Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7222/15.8T8VIS.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE INCÊNDIO
RISCO
Data do Acordão: 05/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Decorre do preceituado do seu art. 150.º, n.º 1, do DL 72/2008, de 16-04 que «A cobertura do risco de incêndio compreende os danos causados por acção do incêndio, ainda que tenha havido negligência do segurado ou de pessoa por quem este seja responsável.».
II - O conceito de incêndio adoptado pelas condições gerais da apólice uniforme do seguro obrigatório de incêndio é a de «combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte.
III - Se o sinistro teve origem dolosa, como na espécie decorre da inspecção que foi realizada, o que afasta a se a sua ocorrência por causas acidentais, tal circunstância afasta a noção de incêndio prevenida pela garantia decorrente da apólice, a qual conduz a uma situação delineada por uma eventualidade meramente ocasional e, não já e antes, proporcionada por acto voluntário próprio ou de terceiro, não estando os danos cobertos pela apólice, afastada ficando a responsabilidade da entidade seguradora.
Decisão Texto Integral:


PROC. Nº 7222/15.8T8VIS.C1.S1  

6ª SECÇÃO

                     

                                                 

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I ZEEVA – DECORS LDA instaurou a presente ação declarativa, com forma de processo comum, contra COMPANHIA DE SEGUROS TRANQUILIDADE, SA, alegando para tanto, em síntese, dedicar-se à construção e venda de móveis de madeira possuindo uma unidade fabril que laborava desde maio de 2012 no ..., Estrada ..., …, …, sucedendo que por força de incêndio ocorrido em 2 de agosto de 2014 tal unidade fabril ficou completamente destruída, e a ré, com quem a autora havia celebrado seguro de incêndio, não assumiu a responsabilidade pela regularização do sinistro; certo é que por força do referido incêndio ficou destruído todo o material existente em stock nas instalações em questão, no valor de € 66.489,23, assim como todo o material informático, no valor de € 4.045,84, e ainda máquinas cuja aquisição, em estado novo, importa no valor de € 339.707,55 e que, na data, valiam € 115.387,72; assim, concluiu a autora que, não estando provada qualquer causa de exclusão da sua responsabilidade, a ré deve ser condenada a indemnizá-la nos valores indicados, acrescidos de juros a partir da citação, tendo deduzido pedido subsidiário quanto à indemnização relativa ao valor da maquinaria, considerando que, a improceder o pedido de condenação na quantia de € 339.707,55 necessária para a sua aquisição, sempre a ré deve ser responsabilizada pelo pagamento da quantia de € 115.387,72, correspondente ao seu valor à data do sinistro.

                                                          

A Ré contestou concluindo pela improcedência da acção.                                                 

A autora apresentou ainda o articulado de fls 154 e segs., reafirmando que os bens por si indicados ficaram destruídos pelo incêndio e que por força do contrato de seguro em causa, a ré está obrigada a indemnizá-la dos danos invocados.

                                                

A final foi proferida sentença a julgar a acção improcedente com a absolvição da Ré do pedido.

Inconformada, apresentou a Autora recurso de apelação, o qual veio a ser julgado improcedente.

De novo irresignada, recorreu a Autora de Revista excepcional, a qual veio a ser admitida pela Formação a que alude o artigo 722º, nº3 do CPCivil, por Acórdão de fls 56 a 58 do Apenso.

Aduziu o seguinte argumentário conclusivo:

- No caso dos presentes autos, a recorrente invocou na sua exposição dos factos e do direito a posição de Vaz Serra, nessa interpretação.

- O douto tribunal da relação de Coimbra, a fls. 19 do douto acórdão, 2.° parágrafo, diz:

"Sendo que dentro de tal linha de raciocino foi igualmente entendido pela jurisprudência, na sequência do defendido por Vaz Serra, que as circunstâncias de um incêndio ter sido provocado por ato de terceiro, ainda que doloso, não exonerava a seguradora das responsabilidades assumidas pelo contrato seguro. "

- De facto, no seu recurso a recorrente disse o que acima se transcreveu, para cuja exposição se remete os Exmos. Conselheiros.

- Depois o douto acórdão, a fls. 20, no segundo parágrafo, profere o seguinte aresto:

"Por outro lado, a dita solução proposta por Vaz Serra, parece pouco convincente, pois que depende da afirmação de uma premissa que não ter-se por adquirida: a de que o legislador, quando estabeleceu que o segurador respondia por danos causados por caso fortuito ou força

maior, pretendia excluir a responsabilidade deste apenas perante uma atuação dolosa do segurado ou de pessoa por quem este seja responsável."

- Como se verifica, diz o douto acórdão da relação neste aresto que se transcreveu "parece pouco convincente", mas é alguma coisa convincente sendo que a solução deste caso teria que seguir a interpretação do artigo 443.° do Código Comercial, a interpretação do artigo 9.° do Código Civil e ter condenado a recorrida, revogando a sentença do tribunal de primeira instância, o que não o fez, mesmo havendo margem para essa interpretação e linha de raciocínio e solução para o caso.

- Não o tendo feito, os doutos tribunais de segunda e primeira instância, violaram por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 437°, n°3, 443°, 439°, n.° 1 Código Comercial, 342º  e 9.° do Código Civil.

Nas contra alegações a Recorrida pugna pela manutenção do julgado.

II O problema que nos é suscitado na Revista, tendo em atenção a delimitação efectuada em sede de admissão da mesma, pelo Acórdão da Formação, reside, na essência, «[n]a delimitação do conceito de incêndio  para efeitos de cobertura do contrato de seguro, mais concretamente se o mesmo cobre o incêndio dolosamente provocado por terceiros».

