Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
278/19.6T8FAF.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
ACORDO
SENHORIO
ARRENDATÁRIO
ATUALIZAÇÃO DE RENDA
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
Data do Acordão: 03/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Para que relações contratuais constituídas antes da data de entrada em vigor do Novo Regime do Arrendamento Urbano possam ficar sujeitas ao regime aplicável aos contratos constituídos após a sua entrada em vigor terá de haver acordo expresso entre arrendatário e senhorio quanto a essa transição, sendo para isso insuficiente o acordo quanto à actualização da renda na primeira negociação encetada pelo senhorio com esse objectivo.
Decisão Texto Integral:

I – Relatório

I.1

AA, BB, CC, DD, e, EE, interpuseram recurso de revista do Acórdão proferido pela ... Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em 21 de Abril de 2022 que revogou a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância quanto aos pedidos de:

- serem os Réus condenados a absterem-se da prática de quaisquer actos que atentem contra aquele direito dos Autores;

- serem os Réus condenados a pagarem aos Autores uma indemnização pela ocupação ilícita e abusiva do apartamento T3 – recuado 3º piso -, à razão de 500.00€ por mês, desde Abril de 2018, ou se assim não se entender, desde Janeiro de 2019, e até efectiva desocupação do mesmo, calculando-se os montantes já vencidos em 5.500.00€, julgando-os improcedentes,

 requerendo a revogação do acórdão recorrido com confirmação da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.

Apresentaram alegações de recurso que culminam com as seguintes conclusões:

DO DIREITO:

1. O novo regime do arrendamento urbano (NRAU) consta da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro, sendo que, relativamente às normas transitórias, importa ter em conta o disposto art.º 27.º do NRAU que com respeito aos contratos com fins habitacionais celebrados antes da vigência do Decreto-Lei 321-B/90 de 15 de Outubro (RAU), dispõe que aos mesmos se aplicam as normas previstas nesse capítulo, onde se inserem os art.º 30.º a 37.º que definem as regras a observar quando o senhorio pretenda usar da faculdade de atualizar a renda e de fazer transitar o contrato de arrendamento para o regime do NRAU.

2. O art.º 30.º do NRAU confere ao senhorio a iniciativa de despoletar a atualização da renda e a passagem do contrato de arrendamento para o regime do NRAU, comunicando-o ao arrendatário com os elementos previstos nesse artigo, o que é condição de eficácia da comunicação.

3. A esta comunicação deve o arrendatário responder no prazo e nos termos previstos no art.º 31.º, podendo aceitar ou opor-se à renda, e neste último caso, pode propor nova renda, e pronunciar-se quanto ao tipo e duração do contrato (nº3 alíneas a), b) e c)), e ainda, invocar a previsão do n.º 4, ou seja, ter 65 ou mais anos de idade ou ter um rendimento anual bruto corrigido (RABC) inferior a 5 retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA), desta forma podendo limitar os efeitos por aquele pretendidos, nos termos previstos no art.º 35.º e 36.º

4. Caso o arrendatário se oponha ao valor da renda, propondo outro valor e opondo-se também ao tipo e duração do contrato, pode o senhorio, comunicar se aceita ou não a proposta, sendo que, se declarar que aceita o valor proposto da renda, o contrato fica submetido ao NRAU a partir do 1º dia do 2º mês seguinte ao da receção, pelo arrendatário da comunicação, de acordo com o tipo e a duração acordados e caso não estejam de acordo, quanto ao tipo ou duração do contrato este considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de 5 anos (art. 33º nº4 b)).

5. Revertendo ao caso dos autos, verificamos que por carta datada de 21 de Janeiro de 2013, os Autores (senhorios) comunicaram aos Réus (arrendatários) a sua intenção de que o contrato transitasse para o NRAU, que passasse a ser do tipo prazo certo de 1 ano, com novo valor da renda mensal no montante de 150,00€.

6. Por carta datada de 26 de Fevereiro de 2013, os Réus responderam à missiva que antecede, opondo-se ao valor da renda e propondo o valor de 100,00€ (art.31º, nº3 b)), opondo-se também quanto ao tipo e à duração do contrato (art.31º, nº3 c)), e invocando além do mais, o fundamento do art. 31º, nº4, a), ou seja, o facto de o RABC do seu agregado familiar ser inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA).

7. Por carta datada de 15 de Março de 2013, os Autores (senhorios), comunicaram que aceitavam a renda proposta pelos Réus, aludindo além do mais que, como não houve acordo quanto ao tipo e duração do contrato, consideravam que nos termos do art. 33º, nº4 al. b) do NRAU, o mesmo tinha o prazo de duração de cinco anos.

