Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
213/05.9TCLSB.L1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: ISABEL PAIS MARTINS
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
DECLARAÇÕES DO CO-ARGUIDO
PROVA PROIBIDA
DIREITO AO SILÊNCIO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
TESTEMUNHA
SEPARAÇÃO DE PROCESSOS
CONSENTIMENTO
QUESTÃO NOVA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CONHECIMENTO OFICIOSO
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
ILICITUDE CONSIDERAVELMENTE DIMINUÍDA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
CULPA
Data do Acordão: 04/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA - TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - SUJEITOS DO PROCESSO / JUIZ E TRIBUNAL / COMPETÊNCIA POR CONEXÃO - PROVA / MEIOS DE PROVA - JULGAMENTO / AUDIÊNCIA / PRODUÇÃO DE PROVA.
Doutrina:
- António Henriques Gaspar et alii, “Código de Processo Penal” Comentado, 2014, Almedina, anotação ao artigo 133.º.
- Figueiredo Dias, Direito Penal, As Consequências..., pp. 228, 24; Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2007, pp. 268; «Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime» Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, Fasc.1, Janeiro-Março de 1992, Aequitas, Editorial Notícias, p. 14; Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 88 e ss..
- Medina de Seiça, O Conhecimento Probatório do Co-arguido, Coimbra Editora, 1999, p. 35 e ss., também citado por Santos Cabral, em comentário ao artigo 133.º, “Código de Processo Penal” Comentado, António Henriques Gaspar et alii, 2014, Almedina, p. 514 e ss..
- Vinício Ribeiro, “Código de Processo Penal” Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2..ª edição.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 24.º, 30.º, 125.º, 126.º, 133.º, N.º1, AL. A), E N.º2, 345.º, N.º4.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, N.ºS 1 E 2, 71.º, N.º2.
DECRETO-LEI N.º 15/93, DE 22 DE JANEIRO: - ARTIGOS 21.º, 24.º, 25.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.º 133/2010, DE 14 DE ABRIL, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT
Sumário :

I - Não há qualquer impedimento do co-arguido a, nessa qualidade, prestar declarações contra os co-arguidos no mesmo processo e, consequentemente, de valoração da prova feita por um co-arguido contra os seus co-arguidos. Porém, com uma limitação, constante do n.º 4 do art. 345.º do CPP, de acordo com o qual não podem valer como meio de prova as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias deste outro co-arguido, o primeiro se recusar a responder no exercício do direito ao silêncio. Do que se trata, aqui, é de retirar valor probatório a declarações totalmente subtraídas ao contraditório.
II - A proibição que decorre al. a) do n.º 1 do art. 133.º do CPP nada tem a ver com a validade das declarações do arguido como meio de prova, antes se restringindo à proibição de audição de arguidos como testemunhas. O impedimento não se traduz apenas na limitação ao testemunho contra si próprio por parte do arguido, na medida em que o seu direito a não responder abrange todas as perguntas que lhe sejam feitas, independentemente do conteúdo intrínseco da resposta. O alargamento do direito do arguido ao silêncio ao próprio co-arguido, isto é, a não ser obrigado a prestar depoimento, precedido de juramento, e a não ser punido por falsas declarações, emerge desta matriz da garantia contra a auto-incriminação, enquanto expressão privilegiada do direito de defesa.
III -Contudo, nos termos do n.º 2 do art. 133.º do CPP, em caso de conexão (art. 24.º do CPP), mas tendo havido separação de processos (art. 30.º do CPP), o arguido, já julgado no processo inicial, tem capacidade para ser testemunha no julgamento do arguido, no processo separado, podendo o seu depoimento ser usado como meio de prova na formação da convicção do tribunal, caso manifeste o seu consentimento para o efeito.
IV - Os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões precedentemente decididas pelo tribunal a quo e não a pronúncia sobre questões novas. No entanto, cabendo a questão no âmbito da reapreciação oficiosa da decisão recorrida e tendo esta afirmado a correcção da qualificação jurídico-penal operada no acórdão da 1.ª instância, confirma-se a qualificação dos factos como um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, já que dos factos provados não emerge uma imagem global susceptível de fundamentar um juízo positivo sobre uma considerável diminuição da ilicitude. Trata-se de uma situação de tráfico internacional de uma droga «dura» (cocaína), numa quantidade global de cerca de 1,5 kg, em que o recorrente se apresenta como o «dono» ou, pelo menos, o «controlador» desse transporte.
V - E nada se tem a censurar à Relação pela pena de 5 anos e 6 meses de prisão fixada, a qual observa, adequadamente, as finalidades de prevenção geral positiva ou de integração, aferidas pela medida da necessidade de tutela do bem jurídico violado, necessariamente afectada (no sentido de diminuída) pelo tempo entretanto decorrido desde a prática dos factos (mais de 10 anos), se contém na culpa do recorrente pelos factos e não se mostra desconforme com a satisfação das exigências de prevenção especial de socialização que se podem inferir dos factos provados.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I

1. No processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, n.º 213/05.9TCLSB, da 3.ª vara criminal de Lisboa, após julgamento, realizado na ausência do arguido, nos termos do artigo 333.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal[1], foi proferido, em 15/11/2005, acórdão condenatório do arguido AA, ..., de nacionalidade ..., solteiro, residente em ..., ..., pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 7 anos de prisão.

2. Inconformado, o arguido interpôs recurso para a relação, vindo, por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 de Dezembro de 2014, no parcial provimento do recurso, o arguido a ser condenado, por um crime de tráfico de estupefacientes, do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão.