As instâncias declararam como assente a seguinte materialidade:

«5.1 – A autora dedica-se à construção e venda de móveis de madeira (artigo 1º da petição inicial);

5.2 – A autora tinha instalada a sua unidade fabril, desde maio de 2012, no ..., Estrada ..., 0000 – 000 …, em espaço que arrendou para o efeito (artigo 2º da petição inicial);

5.3 - No dia 2 de Agosto de 2014, tal unidade fabril ficou completamente destruída, em face de um incêndio ocorrido no local (artigos 3º, 25º, 37º, 41º da petição inicial, artigo 10º da contestação);

5.4 – Por força de tal incêndio foi instaurado nos serviços do Ministério Público de Viseu o inquérito nº 1405/14.5JAPRT, contra desconhecidos, cujos autos se encontram apensos ao presente, no qual, em 30 de maio de 2015, foi proferido despacho de arquivamento, aí se referindo, além do mais:

“Da inspeção efetuada ao local, apurou-se que o incêndio em causa teve origem dolosa, tendo resultado diretamente da ação humana, uma vez que foi detetada a existência de uma substância (não concretamente apurada) aceleradora da combustão que certamente terá levado a um rápido alastrar do fogo a toda a maquinaria e ao restante imóvel.

Mais se apurou que o AA tinha seguro contra incêndio.

Contudo, e do conjunto das diligências de inquérito realizadas, nada resultou que permita concluir quer quanto à causa quer quanto à eventual autoria dos factos aqui participados.

Os factos aqui participados poderiam lograr subsunção à ilicitude do artº 272º, nº 1 al. a) do C.P. – crime de incêndio, explosões e outras condutas perigosas.

Dos autos resulta suficientemente indiciado que tenha havido atuação ou a prática de um qualquer ato doloso tendo em vista deflagrar ou pelo menos acelerar o incêndio em causa, não se apurando, todavia, quem poderá ter praticado tais factos, pelo que por falta de indícios, nos termos do art. 277º nº 2 do C. P determino o arquivamento dos autos” (artigo 4º da petição inicial, artigos 86º, 87º da contestação e autos de inquérito nº 1405/14.5JAPRT apensos);

5.5 – Mediante contrato de seguro celebrado entre a autora e a ré, titulado pela apólice nº 0003000005, aquela transferiu para esta, além do mais, a responsabilidade de risco de incêndio, com um capital seguro de € 500.000,00 (artigos 5º e 24º da petição inicial, 1º da contestação);

5.6 - A referida apólice titula um contrato de seguro “Multirrisco Industrial” e tem como objeto seguro o recheio do local de risco sito no ..., Estrada ... s/n 0000-000, … (artigo 2º da contestação);

5.7 - O mencionado contrato de seguro, celebrado em 16/05/2014, a pedido da autora, garante desde essa data e conforme artigo 2º nº 1, das Condições Gerais da Apólice: “os riscos previstos nas Condições Especiais, quando expressamente contratados e designados nas Condições Particulares, até aos limites nestas previstos” (artigo 3º da contestação);

5.8 – Nas Condições particulares de tal contrato, mostra-se previsto o risco de “Incêndio, Queda de raio e Explosão”, nos seguintes termos:

“Art. 1.º - Âmbito da Cobertura

1. A presente Condição Especial garante os danos diretamente causados aos bens seguros, identificados nas Condições Particulares, em consequência de Incêndio, Queda de Raio e Explosão.

2. A garantia abrange os danos resultantes de incêndio ou meios empregues para o combater, calor, fumo ou vapor resultantes imediatamente de incêndio, ação mecânica de queda de raio, explosão e ainda remoções ou destruições executadas por ordem de autoridade competente ou praticadas com o fim de salvamento, se o forem em razão de qualquer dos factos atrás previsto.

Art. 2.º - Definições

Para efeitos da garantia deste risco, entende-se por:

a) Incêndio: Combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios;

b) Ação Mecânica de Queda de raio: Descarga atmosférica ocorrida entre a nuvem e o solo, consistindo em um ou mais impulsos de corrente que conferem ao fenómeno uma luminosidade característica (raio) e que provoque deformações mecânicas permanentes nos bens seguros;

c) Explosão: Ação súbita e violenta da pressão ou depressão de gás ou de vapor.

Art. 3.º - Exclusões

Sem prejuízo das exclusões previstas nas Condições Gerais aplicáveis à presente cobertura, não ficam garantidas as despesas de descontaminação ou despoluição do local onde ocorreu o sinistro, bem como dos próprios bens seguros ou escombros resultantes do sinistro.” (artigos 29º da petição inicial e 9º da contestação);

5.9 -De acordo com o preceituado no artigo 4º das condições gerais da apólice, “a determinação do capital do contrato é sempre da responsabilidade do Tomador do Seguro e deverá obedecer aos seguintes critérios: (…) CAPITAL DO RECHEIO:

a) Seguro de mercadorias e matérias-primas: O capital seguro deverá corresponder ao preço corrente de aquisição para o Segurado ou no caso de se tratar de produtos por ele fabricados, ao valor dos materiais transformados e/ou incorporados, acrescidos dos custos de fabrico;

b) Seguro de equipamento industrial: O capital seguro deverá corresponder ao custo do equipamento em novo, deduzido da depreciação inerente ao seu uso e estado;

c) Seguro de mobiliário e equipamento: O capital seguro deverá corresponder ao custo do equipamento em novo, deduzido da depreciação inerentes ao seu uso e estado (…)” (artigo 5º da contestação);

