à correta interpretação da matéria de facto. Inexiste claramente, matéria probatória suficiente da qual pudesse o Tribunal “a quo” condenar o Arguido nos termos do Douto Acórdão. Existe sim, matéria probatória que demonstre, que os factos se passaram de forma diferente, da matéria factual que foi dada como provada pelo Tribunal “a quo”. Isto porque, e muito resumidamente, tentou criar-se a convicção de que os confrontos físicos finais que originaram a morte da vítima, tiveram apenas como intervenientes, dois indivíduos: O Arguido e a vítima. Para além do arguido e da vítima, ficou claramente demonstrado que a testemunha BB também se encontrava envolvido, juntamente com a vítima nas agressões que ambos efetuaram contra o arguido, ora recorrente. Facto que o Tribunal não poderia ter ignorado e que, era por demais evidente e importante para a boa decisão da causa.” (sublinhado nosso) No entanto, o recorrente, ao elencar tal tese, esquece o supra explicitado princípio da livre apreciação da prova. De facto, recorrendo às doutas palavras vertidas no Ac. T.C. 198/2004 de 24/03/2004 (publicado no DR, II Série, de 02/06/2004), “A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode, consequentemente, assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”. Assim, e repetindo, a apreciação e valoração da prova é feita livremente pelo tribunal, de acordo com a sua livre convicção, assentando esta num raciocínio lógico, coerente, racional, e recorrendo a regras de lógica e experiência. Ora, uma vez que o tribunal de primeira instância não usou de meios de prova proibidos, a sua decisão quanto à matéria de facto não enferma de nenhum vício notório ou contradição, conforma-se com as regras da experiência comum e é suportada pelas provas invocadas na fundamentação do acórdão proferido, forçoso é que se conclua que não merece, pois, qualquer juízo de censura a sua decisão no que à matéria de facto diz respeito. Na fundamentação da sua convicção, o Tribunal a quo foi lógico e congruente, consistente e suficiente, explicando, a partir da prova produzida, as razões pelas quais se convenceu de que os factos haviam decorrido tal como havia dado como provado. Assim o considerou igualmente, o douto acórdão do Tribunal da Relação …, pelo que não assiste razão ao Recorrente. Da análise de toda a prova produzida em sede de discussão e audiência de julgamento não logramos verificar nenhum facto como incorrectamente julgado, sendo certo que muito menos se vislumbra nenhuma prova que deva ser renovada. Diz o recorrente que no acórdão recorrido assiste-se a «uma total ligeireza e superficialidade na análise das [questões] suscitadas, nas mais das vezes bastando-se a fundamentação com sequências de transcrições da decisão do Tribunal da 1.a instância, acolhidas automática e acriticamente, e intercaladas com meras frases de interligação, o que, naturalmente, não se coaduna com a seriedade, densidade e profundidade exigível na análise das conclusões jurídicas a um tribunal superior, no julgamento de um recurso em que o Arguido vem condenado a uma tão elevada pena privativa de liberdade». Como bem refere o Magistrado do Ministério público do Tribunal da Relação …, “Nos termos do artigo 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, aos acórdãos proferidos em recurso é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 379.o do mesmo Código. O n.º 1, alínea a), do artigo 379.º, por sua vez, determina que a sentença que não estiver fundamentada é nula. Este normativo deve ser conjugado com o artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que estabelece que a estrutura da sentença compreende um segmento de fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Relativamente às decisões dos tribunais superiores, o nosso mais alto Tribunal tem entendido que «as exigências de pronúncia e fundamentação da sentença, prescritas no art. 374.º, n.º 2, do CPP, não são directamente aplicáveis aos acórdãos proferidos pelos tribunais superiores, por via de recurso, mas tão-só por força de aplicação correspondente do art. 379.º, ex vi art. 425.º, n.º 4, razão pela qual aquelas decisões não são elaboradas nos precisos termos previstos para sentenças proferidas em 1.a instância, o que bem se compreende, visto que o seu objecto é a decisão recorrida e não directamente a apreciação do objecto do processo. (...) Por isso, o tribunal de recurso está apenas obrigado a sindicar a decisão recorrida, verificando, grosso modo, se a prova foi legal e correctamente valorada e apreciada (caso lhe tenha sido pedido e caiba nos seus poderes de cognição o reexame da matéria de facto) e se o direito foi bem aplicado, sendo que, no caso de entender que a valoração e apreciação da prova se mostram correctas e que o direito foi bem aplicado, pode limitar-se a explicitar as razões pelas quais adere aos juízos de facto e de direito formulados pelo tribunal recorrido, ou seja, à decisão sob recurso». Salvo melhor entendimento, o douto acórdão recorrido pronunciou-se de forma suficientemente fundamentada relativamente a cada uma das diferentes questões suscitadas pelo recorrente, dando a conhecer as razões pelas quais aceitou a posição do tribunal colectivo da 1.a instância e que conduziram à decisão que tomou. Nestes termos, também nesta parte não assiste razão ao recorrente. III - DA NULIDADE RELATIVAMENTE À SUBSUNÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS Sufragamos, nesta parte, o que é sustentado pelo Ministério público do TR….: (...) [Transcrição] Diz o recorrente que «ainda que se aceitasse que o Arguido AA praticou os factos julgados provados, tal como estes se encontram descritos na decisão sobre a matéria de facto (...), a verdade é que esses factos não permitem suportar o enquadramento jurídico-penal que lhes é atribuído». Conforme já exposto, a matéria de facto que suporta a condenação encontra-se definitivamente fixada e salta à vista mais desprevenida, mesmo para quem não tenha formação técnico-jurídica, que cai na previsão incriminatória do artigo 131.o do Código Penal.” IV – DA MEDIDA CONCRETA DA PENA Como decidiu o Tribunal da Relação …: (...) [Transcrição] As finalidades da punição, nos termos do artigo 40º, nº 1, do Código Penal, visam a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. (...) Posto isto, entendemos que perante o quadro factual e jurídico descrito pela decisão recorrida, não é excessivamente dura nem desproporcional a pena aplicada em concreto. O Tribunal in casu graduou, e bem, a medida da pena aplicada, ponderando todos os elementos e as circunstâncias enunciadas no douto acórdão sob recurso, designadamente, o grau de ilicitude e da culpa, e atendendo à moldura abstratamente cominada para o tipo de ilícitos cometido. (...) Assim, entendemos que perante o quadro factual e jurídico descrito pela decisão recorrida, não é excessivamente dura nem desproporcional a pena aplicada em concreto. E sendo que verificamos, pela análise do douto acórdão impugnado, que todas as operações lógicas de determinação da medida da pena foram, não só respeitadas como devidamente fundamentadas, com ponderação de todos os fatores suscetíveis de, in casu, determinar quais as concretas necessidades de prevenção que se fazem sentir e a culpa manifestada nos atos pelo agente, não merecendo, por isso, em nosso entender, qualquer censura. A pena aplicada na primeira instância e confirmada pelo douto acórdão recorrido não é exagerada e ajusta-se aos critérios e finalidades emergentes dos artigos 40.º, n.ºs 1 e 2, e 71.º do Código Penal. Afigura-se-nos que o acórdão recorrido não suscita reparo, cumprindo as exigências legais, não o afectando nulidade, ou sequer irregularidade, nem padece de inconstitucionalidade. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação … respondeu ao recurso, demonstrando que os elementos probatórios suportam a indiciação criminal efetuada e subsequente condenação. As questões suscitadas no recurso foram adequada e sustentadamente analisadas e rebatidas, e que aqui se dão por reproduzidas. Sufragamos os argumentos constantes da resposta ao recurso apresentada, que se encontram devidamente desenvolvidos e adequadamente sustentados, quer de facto quer de direito, e merecerem o nosso acolhimento.» 