8. No seguimento de tal missiva, os Réus (arrendatários) responderam por carta datada de 3 de Abril de 2013, onde declararam expressamente que, o contrato de arrendamento ficava submetido ao NRAU, com o valor da renda mensal de 100,00€, pelo período de 5 anos, valor esse devido a partir do 1º dia do 2º mês seguinte ao da receção da missiva que antecedia.

9. No caso em apreço, entendeu o Tribunal recorrido que, um declaratário normal, colocado na posição dos senhorios, ao receber aquela missiva, de resposta à por eles emitida a 15 de Março de 2013, deveria entendê-la, como uma resposta, confirmando o valor da renda e ainda o período de 5 anos de contrato, em razão da inexistência de acordo quanto ao tipo e duração do contrato, ou seja, 5 anos que resultam do art. 33º, nº4 b) do NRAU, por citado na sua carta.

10. Todavia, não podemos concordar com tal entendimento.

11. De acordo com o art.236º, nº1 do CC, o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, perante o comportamento do declarante.

12.  A favor de que o sentido negocial é o de que o arrendamento transitou para o NRAU, concorre fundamentalmente o facto assaz, relevante e muito significativo de resultar desde logo da letra da lei, excluindo desse modo a interpretação que não tenha na letra da norma um mínimo de correspondência. Conforme dispõe o art. 33º, nº4 do NRAU, se o senhorio aceitar o valor da renda proposto pelo arrendatário, (os Réus propuseram 100,00€, que os Autores aceitaram), o contrato fica submetido ao NRAU a partir do 1º dia do 2º mês seguinte ao da receção da missiva pelo arrendatário, sendo que na falta de acordo quanto ao tipo e duração acordados -, repare-se que os Autores pretendiam que fosse pelo prazo certo de 1 ano, e os Réus opuseram-se -, considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de cinco anos.

13. Outrossim, a favor e em segundo lugar, temos essencialmente a declaração expressa dos Réus (arrendatários), na carta datada de 3 de Abril de 2013, que não permite, salvo melhor opinião, outro entendimento que não seja o de que as partes quiseram efetivamente fazer transitar o contrato de arrendamento para o NRAU (cfr. facto provado em I)).

14. Se não era essa a sua vontade real, então, como autor da declaração, tinha de a deixar clara. Com efeito, é mais fácil ao declarante evitar uma declaração não coincidente com a sua vontade do que ao declaratário aperceber-se da vontade real do declarante (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Fevereiro de 1988, BMJ, 374, 436).

15. Na dimensão valorativa das regras da experiência comum, entendemos que, se a vontade real dos Réus não era aceitar a transição integral e efetiva do contrato de arrendamento para o NRAU, tinham pois que, na carta de 3 de Abril de 2013, referir expressamente o contrário, reiterando a posição que inicialmente tomaram quando se opuseram à transição para o NRAU, mas não foi isso que sucedeu.

16. Em face da declaração dos senhorios que desde o início manifestaram a sua intenção de transitar o contrato de arrendamento para o NRAU, não se pode atender a qualquer outro sentido, esta última declaração dos Réus, que não fosse a concordância com a transição para o NRAU, como aliás, sempre foi a pretensão dos Autores, e como os Réus expressamente aceitaram.

17.  Face ao exposto, com a transição para o regime do NRAU, o contrato passou a estar sujeito ao regime dos contratos de arrendamento com prazo certo, previsto nos arts. 1095º a 1098º do Código Civil, e ficou sujeito ao prazo proposto pelo autor de cinco anos.

18. Considerando que os Autores (senhorios) por carta datada de 18 de Outubro de 2016, comunicaram que não pretendiam renovar o contrato de arrendamento ao fim do prazo de 5 anos, significa que observaram a antecedência mínima de 120 dias, prevista na alínea b) do nº 1 do art. 1097º do Código Civil, pelo que o contrato de arrendamento foi validamente cessado em 1 de Maio de 2018.

19.  O douto acórdão recorrido, decidindo como decidiu, violou, frontalmente, o disposto nos artigos 236º, nº 1 do CC, e artigos 30º, 31º nº 3 a), b), e c) e nº4, e 33º nº 4 b) da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro.

20. Pelo que, a decisão proferida pelo Tribunal “ad quem” deverá ser revogada e substituída por outra que julgue procedentes os pedidos formulados sob as alíneas c) e d).

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se em consequência o douto acórdão recorrido e substituindo-o por outro que, julgue procedentes os pedidos formulados sob as alíneas c) e d), com as consequências legais.