5.10 - Resulta do teor das sobreditas condições particulares da apólice, que a autora indicou à ré os valores de capital em risco para os bens integrados nas seguintes categorias: Mobiliário e equipamento de escritório: € 5.000,00; Equipamento industrial: € 380.000,00; Stock de produto acabado: € 15.000,00; Stock de matéria prima: € 100.000,00 (artigo 6º da contestação);

5.11 - A solicitação da autora, e relativamente aos bens incluídos na categoria de equipamento industrial, ficou convencionada no sobredito contrato de seguro, a condição particular de Valor de Substituição, tal como prevista no n.º 4 do artigo 4º das condições gerais da apólice e descrita na respetiva condição particular (artigo 7º da contestação);

5.12 - Assim, relativamente aos bens integrados na mencionada referida categoria de equipamento industrial, a condição particular de valor de substituição ficou subordinada aos seguintes termos:

“1. De acordo com a presente Cláusula Particular, quando contratada e expressamente prevista nas Condições Particulares, fica convencionado que o capital seguro relativo aos bens abrangidos por esta Cláusula, determinado pelo Tomador do Seguro conforme o previsto no n.º 2 do artigo 4.º das Condições Gerais, corresponderá ao Valor de Substituição em Novo.

2. Para o efeito, considera-se Valor de Substituição em Novo o custo de aquisição, à data do sinistro, de um bem em estado novo, igual ou do mesmo tipo, com idênticas características, funções, capacidade e rendimento, mas não superiores ou de maior amplitude que as do equipamento seguro sinistrado, acrescido de todos os encargos de transporte, aduaneiros, de construção, de fundações e de montagem, quando necessários, e que sejam exigíveis para a sua instalação no mesmo local e posição que tinha antes da ocorrência do sinistro.

Não são considerados para cálculo deste valor quaisquer descontos que o Segurado tenha obtido ou venha a obter, mas sim o valor corrente de mercado em condições normais de compra.

3. Em caso de sinistro, o cálculo da indemnização observará as seguintes disposições:

a) O montante a indemnizar terá como limite o valor de substituição em novo do equipamento sinistrado à data do sinistro, não podendo em caso algum exceder o capital seguro para cada bem, nem o capital total seguro para o conjunto de bens;

b)Na aplicação da regra proporcional prevista no n.º 6 do artigo 4.º das Condições Gerais, considerar-se-á, como valor dos bens seguros destruídos ou danificados, o respetivo valor de substituição em novo, tendo em atenção o estabelecido no n.º 1 desse mesmo artigo.

4. A aplicação desta cláusula pressupõe:

a) Que o bem seguro tenha, à data do sinistro, idade igual ou inferior a dez (10) anos, contados a partir de 31 de Dezembro do seu ano de fabrico;

b) Que os trabalhos de substituição ou reparação sejam começados e executados com razoável rapidez, devendo, em qualquer caso, ficar concluídos dentro de doze (12) meses após a destruição ou dano, ou dentro de qualquer outra extensão de prazo que a Seguradora venha (durante os referidos doze (12) meses) a autorizar por escrito. De outro modo, nenhum pagamento será efetuado para além da quantia que seria indemnizável ao abrigo desta apólice se esta cláusula não tivesse sido contratada.

5. A substituição pode ser concretizada noutro local ou posição que mais convenha às necessidades do Tomador do Seguro ou do Segurado ou que lhe seja legalmente imposto, não podendo, no entanto, a responsabilidade da Seguradora ser aumentada por tais factos.

6. Esta cláusula ficará sem validade ou efeito se:

a) O Tomador do Seguro e/ou Segurado não derem conhecimento à Seguradora, dentro de seis (6) meses contados a partir da data da destruição ou dano, ou qualquer outro prazo que a Seguradora venha a conceder por escrito, da sua intenção de substituir ou reparar os bens destruídos ou danificados;

b) O Tomador do Seguro e /ou Segurado não puderem ou não quiserem substituir ou reparar os bens destruídos ou danificados, no mesmo ou noutro local.

7. Os modelos e protótipos, matrizes, fotografias, desenhos e documentos, veículos e / ou seus reboques, máquinas agrícolas e ainda toda a classe de bens inúteis ou fora de uso e equipamentos ou maquinaria obsoletos, em caso algum ficarão abrangidos pelo disposto na presente Cláusula Particular” (artigos 8º, 78º, 80º da contestação);

5.13 – Na sequência do incêndio foram trocadas várias comunicações entre a autora e a ré que declinou a responsabilidade pela regularização de tal sinistro apesar de os pagamentos estarem em dia e de o seguro estar válido, invocando, para o efeito, que se tratou de incêndio com origem dolosa (artigos 6º, 7º, 8º, 26º, 33º, 36º, da petição inicial);

5.14 – Na sequência do incêndio, ficou destruída a unidade fabril da autora, incluindo o material que aí possuía em stock, material informático e toda a maquinaria (artigos 9º, 42º, da petição inicial, artigo 6º da réplica);

5.15 – À data do incêndio, a autora tinha em stock, material e utensílios cuja identificação concreta não foi possível obter no valor de cerca de € 33.069,44 (artigo 10º da petição inicial);

5.16 – Por força do incêndio ficou destruído material informático da empresa-, mais concretamente um computador Goldnet (promo 5), Pentium dual-core E2200, memória 2Gb 667, disco 320Gb Sata II, Gravador DVD Samsung, Teclado e rato, Monitor 19 Lg e Windows XP Pro Oem, no valor de € 619,99, com iva incluído à taxa legal em vigor e uma impressora Talões Mypos Térmica paralela, no valor de € 274,99, com iva incluído à taxa legal em vigor (artigos 12º e 13º da petição inicial);