8. Notificado o arguido e os assistentes deste parecer, nada disseram. 9. A audiência foi realizada a 10.03.2022, nos termos do art. 423.º, do CPP. Assim, no início da audiência, a Relatora enunciou as questões que, abordadas na motivação do recurso interposto pelo arguido e nas respetivas conclusões, considerou merecedoras de exame por parte deste Tribunal, nos termos do art. 423.º, n.º 1, do CPP. A Excelentíssima Mandatária do arguido, nas alegações oralmente proferidas, reiterou a posição defendida na motivação do recurso que interpôs para este Supremo Tribunal de Justiça. A Senhora Procuradora-Geral Adjunta reafirmou o exposto no parecer que havia apresentado, concluindo pela improcedência do recurso. O que foi sufragado pela Senhora Advogada mandatária dos assistentes. Em seguida, foi dada a palavra novamente à Excelentíssima Mandatária do arguido, que não pretendeu fazer declarações adicionais. Cumpre decidir. II Fundamentação A. Matéria de facto 1. Matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido: «1. No dia 24/11/2019, pelas 01h00m, no interior do estabelecimento hoteleiro denominado de “Café …”, sito na Rua …, localidade …, concelho …, decorria uma festa de Karaoke, estando presentes vários clientes, entre os quais, o arguido, na companhia do seu amigo EE, bem como outros seus conhecidos, nomeadamente, FF, GG, HH e II. 2. Frequentavam também a referida festa o grupo de amigos de JJ, o qual era composto, para além do próprio, por BB, KK, LL, MM, NN e OO. 3. No decurso da referida festa, o arguido, por ter considerado de má-educação um gesto que BB efetuou junto a HH, dirigiu-se a este e interpelou-o, dizendo que estava a portar-se mal e que estava de olho nele, tendo-se gerado entre eles um confronto verbal e o desferimento de empurrões mútuos, pelo que JJ separou ambos e levou BB para a sua mesa, tendo os ânimos serenado. 4. Volvida cerca de uma hora, BB e KK decidiram ir embora e, depois de se despedirem dos seus amigos, saíram do café e cada um dirigiu‑se para o seu respetivo automóvel, que estavam estacionados nas imediações do estabelecimento, tendo BB entrado para o interior da viatura e iniciado a marcha da mesma. 5. Entretanto, o arguido, acompanhado por GG, ao ver que BB saía do estabelecimento, saiu também de seguida e, na via pública defronte do café, quando BB passou por si, conduzindo a sua viatura, arremessou na sua direção uma garrafa de cerveja, que trazia na mão direita, a qual acertou na zona posterior do automóvel, partindo-se. 6. Ao ouvir o embate, BB imobilizou a viatura, abriu a porta e saiu para o exterior, e, tendo visualizado o arguido, perguntou-lhe sobre a razão da sua atuação e, ato contínuo, o arguido aproximou-se logo de BB e desferiu-lhe, de imediato, um murro que lhe acertou na face. 7. De seguida, BB respondeu à agressão e desferiu dois murros que acertaram na face do arguido, sendo BB de imediato agarrado e empurrado por PP, pai de NN, impedindo que as agressões entre ambos continuassem; tendo KK pedido a BB que se afastasse do local onde se encontrava o arguido. 8. Entretanto, JJ foi alertado no interior do café que existia um confronto no exterior com o seu amigo BB, pelo que saiu do café e, após se deslocar junto deste e se inteirar do sucedido, dirigiu-se ao arguido e perguntou-lhe: “O que é que você fez? Quem é que atirou a garrafa?”. 9. Logo de seguida, o arguido e JJ envolveram-se em confronto físico, tendo JJ colocado os seus braços em redor do tronco do arguido, por debaixo da zona das axilas deste, apertando e fazendo pressão, ficando ambos frente a frente, com os troncos a tocarem-se. 10. O arguido, tendo ficado com os braços com liberdade de movimentação, tentou libertar-se do amplexo, fazendo movimentos com o corpo e desferindo dois murros, com a mão esquerda, os quais atingiram o tórax e o abdómen do corpo de JJ, tendo um deles provocado uma escoriação linear, horizontal, com nove cm de comprimento no terço inferior da face lateral direita do tórax, e o outro provocado uma escoriação arredondada, com 1 cm de diâmetro, na face lateral direita do terço superior do abdómen. 11. Em resultado desses movimentos e da disputa, os corpos do arguido e de JJ foram embatendo nas viaturas que se encontravam na via publica, por vezes em desequilíbrio, mas sem chegarem a cair no solo. 12. De seguida, o arguido, utilizando a mão direita, retirou do bolso uma navalha, composta por um cabo de madeira largo, com faixa preta, e com uma lâmina com cerca de 10 cm, cujas características concretas não foram apuradas, e, de forma não concretamente apurada, abriu a lâmina da navalha. 13. De seguida, o arguido, empunhando e utilizando a navalha com a lâmina aberta, desferiu um golpe na direção do tórax de JJ, o qual atravessou a camisola e a camisa que este trazia vestido, e que causou um ferimento inciso, na transição do terço médio com o terço superior da face lateral esquerda do tórax, com direção oblíqua, ligeiramente de cima para baixo e de trás para a frente, com 1 cm de comprimento. 14. Logo após, o arguido desferiu um novo golpe com a navalha, espetando profundamente a sua lâmina junto à axila esquerda do corpo de JJ, em trajeto com cerca de 10 cm de extensão, na direção horizontal e da direita para a esquerda, o qual causou um ferimento corto-perfurante, na transição do terço superior da face lateral esquerda do tórax com o terço médio, com direção oblíqua, ligeiramente de cima para baixo e de trás para diante, com 2 cm de comprimento, tendo a lâmina atravessado o sexto espaço intercostal pelo arco médio, provocando infiltração sanguínea nos tecidos moldes adjacentes, e perfurado o bordo lateral esquerdo inferior do pericárdio, atravessando o coração na parede lateral esquerda do ventrículo esquerdo, próximo da ponta. 15. Como consequência dos movimentos e dos golpes acima descritos, o arguido e JJ desequilibraram-se, tendo ambos caído junto à traseira da viatura de marca ..., de matrícula ...-TU-..., que se encontrava estacionada defronte da porta do café, do outro lado da via. 16. O arguido caiu de costas no chão e JJ caiu por cima do corpo deste, continuando ambos a ficar frente a frente, e, em consequência da queda, o arguido bateu com a região parietal esquerda da nuca no pavimento, fazendo um ferimento inciso que sangrou essa zona, sangramento esse que escorreu para a parte posterior superior e colarinho da camisa que vestia, enquanto que JJ sofreu duas escoriações superficiais no joelho esquerdo, ambas alongadas no sentido horizontal, medindo a maior 2 cm x 1,5 cm e a menor 2 cm x 1 cm, e uma equimose arroxeada, no terço externo da face anterior do ombro direito, arredondada, medindo 1,5 cm de diâmetro. 17. Ao sentir o golpe descrito em «14.», JJ emitiu um gemido alto e começou a sangrar profusamente, levantou-se e colocou a mão direita junto ao peito e cambaleando disse “Já estou morto”. 18. De seguida, QQ e NN ajudaram JJ a sentar-se na parede oposta à da porta de entrada do café, onde este continuou a sangrar abundantemente, com dores e em agonia, vindo a falecer, como consequência direta e necessária do último golpe desferido pelo arguido, no local, no interior da ambulância do INEM, por volta das 03h25m. 19. Por seu lado, o arguido, depois de se ter levantado do local da queda e de se ter posteriormente sentado junto da dianteira da viatura de matrícula ...-TU-..., deslocou-se para o interior do café, dirigiu-se à casa de banho, onde se lavou de parte dos vestígios hemáticos que tinha no corpo, designadamente no dedo apontador da mão direita, devido a corte causado pelo manuseamento da sua navalha, tendo colocado a navalha no bordo do lavatório. 20. De seguida, o arguido saiu da casa de banho, ocultou a navalha em local não apurado, deslocou-se até à sua viatura, de marca ..., de matrícula …-HG-…, que estava parqueada nas imediações, onde veio a ser interpelado por NN, que o advertiu para não se ausentar do local. 21. Após, o arguido dirigiu-se novamente ao interior do café, onde ficou a aguardar a chegada das autoridades, afirmando a estas, quando questionado, que tinha deixado cair a arma na via pública e que não sabia do seu paradeiro. 