3. Ainda inconformado, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Rematou a motivação de recurso com a formulação das seguintes conclusões:

«1) O Recorrente foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.° 21.º do DL n.º 15/93, na pena única de sete anos de prisão efectiva, entretanto reduzida para cinco anos e meio de prisão.

«2) Ora, nos autos de que ora nos ocupamos, os senhores BB e CC, "co-arguidos/testemunhas" vieram a depor como testemunhas, mas a valoração dos seus depoimentos deveria ser analisada como se de "verdadeiros co-arguidos" se tratassem, tanto assim que o Tribunal a quo entendeu proceder (e bem) à advertência legalmente prevista no art.º 133.º do CPP.

«3) Destarte, o Tribunal não podia valorar tais depoimentos, dado que o arguido foi julgado na ausência e não poderia solicitar esclarecimentos a tais declarações, não podendo considerar-se a sua ausência suprida pelo seu Ilustre Defensor, já que este não estava munido do necessário conhecimento factual da situação, face à ausência do Arguido.

«4) Desta forma, a consideração da prova testemunhal dos Senhores BB e CC concretiza interpretação do art.º 127.° do CPP em sentido manifestamente inconstitucional, porquanto o Tribunal reputou credível o relato de testemunhas que depuseram de forma interessada, violando assim as garantias de defesa consagradas no art.º 32.°, n.º 1 da CRP, mormente o princípio acusatório e o direito ao silêncio, sendo certo que neste caso o julgamento decorreu na ausência do arguido, pelo que a este tampouco foi permitido pedir esclarecimento às declarações das tais "testemunha co- arguidos", não podendo simplesmente ser bastante a presença do Defensor Oficioso, já que este não tem conhecimento directo dos factos.

«5) Neste consentâneo, sob pena de violação dos Princípios Gerais das Garantias de Defesa, da Investigação ou da Verdade Material e da Livre Apreciação da Prova (enquanto princípios estruturantes estabelecidos na Constituição da República Portuguesa), expressamente se suscita a inconstitucionalidade dos art.ºs 127.° e 345.°, ambos do CPP, se interpretados no sentido de ser possível a consideração, para efeitos de convicção do Tribunal, do depoimento de declarações de co-arguidos em processo entretanto separado, no caso do arguido ser julgado na ausência.

«6) Salvo melhor opinião, desconsiderados os depoimentos de BB e CC, deverá o Arguido ser absolvido da prática dos crimes que foi acusado.

«7) Subsidiariamente, caso se decida improcedente a argumentação ora desenvolvida, no sentido desta Instância Última considerar que são inadmissíveis os depoimentos de co-arguido, quando o arguido é julgado na ausência, urge e porque efectivamente se trata de questão de direito (e, bem assim, se trata de questão sindicável por esta instância), realçar que o crime imputado ao arguido não é o adequado, face ao quadro factual fixado pelas instâncias.

«8) De facto, a conduta imputada ao Arguido enquadra-se no tipo legal de crime previsto no art.º 25.° do DL n.º 15/93 e não o art.º 21.°, n.º 1, conforme abundante jurisprudência supra citada, dado que estamos perante uma situação isolada e não perante alguém que faz do seu modo de vida a prática de crimes de tráfico de estupefacientes.

«9) A situação ocorrida nestes autos é similar a outros casos, tratados pela Justiça Portuguesa, no âmbito normativo do art.º 25.° do DL n.º 15/93, por referência aos “critérios" que nestas circunstâncias são utilizados, como seja, a organização ou logística bastante rudimentares ou a modalidade ou acção, que constituem tráfico ocasional ou de circunstância.

10) Daí que este Tribunal deva alterar a imputação de ilícito tipo do art.º 21.° do DL n.º 15/93 para aquele que está previsto no art.º 25.°, mais ordenando a descida dos autos ao Tribunal de 1.ª Instância para aí ser novamente equacionada a medida concreta da pena ou, caso este Alto Dicastério entenda poder decidir a pena concreta a aplicar, pela prática de crime p. e p. no ar.º 25.º do DL n.º 15/93, estabelecer a pena dentro da moldura legal de um a cinco anos.

«11) Ainda subsidiariamente, caso V.ªs  Ex.ªs mantenham a factualidade dada como provada pelo Tribunal de Primeira Instância, por cautela de patrocínio e no que tange à dosimetria da pena, a mesma revela-se excessiva.

«12) Importa melhor considerar a medida concreta da pena, atentas as circunstâncias atenuantes, como o facto do Arguido não ter quaisquer antecedentes criminais, o que revela que a pena de prisão efectiva aplicada de cinco anos e seis meses é manifestamente excessiva, tendo em conta outras decisões jurisprudenciais condenatórias neste tipo de crimes, como as supra citadas

«13) Desta guisa, deverá o Arguido ver a sua pena significativamente reduzida e aplicada a suspensão da execução da pena de prisão, uma vez que o mesmo se apresentou em juízo e pretende resolver a sua situação jurídico-penal definitivamente, não havendo mais nenhum registo de ilícito ou sequer notícia de investigação criminal pendente.

«14) E decidirem, ainda, o que mais reputem necessário, sempre em Doutíssimo Suprimento.»

4. Foi proferido despacho a admitir o recurso.

5. O Ministério Público apresentou resposta ao recurso pronunciando-se, com suficiência, no sentido de lhe ser negado provimento.