5.17 - Por força do incêndio ficou destruída maquinaria da empresa, designadamente um Laser em cruz Dewalt DW087K, adquirido por € 303,00, com IVA incluído, um jogo de Frezas Madeira Legna PLEMHL15, adquirido por € 80,40, Pinça Dewalt DE6274, no valor de € 40,28 e Interruptor DW 522274-18, no valor de € 28,20, tubo aspiração com filtro 50 MESH, adquirido por € 104,62, aparafusadora RYOBI CHI1442A30, adquirido por € 144,00, Multiferramentas AEG 12V-2BA.L1 BWS 12C, adquirido por € 280,00 com IVA incluído (artigos 14º e 15ºda petição inicial);

5.18 – Em simultâneo com o arrendamento das instalações, a autora celebrou com “Saturnalia Compra e Venda de Imóveis, Ldª” um acordo denominado pelos outorgantes como “Contrato de compra e venda de bens móveis não sujeitos a registo”, com o teor constante de fls 57 e ss, dos autos pelo qual a “Sarurnalia” lhe vendeu os 41 bens identificados no anexo 1, pelo preço de € 88.000,00 (artigos 16º e 17º da petição inicial);

5.19 - Para a reconstrução/instalação de uma nova fábrica a autora tem de adquirir nova maquinaria e utensílios de trabalho (artigo 18º da petição inicial);

5.20 - No sentido da autora poder laborar com nova fábrica solicitou dois orçamentos, para aquisição da maquinaria necessária, as quais têm atualmente um valor de mercado de € 339.707,55 e que incluem a aquisição dos seguintes bens: 1 Cabine de pintura a seco SPERANDEI, no valor de € 5.200,00; - 1 Universal 400 LM 410 I GRIGGIO, no valor de € 12.300,00; - 1 Prensa PCM – 5H MEICAL, no valor de € 11.500,00; 1 Serra de fita SNA 800 GRIGGIO, no valor de € 5.900,00; 1 Orladora START 4/3 GRIGGIO, no valor de € 13.000,00; Lixadeira calibradora GI 1100/2 RRT GRIGGIO, no valor de € 21.500,00; 1 Multifuradora GF21 GRIGGIO, no valor de € 5.500,00; 1 Fresadora copiadora F70 MILON, no valor de € 6.500,00; 1 Tupia T 220 GRIGGIO, no valor de € 8.800,00; 1 Alimentador de tupia, no valor de € 850,00; 1 Máquina de furar por correntes G450 GRIGGIO, no valor de € 5.600,00; 1 Garlopa PF 530 R GRIGGIO, no valor de € 8.500,00; 1 Desengrossadeira PSA 630 GRIGGIO, no valor de € 13.000,00;1 Esquadrejadora ÚNICA 400 E GRIGGIO, no valor de € 13.500,00; 2 Compressor 500L BK 119/800 7.5 R FINI, no valor de € 3.360,00; 1 Radial GR 640 GRIGGIO, no valor de € 3.500,00; 4 Lixadeira F69 LEGNA, no valor de € 1.660,00; 1 Lixadeira calibradora GC 110/2-150 RRT GRIGGIO, no valor de € 18.500,00, com um total de 194.795,10€, com iva incluído; 1 Cortina de pintura a seco 4m, no valor de € 4.500,00; 1 Universal 800mm MIDA, no valor de € 6.500,00; 1 Tupia vertical FRAMA TV-5 com alimentador, no valor de € 3.500,00; 1 Fresadora de portas de carpintaria, no valor de € 8.500,00; 1 Prensa de lamelas com 5 pratos PCM-5H, no valor de € 5.500,00; 1 Serra de fita 800mm MILOR, no valor de € 3.000,00; 1 Orladora BASKENT – topeja, afaga, raspadores e escovas, no valor de € 15.000,00; 1 Calibradora 1100mm 2 lixas BOERE, no valor de € 12.500,00; 1 Multifuradora 21 furos, no valor de € 2.750,00; 1 Lixadeira de perfis com 3 motores, no valor de € 5.000,00; 1 Fresadora copiadora vertical FRAMA, no valor de € 3.000,00; 1 Furador de correntes MIDA, no valor de € 2.500,00; 1 Plaina 500mm MIDA, no valor de € 3.000,00; 1 Desengrosso 600mm MIDA, no valor de € 4.500,00; 1 Esquadrejadeira MIDA SCE-3.2, no valor de € 5.000,00; 1 Sistema de despoeiramento, com silo, no valor de € 12.000,00; 1 Compressor 500 lts CIATA T-500/DP, no valor de € 1.750,00; 1 Secador de ar, no valor de € 1.000,00; 2 Máquina airless, completa, no valor de € 3.200,00; 1 Máquina airmix, completa, no valor de € 1.650,00; 1 Engenho de furar OPTIMUM, no valor de € 615,00; 5 Mesa de lixar, com aspiração, no valor de € 10.000,00; 1 Serra radial FRAMA, no valor de € 1.250,00; 4 Lixadeira VIRUTEX AF-11, no valor de € 1.600,00, tudo no valor global de € 339.707,45 (artigos 19º e 20º da petição inicial)

5.21 – No dia 7 de Agosto de 2014, o averiguador designado pela ré deslocou-se ao local de risco previsto na apólice, acompanhado de um colega e de AA, este último, sócio gerente da autora, para investigar os factos que haviam sido participados à aqui contestante, tendo verificado que o local se encontrava fechado a cadeado o que surpreendeu o referido gerente, que afirmou desconhecer quem havia fechado o portão do imóvel a cadeado (artigos 12º e 13º da contestação);