22. O arguido bem sabia que utilizava um instrumento de natureza corto-perfurante, com pelo menos 10 cm de lâmina, para perfurar profundamente a zona torácica de JJ, local do corpo onde se alojam órgãos e vasos sanguíneos vitais, e que tal era idóneo a causar a morte a qualquer pessoa que por tal fosse perfurada nessa zona corporal, tendo representado, pretendido e alcançado tal resultado. 23. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. * Do percurso, condições de vida e antecedentes criminais do arguido: 24. AA, nascido a …/…/1963, actualmente com 57 anos de idade, nasceu no seio de uma família estruturada e normativa. 25. Apesar do divórcio dos pais ter ocorrido quando contava 13 anos de idade, as relações intrafamiliares do seu atual agregado caracterizam-se por laços de afetividade e espírito de entreajuda, extensíveis à sua irmã, de 53 anos de idade, e à família constituída por esta. 26. O percurso escolar do arguido foi marcado por várias retenções, tendo abandonado o sistema de ensino aos 18 anos de idade, sem concluir a escolaridade obrigatória, que completou, decorridos cerca de dez anos, em regime noturno, por se encontrar a trabalhar. 27. O seu percurso laboral tem decorrido, maioritariamente, na empresa do pai, com uma interrupção de três anos, iniciada em 1986, período em que exerceu funções de …. Com a desvinculação do pai da empresa, AA deu continuidade ao negócio. 28. Paralelamente à sua atividade profissional, ainda na sua adolescência, o arguido foi … nas …, situação que perdurou durante cerca de dez anos. Fez ainda formação na …, tendo sido … na … daquela cidade e … na... 29. No que concerne a ligações afetivas, os relacionamentos que teve foram breves e circunstanciais, mantendo uma relação de namoro à distância, há cerca de dois anos, com uma pessoa que vive em …. 30. À data dos factos, AA vivia sozinho em casa própria. 31. A subsistência do arguido era garantida pelas receitas auferidas no exercício da sua atividade profissional, enquanto proprietário de empresa comercial de …, cujo lucro negocial rondava os €2.000/€3.000 mensais. 32. Despende cerca €720 para fazer face às suas despesas quotidianas, incluindo a prestação relativa a armazém, espaço contíguo à sua habitação. 33. A empresa permanece em funcionamento, a cargo da sua sobrinha, sob a sua orientação a partir de casa, não vivenciando dificuldades económicas relevantes. 34. O arguido é tido pelos seus pares e familiares como uma pessoa trabalhadora, prestável, amiga e divertida. 35. O arguido não tem antecedentes criminais. * Do pedido de indemnização civil deduzido por CC e DD: 36. No contexto espácio-temporal descrito em «1.» a «18.» e na decorrência dos factos aí descritos, JJ, nascido a …/…/1994, após ter caído ao solo, ergueu-se, levou a mão ao peito, notando que estava a sangrar profusamente, levou uma mão à zona por baixo da axila, local onde tinha sido esfaqueado. 37. Percecionando, dessa forma, o seu estado físico, agudizou-se o seu sentimento de pânico e medo perante a morte iminente. 38. JJ estava absolutamente consciente do sucedido e do provável desfecho: a sua morte. 39. Esvaindo-se em sangue, com imensas dores e em completa agonia, perdeu os sentidos. 40. JJ morreu sem analgésicos, sem reconforto, com dor física e dor emocional, derivadas dos sentimentos de ansiedade e medo causados pelo reconhecimento da sua morte iminente. 41. JJ, com 25 anos à data dos factos, era um jovem saudável, alegre, bem-humorado, amigo, um filho dedicado, atencioso e carinhoso com os pais, muito querido entre familiares e amigos, pacífico, que tentava atenuar e apaziguar quaisquer altercações à sua volta, como sucedeu na noite a que se reportam os factos. 42. JJ, trabalhador, disciplinado e sério, tinha elevadas expectativas de se tornar empresário como o pai, estando integrado na sociedade. 43. CC, pai de JJ, tomou conhecimento do sucedido quando se deslocou ao local onde ocorreram os factos, não chegando a ver o seu filho com vida. 44. CC apenas viu o local onde se deram os factos, imagens que jamais esquecerá. 45. CC ficou, até hoje, desesperado e transtornado, sendo frequentes os episódios de insónia, angústia e tristeza. 46. DD, mãe de JJ, teve conhecimento da morte do seu filho pelo telefone, pelas 04h00m do dia a que se reportam os autos, através da madrinha da sua filha, que lhe disse: “- Mataram o seu filho com uma facada.”, palavras que jamais esquecerá. 47. DD deslocou-se à morgue do Hospital …, local para onde levaram o corpo do seu filho, vendo-o morto, ficando em estado de descontrolo, angústia e de choro. 48. Desde então, DD tem recorrentes episódios de insónia, pesadelos e choro, além de tristeza e desgosto. 49. A partir do dia em que os factos se deram, CC e DD têm vivido de forma nunca menos intensa o sofrimento e o desespero de terem perdido o seu filho, muito amado, sofrendo um desgosto profundo, saudade e tristeza quando, antes da morte de JJ, as suas vidas eram alegres e muito marcadas pelos laços familiares que os uniam. 50. CC e DD ficaram privados do amor e afecto que o filho lhes proporcionava. 51. O esforço de CC e DD para vencer a infelicidade do dia-a-dia e a saudade do seu filho é imenso e cansativo. 52. CC despendeu com o funeral do filho o montante de 1.514,50 €.» B. Matéria de direito 1. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente aquando da interposição do recurso, nos termos do art. 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), sem prejuízo do conhecimento oficioso de nulidades (nos termos do art. 379.º, n.º 2, do CPP, e quando seja admissível o recurso; caso este não seja admissível, devem as nulidades ser arguidas no tribunal que proferiu a sentença nos termos gerais do art. 120.º, n.º 1, do CPP, e o prazo geral do art. 105.º, n.º 1, do CPP) e dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP (também aqui apenas no caso de o recurso da decisão ser admissível). Tendo em conta as conclusões apresentadas, verificamos que o arguido alega diversas “nulidades do acórdão recorrido” (cf. p. 6 da motivação). São elas: - nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia [nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), ex vi art. 425.º, n.º 4, ambos do CPP] quanto às irregularidades alegadas em recurso para o Tribunal da Relação (ponto A das conclusões)[1]; - nulidade do acórdão recorrido por falta (ou “magreza” nas palavras do recorrente) da fundamentação (ponto B das conclusões) quanto ao ” exame crítico” das provas [ponto 63 da motivação, ponto ff) das conclusões], porque entende que “a matéria de facto dada como provada é contraditória entre si” [ponto 65 da motivação, ponto hh) das conclusões], para além de considerar que ocorre uma insuficiência da matéria de facto para a condenação do arguido [ponto 37 da motivação, ponto t) das conclusões], e concluindo globalmente pela falta de fundamentação do acórdão recorrido atenta a “total ligeireza e superficialidade na analise das questões suscitadas” (ponto 76 de motivação); - nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação quanto ao “juízo decisório” relativo à “subsunção dos inúmeros factos dados como provados ao crime de homicídio pelo qual o Arguido vem condenado” (ponto 81 da motivação), questionando de entre os factos provados quais os que integram o tipo legal de crime de homicídio, previsto no art. 131.º, do CP (ponto 89 da motivação) e questionando porque não se subsumiram os factos ao crime de violação da integridade física agravada pelo resultado de morte (ponto 90 da motivação), concluindo que o acórdão recorrido é nulo, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP (por violação do art. 374.º, n.º 2, do CPP) [ponto ii) das conclusões]; - nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação quanto à determinação da medida da pena, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP (por violação do art. 374.º, n.