Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | FERNANDES CADILHA | ||
Descritores: | ACIDENTE DE TRABALHO NEXO DE CAUSALIDADE PRESUNÇÕES JUDICIAIS PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | ||
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Nº do Documento: | SJ200405270012804 | ||
Data do Acordão: | 05/27/2004 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL PORTO | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 5929/03 | ||
Data: | 11/24/2003 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA. | ||
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Sumário : | I - A existência do nexo de causalidade entre a inobservância das regras de segurança, por parte da entidade patronal, e o acidente sofrido por um dos seus trabalhadores, implica que se demonstrem factos que caracterizem a violação de tais regras e uma relação de causa entre esses factos e a ocorrência do acidente; II - A afirmação de que a entidade patronal não cumpriu um determinado requisito de segurança imposto pela norma a partir da simples constatação de que se verificou o efeito danoso que a norma pretendia evitar, não constitui uma presunção judicial, mas uma mera ilação jurídica, que, não tendo o valor de facto material, é livremente sindicável pelo tribunal de revista. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça 1. Relatório. "A", com o patrocínio judiciário do Ministério Público, intentou a presente acção emergente de acidente de trabalho com processo especial contra Companhia de Seguros B, com sede em Lisboa, e C, com sede em Guimarães, peticionando o direito à reparação pelo acidente de trabalho sofrido pelo seu cônjuge, D, ocorrido quando se encontrava ao serviço da segunda ré, e que lhe causou a morte. Em primeira instância, foi absolvida do pedido a entidade patronal e condenada a companhia seguradora, para quem aquela havia transferido a sua responsabilidade infortunística, por se ter entendido que o acidente não era imputável à entidade patronal por violação das regras de segurança. Em apelação, o Tribunal da Relação do Porto revogou a sentença e condenou a entidade empregadora em responsabilidade agravada, nos termos previstos nos artigos 18º e 37º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, por considerar que existia uma relação causal entre a inobservância das normas de segurança e a ocorrência, e, consequentemente, julgou a seguradora responsável apenas subsidiariamente pelo pagamento das prestações normais que integram o direito de reparação É contra esta decisão que a ré entidade patronal agora se insurge, mediante recurso de revista, em que formula as seguintes conclusões: 1. O douto acórdão recorrido não pode restringir-se à questão de saber se o acidente ocorreu ou não por culpa da entidade patronal. 2. A eventual culpa da entidade patronal não é elemento suficiente para a aplicação do disposto nos artigos 18° e 37° da Lei n° 100/97, de 13.09. 3. Identificando-se esta legislação laboral com o princípio consagrado no art° 483º do C.Civil, de que, por sua vez, emerge a obrigação de indemnização, prevista nos art°s 562º e 563° daquele diploma legal. 4. Que tem como pressupostos o facto, a ilicitude, a culpa e o nexo de causalidade entre a conduta e o dano, resulta manifesto que a interpretação dada aos artigos 18° e 37° da Lei 100/97, já referida, é redutora, porquanto se apoia, exclusivamente, na culpa. 5. A verificação destes requisitos, acabados de elencar, tem de ser cumulativa. 6. Daqui resulta que, o douto acórdão de que se recorre, fez errada interpretação do disposto nos artigos 18° e 37° da Lei n° 100/97, de 13.09. 7. Por outro lado, o pressuposto, nexo de causalidade entre a conduta e o dano, apurado segundo a teoria do nexo de causalidade adequada, que competia à Ré Seguradora alegar e provar, não foi objecto da decisão recorrida. 8. Esse ónus de alegar e provar o nexo de causalidade entre a conduta e o dano, apurado segundo a teoria do nexo de causalidade adequada, competia à Ré seguradora, que, não o tendo feito, deverá suportar as respectivas consequências. 9. O douto acórdão Recorrido fez errada interpretação do disposto nos artigos 18º e 37º da Lei n° 100/97, de 13/09, bem como violou o disposto nos artigos 483°, 562° e 563° ambos do Código Civil, e ainda, violou as regras do ónus da prova consagradas no art° 342° daquele diploma legal. Por seu turno, na sua contra-alegação, a autora, ora recorrida, pugnou pela manutenção do julgado, concluindo do seguinte modo: Não estando aqui em causa a inobservância, por parte da recorrente, da norma de segurança contida no artigo 94°, do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil, e nem a sua culpa [uma vez que aquela aceita quer a inobservância de tal regra quer a sua culpa no seu incumprimento], tendo o acórdão recorrido pronunciado sobre o nexo de causalidade e concluído pela sua existência e verificação [conclusão esta extraída dos factos provados] e não podendo esse Supremo Tribunal sindicar e apreciar se in casu se verificou, ou não, o nexo de causalidade entre aquela falta de observação da mencionada norma de segurança e o acidente dos autos, por se tratar de uma questão de facto, deve negar-se a revista. Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir. 2. Matéria de facto. A sentença de primeira instância deu como provada a seguinte matéria de facto, que a Relação aceitou: a) A autora era casada com o falecido D e com ele residia em economia comum. b) No dia 19 de Julho de 2001, pelas 8h30, em S. Jorge de Selho, Guimarães, quando, com a categoria profissional de pedreiro, oficial de 2.ª, e a retribuição de 80.900$00 x 14 meses, acrescida de 16.610$00 x 11 meses a título de subsídio de alimentação, trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização de "C, L.da", o sinistrado D foi vítima de um acidente. c) Quando se encontrava a trabalhar na construção de um muro, ajudando a colocar pedras, foi atingido por uma delas na cabeça. d) Em consequência do acidente, o sinistrado sofreu as lesões crâneo-encefálicas descritas no relatório de autópsia, as quais foram causa directa e necessária da sua morte, naquele mesmo dia. e) A co-ré "C, L.da" tinha a sua responsabilidade infortunística transferida para a co-ré "B-Companhia de Seguros, S.A.", através de acordo de seguro titulado pela apólice n.º 2-1-10-020713/06. f) A autora despendeu em transportes nas deslocações que fez a tribunal a quantia de 5 euros. g) Frustrou-se a tentativa de conciliação. h) Quando ocorreu o acidente, o sinistrado procedia ao assentamento de uma pedra de granito com cerca de 140 Kg de peso. i) Para içar essas pedras do solo até ao ponto de assentamento, a pedra era puxada e sustentada num cadernal. j) O cadernal era suportado por duas varas de eucalipto, com cerca de 4 metros de comprimento, formando um V invertido. k) Esse conjunto - varas, cadernal com corrente, gancho e pedra - era seguro por dois cabos de aço, designados por "ligeiras". l) Do cadernal referido em i), j) e k) pendia uma corrente com um gancho que sustinha a pedra, mantendo-a suspensa do solo. m) Os cabos de aço referidos em k) eram esticados em direcções opostas às varas e presos, um a uma árvore e outro a uma pedra de uma parede. n) Esses cabos estavam enrolados, um à árvore e outro à pedra da parede, cada um com duas voltas, sendo amarrados depois com arames, para impedir que as voltas se desfizessem e os cabos se soltassem, não se utilizando "cerra cabos" porque, com a pressão do peso dos materiais em elevação, eles tendiam a cortar os cabos. o) Quando a pedra referida em h) era içada pelo conjunto referido em k), uma das "ligeiras" soltou-se. p) Provocando a queda das varas e da restante estrutura, incluindo o sinistrado. 3. Fundamentação de direito. A partir dos factos apurados, a sentença de primeira instância considerou que a responsabilidade pelo acidente não era imputável à entidade patronal por não ser possível estabelecer um nexo causal entre a inobservância das regras de segurança e a produção do acidente. A Relação entendeu, porém, que o normativo susceptível de ter sido violado foi o do artigo 94º do Regulamento de Segurança do Trabalho da Construção Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 41.821, de 11 de Agosto de 1958, que impõe que, quando se utilizarem paus de carga, estes sejam "solidamente espiados por meio de cordas ou cabos, que não podem ser fixados ao andaime". Por outro lado, analisando a matéria de facto tida como assente, e constatando que um dos cabos que sustentava o mecanismo de elevação da pedra se soltou (alínea o) da matéria de facto), provocando o colapso de todo o sistema, o acórdão recorrido ponderou que "o cabo se soltou por não estar solidamente espiado, contrariando assim o disposto no art. 94.º do Regulamento atrás referido", para de seguida concluir que o acidente se ficou a dever "à falta de observância por parte da entidade patronal das regras sobre segurança no trabalho". Se bem se entende, o acórdão recorrido afirma a existência do nexo de causalidade entre a inobservância das regras de segurança e o acidente através de uma presunção judicial que retira, não a partir de factos conhecidos, mediante a aplicação de juízos de probabilidade ou de experiência, mas da mera ocorrência do resultado danoso. O raciocínio parece ter sido este: a norma impõe que a estrutura de elevação esteja solidamente espiada por meio de cordas ou cabos; no caso, um dos cabos soltou-se; logo a entidade patronal não cumpriu a regra de segurança imposta pela norma. Mas, se assim é, o tribunal não extraiu uma presunção de facto, mas uma mera conclusão de direito assente na verificação do efeito jurídico negativo que a norma pretendia evitar que ocorresse. Sabe-se que a Relação, conhecendo de facto, pode extrair dos factos materiais provados as ilações que deles sejam decorrência lógica (cfr. acórdãos do STJ de 10 de Fevereiro de 1998, Processo n.