5.22 - O imóvel em causa tinha sido objeto de penhora em processo executivo, no âmbito do qual fora adquirido pela Caixa de Crédito Agrícola Mútua, CRL – …, por aquisição registada mediante a Ap. 1000 de 2014/07/18 (artigo 28º da contestação);

5.23 - O averiguador da ré e o gerente da autora entraram no interior das instalações desta última (artigo 30º da contestação);

5.24 - Já no interior das mencionadas instalações, o gerente da autora começou por explicar ao averiguador da ré que a última vez que tinha estado no local de risco, antes do sinistro, tinha sido no dia 1 de Agosto de 2014, pelas 19h00, onde se havia deslocado para ir buscar umas faturas (artigos 31º e 97º da contestação);

5.25 – Nessa ocasião, o gerente da autora esclareceu que na madrugada do dia 2 de agosto de 2014, pelas 03:00 horas, altura em que estava a dormir, foi alertado pela GNR – Posto de … – para o facto da fábrica da autora estar a arder, pelo que, de imediato ali se deslocou e confirmou tal facto, tendo encontrado no local várias corporações de bombeiros a combater as chamas, que se estendiam por todo o imóvel (artigo 32º da contestação);

5.26 - Mais referiu que se apercebeu, então, de que o alerta para este incêndio havia sido dado aos bombeiros, cerca das 01h50 da madrugada do dia 2 de agosto de 2014, desconhecendo qual o motivo que dera causa ao incêndio e que naquele mesmo dia comparecera no local um piquete da Polícia Judiciária …, para investigar as causas do incêndio, mas que nada pôde fazer devido ao estado ainda incandescente dos componentes do imóvel e do respetivo recheio, pelo que o referido piquete se deslocou ao local, de novo, no dia seguinte (artigos 33º e 34º da contestação);

5.27 - Em resultado desta primeira intervenção do averiguador da ré, foi possível apurar que o mencionado local de risco é muito isolado, pouco movimentado e distante de quaisquer habitações (artigo 35º da contestação);

5.28 – Nessa ocasião o perito da ré constatou que praticamente todo o imóvel onde a segurada desenvolvia a sua atividade foi afetado pelas chamas, encontrando-se as respetivas vigas completamente retorcidas, devido às elevadas temperaturas desenvolvidas pelo incêndio no seu interior (artigo 36º da contestação);

5.29 - As chamas desenvolveram-se muito rapidamente para o interior do armazém, propagando-se para zonas onde se encontravam materiais praticamente incombustíveis, derretendo-os, designadamente, o armazém onde se encontravam acondicionadas diversas ferragens destinadas à produção da autora (artigo 38º da contestação);

5.30 – O averiguador da ré constatou que praticamente todo o recheio que se encontrava dentro do imóvel havia sido irremediavelmente danificado pelas chamas, com exceção de um compressor e de um filtro, que se encontravam no exterior do imóvel num compartimento não afetado pelas chamas (artigo 40º da contestação);

5.31 - Ainda durante esta averiguação, o averiguador designado pela ré apurou igualmente a presença de diversas latas de vernizes e solventes no local de risco, mas em compartimento independente, que o gerente da autora referiu serem propriedade de BB, gerente da sociedade por quotas “Fábrica de Móveis Bom Sucesso, Lda.”, a qual havia sido, até 15 dias antes do sinistro, a proprietária do imóvel onde se encontrava situado o local de risco da apólice (artigo 42º da contestação);

5.32 - O gerente da autora esclareceu o averiguador da ré que foi esta sociedade “Fábrica de Móveis Bom Sucesso, Lda”, gerida e representada pelo indicado BB, quem arrendou o imóvel onde se situa o local de risco à autora, no dia 27 de Abril de 2012 (artigo 43º da contestação);

5.33 – O gerente da autora esclareceu o averiguador da ré que havia adquirido os equipamentos industriais, no estado de usados, à sociedade por quotas denominada “Saturnália – Compra e Venda de Imóveis, Lda.”, gerida e representada pelo mesmo BB, no mesmo dia em que tomou de arrendamento o imóvel onde se situa o local de risco (artigo 47º da contestação);

5.34 - Em resposta às solicitações do supra invocado averiguador de sinistros, o gerente da autora inicialmente fez chegar às mãos daquele uma certidão emitida pelos serviços do MP de …, com o teor de fls 98 v, da mesma constando, designadamente, a indicação de danos emergentes do incêndio no valor de € 300.000,00 (artigo 48º da contestação);

5.35 - Posteriormente, em resposta às insistências do averiguador designado pela ré para averiguar este incêndio, o gerente da autora apresentou ao primeiro um documento intitulado de “Relação de Prejuízos”, tendo elencado os prejuízos sofridos do seguinte modo: “Toda a maquinaria e ferramenta que constam do contrato de compra e venda de bens móveis, realizado entre a Zeeva e a Saturnália, conforme cópia enviado; Todo o stock de material existente conforme documentos contabilísticos – 66.489,23€; Máquinas e ferramentas conforme facturas – 27.386,72€; Material informático conforme facturas - 5.070,74€; Mobiliário de escritório conforme facturas – 3.685,20€;” (artigo 49º da contestação);

5.36 – O inventário da autora apresentava o mesmo valor nos anos de 2012 e 2013 (artigo 66º da petição inicial);

5.37 – De acordo com o teor do contrato de compra e venda celebrado entre a autora e a”Saturnália”, nomeadamente da sua cláusula segunda, ficou convencionado que o preço a pagar pela autora pelas máquinas e ferramentas a que o contrato se refere, seria pago em 57 prestações, sendo as duas primeiras no valor de € 5.000,000 cada, a pagar em maio e julho de 2012, e as restantes 55, no valor de € 1.418,18, a serem pagas mensalmente, ao dia 15 do mês a que respeitem, com início em 15 de Janeiro de 2013 (artigo 71º da contestação);

