Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1890/23.4T8CSC.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: REFORMA
ACÓRDÃO
RECLAMAÇÃO
REENVIO PREJUDICIAL
CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO
INTERPRETAÇÃO
NULIDADE DE CLÁUSULA
VIOLAÇÃO DE LEI
NORMA IMPERATIVA
Data do Acordão: 06/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REFORMA E INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário :
I. Se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma, sem necessidade de mais indagações.

II. Para decidir qual deveria ser a qualificação a atribuir às Autoras na sequência do facto ilícito de que foram vítimas, o Tribunal não podia deixar de interpretar o acordo de empresa e as cláusulas respeitantes à categoria e à carreira.

III. Se no decurso desse labor interpretativo o Tribunal chegar à conclusão de que cláusulas do referido acordo de empresa são nulas, não está impedido de afirmar essa nulidade e de dela retirar as devidas conclusões, pela existência no Código do Processo de Trabalho de uma ação de anulação e interpretação de cláusulas de convenções coletivas de trabalho, tanto mais que a nulidade é de conhecimento oficioso.

IV. A interpretação de um acordo de empresa português e das consequências da violação por este de uma norma legal imperativa nacional não justificam qualquer reenvio prejudicial, pelo que não houve nesta sede qualquer omissão de pronúncia ou erro de julgamento.

V. A autonomia negocial coletiva, constitucionalmente consagrada, não é ilimitada e não pode pôr em causa princípios fundamentais e normas legais imperativas.

Decisão Texto Integral:
Processo n.º 1890/23.4T8CSC.L1.S1

Acordam em Conferência na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

TAP – Transportes Aéreos Portugueses, S.A., Recorrida nos presentes autos, em que são Autores AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, veio ao abrigo do disposto nos artigos 613.º, n.º 2, 615.º, n.ºs 1 e 4, 616.º, n.º 2, 666.º e 685.º do Código de Processo Civil (“CPC”), ex vi artigo 77.º do Código de Processo do Trabalho, arguir e requerer a nulidade e a reforma do Acórdão proferido por este Supremo Tribunal.

No artigo 189.º da Reclamação/ Pedido de Reforma vêm assim sintetizadas as posições do Reclamante quanto à decisão objeto da referida Reclamação/Pedido de Reforma:

“a) É nula por omissão de pronúncia, na medida em que não se pronuncia quanto à alternativa – necessariamente prévia ao juízo relativo à nulidade da Cláusula 5.ª do RCPTC, anexo ao AE –, defendida pela Recorrida, da interpretação conforme. Deve o Tribunal tomar posição quanto à interpretação conforme à CRP e ao Direito da União Europeia e aos seus efeitos, optando por outro resultado interpretativo, designadamente o de que a referida Cláusula 5.ª, não restringe a integração nos níveis CAB-Início e CAB-0 aos trabalhadores a termo, mas sim que os níveis CAB-Início e CAB-0 devem ser aplicados, de modo indistinto, a trabalhadores a termo ou sem termo; ou, no limite, apenas considerar por não escrito o segmento “contratados a termo”, mantendo a fixação de todos os níveis salariais. Esta omissão de pronúncia configura, materialmente, uma limitação injustificada dos princípios do processo equitativo garantidos pelo artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, na esteira do artigo 6.º da CEDH. Tal justifica que se invoque expressamente a inconstitucionalidade dos artigos 687.º, n.º 2 (aplicável com as devidas adaptações), e 3.º, n.º 3, do CPC, quando interpretados no sentido de dispensar o tribunal, em julgamento ampliado de revista, de apreciar as questões de facto e de direito suscitadas pelas partes no exercício do contraditório realizado ao abrigo das citadas normas, por tal implicar uma violação dos princípios do processo equitativo garantidos pelo artigo 20.º,n.º4, da Constituição e do artigo 6.º da CEDH (cfr. artigo 8.º da Constituição).

b) É nula por omissão de pronúncia, na medida em que não toma posição nem fundamenta o alcance da nulidade, devendo o Tribunal pronunciar-se sobre o alcance de tal nulidade (i.e., total ou parcial) e, caso seja parcial, sobre a admissibilidade, à luz do artigo 292.º do CC, de se proceder à mera redução de tais cláusulas.

c) É nula por omissão de pronúncia, na medida em que desconsidera o concreto conflito entre julgados sobre esta matéria, devendo o Tribunal tomar posição sobre a questão controvertida relativa às consequências da conversão de contrato a termo em contrato por tempo indeterminado, i.e. , quanto ao âmbito de aplicação da Cláusula 5.ª do RCPTC, anexo ao AE, aos Autores que viram os contratos convertidos em contratos por tempo indeterminado.