6. Remetidos os autos a esta instância, na oportunidade conferida pelo artigo 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal[2], também o Exm.º Procurador-geral-adjunto se pronunciou, com proficiência, sobre as questões objecto do recurso sendo de parecer de que nenhuma delas merece provimento.

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente respondeu, reiterando o teor e fundamentação do recurso e observando, quanto à manutenção da medida concreta da pena, que os factos foram praticados há mais de dez anos e, quanto ao conhecimento da questão da alteração da qualificação jurídica dos factos, ainda que na perspectiva de que se trata de questão nova, que essa matéria é de conhecimento oficioso.

8. Não havendo razões que determinem que seja proferida decisão sumária (n.º 6 do artigo 417.º do CPP) e não tendo o recorrente requerido a realização da audiência (n.º 5 do artigo 411.º do CPP), remeteu-se o julgamento do recurso para a conferência (artigo 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP).

Colhidos os vistos, com projecto de acórdão, realizou-se a conferência.

Dos trabalhos da mesma procede o presente acórdão.

II

1. definição do objecto do recurso

Atendendo às conclusões formuladas pelo recorrente – que definem e delimitam o objecto do recurso (artigo 412.º, n.º 1, do CPP) –, são as seguintes as questões que o recorrente traz à apreciação deste Tribunal:

i) não poderem os depoimentos de BB e de CC servir de meio de prova dos factos imputados ao recorrente e ser inconstitucional uma interpretação dos artigos 127.º e 345.º do CPP no sentido de que é possível a consideração, para efeitos da convicção do tribunal, “do depoimento de declarações (sic) de co-arguidos em processo entretanto separado, no caso de o arguido ser julgado na ausência”; subsidiariamente,

ii) dever ser alterada a qualificação jurídica dos factos, para o crime do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93; de qualquer modo,

iii) dever a pena ser reduzida e suspensa na sua execução.

***

2. Factos provados  

São os seguintes os factos dados por provados na 1,ª instância e mantidos pela relação:

«1- O arguido dedica-se à comercialização de estupefacientes desde data não apurada tendo conhecido BB e CC em ....

«2- O arguido deu conhecimento àqueles de que já tinha efectuado três viagens a Portugal transportando produtos estupefacientes sem ter tido qualquer problema com as autoridades.

«3- Tendo-se proposto fornecer-lhes embalagens contendo cocaína vulgarmente denominadas "belotas" que aqueles deviam ingerir e transportar até Lisboa.

«4- Como contrapartida pagaria 6.000 euros a cada um bem como as despesas decorrentes das viagens e estada.

«5- Ainda na sequência do plano acordado entre todos com vista ao transporte e introdução da cocaína em Portugal o arguido acompanharia os outros controlando-os na viagem de avião até Lisboa.

«6- Local onde estes se hospedariam em hotel que aquele lhes indicaria, a fim de após terem expelido a cocaína que transportariam no organismo, a entregarem ao arguido recebendo então deste último a quantia acordada.

«7- Proposta e plano a que o BB e o CC aderiram fazendo-o seus, atentos os proventos económicos que visavam obter.

«8- Foi assim que, dando concretização ao previamente acordado, veio o arguido a entregar ao BB e ao CC, respectivamente 79 e 72 embalagens "vulgo belotas" contendo cocaína, com os presos brutos globais de 910,843 e 839,693 gramas, que estes ingeriram antes de iniciarem a viagem que os conduziu a Lisboa.

«9- Em execução do aludido plano vieram os três a viajar no dia 22/9/2004 no voo ..., procedente de ... para Caracas ocupando os lugares 4B (AA), 4E (BB) e 5A (CC).

«10- E transportando no interior do respectivo organismo as embalagens de cocaína referidas em 8, vieram os três no dia 23/9/2004 a desembarcar no aeroporto de Lisboa provenientes de Caracas no voo ....

«11- Tendo nesse voo ocupado os lugares 21H (CC), 21J (BB) e 22J (AA).

«12- Em Lisboa, no aeroporto, na sequência das suspeitas existentes de que transportavam tais produtos vieram os mesmos a ser conduzidos por agentes da PJ às instalações da DCITE e posteriormente ao Centro Hospitalar de Lisboa - zona central.

«13- Tendo sido após a realização de exames radiológicos autorizados pelos três, apreendido ao BB e ao CC os produtos referidos em 8, por estes transportados no organismo.

«14- Mais lhes foi apreendido:

«Ao CC:

«- 1 bilhete da DCA com o n° ..., para o percurso Curaçao/Caracas/Curaçao, em seu nome;

«- 1 pedaço de papel com a identificação dos voos para o percurso Curaçao/Caracas/Curaçao e nº de bilhete em seu nome;

«- 1 bilhete da TAP com o nº ..., para o percurso Caracas/Lisboa/Caracas em nome de CC;

«- 1 pedaço de papel com a identificação dos voos para o percurso Caracas/Lisboa/Caracas em nome de CC;

«- 1 talão de embarque da DCA para o voo ... de 22/9 em nome de CC;

«- 1 folha da TAP AIR Portugal em que se encontra manuscrito "Hotel Barcelona" - "Hotel Radisson" - "Hotel Roma";

«- 90 euros, 43 dólares americanos, 1.510 bolívares e 1 talão de câmbio de dólares com o n° 2798852 em nome de CC.