5.38 - Na cláusula terceira do indicado contrato de compra e venda, consta que a posse dos referidos bens passava para a autora, mantendo, no entanto, a vendedora, a propriedade dos referidos bens, até que se mostrasse paga a totalidade do preço a pagar pelo negócio, eventuais juros de mora pelo cumprimento tardio das obrigações assumidas e despesas administrativas a que desse lugar (artigo 72º da contestação);

5.39 – Na pendência do apuramento dos prejuízos alegadamente sofridos pela autora com o sinistro dos autos, o averiguador designado pela ré recebeu do então mandatário da autora uma cópia do teor do despacho de arquivamento do inquérito que correu termos nos serviços do Ministério Público da Comarca de … – 1ª Secção, sob o n.º 1405/14.5JAPRT, relativo ao incêndio ora em discussão (artigo 84º da contestação);

5.40 – O negócio da autora vinha apresentando prejuízos, pelo menos, nos exercícios dos anos de 2012, 2013 e 2014 (artigos 85º e 98º da contestação);

5.41 - O incêndio ora em apreço foi ateado por mão humana, de forma consciente e voluntária que visou a obtenção de tal resultado (artigo 91º da contestação);

5.42 – A suspeita da ré de que o incêndio foi ateado deliberadamente foi reafirmada pelos factos de se tratar de uma apólice iniciada cerca de um mês e meio antes do incêndio e da penhora e venda do imóvel em processo de execução, e pela colocação de um cadeado no seu portão de acesso (artigos 92º e 93º da contestação);

5.43 - A autora, nem antes, nem depois do sinistro ora em apreço, se apresentou perante a nova proprietária do imóvel a reclamar o seu pretenso direito ao arrendado e direitos conexos (artigo 94º da contestação);

5.44 – A autora não contratou com a ré a cobertura oferecida pelas condições Gerais da Apólice de Multirriscos Industriais e prevista na condição especial de “Atos de Vandalismo” (artigo 103º da contestação);

5.45 – Na referida condição especial, a propósito de “Atos de Vandalismo”, refere-se o seguinte: “Art. 1º Âmbito da Cobertura

1. A presente Condição Especial garante as perdas ou danos diretamente causados aos bens seguros em consequência de Atos de Vandalismo.

2. A garantia abrange os danos causados aos bens seguros por:

a) Atos de vandalismo;

b) Atos praticados por qualquer autoridade legalmente constituída, em virtude de medidas tomadas por ocasião da ocorrência mencionada na alínea anterior, para a salvaguarda ou proteção de pessoas e bens.

Art. 2º Definição

Para efeito da presente cobertura, entende-se por Ato de Vandalismo, todo o ato de que resultam danos nos bens seguros e cujo exclusivo intuito do seu autor seja o de danificar tais bens.

Art. 3º Exclusões

Sem prejuízo das exclusões previstas nas Condições Gerais aplicáveis à presente cobertura, não ficam garantidos:

a) Atos de terrorismo, como tal tipificados nos termos da legislação penal em vigor;

b) Atos de sabotagem, como tal tipificados nos termos da legislação penal em vigor;

c) Quaisquer perdas ou danos que sejam consequência de manifestações organizadas e expressamente convocadas para exprimir o protesto contra quaisquer pessoas ou instituições, bem como contra a ordem social e política vigente;

d) Quaisquer perdas ou danos que sejam consequência de atos praticados com a finalidade de dificultar ou impedir o normal desenrolar da atividade do Segurado;

e) Quaisquer perdas ou danos intencionalmente causados aos bens seguros através da utilização de explosivos, mísseis ou outro tipo de armas militares” (artigo 104º da contestação).»

Declararam como não provados os seguintes factos:                      

O alegado nos artigos:

- 10º (parcialmente), 12º, (parcialmente), 13º (parcialmente), 14º (parcialmente), 15º (parcialmente), 17º (parcialmente), 38º, 39º, 40º da petição inicial;

- 27º, 28º (parcialmente), 29º, 30º (parcialmente), 37º, 39º, 41º, 44º, 45º, 46º, 47º (parcialmente), 52º, 53º, 54º, 55º, 57º, 58º, 59º, 60º, 65º, 66º (parcialmente), 76º, 77º, 81º, 85º (parcialmente), 87º (parcialmente), 88º, 93º (parcialmente), 95º, 96º, 98º (parcialmente), 99º (parcialmente) da contestação;

- 5º, 6º da contestação, 11º, 13º, 14º, 15º, do articulado de resposta às exceções.

Analisando.                                                   

Como deflui da materalidade assente, entre a Recorrente e a Recorrida, com data de 16 de Maio de 2014, foi celebrado um contrato de seguro, em que aquela transferiu para esta, além do mais, a responsabilidade de risco de incêndio, com um capital seguro de € 500.000,00, titulando a respectiva apólice um contrato de seguro “Multirrisco Industrial” e tem como objeto seguro o recheio do local de risco sito no ..., Estrada ... s/n 0000-000, …, o qual garante desde essa data e conforme artigo 2º nº 1, das Condições Gerais da Apólice, os riscos previstos nas Condições Especiais, quando expressamente contratados e designados nas Condições Particulares, até aos limites nestas previstos (pontos 5.5, 5.6, 5.7).