º 2, do CPP) (ponto iii das conclusões); - a errada subsunção dos factos ao crime de homicídio (ponto II das conclusões), pois entende que os factos provados “não permitem suportar o enquadramento jurídico-penal que lhes é atribuído” (ponto 140 da motivação), considera que “não tinha vontade do resultado” e “muito menos conhecimento do momento da prática do facto, simplesmente, porque nunca o perspetivou ou preparou” (ponto 151 da motivação; ideia reafirmada, nomeadamente, nos pontos 156, 158, 159 e 181, 182 e 190 da motivação), alegando que se defendia dos agressores (ponto 153 da motivação; ideia reafirmada, nomeadamente, nos pontos 170 e 176 da motivação) — ou seja, entende que não está preenchido o elemento subjetivo do tipo legal de crime — e concluindo que o arguido devia ter sido julgado e condenado pelo crime de participação em rixa, ou, “em alternativa, (...) por um crime de ofensas à integridade física simples agravado pelo resultado morte” (ponto 202 da motivação) ou “um crime de ofensas à integridade física grave, agravado pelo resultado morte” (ponto 203 da motivação); - entende como desadequada a pena aplicada (ponto II das conclusões), alegando que não se pode considerar “o elevado grau de censurabilidade do arguido”, pois não concorda que tenha sido o arguido que tenha originado os conflitos (ponto 220 da motivação), considerando que é a vítima que vai ao encontro do arguido (ponto 224 da motivação), sendo a vítima que tinha uma taxa de álcool no sangue de 1.12 (ponto 234 da motivação) e considerando que a vítima acabou por “contribuir para que o resultado final se viesse a produzir na sua pessoa” (ponto 237 da motivação) e concluindo que “a fuga não é argumento para evitar uma agressão” (ponto 239 da motivação); entende ainda como relevante para a determinação da pena a idade da vítima, a idade do arguido, as agressões de que o arguido tinha sido vítima (ponto 271 da motivação), o facto de ser um cidadão exemplar e com hábitos de trabalho. Antes de mais, deve salientar-se que este Supremo Tribunal de Justiça tem os seus poderes de cognição restritos a matéria de direito. Qualquer alegação relativa à matéria de facto é irrelevante, a não ser que a partir do texto da decisão recorrida se verifique a existência de algum dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, ou qualquer nulidade que deva considerar-se não sanada, nos termos do art. 410.º, n.º 3, do CPP. Não ocorrendo nenhum destes vícios, este Supremo Tribunal de Justiça tem que trabalhar com os factos provados e sedimentados com a decisão prolatada no Tribunal da Relação — isto é, ir-se-á analisar a subsunção jurídica dos factos provados e a decisão ater-se‑á escrupulosamente ao dado como provado. 2.1. O arguido começa por referir que o Tribunal da Relação … não se pronunciou [e daí, segundo o recorrente, a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CP] sobre as irregularidades que apontou ao acórdão prolatado em 1.ª instância. As nulidades alegadas referem-se à ausência, segundo o recorrente, de exame crítico da prova, e à verificação de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação nos termos do art. 410.º, n.º 1, als. a) e b), do CPP]. Todavia, compulsado o acórdão recorrido, verifica-se que, de forma minuciosa, analisou o invocado nos pontos B.2.1., B.2.2. e B.2.3., pelo que, concorde-se ou não com a argumentação apresentada, certo é que não ocorre qualquer omissão de pronúncia, pelo que improcede a alegação de nulidade do acórdão recorrido. É certo que o dever de fundamentação deve permitir aos destinatários da decisão que entendam qual o raciocínio que esteve por detrás da decisão tomada. E ainda que se possa considerar que a fundamentação apresentada nos pontos referidos da decisão recorrida é bastante sucinta, consideramos, no entanto, que responde às questões a que se propôs responder. 2.2. No acórdão do Tribunal da Relação … considerou-se que a “fundamentação factual mostra-se suficiente”, afirmando-se que se percebe quais os documentos e perícias que foram relevantes para o Tribunal de 1.ª instância formar a sua convicção, embora alertando que o alcance do percurso decisório resulta da “exposição das razões da na convicção do tribunal em dois pontos essenciais, no acompanhamento do confronto entre a vítima e arguido”, procedendo de seguida à transcrição da parte da fundamentação que entende relevante por esclarecedora. E conclui que as referências, feitas nos excertos transcritos, “aos documentos e perícias são suficientes para localizar os dois contendores no momento em que foram desferidos os golpes com a arma branca e centrarem na devida perícia as lesões sofridas, sua localização e extensão, assim como a intencionalidade da conduta pois que, para além disto, o essencial no entendimento dos factos centra-se no depoimento das testemunhas inquiridas, quer para se entender o surgimento da desavença, quer para entender a motivação da conduta.” E quanto aos depoimentos, refere o acórdão que “se é certo que a fundamentação [do acórdão de 1.ª instância] se não debruça com muito pormenor na indicação dos motivos por que creditou com credibilidade maior ou menor os depoimentos sopesados, também é certo que isso se revela, em rigor, desnecessário quanto aos factos atinentes ao local onde os factos ocorreram, quais os contendores que no momento dos ferimentos se encontravam em directa confrontação, com que arma – e de quem – e onde é que a vítima surge ferida.” Por seu turno, quanto aos erros-vício invocados, também o Tribunal a quo os analisou e concluiu pela sua improcedência. Saliente-se que o único acórdão que está sob apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça é o acórdão do Tribunal da Relação …. E por isso apenas nos compete verificar se procedeu à análise das alegações relativas à falta de exame crítico das provas, ou à alegada contradição entre a matéria de facto ou à insuficiência da matéria de factos. Vícios a que o Tribunal da Relação respondeu, como referimos, nos pontos B.2.1., B.2.2 e B.2.3., pelo que não se vislumbra qualquer nulidade do acórdão recorrido quanto a estes pontos. 2.3.1. Quanto à impugnação relativa à qualificação jurídica dos factos provados, o acórdão recorrido também se pronunciou sobre a subsunção dos factos ao crime de homicídio, porém considerando que o diferente entendimento do recorrente decorria de uma impugnação da matéria de facto relativamente à qual havia decidido pela sua improcedência. E sendo assim, porque considerou que a impugnação da qualificação jurídica decorria da impugnação da matéria de facto, impugnação esta que tinha improcedido, não mais analisou, porque a base de uma outra qualificação tinha desaparecido. Tendo sido a alegação quanto à qualificação jurídica dos factos dependente de uma outra alegação (que tinha improcedido) da matéria de facto, o âmbito de análise do Tribunal estava restringido. Pelo que, não se pode concluir que o acórdão recorrido seja omisso quanto ao alegado e muito menos que exista uma nulidade decorrente do disposto no art. 379.º, n.º 2, al. a), do CPP. Fundamentou a improcedência quanto à impugnação da qualificação jurídica do seguinte modo: «B.2.5 – No que à errada qualificação jurídica dos factos diz respeito, o argumentário do recorrente centra-se exclusivamente na invocação de erro de julgamento, como claramente se extrai das suas seguintes conclusões: pppp- Ademais, o Tribunal a quo, considerou que em relação à conduta do Arguido, estaria preenchido o elemento subjetivo do tipo legal com dolo necessário, nos termos do artigo 14.º n.º 2 do CP, quanto ao crime de homicídio, previsto e punido pelo artigo 131º do Código Penal. qqqq- Com o devido respeito, não poderia o Tribunal a quo, afirmar que existiu dolo necessário por parte do Arguido em relação ao crime de homicídio. (…) Bbbbbb - Por não se ter verificado e preenchido o elemento subjetivo do tipo em relação a este crime. Cccccc - Não deveria o Tribunal a quo, ter condenado o Arguido pelo crime de homicídio, previsto e punido pelo artigo 131º do Código Penal. Isto é, não existe propriamente desacordo quanto à solução jurídica da decisão recorrida, sim uma insatisfação quanto à matéria de facto, cuja imutabilidade processual se estabeleceu já. Na sequência dessa inalterabilidade processual, com a consequente invariabilidade jurídica, haverá também que declarar improcedente a petição para proceder a uma alteração da qualificação jurídica dos factos nos termos do artigo 358º n.