Os recorridos apresentaram contra-alegações defendendo a confirmação do acórdão recorrido que terminaram com a formulação das seguintes conclusões:

1. A única questão suscitada pelos Recorrentes trata-se de uma questão de interpretação e de direito e prende-se com a alegada transição do contrato para o regime integral do NRAU.

2. A questão suscitada é a de saber se o contrato em causa passou a reger-se, sem qualquer restrição, pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na sequência das comunicações trocadas entre as partes.

3. A pretendida aplicação do NRAU ao contrato em causa, constitui pressuposto essencial da pretensão dos Autores em fazerem cessar a vigência daquele, por oposição à renovação do mesmo, comunicada aos Réus em 18 de Outubro de 2016.

4. Salvo melhor e douto entendimento, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães reflete uma correta e adequada aplicação do direito aos factos, consubstanciando uma decisão correta, justa e fundamentada.

5. A pretensão dos Autores/Recorrentes encerra uma tentativa de claro aproveitamento, com recurso a uma interpretação enviesada da lei e das comunicações trocadas entre senhorios e inquilinos.

6. O contrato em causa não ficou submetido ao regime do NRAU, com os efeitos e consequências que os Autores lhe pretendem atribuir (para o fazê-lo cessar por via da oposição à renovação).

7.As comunicações trocadas entre senhorios (os Autores) e os inquilinos (os Réus) e cujo teor foi dado como provado nos pontos G) a K) dos factos provados, não são suscetíveis de fazerem operar a transição do contrato de arrendamento para o regime integral do NRAU, sem as especificidades constantes do seu regime transitório.

8. Tal como foi dado como provado no ponto G), os Réus haviam já manifestado, em 26 de Fevereiro de 2013, a sua oposição a que o contrato de arrendamento transitasse para o regime do NRAU, bem como ao respetivo prazo de duração do contrato proposto pelos senhorios, comunicando que "...o contrato manter-se-á sob o mesmo tipo e duração."

9. Concomitantemente, os Réus comunicaram aos Autores/Senhorios, que o rendimento anual bruto corrigido do seu agregado familiar era inferior a 5 retribuições mínimas nacionais anuais.

10.  Após nova comunicação por parte dos Autores (a que se encontra referida e transcrita no ponto H) dos factos provados) os Réus confirmaram que a renda mensal passaria a ser de "...€ 100,00 mensais, pelo período de 5 anos, valor esse devido a partir do 1º dia do 2º mês seguinte ao da receção da missiva em causa."

11. Pelo que, é evidente que a referência ao "...período de 5 anos..." refere-se ao tempo de vigência da nova renda e não a qualquer aceitação de que o contrato passasse a ter um prazo certo de 5 anos.

12. Não é despropositada a construção frásica em causa, em que ao valor dos € 100,00 mensais e ao "...período de 5 anos..." escreve-se "...valor esse...", indicando, precisamente, que tudo se reporta ao valor da renda e sua respetiva duração.

13. O facto de em tal comunicação escrever-se que "...fica o contrato de arrendamento do imóvel em causa submetido ao NRAU..." nada mais é do que a exata expressão da letra da lei.

14. O sentido da comunicação em causa (a constante do ponto I) dos factos provados) não pode ser entendido como uma aceitação dos Réus em transitar o contrato de arrendamento, na íntegra, para o regime do NRAU.

15.  Os Réus manifestaram em momento e tempo próprios que se opunham a tal transição integral [aquando da primária comunicação em 26 de Fevereiro de 2013 - cfr. ponto G) dos factos provados], não tendo, evidentemente, que o repetir cada vez que os senhorios os decidiram interpelar para este assunto.

16.  A única questão que ficou em aberto foi a discussão do valor da renda e foi essa questão que se discutiu de seguida, ou seja, aquele que viria a ser o valor da renda naquele período atualizável de 5 anos, nos termos do artigo 35º da Lei 6/2006 (considerando que só após os tais 5 anos, os senhorios poderiam promover nova tentativa de transitar o contrato para o regime do NRAU).

17.  E daí que na carta identificada no ponto I) dos factos provados, os Réus tenham mencionado "o valor da renda mensal de € 100,00 pelo período de 5 anos, valor esse devido a partir do 1º dia do 2º mês seguinte ao da nossa recepção".

18.  Acresce que, em 26 de Fevereiro de 2013 e em resposta à comunicação de intenção de transição do contrato de arrendamento para o regime do NRAU por parte dos Senhorios, os Inquilinos manifestaram a sua Oposição a que o contrato transitasse para o tal regime e invocaram a circunstância de o RABC do seu agregado familiar ser inferior a cinco RMNA (tal como dado como provado no ponto G) dos factos provados), circunstância impeditiva da transição para o regime integral do NRAU.