O contrato de seguro é um acordo através do qual o segurador assume a cobertura de determinados riscos, comprometendo-se a satisfazer as indemnizações ou a pagar o capital seguro em caso de ocorrência de sinistro, nos termos acordados, como deflui do artigo 1º do DL 72/2008, de 16 de Abril, diploma este que veio estabelecer o regime do contrato de seguro, procedendo à sua reforma, e aplicável ao caso em análise.

O princípio geral aplicável é o que resulta do artigo 11º daquele diploma, isto é «O contrato de seguro rege-se pelo princípio da liberdade contratual, tendo carácter supletivo as regras constantes do presente regime, com os limites indicados na presente secção e os decorrentes da lei geral.», o que quer dizer que se aplicam as cláusulas resultantes do contrato de seguro e supletivamente as específicas decorrentes do regime jurídico do contrato de seguro, bem como as constantes da Lei geral.

Assim.

As partes acordaram entre si um seguro de incêndio, o qual teve por objecto a cobertura dos danos causados pela ocorrência de incêndio no bem identificado no contrato, nos termos do artigo 149º daquele mesmo diploma, sendo o âmbito da cobertura, o que decorre do preceituado do seu artigo 150º, isto é:

«1 - A cobertura do risco de incêndio compreende os danos causados por acção do incêndio, ainda que tenha havido negligência do segurado ou de pessoa por quem este seja responsável.

2 - O seguro de incêndio garante igualmente os danos causados no bem seguro em consequência dos meios empregados para combater o incêndio, assim como os danos derivados de calor, fumo, vapor ou explosão em consequência do incêndio e ainda remoções ou destruições executadas por ordem da autoridade competente ou praticadas com o fim de salvamento, se o forem em razão do incêndio ou de qualquer dos factos anteriormente previstos.

3 - Salvo convenção em contrário, o seguro de incêndio compreende ainda os danos causados por acção de raio, explosão ou outro acidente semelhante, mesmo que não seja acompanhado de incêndio.».

O conceito de incêndio adoptado pelas condições gerais da apólice uniforme do seguro obrigatório de incêndio é a de «combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios», cfr José Vasques, Contrato De Seguro, 65.

E, nas condições particulares do contrato celebrado entre as partes, mostra-se previsto o risco de “Incêndio, Queda de raio e Explosão”, nos seguintes termos, como se mostra assente no ponto 5.8:

«Art. 1.º - Âmbito da Cobertura

1. A presente Condição Especial garante os danos diretamente causados aos bens seguros, identificados nas Condições Particulares, em consequência de Incêndio, Queda de Raio e Explosão.

2. A garantia abrange os danos resultantes de incêndio ou meios empregues para o combater, calor, fumo ou vapor resultantes imediatamente de incêndio, ação mecânica de queda de raio, explosão e ainda remoções ou destruições executadas por ordem de autoridade competente ou praticadas com o fim de salvamento, se o forem em razão de qualquer dos factos atrás previsto.

Art. 2.º - Definições

Para efeitos da garantia deste risco, entende-se por:

a)Incêndio: Combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios;».

Resulta da materialidade apurada, o seguinte, no que à economia da questão solvenda diz respeito e nos interessa:

«5.2 – A autora tinha instalada a sua unidade fabril, desde maio de 2012, no ..., Estrada ..., 0000 – 000 …, em espaço que arrendou para o efeito (artigo 2º da petição inicial);

5.3 - No dia 2 de Agosto de 2014, tal unidade fabril ficou completamente destruída, em face de um incêndio ocorrido no local (artigos 3º, 25º, 37º, 41º da petição inicial, artigo 10º da contestação);

5.4 – Por força de tal incêndio foi instaurado nos serviços do Ministério Público de … o inquérito nº 1405/14.5JAPRT, contra desconhecidos, cujos autos se encontram apensos ao presente, no qual, em 30 de maio de 2015, foi proferido despacho de arquivamento, aí se referindo, além do mais:

“Da inspeção efetuada ao local, apurou-se que o incêndio em causa teve origem dolosa, tendo resultado diretamente da ação humana, uma vez que foi detetada a existência de uma substância (não concretamente apurada) aceleradora da combustão que certamente terá levado a um rápido alastrar do fogo a toda a maquinaria e ao restante imóvel.

Mais se apurou que o AA tinha seguro contra incêndio.

Contudo, e do conjunto das diligências de inquérito realizadas, nada resultou que permita concluir quer quanto à causa quer quanto à eventual autoria dos factos aqui participados.».

O âmbito do risco seguro, constitui uma informação que obrigatoriamente tem de ser fornecida ao segurado aquando das negociações e celebração do acordo, como decorre do disposto da alínea b) do artigo 18º, daquele mesmo diploma, não decorrendo da materialidade alegada pela Recorrente, nem tendo sido sequer questão suscitada nos autos, que tivesse havido qualquer violação do dever de informação por banda da Ré, aqui Recorrida, no concernente a essa matéria, aliás porque a cobertura pelo segurador de um risco do tomador (ou de terceiro) integra o conteúdo típico do contrato de seguro, cfr a propósito do risco, Margarida Lima Rego, Risco e suas vissicitudes, in Temas De Direito Dos Seguros, 389.

O sinistro em causa teve origem dolosa, como decorre da inspecção que foi realizada, de onde se poder concluir que o incêndio não ocorreu por causas acidentais, o que à partida, nos afasta da noção de incêndio prevenida pela garantia decorrente da apólice, a qual nos conduz a uma situação delineada por uma eventualidade meramente ocasional e, não já e antes, proporcionada por acto voluntário próprio ou de terceiro.