«15-Ao BB:

«- 1 bilhete da TAP com o n° ... para o percurso Caracas/Lisboa/Caracas em nome dele;

«- 1 talão de embarque para o voo Caracas/Lisboa - ... de 22/9 em nome de BB;

«- 1 talão de embarque da DCA para o voo 1(86025, de 22/9 com destino a Caracas em nome de BB;

«- 1 talão de entrada na Venezuela em nome de BB;

«- 200 euros, 41 dólares americanos e 2.010 bolívares.

«16-Ao arguido:

«- 1 talão de embarque para o voo Caracas/Lisboa TP130 - 22/9 em nome de AA;

«- 1 pedaço de papel com a identificação dos voos e n° de bilhete em nome de AA;

«- 1 itenerário da TAP para o percurso Caracas/Lisboa/Caracas em nome de AA;

«- 1 talão de embarque da DCA para o voo ... de 22/9 com destino a Caracas em nome de "...".

«17-Os produtos referidos em 8, 10, 12 e 13 foram submetidos a exame laboratorial e identificados como sendo cocaína tendo os apreendidos ao CC globalmente o peso líquido de 780,282 gr, enquanto os que foram apreendidos ao BB tinham igualmente o peso líquido de 753,419 gr.

«18-O arguido conhecia perfeitamente a natureza e características do produto que foi apreendido tendo-o introduzido em Portugal pela forma antes descrita, produto esse destinado à cedência a terceiros.

«19-O arguido agiu de comum acordo com o BB e o CC, livre e voluntariamente.

«20-Bem sabendo que tal conduta lhe estava legalmente vedada e era punida por lei.

«21-As importâncias em dinheiro apreendidas eram parte do lucro que iria ser obtido com o transporte da cocaína.

«22-O arguido tem a nacionalidade holandesa,

«23-Não possui qualquer ligação, emprego ou residência no nosso país onde apenas se deslocou para praticar os factos antes descritos.»

***

3. Apreciação das questões que conformam o objecto do recurso

***

3.1. A questão da valoração dos depoimentos de BB e CC

3.1.1. No recurso interposto para a relação, o recorrente impugnou a decisão proferida sobre matéria de facto nos pontos 1 a 11, 18 a 21 e 23, em suma, por a 1.ª instância ter formado a sua convicção, quanto a eles, unicamente com base nos depoimentos de duas testemunhas, BB e CC – “co-arguidos/testemunhas” –, cuja valoração “terá de ser peneirada, como se de verdadeiros co-arguidos se tratassem”, sendo que a consideração dessa prova testemunhal “concretiza interpretação do artigo 127.º em sentido manifestamente inconstitucional (…) violando as garantias de defesa consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, mormente o direito ao silêncio”.

No acórdão recorrido, o tema foi longamente abordado, sob os diversos ângulos de análise pertinentes, e, concretamente, na perspectiva da violação das garantias de defesa, não se deixando de destacar que, no caso, «BB e CC não prestaram declarações como co-aguidos, mas foram inquiridos na qualidade de testemunhas, o que é coisa substancialmente diversa.

«E foram inquiridos como testemunhas porque a lei processual penal prevê essa possibilidade, em caso de separação de processos, desde que seja dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do seu art. 133.º.

«Foi o que sucedeu no caso em apreço.

«À data da audiência de julgamento, BB e CC haviam já sido julgados e condenados, por decisão transitada em julgado, no processo do qual estes autos se separaram, pelo ilícito aqui imputado ao ora recorrente.

«E expressamente consentiram em depor como testemunhas, conforme consta da acta de fls. 504-505, pelo que nada obsta à valoração dos seus depoimentos como prova testemunhal

Em abono desta tese, o acórdão recorrido convocou jurisprudência do Tribunal Constitucional:  

«Tem sido este o entendimento do Tribunal Constitucional, quer na vigência da versão originária do preceito quer após a alteração que lhe foi introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29-08.

«Assim, lê-se no acórdão do TC n.º 133/2010, citando o anterior acórdão do mesmo Tribunal n.º 304/2004[3]:

«“A justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial uma ideia de protecção do próprio arguido, como decorrência da vertente negativa da liberdade de declaração e depoimento, a que acima se fez referência e que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare, o também chamado privilégio contra a auto-incriminação (cfr. neste sentido, Costa Andrade, ob. cit., pág. 121).

«A proibição de o arguido ser ouvido como testemunha, enquanto limitação dos mecanismos de constrangimento inerentes à prova testemunhal, constitui expressão do privilégio contra a auto-incriminação.

«O alargamento do impedimento - alargamento do direito do arguido ao silêncio - ao próprio co-arguido arranca desta mesma matriz da garantia contra a auto-incriminação, enquanto expressão do direito de defesa, entendida como a exigência de assegurar ao co-arguido o direito a defender-se, sem que, através do testemunho sobre facto de outro, ele comprometa sua própria posição processual, auto-incriminando-se (cfr. neste sentido, Medina de Seiça, ob. cit., págs. 36 e 37).

«A consagração do impedimento representa uma renúncia do Estado à "colaboração forçada" na investigação de factos criminosos de quem é alvo dessa mesma investigação.

«O modelo do testemunho consentido, previsto no artigo 133.º, n.º 2 do CPP, pretende satisfazer a exigência de trazer o conhecimento probatório do co-arguido a um processo em que ele não se encontra a responder, sem eliminar a garantia do impedimento: a não sujeição dos arguidos do mesmo crime ao constrangimento característico da prova testemunhal.

«Ao cometer ao co-arguido a decisão sobre o exercício concreto da protecção, o impedimento deixa de ser absoluto e passa a relativo (ainda neste sentido Costa Andrade, ob. cit. pág. 121 e Medina de Seiça ob. cit. pág. 123) [...]