19. Assim, os Senhorios apenas poderiam tentar uma nova investida para tal transição decorridos 5 anos, o que, manifestamente não fizeram.

20. Não podendo admitir-se que os senhorios, em sucessão de comunicações, esperando a desatenção e a pouca informação dos inquilinos forcem, com recurso a linguagem complexa e artifícios linguísticos, a transição do contrato para um regime que lhes é mais favorável, em manifesto atropelo dos direitos dos inquilinos que, no caso, são pessoas com idade avançada e situação económica difícil.

21. À única e válida comunicação com intenção de transição para o NRAU os inquilinos manifestaram a sua Oposição, sendo essa a manifestação de vontade que, por força da lei, pode ser valorada.

22.  Na verdade, se a jurisprudência Constitucional considera inconstitucional a atribuição de efeito cominatório à ausência de resposta do inquilino (quando ao mesmo não foram informadas as possibilidades de resposta e suas consequências) o que dizer de uma situação em que o inquilino se opôs expressa e perentoriamente a tal pretensão no momento próprio?

23.  Não tendo dado os Réus o seu acordo a que o contrato transitasse para o NRAU e comprovado que o seu RABC era inferior a 5 RMNA, o contrato de arrendamento em apreço manteve-se sob o regime vinculístico, com prazo indeterminado, sem prejuízo da atualização de renda (cfr. artigo 36º, n.º 1, do NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012).

24.  Não podiam, assim, os senhorios opor-se à sua renovação, pois que a oposição à renovação só é aplicável aos contratos de arrendamento com prazo certo – cfr. artigos 1096º, n.º 1 e 1097, n.º 1, ambos do Código Civil, na redação introduzida pela mesma Lei n.º 31/2012.

25. Por conseguinte, ao contrário do que os Recorrentes sustentam, o douto Acórdão recorrido decidiu sublimemente, ao decidir que tendo existido oposição por parte dos Réus inquilinos em momento próprio, o contrato de arrendamento em causa não transitou para o regime integral do NRAU e para o tipo de arrendamento com prazo certo, não sendo, por essa via, passível de cessação pela oposição à renovação manifestada pelos Autores.

26.  O recurso apresentado pelos Recorrentes carece, em absoluto, de fundamento pelo que os Recorridos estão convictos que Vossas Excelências, reapreciando os factos e subsumindo-os nas normas legais aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de julgar improcedente a Revista e de confirmar o douto Acórdão recorrido.


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I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

Nos termos conjugados do disposto no art.º 671.º, n.º1 do Código de Processo Civil o recurso é admissível.


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I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão:

1. O contrato de arrendamento para fins habitacionais em causa nestes autos passou a reger-se, sem qualquer restrição, pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na sequência das comunicações trocadas entre as partes?.


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I.4 - Os factos

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

A. Nos dias .../.../1981 e .../.../2010 faleceram, respectivamente, FF e GG, sendo os AA. seus herdeiros.

B. Faz parte do acervo hereditário daquela herança o seguinte prédio urbano, sito na Rua ..., freguesia e cidade ...: casa de rés-do-chão, primeiro e segundo andares, com logradouro, a confrontar do norte com HH, sul e nascente com o Parque Municipal Desportivo, e poente com a estrada municipal, descrito na conservatória do registo predial sob o nº 3803 e inscrito na matriz sob o artigo 7018.

C. Há mais de 15 e 20 anos que os Autores, por si e antecessores, estão na posse, uso e fruição do aludido prédio; pagando os impostos sobre ele incidentes; dando-o de arrendamento e recebendo as respectivas rendas; o que tudo sempre têm feito, à vista e com o conhecimento de todos, sem oposição e interrupção, na firme convicção de que estão e sempre estiveram, bem como toda a gente, no exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre tal prédio.

D. Os RR. residem num apartamento T3 – recuado – correspondente ao último piso do prédio identificado em B), tendo sido celebrado em 1975 o contrato de arrendamento.

E. A R. mulher habita nesse imóvel desde o início do contrato de arrendamento, tendo os RR. sucedido na posição de arrendatários após o óbito dos primitivos arrendatários, II e mulher, pais da R., tendo os senhorios reconhecido essa transmissão.

F. No ano de 2016, a renda paga pelos RR. fixava-se em 100,00 € mensais, que os RR. continuam a pagar aos AA. e estes a emitir os respectivos recibos.