d) É nula por excesso de pronúncia, na medida em que se pronuncia sobre questão não abrangida por divergência jurisprudencial e/ou entre as partes, devendo o Tribunal abster-se de se pronunciar sobre a invalidade da Cláusula 5.ª do RCPTC, anexo ao AE.

e) É nula por excesso de pronúncia, na medida em que o Tribunal extravasou os seus poderes de cognição ao aditar materialmente um novo facto à matéria de facto provada decidida pelo Tribunal a quo, devendo o Tribunal desconsiderar a conclusão de que “as categorias CAB Início e CAB-0 foram concebidas para contratados a termo”.

g) É nula por excesso de pronúncia, por apreciar, ainda que instrumentalmente, uma questão cujo conhecimento apenas pode ter lugar em exclusivo no âmbito da ação especial prevista no artigo 183.º do CPT, devendo o Tribunal abster-se de se pronunciar sobre a invalidade da Cláusula 5.ª do RCPTC, anexo ao AE. Aplicou a norma do art. 665º do CPC (ex vi dos artigos 679.º do CPC e 1.º, n.º 2, al. a) do CPT), com base numa interpretação inconstitucional, no sentido de permitir a apreciação em revista, e mesmo que a título instrumental, de questão relativa à validade de cláusulas de convenções coletivas de trabalho em ação comum diferente da ação especial de anulação e interpretação de cláusulas de convenções coletivas de trabalho prevista no artigo 183.º e ss. do CPT, por violar o artigo 20.º, nºs 1 e 4, da CRP.

h) Assenta numa interpretação inconstitucional do artigo 136.º do Código do Trabalho de 2003 e do artigo 146.º, n.º 1, do Código do Trabalho de 2009, no sentido de que, perante uma desigualdade de tratamento de trabalhadores, é possível refazer uma cláusula de uma convenção coletiva e, em concreto, criar um novo regime de progressão na carreira, com eliminação de algumas categorias remuneratórias, violando o princípio constitucional da proporcionalidade, da autonomia negocial coletiva e o direito fundamental da Recorrida à livre iniciativa económica, consagrados nos artigos 18.º, 56.º,n.º 3 e 61.º, n.º 1, da Constituição, devendo o Tribunal optar por uma solução menos gravosa através da determinação de que as categorias CAB inicial e CAB 0 abrangem trabalhadores contratados sem termo.

i) Padece de manifesto lapso e erro de julgamento, em virtude da aplicação incorreta dos cânones hermenêuticos previstos no artigo 9.º do CC, devendo ser reformada a decisão, atendendo-se a todos os relevantes elementos de interpretação (literal, histórico, sistemático e teológico), de forma a uniformizar jurisprudência no sentido de que a correta interpretação das Cláusulas 4.ª, n.º 3, e 5.ª, n.º 1, do RCPTC, anexo ao AE, é de que os níveis de CAB-Início e CAB-0 não são exclusivos dos trabalhadores contratados a termo, pelo que a conversão dos respetivos vínculos em contratos de trabalho por tempo indeterminado não pode determinar, de modo imediato e automático, a evolução salarial para CAB-1

j) Padece de manifesto lapso e erro de julgamento, em virtude da decisão de não proceder ao reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça, devendo ser ordenado o reenvio prejudicial das questões elencadas no artigo 259.º das contra-alegações de recurso da Recorrida para o Tribunal de Justiça.

Termos em que, apreciando cada uma das questões supra elencadas, deverão V. Ex.as julgar procedente, por provada, a presente reclamação e, em consequência, suprir as nulidades do Acórdão referidas supra e, bem assim, proceder à reforma da decisão, nos termos do disposto no artigo 671.º do CPC.”

Em resposta dir-se-á o seguinte:

Como se refere no Acórdão ora objeto da presente reclamação:

“No presente recurso está em causa saber:

a) se, face ao Regulamento da Carreira Profissional de Tripulante de Cabine1, sendo os contratos de trabalho considerados sem termo desde o seu início (por ter sido declarado nulo o respetivo termo), os Autores deveriam ter sido colocados desde essa data na categoria de CAB 1;

b) e, em consequência, se os Autores têm direito ao pagamento das diferenças salariais a título de vencimento base e demais prestações complementares.”

Com efeito, é esse o objeto do recurso, face às conclusões do Recorrente, sem prejuízo de questões de que o Tribunal possa conhecer oficiosamente.