«5. O que se deixa dito permite-nos agora abordar, directamente, e com a limitação dos poderes de cognição deste Tribunal (no caso, aceitando que o co-arguido não deixara ainda de ser arguido, pelo mesmo crime, em processo separado e que não consentiu, expressamente, em depor como testemunha), a questão de constitucionalidade em causa: saber se a admissão e valoração do referido meio de prova contra o arguido no processo em que é prestado o depoimento, tal como resulta da interpretação feita pelo acórdão recorrido da norma do artigo 132.º n.º 2 do CPP, ofende a Constituição.

«E, desde logo, a de saber se se verifica a violação do artigo 32.º n.º 1 da CRP.

«Ora, o Tribunal entende que a norma que estabelece o assinalado impedimento relativo visa, exclusivamente a protecção dos direitos do co-arguido, enquanto tal, no processo pertinente, em ordem a garantir o seu direito de se não auto-incriminar.

«Para assim concluir o Tribunal tem, antes do mais, em conta que o impedimento cessa no caso de o co-arguido deixar de o ser no processo separado, por qualquer forma por que o procedimento criminal se pode extinguir.

«E, por outro lado, faz relevar o facto de o consentimento expresso do mesmo co-arguido ser suficiente para a legalidade deste meio de prova.

«O que significa, por outras palavras, que o arguido, no processo onde o depoimento é prestado nada pode opor, no estrito plano do direito infraconstitucional e verificado o consentimento expresso do depoente, à inquirição do co-arguido como testemunha.

«Mas, sendo assim - como é - não pode, desde logo, conceber-se que a eventual ofensa do disposto no artigo 133.º n.º 2 do CPP, por o co-arguido não ter expressado o seu consentimento - implique a violação das garantias de defesa, constitucionalmente asseguradas, do arguido que está a ser julgado no processo onde o depoimento é prestado.”

«Aqui, como no acórdão n.º 181/2005, entendeu-se que as cautelas de que se rodeia a admissibilidade do depoimento do co-arguido são impostas pela protecção dos direitos e da posição processual do arguido chamado a prestá-lo e não daquele contra o qual é valorado.

Vindo no acórdão recorrido a concluir-se que:

«Assim, cumprido aquele dispositivo legal, cautela imposta - como refere o acórdão acabado de citar – «pela protecção dos direitos e da posição processual do arguido chamado a prestá-lo e não daquele contra o qual é valorado», obtido o necessário consentimento e prestado o juramento legal, é da análise de depoimentos de testemunhas que tratamos.»

3.1.2. Desconsiderando, evidentemente, a fundamentação do acórdão da relação, na matéria, o recorrente vem retomar, perante este Tribunal, a questão da valoração dos depoimentos das testemunhas BB e CC, numa perspectiva que, no quadro da natureza do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, se situa no plano de valoração de prova proibida, convocando, ainda, a questão de a valoração de tais depoimentos concretizar uma interpretação do artigo 127.º do CPP “em sentido manifestamente inconstitucional” por violar as garantias de defesa, “mormente o princípio acusatório e o direito ao silêncio”.

Pois bem.

3.1.2.1 O artigo 125.º do CPP estabelece o princípio de que em processo penal são admissíveis quaisquer provas que não sejam proibidas por lei. Por outro lado, do elenco constante do artigo 126.º (métodos proibidos de prova), não fazem parte as declarações dos co-arguidos.

Não há qualquer impedimento legal a que as declarações dos arguidos ou dos co-arguidos sejam valoradas como meio de prova. Os arguidos podem prestar declarações no exercício do direito que lhes assiste de o fazerem em qualquer altura do processo, podendo as declarações ser prestadas sobre factos de que possuam conhecimento directo e que constituam objecto de prova, sejam eles factos que só digam directamente respeito ao declarante sejam eles factos que respeitem a outros co-arguidos.

Não há, pois, qualquer impedimento do co-arguido a, nessa qualidade, prestar declarações contra os co-arguidos no mesmo processo e, consequentemente, de valoração da prova feita por um co-arguido contra os seus co-arguidos.

Com uma limitação, porém.

Nos termos do n.º 4 do artigo 345.º do CPP, não podem valer como meio de prova as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias deste outro co-arguido, o primeiro se recusar a responder no exercício do direito ao silêncio. Do que se trata, aqui, é de retirar valor probatório a declarações totalmente subtraídas ao contraditório.

Como refere o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 133/2010, de 14 de Abril, já citado no acórdão recorrido, “seguramente que, submetidas a estas exigências de exame crítico e fundamentação acrescidas, as declarações de co-arguido são meio de prova idóneo de um processo penal de uma sociedade democrática. O processo penal destina-se à realização da justiça penal e seria comunitariamente insuportável negar valor probatório a declarações provindas de quem tem com os factos em discussão maior proximidade apenas pela circunstância de ser seu autor um dos arguidos quando essas declarações são emitidas livremente e, num escrutínio particularmente exigente, se conclui não haver razão para duvidar da sua correspondência à realidade”.

Não deixando de acentuar que é decisivo que o arguido contra quem tais declarações sejam feitas não tenha sido impedido de submetê-las ao contraditório.

3.1.2.2. A proibição que decorre alínea a) do n.º 1 do artigo 133.º do CPP nada tem a ver com a validade das declarações do arguido como meio de prova.

Na verdade, o âmbito daquele n.º 1 restringe-se à proibição de audição de arguidos como testemunhas. 