Aliás, esta asserção, nem sequer briga com a interpretação do nº1 do artigo 443º, quando aí se predispõe que o seguro contra fogo compreende, além do mais, «Os danos causados pela acção do incêndio, ainda que este haja sido produzido por facto não criminoso do segurado ou de pessoa por quem seja civilmente responsável», porquanto se admite no seu âmbito que o facto originário do sinistro possa provir de acto do segurado ou de outrem cuja responsabilidade detenha, desde que tal acto não tenha origem criminosa, o que afasta a se, qualquer actuação voluntária e consciente daquele.

A tese defendida pela Recorrente em sede de recurso de Apelação e que pretende fazer (res)suscitar em sede de Revista excepcional, arrimando-se na doutrina de Vaz Serra, carece de qualquer apoio legal, bem como se lhe falha, na actualidade, apoio doutrinário e/ou jurisprudencial.

A este propósito sempre se acrescenta que essa tese, com assento em dois Arestos deste Supremo Tribunal de Justiça dos anos 50 e 70 – 3 de Maio de 1952 e 13 de Novembro de 1970, este último com anotação de Vaz Serra – tinha como preposição que o incêndio era um facto fortuito, imprevisto e inevitável, para o qual o segurado (ou pessoa por quem ele fosse civilmente responsável) não tivesse contribuído dolosamente, daí se extrapolando para a asserção que a Lei apenas cominaria a exclusão da responsabilidade da seguradora, apenas no caso de o incêndio ter sido causado dolosamente pelo segurado, porque se tivesse sido causado por outrem estranho àquele, mesmo a titulo doloso, a seguradora seria sempre obrigada a indemnizar: era a interpretação retirada do disposto no artigo 443º do CComercial, sendo certo que na data, o contrato de seguro apenas tinha a sua sede na legislação comercial.

Contudo, mesmo nessa data (anos 70), afigura-se-nos que a aventada interpretação afrontava já as regras decorrentes do disposto no artigo 9º do CCivil, porquanto não se poderia atribuir esse alcance, por o mesmo não resultar, minimamente, da letra da Lei, na qual não tendo qualquer correspondência verbal, mesmo imperfeitamente expressa.

A seguir-se esse entendimento, poder-se-ia configurar (em termos meramente hipotéticos exemplificativos e coadjuvantes de raciocínio jurídico), uma situação em que o sinistro pudesse ter sido causado voluntária e conscientemente pelo segurado, enquanto autor moral, e materialmente por outrem, a seu mando, sendo que, neste caso, a seguradora seria obrigada a satisfazer a indemnização, se não se viesse a apurar aquela coligação, nem tão pouco se viesse a apurar a identidade do (co)responsável, ficando a cargo desta o ónus da prova destes factos excludentes da sua responsabilidade contratual, o que conduziria, sem dúvida, a um gravame incompreensível para a mesma.

Não cremos que o legislador tivesse em mente uma tal abertura na previsão normativa, sendo que, hoje em dia, tendo em atenção a noção de incêndio, quaisquer dúvidas que se nos oferecesse a leitura isolada daquele normativo comercial, estariam desfeitas, face ao carácter «acidental» atribuído ao risco seguro, isto é, como ocorrência causada por uma circunstância imprevista, o que afasta totalmente a possibilidade de se aventar que esse risco pudesse, e possa, ocorrer por um facto voluntário, quer próprio quer de terceiro estranho ao contrato.  

Por outro lado, veja-se que a Recorrente aquando do contrato de seguro havido com a Ré, aqui Recorrida, afastou da cobertura os “Atos de Vandalismo”, ponto 5.44, sendo certo que tais actos abrangiam, toda a ocorrência de que resultasse danos nos bens seguros e cujo exclusivo intuito do seu autor fosse o de danificar tais bens, ponto 5.44. 

Ora, a inclusão de tais actos na cobertura, poderia fazer impender sobre a Recorrida o risco decorrente do sinistro, mas a aludida cobertura patrimonial foi omitida, o que faz claudicar a pretensão da Recorrente em termos de responsabilização daquela.

Decorre do disposto no artigo 236º, nº1 do CCivil, no que tange às regras de interpretação dos negócios jurídicos, aqui aplicável por força do artigo 11º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, que «A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.».

A interpretação nos negócios jurídicos surge-nos, assim, como uma actividade destinada a fixar o sentido e alcance decisivo do seu conteúdo, determinando o conteúdo das declarações que o suportam e, consequentemente os efeitos que visam produzir, cfr Mota Pinto, Teoria Geral Do Direito Civil, 3ª edição, 444/445; Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral Do Direito Civil, 6ª edição, 546/547; ibidem, Contratos Atípicos, 5; inter alia, os Ac do STJ de 4 de Junho de 2002 (Relator Garcia Marques); 22 de Setembro de 2016 (Relator Pinto de Almeida, aqui primeiro Adjunto); de 5 de Janeiro de 2016 (Relator Nuno Cameira); de 12 de Maio de 2016 (Relator Gonçalves Rocha); de 6 de Setembro de 2017 deste mesmo Colectivo, in www.dgsi.pt..

Tendo como boa a doutrina da impressão do destinatário, posição esta adoptada pela doutrina e pela jurisprudência como a mais razoável e mais justa na interpretação negocial, começamos por dizer que quer o tipo contratual  - seguro de incêndio -, quer a factualidade apurada, afasta a se qualquer outra interpretação que não seja a de que, no caso concreto em que o sinistro teve origem dolosa, o mesmo se encontra expressamente afastado do âmbito da cobertura da apólice, o que faz claudicar a pretensão recursória encetada.

III Destarte, nega-se a Revista, mantendo-se a decisão plasmada no Acórdão impugnado.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 05 de Maio de 2020

Ana Paula Boularot (Relatora)

Fernando Pinto de Almeida

José Rainho