º 3 e 1º do CPP.» (sublinhado nosso) Concorde-se ou não com a decisão, tendo partido do pressuposto de que partiu não podemos concluir pela nulidade do acórdão, dado que a fundamentação existente é suficiente (embora lacónica) para perceber a solução a que chegou. 2.3.2. Contudo, no que respeitou à impugnação da matéria de facto, o Tribunal da Relação …, concluiu pela sua improcedência porquanto: «Assim, sistematizando, ao recorrente é exigível que cumpra os seguintes ónus processuais: a) – A observância do ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância – al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal; b) - A especificação das provas a atender - al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal; c) - Que essas provas imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam - al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal; d) - Por referência ao consignado em acta, esta entendida em sentido amplo e aqui com o significado de “gravações” sonoras, com indicação concreta das passagens em que se funda a fundamentação, no caso de prova pessoal (por impossibilidade de ter acesso à oralidade e imediação) - nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal. Nas suas conclusões nnn) a mmmm) o recorrente pretende impugnar a matéria de facto dada como provada de 1) a 21). No entanto as razões aí adiantadas não constituem uma impugnação especificada como exigido pelo artigo 412º, ns. 3 e 4 do Código de Processo Penal pelo que termos que recorrer às motivações de recurso para apurar se as referências às provas aí indicadas constituem “impugnação especificada” com razoamento suficiente para fundar uma “outra convicção”. Tal corresponderá aos pontos 141 a 382 das motivações onde o recorrente adianta os factos que entende terem sido dados como erradamente provados, as razões que adianta para sugerir outra redacção para tais factos e indica alguma prova oral em seu suporte. Por isso que este tribunal se veja na obrigação de rever o que consta das motivações neste ponto para tentar completar as conclusões. Destas resulta que o recorrente pretende impugnar os factos provados sob 3, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 19 e 20, pretendendo aditar outro facto como referido em 286 das motivações. Em concreto consideramos que a impugnação do recorrente é aceitável como tendo cumprido os ónus processuais supra referidos, com indicação dos factos impugnados e com indicação das prova a eles respeitantes, restando saber se essas provas e as razões invocadas serão suficientes para “impor outra convicção”. De facto, podemos facilmente concluir que o recorrente cumpre os requisitos processuais de impugnação supra referidos em a), b) e d), mas claramente não cumpre o requisito substantivo referido em c) pois que as provas por si indicadas não “impõem decisão diversa da recorrida” e apenas permitem sugerir que uma outra convicção era possível. Isto porque a reponderação de facto pela Relação se cinge a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso. A razão é clara: o recurso não é um novo julgamento, sim um mero instrumento processual de correção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. Do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico. Motivo por que é inócuo pedir uma ilimitada, irrestrita, apreciação da prova, que constituiria um mero segundo julgamento. Ou seja, o arguido quer um novo julgamento. Mas não é função desta Relação fazer um novo julgamento. Portanto, o recurso na parte em que invoca a existência de erro na apreciação da prova por impugnação ampla da matéria de facto é improcedente.» (ponto B.2.4. do ac. recorrido). Ora, pese embora o Tribunal da Relação tenha considerado que o recorrente havia cumprido o ónus de impugnação, uma vez que identificou os concretos pontos de facto que entendeu como incorretamente julgados, especificou as provas a atender e indicou as passagens concretas em que funda a sua alegação, concluiu que as provas referenciadas pelo recorrente não impunham decisão diversa, embora sem que fundamente porque assim o entendeu. Argumentou apenas que o recorrente pretendia um segundo julgamento, não cabendo ao Tribunal da Relação um segundo julgamento. Na verdade, e tendo por base o acórdão recorrido, o arguido terá impugnado os factos 3, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 19 e 20. Tal como o Tribunal da Relação referiu não é completamente clara a impugnação da matéria de facto a partir das conclusões do recurso interposto, mas a partir da motivação daquele recurso o Tribunal da Relação admitiu que o “recorrente adianta os factos que entende terem sido dados como erradamente provados, as razões que adianta para sugerir outra redacção para tais factos e indica alguma prova oral em seu suporte”. E por isso concluiu que a impugnação da matéria de facto cumpriu o ónus de impugnação exigido, embora tivesse considerado que “as provas por si [o recorrente] indicadas não “impõem decisão diversa da recorrida” e apenas permitem sugerir que uma outra convicção era possível”. Porque concluiu o Tribunal da Relação deste modo? O que a seguir decidiu não é o bastante para que possamos saber porque entendeu que as provas indicadas não permitem outra convicção. Na verdade, apenas refere que “reponderação de facto pela relação se cinge a uma intervenção cirúrgica”, o “recurso não é um novo julgamento”, considerando que o “arguido quer um segundo julgamento”, mas essa “não é a função desta Relação” e conclui que “o recurso na parte em que invoca a existência de erro na apreciação da prova por impugnação ampla da matéria de facto é improcedente”. Ora, o recurso da matéria de facto impõe à 2.ª instância que, ainda que de modo sucinto, analise as alegações do recorrente, a sua interpretação dos factos, e explique porque, apesar de tudo se deve manter, a partir da prova produzida, e, em particular, da prova referida pelo recorrente para se ter um entendimento diverso, a interpretação dos factos e a sua subsunção jurídica tal como o fez o Tribunal de 1.ª instância. Não constitui fundamentação bastante para a decisão de manutenção da decisão recorrida a simples afirmação de que o arguido não pode ilimitadamente impugnar a matéria de facto, pois tal não constitui um limite que tenha sido imposto pelo legislador quando admitiu o recurso da matéria de facto, maxime, segundo o disposto nos arts. 428.º e 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, todos do CPP. Na verdade, compete ao tribunal de recurso (com poderes de cognição no âmbito da matéria de facto), a partir da impugnação apresentada, explicar porque, com base na prova produzida, no caso se tinha necessariamente que concluir ter o arguido cometido o crime de homicídio, e porque não se poderia, a partir da prova produzida, concluir, por exemplo, que ocorreu um crime de violação da integridade física agravada pelo resultado de morte, e porque aspetos referidos na impugnação da matéria de facto por referência a certos partes de depoimento não devem ser valorizados de modo a ser levado à matéria de facto provada e/ou não provada; nomeadamente, impunha-se uma fundamentação autónoma quanto ao entendimento do Tribunal de recurso (a partir da análise da prova) relativamente à impugnação da matéria de facto referente à conduta do arguido de atirar uma garrafa contra o automóvel de BB. Concordamos com o Tribunal a quo quanto ao entendimento de que o Tribunal de recurso não tem que fazer um segundo julgamento. Porém, tal não obsta a que se responda ao recurso da matéria de facto apresentado e aos concretos pontos elencados, quando se considerou que o ónus de impugnação estava cumprido (e, portanto, viabilizada a apreciação requerida). Ora, tendo considerado que o ónus de impugnação estava cumprido e com isso viabilizado o recurso em matéria de facto, constitui omissão de pronúncia quando o Tribunal apenas fundamenta que as provas indicadas pelo recorrente não impõem conclusão distinta — “Em concreto consideramos que a impugnação do recorrente é aceitável como tendo cumprido os ónus processuais supra referidos, com indicação dos factos impugnados e com indicação das prova a eles respeitantes, restando saber se essas provas e as razões invocadas serão suficientes para “impor outra convicção”. De facto, podemos facilmente concluir que o recorrente cumpre os requisitos processuais de impugnação supra referidos em a), b) e d), mas claramente não cumpre o requisito substantivo referido em c) pois que as provas por si indicadas não “impõem decisão diversa da recorrida” e apenas permitem sugerir que uma outra convicção era possível.” (cf. ac. recorrido) Na verdade, “quando a Relação julga improcedente a pretensão do recorrente, mantendo consequentemente a decisão da 1.