Estatui o artigo 133.º do CPP, na matéria de impedimentos de depor como testemunhas, que:

«1. Estão impedidos de depor como testemunhas:

«a) O arguido e os co-arguidos no mesmo processo ou em processos conexos, enquanto mantiverem aquela qualidade;

«(…)».

O impedimento de o arguido depor como testemunha radica na ideia de protecção do próprio arguido constituindo expressão do privilégio contra a auto-incriminação.

Tal como decorre da norma transcrita, o impedimento não se traduz apenas na limitação ao testemunho contra si próprio por parte do arguido, na medida em que o seu direito a não responder abrange todas as perguntas que lhe sejam feitas, independentemente do conteúdo intrínseco da resposta. O alargamento do direito do arguido ao silêncio ao próprio co-arguido, isto é, a não ser obrigado a prestar depoimento, precedido de juramento, e a não ser punido por falsas declarações, emerge desta matriz da garantia contra a auto-incriminação, enquanto expressão privilegiada do direito de defesa, entendida neste contexto como a exigência de assegurar ao co-arguido o direito a defender-se[4].

3.1.2.3. Contudo, nos termos do n.º 2 do artigo 133.º, em caso de conexão (artigo 24.º CPP), mas tendo havido separação de processos (artigo 30.º do CPP), o arguido, já julgado no processo inicial, tem capacidade para ser testemunha no julgamento do arguido, no processo separado, podendo o seu depoimento ser usado como meio de prova na formação da convicção do tribunal.

É esta a situação dos autos. Sendo caso de conexão de processos por BB, CC e o recorrente terem comparticipado na prática do mesmo crime, ocorreu separação de processos, encontrando-se, à data do julgamento do processo separado contra o arguido recorrente, aqueles BB e CC já julgados pelo crime determinante da conexão e condenados por decisão transitada em julgado.

Por outro lado, aqueles BB e CC consentiram expressamente em prestarem depoimentos.

Circunstancialismo este que convoca a norma do n.º 2 do artigo 133.º do CPP, segundo a qual «2. Em caso de separação de processos, os arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo, mesmo que já condenados por sentença transitada em julgado, só podem depor como testemunhas se nisso expressamente consentirem».

Nestes termos, BB e CC não sofriam de qualquer impedimento de depor como testemunhas no processo. A valoração dos respectivos depoimentos não estava, por conseguinte, limitada por qualquer proibição.

 A jurisprudência tanto do Tribunal Constitucional como do Supremo Tribunal de Justiça tem acentuado, em numerosas ocasiões, a validade, como meio de prova, no processo separado, do depoimento de co-arguido na situação prevista e definida no n.º 2 do artigo 132.º[5] por não implicar violação das garantias de defesa, constitucionalmente asseguradas, do arguido que está a ser julgado no processo onde o depoimento é prestado. Por outro lado, o arguido, no processo onde o depoimento é prestado nada pode opor, no estrito plano do direito infraconstitucional e verificado o consentimento expresso do depoente, à inquirição do co-arguido como testemunha.

A jurisprudência do Tribunal Constitucional vai, até, mais longe, sustentando não ser de conceber que a eventual ofensa do disposto no n.º 2 do artigo 132.º do CPP, por o co-arguido não ter expressado o seu consentimento sequer implique a violação das garantias de defesa, constitucionalmente asseguradas, do arguido que está a ser julgado no processo separado, onde o depoimento é prestado[6].

Tanto basta para que, neste ponto, se julgue não afectada por proibição de prova a prova testemunhal constituída pelos depoimentos de BB e Anthony Pinedo e improcedente a invocada inconstitucionalidade.

***

3.2. A questão da qualificação jurídica dos factos

Pretende o recorrente que os factos provados são subsumíveis ao artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93.

Convoca, assim, uma questão que não incluiu no recurso que interpôs para a relação, tratando-se, pois, de uma questão nova.

Como se sabe, os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões precedentemente decididas pelo tribunal a quo e não a pronúncia sobre questões novas.

No entanto, cabendo a questão no âmbito da reapreciação oficiosa da decisão recorrida e tendo esta afirmado a correcção da qualificação jurídico-penal operada no acórdão da 1.ª instância, sempre se dirá que, neste ponto, tendo-se os factos dados por provados por definitivamente assentes, também o recorrente carece de razão.

O legislador configurou, no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, o tipo base ou fundamental de tráfico e criou, em conexão com ele, acrescentando-lhe outros elementos, derivações típicas ou tipos derivados que ou agravam (tipo qualificado do artigo 24.º) ou atenuam (tipo privilegiado do artigo 25.º) a consequência jurídica prevista para o crime base. 

            O tipo privilegiado do artigo 25.º pressupõe que, nas modalidades de tráfico previstas no artigo 21.º, se comprove uma ilicitude consideravelmente diminuída, sendo, em razão dessa diminuição considerável da ilicitude, que o facto deixa de ser subsumido ao tipo fundamental ou base do artigo 21.º para ser integrado no tipo derivado do artigo 25.º

No artigo 25.º, o legislador consagrou um tipo de tráfico de menor gravidade, relativamente ao tipo base, em função de uma cláusula geral de considerável diminuição da ilicitude. Fundamento do tipo privilegiado (da menor gravidade) é que a ilicitude se mostre consideravelmente diminuída, fornecendo a lei, a título meramente exemplificativo, um enunciado de elementos susceptíveis de indicarem a requerida diminuição considerável da ilicitude.