Para a resposta a estas questões e, desde logo, à primeira delas era necessário interpretar as cláusulas relevantes do AE, mormente as cláusulas 4.ª e 5.ª. Aliás, as suas contra-alegações a ora Reclamante reconhece isso mesmo ao afirmar que “na pretensão recursiva dos Recorrentes, está em causa a interpretação da Cláusula 5ª do Regulamento de Carreira do PNC (“RCPTC”), anexo ao Acordo de Empresa (“AE”) celebrado entre a TAP e o SNPVAC (doravante “Sindicato” ou “SNPVAC”) publicado na 1.ª Série do BTE n.º 8 de 28.02.2006 – doravante “AE de 2006”) (artigo 7.º das contra-alegações) e “o cerne da controvérsia nos presentes autos – e o problema que, em concreto, fundamentou a presente revista excecional – coloca-se em torno da interpretação de tal Cláusula do RCPTC, anexo ao AE” (artigo 18.º das contra-alegações; ver também o artigo 39.º das contra-alegações).

Sendo inequívoco que o objeto do recurso implicava a necessidade de o Tribunal interpretar as cláusulas da convenção coletiva, o Reclamante defende, todavia, que o Tribunal não poderia declarar a nulidade de uma dessas cláusulas. Di-lo expressamente: “Para resolver tal conflito jurisprudencial e decidir o caso, este Tribunal não tem de (e, repita-se, não pode) apreciar a validade da Cláusula 5.ª do RCPTC, anexo ao AE, justamente porque apenas se lhe pede que interprete a cláusula, em cumprimento da hermenêutica jurídica, e se pronuncie sobre se a mesma abrange ou não, exclusivamente, os trabalhadores contratados a termo (artigo 82.º das contra-alegações; itálico no original).

E invoca duas razões para essa tese: “o Tribunal não podia, no Acórdão reclamado, ter-se pronunciado sobre uma questão – i.e., sobre a nulidade da Cláusula 5.ª do RCPTC, anexo ao AE – que não é objeto de divergência jurisprudencial e/ou entre as partes e, tão-pouco, integra o objeto do recurso” (artigo 70 da Reclamação); e não o poderia fazer porque existe no Código de Processo de Trabalho uma ação especial de anulação e interpretação de cláusulas de convenções coletivas de trabalho (artigos 183.º a 186.º do CPT).

Respondendo, dir-se-á desde já que a nulidade é de conhecimento oficioso pelo Tribunal e que a tese da Reclamante levaria ao resultado prático de o Tribunal ter de interpretar uma cláusula, chegar à conclusão de que a mesma é nula por violação de norma legal imperativa, mas não poder declarar a sua nulidade… E quanto à ação prevista nos artigos 183.º e seguintes do CPT diga-se, desde já, que a mesma é uma ação de anulação ou interpretação e a anulabilidade (e anulação) não se confunde com a nulidade. E a existência de uma tal ação não pode impedir um tribunal de conhecer oficiosamente a nulidade por violação de norma legal imperativa – não só a referida ação se refere apenas à anulação, como se assim fosse os tribunais teriam de aplicar cláusulas nulas desde que as partes da convenção optassem pela inércia…

Haveria segundo o Reclamante um manifesto erro de julgamento ao ter-se dado um peso excessivo ao elemento literal das cláusulas.

Em primeiro lugar, e como referiu recentemente um autor francês, a respeito da interpretação das convenções coletivas, o respeito pela letra da convenção é a primeira obrigação do intérprete2.

Ora, sublinhe-se, desde já, que as interpretações propostas pelo Reclamante longe de respeitarem a letra da lei, chegam, desassombradamente, a propor que se “suprima” o que está escrito nas cláusulas:

Afirma-se, com efeito, que o Tribunal poderia ter apenas considerado por não escrito o segmento “contratados a termo”, mantendo a fixação de todos os níveis salariais (n.º 45 da Reclamação) e dando-se por não escrito o segmento “contratados a termo” (n.º 51 da Reclamação).

Mas não há critério hermenêutico que permita dar por não escrito o que está escrito…

Acresce que é jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal de Justiça que a interpretação das convenções coletivas – pelo menos da sua parte normativa – se deve fazer com recurso aos critérios de interpretação da lei, pelo que não há que fazer apelo à vontade hipotética das partes nem que fazer “testes de interpretação” (ver o n.º 50 da Reclamação: “quanto à necessidade de o intérprete-aplicador ter de optar por (ou, no mínimo, testar) outro resultado interpretativo, ao invés de (ou antes de) desaplicar parcialmente uma cláusula do AE –, constitui um cenário de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC”).