ª instância, parece claro que de igual modo deve fundamentar, apresentar as razões concretas pelas quais improcedeu a impugnação e consequentemente se mantém a decisão recorrida. Em nossa opinião, a Relação não conhecerá do recurso sobre a matéria de facto, como está obrigada — recurso que observou todos os requisitos legais — se se limitar a analisar a motivação da 1.ª instância e concluir, face a tal fundamentação/motivação, pela razoabilidade da decisão da 1.ª instância e que nenhuma censura merece essa decisão. Sejamos claros: a análise da motivação da decisão da 1.ª instância é elemento essencial (como acima assinalámos) para o conhecimento do recurso (disto não podem restar quaisquer dúvidas), mas a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto pelo tribunal de recurso não se esgota aqui — de modo nenhum. Sendo inquestionável a sua importância no Estado de Direito Democrático, da motivação do tribunal a quo não se conclui decisivamente se a prova foi bem ou mal apreciada. Uma motivação (da sentença) efectuada nos termos legais justifica a convicção formada, mas não garante que o tribunal não errou na convicção que formou. Quando o o tribunal dá razões para ter dado credibilidade a determinada testemunha, é isso que dá, mas isto não é a garantia firme que o tribunal não se possa ter equivocado ao acreditar naquela testemunha. A análise da motivação é suficiente quando está em causa a nulidade da sentença por falta ou insuficiência intolerável de motivação, mas é obviamente insuficiente quando está em causa a reapreciação da matéria de facto. Uma sentença motivada nos termos legais pode ter subjacente um grave erro de julgamento, como uma sentença insuficientemente motivada pode estar bem julgada.”[2] Ou seja, cabia ao Tribunal de recurso esclarecer fundamentadamente porque não são atendíveis os argumentos do recorrente, esclarecendo se procedeu ao mesmo raciocínio analítico da 1.ª instância[3], não bastando indicar que os dados objetivos apresentados na fundamentação do acórdão recorrido foram colhidos na prova produzida — cf. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 116/2007 (relatora: Cons. Maria dos Prazeres Beleza) que decidiu “Julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 428º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2ª instância se limite a afirmar que os dados objectivos indicados na fundamentação da sentença objecto de recurso foram colhidos na prova produzida, transcrita nos autos”[4]. Só assim fica assegurado o duplo grau de jurisdição em matéria de facto. Não responder, em sede de recurso, aos concretos pontos de facto impugnados quando cumpridos os requisitos do disposto no art. 412.º, do CPP, é esvaziar de sentido a possibilidade de recurso da matéria de facto que o legislador consagrou no Código de Processo Penal. Mas, vejamos se de forma indireta poderemos considerar que o Tribunal da Relação, aquando da análise de outros pontos do recurso, acabou por indiretamente responder à impugnação da matéria de facto. A decisão do Tribunal da Relação começa no ponto B.2 quando expressamente refere “cumpre conhecer”. Anteriormente transcreveu a matéria de facto provada (ponto B.1.1.) e a motivação da matéria de facto apresentada pela 1.ª instância (ponto B.1.2.). A análise começa por referir os pontos que parecem ser os alegados em sede de recurso e salientando a dificuldade em organizar as questões apresentadas dada a extensão das conclusões, que apesar de tudo o Tribunal da Relação entendeu serem esclarecedoras e por isso o Tribunal não convidou o recorrente a apresentar novas conclusões mais sucintas (cf. art. 417.º, n.º 3, do CPP). Segue-se a análise da invocada falta de fundamentação da decisão de 1.ª instância (ponto B. 2.1.), e apesar de considerar que tal fundamentação “não surja como idealmente concretizada relativamente a todos os factos”, todavia “mostra-se suficiente”. Entende ainda que a “referência aos documentos e perícias são suficientes”, e que o essencial quanto ao entendimento dos factos resulta do depoimento das testemunhas, sendo que neste ponto apesar de a fundamentação não conter “muito pormenor na indicação dos motivos porque creditou com credibilidade maior ou menor os depoimentos sopesados, também é certo que isso se revela, em rigor, desnecessário”. E acrescenta que “o próprio arguido aceita tais factos apenas apresentando uma versão diversa quanto à intervenção de outros dois indivíduos” — poderia estar aqui um ponto de partida para analisar a matéria de facto e a partir da impugnação apresentada avançar argumentos no sentido de afirmar que o recorrente não tinha qualquer razão. Mas isso não acontece. Na verdade, apenas refere, logo de seguida, que a intencionalidade subjacente aos atos decorre da localização e extensão das feridas, e considera que a versão dos factos apresentada pelo arguido “surge como exculpante” apresentando duas simples hipóteses sendo uma delas “inverosímil” — ainda que possamos aceitar que o Tribunal a quo tem razão, certo é que não fundamentou a sua razão. Apenas concluiu que podia suprir a omissão (do Tribunal de 1.ª instância) quanto ao que se possa extrair da localização e profundidade da ferida, o que foi suprimido pela consideração de que estes dois elementos nos permitem concluir quanto à intencionalidade com que foi empunhada a arma branca. Todavia, esta conclusão permite-nos concluir que houve uma apreciação dos factos 22 e 23, pese embora não se integrem no elenco que nos apresentou como sendo os factos impugnados. E o Tribunal a quo conclui este ponto dizendo que o Tribunal de 1.ª instância “procedeu de forma suficiente à análise crítica e racional das razões que conduziram a que se atribuísse relevância (ou não) a essa prova, assim como se fez uma ponderação lógica dos factos e das provas com vista à decisão de facto”, pelo que não há nulidade do acórdão de 1.ª instância. Mas, com esta conclusão não se fundamenta porque a impugnação da matéria de facto deve improceder. Segue-se uma análise quanto ao vício da “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” (ponto B.2.2.) o que constitui uma análise a partir do texto da decisão recorrida, e não uma análise a partir da prova. É certo que neste ponto apresenta vários argumentos para concluir que a matéria de facto, tal como está provada, é suficiente para a decisão: “Para assim raciocinar tem o recorrente que olvidar ou tentar ocultar que no momento em que foram desferidas as facadas na vítima apenas o arguido e a vítima se encontravam em confronto físico directo e que o próprio arguido admite que conseguiu retirar do seu bolso uma arma branca de características desconhecidas porquanto o próprio arguido a fez desaparecer, depois de a lavar. Desta forma, assente que existiu uma navalha na posse do arguido naquele momento e naquele preciso local (o local onde a PJ localizou o desfecho mortífero seguindo as mancha hemáticas, por si só reveladoras daqueles elementos de facto mas também da ocorrência das feridas provocadas) e assentes as feridas surgidas no corpo de um dos contendores fácil é estabelecer os nexos de causalidade necessários à imputação dos factos ao arguido, aqui se incluindo a posse de arma branca (a sua, que fez desaparecer) e o seu uso com violência sobre o corpo da vítima. Recordemos o dito anteriormente, não é possível causar tal ferida sem intencionalidade e sem a empunhadura da arma branca em posição de ataque ao corpo da vítima. Acresce que, encontrando-se a vítima e o arguido abraçados e frente a frente, as feridas corto-perfurante e incisa causadas na face lateral esquerda do tórax (seja a do terço médio, seja a causada na transição do terço médio com o terço inferior) correspondem