º 709/97 - 2.ª secção, de 26 de Março de 1998, Processo n.º 931/97 - 2.ª secção) e que a actividade que a Relação exerce, nesse âmbito, não é sequer sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça. Por outro lado, a verificação do nexo causal entre a violação das regras de segurança e o acidente constitui também matéria de facto cuja apreciação está, em princípio excluída dos poderes de cognição do Supremo (cfr. acórdão do STJ de 7 de Outubro de 1999, Processo nº 173/99). No entanto, no caso, o tribunal a quo não se limitou a utilizar o seus poderes processuais de fixação da matéria de facto, antes emitiu um juízo de valor acerca da existência do nexo de causalidade, que, não constituindo um facto material, é susceptível de ser livremente avaliado pelo tribunal de revista. 4. Para a análise do nexo causal entre a inobservância das regras de segurança e o acidente havemos, portanto de nos ater à factualidade tida como assente, expurgada da ilação jurídica a que o Tribunal da Relação recorreu para decidir o direito aplicável. E, neste ponto, interessa sobretudo considerar quais os factos que foram invocados pela ré, para afastar o pressuposto da sua responsabilidade infortunística, e quais aqueles cuja prova logrou realizar. Para demonstrar a responsabilidade directa da entidade patronal no incumprimento de regras de segurança, a ré seguradora alegou todos os factos que constam das alíneas h), i), l), j) e k) da especificação, e ainda os constantes dos quesitos 1º a 3º, 5º e 6º, que, com as respostas restritivas formuladas no tocante aos quesitos 1º e 2º, passaram a integrar a decisão de facto através das alíneas h) a m) e o) e p), há pouco transcritas. Por outro lado, para além de outros factos de menor relevo para a análise do aspecto jurídico da causa que está aqui em apreço (matéria dos quesitos 4º e 7º) que o tribunal deu como não provados, a ré seguradora invocou também, que os "cabos (referindo-se aos cabos de aço mencionados na alínea k) da decisão de facto), estavam presos por arames, em vez de utilizarem dispositivos de cerra-cabos" - artigo 8º da contestação. Neste ponto, porém, o tribunal formulou a resposta que consta da alínea n) da matéria de facto e que - recorde-se - é do seguinte teor: Esses cabos estavam enrolados, um à árvore e outro à pedra da parede, cada um com duas voltas, sendo amarrados depois com arames, para impedir que as voltas se desfizessem e os cabos se soltassem, não se utilizando "cerra cabos" porque, com a pressão do peso dos materiais em elevação, eles tendiam a cortar os cabos. A entidade seguradora dava grande importância à circunstância de os cabos não estarem fixados através do mecanismo de cerra-cabos, tanto que, conforme explanou na alegação de recurso apresentada perante a Relação, a causa do acidente radicava, no seu entender, na "insuficiente amarração dos cabos de aço", que não deveriam estar presos por arames, o que a levou a rebater a "explicação" aduzida na alínea n) da matéria de facto, asseverando que "a função de tais dispositivos de segurança é precisamente a de fixar os cabos quando estão em tensão". O que é certo, porém, é que se não provou que o acidente se tivesse ficado a dever à não utilização dos chamados cerra-cabos; e, pelo contrário, o que tribunal considerou assente, face à prova coligida, é que o recurso a esse mecanismo implicava um risco de rotura por pressão do peso dos materiais em elevação. Por outro lado, o mesmo ponto da matéria de facto não permite concluir que os cabos se não encontrassem solidamente espiados, antes o que daí resulta é que estes estavam enrolados, com duas voltas, a um ponto de apoio e amarrados com arames para impedir que as voltas se desfizessem e os cabos se soltassem. É verdade que um dos cabos se soltou (alínea o) da matéria de facto), mas não está demonstrado que essa ocorrência se deveu à utilização de um deficiente sistema de amarração, tanto mais que, como se concluíra, não era conveniente o recurso aos cerra-cabos, como preconizara a ré seguradora. A seguradora não logrou, pois, provar, conforme lhe competia, a inobservância de normas de segurança e o nexo de causalidade entre essa inobservância e o facto danoso (cfr., quanto ao ónus de prova, o acórdão do STJ de 6 de Junho de 2001, Processo nº 1065/01). Não havia motivo, por isso, para alterar a decisão de primeira instância. 6. Decisão Em face do exposto, acordam em conceder a revista, revogar a decisão recorrida, e manter o julgado na primeira instância. Sem custas. Lisboa, 27 de Maio de 2004 Fernandes Cadilha Mário Pereira Salreta Pereira |