A previsão de uma categoria concebida para contratados a termo não significa, de todo, que apenas contratados a termo tenham sido “colocados” nessa categoria, bem podendo haver também contratados por tempo indeterminado, mas simplesmente que os contratados a termo integram por o serem tal categoria. Não há, pois, qualquer alteração da matéria de facto tal como provada nas instâncias.

A nulidade da criação de categorias para os contratados a termo resulta da violação do artigo 146.º do CT (e da norma do Código de 2003 correspondente, o artigo 136.º n.º 1). Tratando-se de violação de norma legal imperativa a consequência é a nulidade da categoria violadora do princípio da igualdade de tratamento. Sem dúvida que tal princípio é um princípio fundamental no quadro do direito europeu, mas do que se trata, em primeira linha, é da violação de uma norma legal imperativa nacional. E reitera-se que não faz qualquer sentido útil um reenvio ao Tribunal de Justiça para o questionar sobre qual a sanção aplicável pela violação de uma norma nacional. Não há, pois, qualquer erro de julgamento (ou omissão de pronúncia) na recusa do reenvio.

A sanção ou consequência da nulidade é, em todo o caso, uma sanção eficaz, como exige o direito europeu; o que não seria eficaz seria, como pretende a Reclamante, no caso como dos autos de contratação a termo ilícito em que os Recorrentes foram colocados nas categorias CAB início e CAB zero por terem sido contratados a termo, concluir que embora a aposição de termo fosse ilícita, sempre teriam, na mesma, que ter as categorias CAB início e CAB 0 porque hipoteticamente também se fossem contratados logo de início por tempo indeterminado poderiam ter sido colocados em tais categorias (mas também poderiam ter sido colocados noutras…). Ao invocar a igualdade de tratamento o Reclamante esquece-se, repetidamente, que estamos nos presentes autos a tratar da reparação de danos causados com a sua conduta ilícita e, aliás, duplamente ilícita: ilícita na falta de fundamentação para o termo aposto ao contrato e ilícita na criação de categorias para contratados a termo.

Não existe, tampouco, qualquer violação da autonomia negocial coletiva, já que esta não é omnipotente e não está acima da lei, tendo de respeitar as normas legais imperativas, mormente em matéria de igualdade e não discriminação, como se retira, por exemplo, do artigo 26.º do Código do Trabalho. E não há qualquer violação do contraditório tendo as questões relevantes sido tratadas nas contra-alegações, como também na possibilidade de resposta ao Parecer do Ministério Público.

Decisão: Negado o pedido de reforma e indeferida a reclamação.

Custas pelo Reclamante

Lisboa, 25 de junho de 2025

Júlio Gomes

Paula Leal de Carvalho

Mário Belo Morgado

Descritores

Reforma do Acórdão

Reclamação

Reenvio prejudicial

Interpretação de convenção coletiva

Nulidade de cláusula da convenção coletiva

Violação de norma legal imperativa.

Sumário

Sumário

1. Se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma, sem necessidade de mais indagações.

2. Para decidir qual deveria ser a qualificação a atribuir às Autoras na sequência do facto ilícito de que foram vítimas, o Tribunal não podia deixar de interpretar o acordo de empresa e as cláusulas respeitantes à categoria e à carreira.

3. Se no decurso desse labor interpretativo o Tribunal chegar à conclusão de que cláusulas do referido acordo de empresa são nulas, não está impedido de afirmar essa nulidade e de dela retirar as devidas conclusões, pela existência no Código do Processo de Trabalho de uma ação de anulação e interpretação de cláusulas de convenções coletivas de trabalho, tanto mais que a nulidade é de conhecimento oficioso.

4. A interpretação de um acordo de empresa português e das consequências da violação por este de uma norma legal imperativa nacional não justificam qualquer reenvio prejudicial, pelo que não houve nesta sede qualquer omissão de pronúncia ou erro de julgamento.

5. A autonomia negocial coletiva, constitucionalmente consagrada, não é ilimitada e não pode pôr em causa princípios fundamentais e normas legais imperativas.

25 de junho de 2025

Júlio Gomes (Relator)

Paula Leal de Carvalho

Mário Belo Morgado

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1. Anexo ao Acordo de Empresa publicado no BTE n.º 8, de 28.06.2006.↩︎

2. FRÉDÉRIC ROUVIÈRE, La téléologie et l’objectif social de la convention collective, Revue de Droit du Travail 2023, pp. 688 e ss., p. 689: “La fidélité à la lettre est la première exigence du juriste et l’argument qui s’y rapporte a certainement plus de poids” [“a fidelidade à letra é a primeira exigência feita ao jurista e o argumento que se lhe refere é certamente o que tem mais peso”].↩︎