ao posicionamento do braço direito do arguido empunhando a faca e com o membro livre para os movimentos intencionais de perfuração dessa parte do corpo da vítima, movimentos laterais da direita para a esquerda. Face a isto, a versão do arguido de que, nesse momento, estaria a ser agredido por três indivíduos (facto negado por parte das testemunhas), que não empunhava a faca e que não teve intenção de desferir tais golpes contra o corpo da vítima, revela-se incongruente, inaceitável e negado pelo posicionamento e profundidade da ferida mortal. Esta implica um posicionamento frontal, o uso da mão direita do agressor contra a parte próxima do corpo da vítima, a parte esquerda do tórax, e uma violência no golpe que faça a arma entrar 10 cm no corpo, o que se revela incompatível com um acaso, uma conduta negligente ou simples dolo eventual ou necessário. A ferida demonstra a vontade e a intenção! Nem é crível, e contraria as leis da física, que uma arma branca tirada pelo arguido do seu bolso, se encontre colocada em riste algures sem qualquer apoio e, sem intervenção humana, provoque uma ferida incisa de 10 cm na parte lateral do tórax de uma vítima que se encontra de pé ou de joelhos, mesmo se inclinada. E, sem olvidar, se a versão do arguido fosse a verdadeira – que apenas retirou a faca para assustar e não teve intenção de a usar – tal inocente arma teria aparecido pois que o arguido não teria motivação para a fazer desaparecer! Logo, face à ocorrência de duas feridas de arma branca, a sua imputação ao arguido é uma evidência. Saber qual das feridas é a primeira ou a segunda é uma irrelevância pois que apenas uma é mortal, supondo-se por simples presunção natural (sem relevo para os autos) que a ferida mortal possa ser a segunda por implicar maior perda sanguínea e um mais rápido desfalecer da vítima. Por fim, quanto à circunstância de a navalha nunca ter sido encontrada e, daí se afirmar que «se não se tem a certeza qual o formato da navalha, como é que podemos chegar à conclusão de que foi realmente a navalha do arguido que provocou os ferimentos à vítima» supõe ter presente que a navalha do arguido era a única arma presente no local e na posse dos contendores, facto aceite pelo próprio arguido (a posse da arma por si). Mas também implica não deslembrar que a ferida causada supõe a existência de uma arma branca com, no mínimo, 10 cm de lâmina, o que implicou um máximo de força para fazer introduzir toda essa lâmina no corpo da vítima. A outra hipótese só poderia ser configurada com o uso de menor força e mais longa lâmina (o que já implicava o uso de arma ilícita, hipótese que se não prova). Como se vê, não é necessário dispor da arma para se poder provar o seu uso, pois que os sinais no corpo da vítima são explicativos, elucidativos. Não há, portanto, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.» Todavia, o Tribunal da Relação, quando expõe este pensamento, fá-lo em resposta aos pontos 122 a 129 das conclusões que transcreveu no ponto B.2.2. Mas, é o mesmo Tribunal da Relação que, no ponto B.2.4., quando analisa a impugnação da matéria de facto, refere que a impugnação da matéria de facto corresponde aos pontos 141 a 382 da motivação (cf. ponto B.2.4 do ac. recorrido). Pelo que a resposta àquelas conclusões (122 a 129) não constitui resposta ao referido posteriormente no ponto B.2.4. do acórdão recorrido. Trata-se de análises do recurso interposto distintas, e que o acórdão recorrido distinguiu explicitamente identificando de forma diferente — pontos B.2.2. e B.2.3. e B.2.4.. Assim sendo, o referido anteriormente no ponto B.2.2.., onde se analisa a verificação (ou não) de um dos erros-vício previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, não fundamenta a impugnação da matéria de facto identificada pelo acórdão recorrido como estando integrada nos pontos 141 a 382[5] da motivação. Segue-se, no ponto B. 2. 3, uma análise de um outro erro-vício relativo à alegada “contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão” e à violação do princípio do in dubio pro reo. E aqui concluiu que “a decisão recorrida indicou, de modo claro, as provas em que o tribunal se baseou para formar a sua convicção e fundamentou de forma a não deixar dúvidas sobre o percurso lógico seguido e as ligeiras insuficiências fundamentadoras foram supridas por este tribunal já que o vício não assume gravidade que justificasse afectar a decisão recorrida.” Também aqui se analisa a verificação (ou não) de um outro dos erros-vício previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, não constituindo resposta à impugnação da matéria de facto. Seguiu-se o ponto B.2.4, já transcrito supra, que não fundamenta porque as provas indicadas pelo recorrente não impõem uma decisão diversa e porque apenas permitem sugerir uma outra motivação. E ainda que se pretenda retirar do restante da decisão alguma conclusão quanto à impugnação da matéria de facto, a partir do momento em que o Tribunal a quo se centrou nos pontos 122 a 129 das conclusões do recurso para a Relação quando apreciou a insuficiência da matéria de facto, assim não abarcando aquilo que considerou como integrando o recurso da matéria de facto, não podemos considerar ser o bastante para que possa concluir pela inexistência de omissão de pronúncia. Tanto mais que não compete a este Supremo Tribunal ir verificar exatamente o que era impugnado naquele recurso e ver se de alguma maneira consegue retirar as respostas do acórdão agora recorrido nas outras partes da decisão que não se referem à impugnação da matéria de facto; não compete a este Supremo Tribunal ir verificar qual a argumentação probatória que foi invocada para contrariar o dado como provado pela 1.ª instância, e porque entende o Tribunal da Relação que da prova produzida não pode haver outra conclusão senão os factos que foram dados como provados. De todo o acórdão do Tribunal da Relação apenas se percebe que o arguido queria alegar que não terá tido qualquer intenção de matar e que esta conclusão não é a correta dada a localização dos ferimentos e a profundidade, porém isto apenas se refere aos factos provados 22 e 23 e o arguido impugnou, segundo o acórdão recorrido, os factos provados 3, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 19 e 20. Não impugnou os factos 1, 2, 4, 11, 17, 18, 21, 22, e 23. Mas resta ainda uma pergunta — responde-se à impugnação da matéria de facto num recurso de matéria de facto quando se analisa os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, vícios que são analisados apenas através do texto da decisão recorrida, sem que se proceda a uma reanálise da prova produzida? Poder-se-á considerar que o Tribunal em sede de recurso responde ao recurso da matéria de facto quando analisa a existência (ou não) dos erros-vício? Se assim é, porque consagra o Código de Processo Penal a possibilidade de recurso da matéria de facto com a obrigação de cumprimento do ónus de impugnação devendo o recorrente referir expressamente quais os factos que entende incorretamente julgados e quais as provas que, no entender do recorrente, impõem outra conclusão, se afinal bastava alegar os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP? Não podemos concluir que a resposta àquelas outras alegações seja o bastante para se considerar que o Tribunal de recurso, em sede de recurso da matéria de facto, cumpra o ónus que se lhe impõe na apreciação do recurso da matéria de facto que não se confunde com a mera apreciação da decisão recorrida a partir do seu texto e sem uma reanálise da prova nos pontos alegados pelo recorrente. E ainda que o Tribunal da Relação tenha transcrito a fundamentação da matéria de facto da 1.