 A considerável diminuição da ilicitude poderá resultar, conforme apontada indicação legislativa (exemplificativa), dos meios utilizados, da modalidade ou circunstâncias da acção, da qualidade ou quantidade dos estupefacientes na realização das acções típicas descritas no artigo 21.º Temos, assim, que o legislador renunciou a uma descrição típica taxativa das circunstâncias capazes de fundamentarem a aplicação das penas menos graves previstas nas alíneas a) e b) do artigo 25.º, ou seja, a uma rígida casuística de privilegiamento.

 A vantagem do método é a de evitar lacunas ou injustiças (inevitáveis com uma rígida casuística), sendo certo, por outro lado, que fornece ao juiz pontos concretos de apoio para a formulação de um juízo sobre a considerável diminuição da ilicitude. Não obstante, o carácter meramente exemplificativo – não vinculante – e, sobretudo, não concretizado das circunstâncias susceptíveis de conformarem a manifestação de uma considerável diminuição da ilicitude poderá implicar custos no plano da certeza e da segurança jurídica.

Na busca do equilíbrio desejável entre a realização da justiça, no caso concreto, e os valores da certeza e segurança jurídica, será na ponderação global de todas as circunstâncias do caso, que emergem da compreensão conjugada dos factos provados, que terá de assentar o juízo sobre o grau de ilicitude do facto por forma a afirmar-se positivamente uma acentuada diminuição da ilicitude, relativamente à pressuposta no tipo do artigo 21.º Com o que se quer dizer que, em relação à ilicitude compreendida no tipo base de tráfico, dos factos provados deve resultar uma imagem global que conforme um grau de ilicitude sensivelmente inferior capaz de afastar a aplicação do tipo base e fundamentar o tratamento do caso no quadro de menor gravidade, do crime e das consequências jurídicas, desenhado no artigo 25.º

Na verdade, na perspectiva defendida por Figueiredo Dias[7], «com a categoria do ilícito se quer traduzir o específico sentido de desvalor jurídico-penal que atinge um concreto comportamento humano numa concreta situação, atentas portanto todas as condições reais de que ele se reveste ou em que tem lugar. Por outras palavras, é a qualificação de uma conduta concreta como penalmente ilícita que significa que ela é, de uma perspectiva tanto objectiva, como subjectiva, desconforme com o ordenamento jurídico-penal e que este lhe liga, por conseguinte um juízo negativo de valor (de desvalor)».

Nesta acepção, em que todo o tipo é tipo de ilícito, a função que a categoria da ilicitude cumpre no sistema do facto punível é, em suma, definir o âmbito do penalmente proibido relativamente a singulares comportamentos.

A aplicação do artigo 25.º reclama que um singular comportamento de tráfico, na sua concreta conformação, seja merecedor de um juízo de desvalor consideravelmente inferior, em relação ao âmbito da definição do penalmente proibido pelo artigo 21.º  

Dos factos provados, no caso, não emerge uma imagem global susceptível de fundamentar um juízo positivo sobre uma considerável diminuição da ilicitude.

Trata-se, com efeito, de uma situação de tráfico internacional de uma droga “dura” (cocaína), numa quantidade global de cerca de um quilograma e meio, em que o recorrente se apresenta como o “dono” ou, pelo menos, o “controlador” desse transporte.

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3.3. A questão da medida da pena

A questão da medida da pena, colocada pelo recorrente, deverá, pois, ser apreciada, tal como ele a coloca, no quadro da condenação pelo crime do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, ao qual corresponde, em abstracto, pena de prisão de 4 a 12 anos.

3.3.1. Repetindo o que tantas vezes temos afirmado, a propósito da questão da “medida da pena”, as finalidades da punição, quer dizer, as finalidades das penas são, como paradigmaticamente declara o artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal[8], a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Com este texto, introduzido na revisão de 95 do CP[9], o legislador instituiu no ordenamento jurídico-penal português a natureza exclusivamente preventiva das finalidades das penas[10].

Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial. «Umas e outras devem coexistir e combinar-se da melhor forma e até ao limite possíveis, porque umas e outras se encontram no propósito comum de prevenir a prática de crimes futuros.»[11]

Com a finalidade da prevenção geral positiva ou de integração do que se trata é de alcançar a tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto. No sentido da tutela da confiança das expectativas de todos os cidadãos na validade das normas jurídicas e no restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime.

A medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos é um «acto de valoração in concreto, de conformação social da valoração legislativa, a levar a cabo pelo aplicador à luz das circunstâncias do caso. Factores, por isso, da mais diversa natureza e procedência – e, na verdade, não só factores do “ambiente”, mas também factores directamente atinentes ao facto e ao agente concreto – podem fazer variar a medida da tutela dos bens jurídicos»[12]. Do que se trata – e uma tal tarefa só pode competir ao juiz – «é de determinar as referidas exigências que ressaltam do caso sub iudice, no complexo da sua forma concreta de execução, da sua específica motivação, das consequências que dele resultaram, da situação da vítima, da conduta do agente antes e depois do facto, etc.»[13].

Se são factores atinentes ao facto que relevarão as mais das vezes para a determinação da medida necessária para satisfazer as exigências de prevenção geral, nas condutas subsumíveis a um mesmo tipo legal podem encontrar-se muitas variáveis, sem se sair do âmbito do desvalor típico, capazes de influir, para mais ou para menos, na medida necessária à tutela do bem jurídico.

Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva, devem actuar as exigências de prevenção especial. A medida da necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo do ponto de vista da prevenção especial.