ª instância, isto não é o bastante para que se possa considerar que a decisão não é omissa. Vejamos o que outros já escreveram: “A fundamentação da sentença garante a possibilidade do seu controlo endoprocessual e extraprocessual. Mas uma sentença bem motivada, na parte que nos interessa aqui – da motivação da matéria de facto –, apenas explica adequada e suficientemente porque é que o juiz se convenceu. Não garante, por si só, que o juiz se convenceu bem. É este controlo – o de averiguar se o juiz se convenceu bem – que o recurso da matéria de facto viabiliza. Distingue-se da fiscalização através do texto, dirigida essencialmente a testar a capacidade do juiz se expressar devidamente, sendo antes uma fiscalização através das provas. É esta a sindicância que se pede ao tribunal de recurso que conhece de facto, e que, se aligeirada ou mal percebida, pode transformar o recurso numa duplicação da revista alargada. É que o erro de facto não é o erro notório de facto. O erro notório está patente no texto. Ocorre quando o juiz não soube explicar porque se convenceu; é sindicável por via do art. 410º - nº 2 do CPP, que trata dos vícios da decisão. Estamos aqui a falar de outro erro, do não notório. Não notório, e, como tal, mais difícil de detectar, o que exigirá maior empenho na actividade desenvolvida pelo tribunal de recurso. Erro de difícil detecção não é ausência de erro. O erro de facto ocorre sempre que o episódio de vida descrito na sentença não aconteceu, ou não aconteceu assim. No recurso da matéria de facto competirá às Relações – sempre de acordo com o pedido do recorrente – detectar e reparar o erro de facto, não apenas o notório, o evidente ou o grosseiro. (...) Tem havido acordo em que o recurso da matéria de facto não é um segundo julgamento e visa apenas a detecção e reparação do erro de facto. Não é um segundo julgamento desde logo porque o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente e este selecciona e escolhe os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, assim formatando e confinando os poderes de cognição da Relação. O objecto (da decisão) do recurso dificilmente coincidirá com o objecto da sentença recorrida. Não é um segundo julgamento – igual ou como se não tivesse havido o da primeira instância – porque aquilo que se pede à Relação é que sindique o juízo de apreciação de prova já efectuado por outro tribunal, e não que decida – directamente – da verosimilhança dos factos de uma acusação e de acordo com a totalidade das provas. Pede-se-lhe que efectue um controlo do julgamento (de facto), e não que repita ou reproduza esse julgamento. Mas a sindicância deste juízo sobre a prova – sindicância de uma convicção alheia, do juiz de julgamento – só se concretiza (re)apreciando a mesma prova, prova esta sempre mediadora entre o facto e o juiz. Implica, mediatamente, um (re)exercício sobre a prova produzida em julgamento, agora de acordo com o pedido do recorrente - a especificação de concretas provas, reapreciadas a se e/ou ainda no conjunto das restantes. Tendo-se pretendido com a Revisão de 1998 que o recurso da matéria de facto seja “um efectivo recurso em matéria de facto” e não “uma duplicação ou imitação de recurso exclusivo de matéria de direito”, qualquer decisão estritamente formal, estereotipada, adaptável a qualquer processo e a qualquer recurso, desindexada do concreto caso e das concretas provas, não assegura o direito ao recurso, na leitura insistente do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional. (...) Mas na vertente da apreciação (das provas), o recurso da matéria de facto não é um segundo julgamento. Esta afirmação, ou melhor, negação, pode revelar-se falaciosa na forma como se apresenta formulada. É que segundo julgamento nunca o poderia ser, no modelo legal instituído. Falar de segundo julgamento pressuporia, em simultâneo, quer uma repetição de toda a prova, quer uma reapreciação da prova repetida. E não podem confundir-se os planos da produção da prova e da valoração da prova. Sendo legalmente irrepetível o desenvolvimento em contraditório da audiência de julgamento que teve lugar em primeira instância, também as perguntas que o juiz ali colocou, deixou de colocar, permitiu ou não fazer, condicionam posteriormente a decisão das Relações. (...) Mas quando afirmamos que o recurso da matéria de facto não é um segundo julgamento estamos também a querer dizer que não é uma reapreciação das provas produzidas e examinadas na audiência em primeira instância. Este segundo enunciado – afirmar que “o recurso da matéria de facto não é um segundo julgamento” é declarar que não é uma (segunda) reapreciação da prova – sugere novas interrogações: porque é que o recurso da matéria de facto não pode consentir uma ampla reapreciação da prova na segunda instância? Existe obstáculo legal a que o Tribunal da Relação, na sua missão de detecção do erro de facto, possa reapreciar toda a prova, e que o faça numa posição muito próxima da do juiz de julgamento, cuja convicção lhe é pedido que sindique? A sindicância de uma convicção não exige, na prática, que se refaça o mesmo percurso das provas deslindado no exame crítico da sentença? Será inevitável que “a matéria de facto só possa ser alterada se contrariar de forma notória as regras da experiência, da lógica, do senso comum, dos conhecimentos científicos; se assentar em métodos proibidos de prova ou em meios de prova subtraídos à livre apreciação do tribunal” (Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotação art. 431º), como continuamente afirmamos? Não evidenciará esta posição a duplicação da revista alargada? Não seria tudo aquilo detectável e escrutinável logo através da análise do texto da sentença? E será de aceitar que a matéria de facto não deva ser alterada “quando estamos em presença apenas de duas versões sobre os factos e o julgador tenha optado por uma delas que seja plausível segundo as regras da experiência”? (Maia Gonçalves, loc. cit.) (...) Se é certo que o Tribunal da Relação sindica uma convicção – a do juiz de julgamento – não pode deixar de, para tanto, formar, também ele, um juízo sobre as provas. Daí que o Supremo Tribunal de Justiça já tenha também entendido que “em sede de conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efectivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.a instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento” (30-11-2006, Pereira Madeira).”[6] E não se diga que o recorrente não pode recorrer de todos os pontos da matéria de facto. Onde está a limitação estabelecida no Código de Processo Penal a limitar o recurso apenas a alguns pontos da matéria de facto? O que o legislador não limitou não pode o julgador limitar sem um mínimo de apoio na letra da lei, ou então o julgador limita o âmbito do exercício do direito ao recurso sem que tal limitação exista legalmente, ou seja, em clara violação do princípio da legalidade. Já assim se diz no texto que vimos seguindo: “Haverá fundamento legal e sério para diferenciar materialmente, a um nível tão elevado, as possibilidades de cognição de facto do tribunal a quo e do tribunal ad quem? Estará a Relação impedida de reapreciar todas as provas, se indicadas pelo recorrente como concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida? Poder-se-á simplesmente dizer que o recurso da matéria de facto não pode ser apreciado porque o recorrente pretende através dele «discutir a convicção que o tribunal formou quanto à prova, com base numa visão ou versão probatória do recorrente»? Restará à segunda instância a mera triagem de eventuais violações de regras e princípios de direito probatório ostentadas na sentença? As possibilidades de cognição da Relação em matéria de facto não podem ater-se a um simples exercício sobre o texto da sentença, nem cingir-se à vigilância através dele do cumprimento de regras e princípios de prova. Tudo isto se encontrava já, afinal, viabilizado pelo art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal de 1987, e redundaria num esvaziamento prático do recurso da matéria de facto.”[7] Assim sendo, considera-se nulo o acórdão recorrido, por força do disposto no art. 379.º, n.º 1, als. a) e c) ex vi art. 425.º, n.º 4, do CPP e, consequentemente, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões. III Conclusão Nos termos expostos acordam, em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em declarar nulo o acórdão recorrido e determinando-se a remessa do processo ao Tribunal da Relação … para o devido suprimento (das invalidades). Sem custas. Supremo Tribunal de Justiça, 24 de março de 2022 Os Juízes Conselheiros, Helena Moniz (Relatora) Eduardo Loureiro António Gama
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