Se a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º, n.º 2, do CP), a culpa tem a função de estabelecer «uma proibição de excesso»[14], constituindo o limite inultrapassável de todas as considerações preventivas.

 A aplicação da pena não pode ter lugar numa medida superior à suposta pela culpa, fundada num juízo autónomo de censura ético-jurídica. E o que se censura em direito penal é a circunstância de o agente ter documentado no facto – no facto que é expressão da personalidade – uma atitude de contrariedade ou de indiferença (no tipo-de-culpa doloso) ou de descuido ou leviandade (no tipo-de-culpa negligente) perante a violação do bem jurídico protegido. O agente responde, na base desta atitude interior, pelas qualidades jurídico-penalmente desvaliosas da sua personalidade que se exprimem no facto e o fundamentam[15].

Os concretos factores de medida da pena, constantes do elenco, não exaustivo, do n.º 2 do artigo 71.º do CP, relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção.

3.3.2. Nos crimes de tráfico de estupefacientes as finalidades de prevenção geral impõem-se com particular acuidade, pela forte ressonância negativa, na consciência social, das actividades que os consubstanciam. A comunidade conhece as gravíssimas consequências do consumo de estupefacientes, particularmente das chamadas “drogas duras”, desde logo ao nível da saúde dos consumidores, mas também no plano da desinserção familiar e social que lhe anda, frequentemente, associada e sente os riscos que comporta para valores estruturantes da vida em sociedade. 

 Todavia, à medida da tutela dos bens jurídicos, reclamada pela satisfação do sentimento de segurança comunitária, não é alheia a dimensão da ilicitude das diversas modalidades de acção, no seu recorte objectivo. Com o que se quer dizer que as exigências de prevenção geral não têm, em todos os casos, a mesma medida. As diversas condutas têm de ser apreciadas na sua concreta configuração e importância relativa na lesão do bem jurídico tutelado, sendo, na ponderação da especificidade do caso concreto, que se vai encontrar a justa medida da satisfação das exigências de prevenção geral.

  Ora, no caso, o transporte internacional de cocaína não se apresenta como um acto isolado mas, antes, inserido numa actividade de comercialização de droga, a que o recorrente se dedicava.

Apontando, no mesmo sentido, o facto de o recorrente se ter servido de dois “transportadores” aos quais acompanhou na viagem, com o único fito de os controlar.

Por outro lado, o modo como o transporte se efectuou (droga ingerida pelos “transportadores”), reflecte-se na culpa do recorrente pelo facto, elevando-a, dada a manifestada indiferença do recorrente pelos potenciais riscos para a saúde e para a própria vida dos transportadores, que o transporte de cocaína, nessas circunstâncias, implicava.

Não se provaram quaisquer circunstâncias susceptíveis de mitigar a culpa do recorrente nem quaisquer factores adequados a relevar no plano das necessidades de socialização que se podem inferir de medida acentuada pelo facto de o recorrente “se dedicar à comercialização de estupefacientes” o que aponta no sentido da falta, por parte dele, de mecanismos inibitórios em relação à actividade realizada. 

Nesta ponderação, nada temos a censurar à relação pela pena de 5 anos e 6 meses de prisão fixada, a qual observa, adequadamente, as finalidades de prevenção geral positiva ou de integração, aferidas pela medida da necessidade de tutela do bem jurídico violado, necessariamente afectada (no sentido de diminuída) pelo tempo entretanto decorrido desde a prática dos factos (mais de dez anos), se contém na culpa do recorrente pelos factos e não se mostra desconforme com a satisfação das exigências de prevenção especial de socialização que se podem inferir dos factos provados.

3.3.3. Ficando, assim, prejudicada a questão da suspensão da execução da pena, desde logo por não se mostrar preenchido o respectivo pressuposto formal (pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos).

III

Pelas razões expostas, acordamos, em conferência, em negar provimento ao recurso interposto por AA, mantendo, consequentemente, o acórdão da relação recorrido.

Por ter decaído, é o recorrente condenado em custas, com 7 UC de taxa de justiça (artigos 513.º e 514.º do CPP, 8.º do RCP e respectiva tabela III anexa).

Supremo Tribunal de Justiça, 15/04/2015

           Isabel Pais Martins (Relatora)





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[1] Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CPP.
[2] Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CPP.
«[3] Ambos in www.tribunalconstitucional.pt
[4] Assim, Medina de Seiça, O Conhecimento Probatório do Co-arguido, Coimbra Editora, 1999, p. 35 e ss., também citado por Santos Cabral, em comentário ao artigo 133.º, Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar et alii, 2014, Almedina, p. 514 e ss.
[5] Cfr., v. g., acórdãos sumariados em comentário ao artigo 133.º, no Código de Processo Penal Comentado cit. e em anotação ao mesmo artigo, Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2..ª edição.
[6] Já referido acórdão do Tribunal Constitucional n.º 133/2010, de 14/04/2010.
[7] Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2007, p. 268.
[8] Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CP.
[9] Inexistente na versão primitiva do CP, foi introduzido com a revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março.
[10] Sobre a evolução, em Portugal, do problema dos fins das penas e a doutrina do Estado, cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 88 e ss.
[11] Ibidem, p. 105.
[12] Figueiredo Dias, As Consequências cit., p. 228.
[13] Ibidem, p. 241.
[14] Figueiredo Dias, Temas, cit., p. 109.
[15] Figueiredo Dias, «Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime» Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, Fasc.1, Janeiro-Março de 1992, Aequitas, Editorial Notícias,p. 14.