G.  Com data de 26 de Fevereiro de 2013, os RR. enviaram a JJ, na qualidade de cabeça de casal da herança de GG, uma carta registada com aviso de recepção, com o seguinte teor, no que interessa para a economia da presente decisão: “acusamos a recepção da vossa missiva datada de 21 de Janeiro de 2013 e por nós recepcionada em 28 de Janeiro de 2013, na qual Vossa Ex.ª comunica a sua intenção que o contrato de arrendamento (…) transite para o regime do NRAU e passe a ser do tipo prazo certo – 1 ano, com novo valor da renda mensal de 150,00 €. Em resposta à mesma importa dizer que (…) no ano civil anterior o rendimento anual bruto corrigido (RABC) do meu agregado familiar ter sido inferior a 5 retribuições mínimas nacionais anuais, conforme certidão emitida pelo serviço de finanças, que anexo (…). Mais informo a V.ª Ex.ª que me oponho a que o contrato de arrendamento transite para o regime do NRAU, bem como ao valor proposto e respectivo prazo de duração do contrato, pelo que este manter-se-á sob o mesmo tipo e duração. Pelo que a V.ª missiva não cumpre os requisitos legais para operar o aumento da renda pelo que propomos o valor 100,00 € mensais. (…)”.

H. Por carta registada com aviso de recepção datada de 15 de Março de 2013, dirigida aos RR, JJ, na qualidade de cabeça de casal, escreveu: “venho pela presente, face à vossa resposta relativa à iniciativa de actualização da renda (…) recebida em 1 de Março de 2013, (…) informá-los que aceito o valor da renda por vós proposto, de 100,00 € mensais. (…) Dado que aceito o valor da renda de 100,00 € mensais por vós proposto, o contrato de arrendamento fica submetido ao NRAU a partir do 1º dia do segundo mês seguinte ao da recepção da presente missiva (art. 33º, nº. 4, do NRAU), data em que é devido o valor da nova renda. E uma vez que não há acordo acerca do tipo ou da duração do contrato, esse considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de 5 anos, conforme dispõe o art. 33º, n.º 4, al. b) do NRAU.(…)”.

I)  Por carta registada com aviso de recepção datada de 3 de Abril de 2013, os RR. escreveram ao cabeça de casal JJ: “acusamos a recepção da vossa missiva datada de 15 de Março de 2013, e por nós recepcionada em 25 de Março de 2013, na qual V.ª Ex.ª comunica a aceitação da renda proposta na mossa missiva datada de 26 de Fevereiro de 2013, no valor de 100,00 € mensais. Assim, fica o contrato de arrendamento do imóvel em causa submetido ao NRAU, com o valor de renda mensal de 100,00 €, pelo período de 5 anos, valor esse devido a partir do 1º dia do 2º mês seguinte ao da nossa recepção da vossa missiva que a esta antecede. (…)”.

I. Por carta registada com aviso de recepção datada de 18 de Outubro de 2016, dirigida aos RR., JJ, na qualidade de cabeça de casal, escreveu que a herança não pretende renovar o contrato de arrendamento ao fim do prazo de 5 anos a contar de 3 de Abril de 2013, informando a oposição à renovação e da obrigação dos RR. restituírem o imóvel findo aquele prazo.

J. Por carta registada com aviso de recepção datada de 7 de Novembro de 2016, os RR. escreveram ao cabeça de casal JJ que a carta referida na alínea J) “carece de fundamento legal e de aplicação prática nos moldes requeridos”.

K.  Os RR não restituíram aos AA o locado arrendado, continuando a ocupá-lo e usufruí-lo.

L.  O apartamento fica no centro da cidade ..., numa zona com bons acessos, onde escasseiam apartamentos para arrendar.


Factos Não Provados, com interesse para a decisão da causa:

1 - Por contrato de arrendamento reduzido a escrito, celebrado em ... de Janeiro de 1996, GG - entretanto falecida - deu de arrendamento aos RR. o apartamento identificado na alínea D).

2 - Se os RR. não estivessem a ocupar o apartamento, os RR. tê-lo-iam arrendado, pois tiveram pretendentes para o efeito que ofereceram de renda 500.00€ por mês.

3 - Tratando-se, como se trata, de um apartamento com boas condições de habitabilidade, numa zona solheira, com boas vistas, muito populacional, o seu valor locatício é de 500.00€ por mês.

4 - Daí terem os RR. perdido, por ora, a título de rendas no período compreendido entre l de Abril de 2018 a Fevereiro de 2019, a quantia de 5.500.00€.

5 - Deixaram os AA. de descansar e dormir as suas noites em pleno, perderam o apetite, deixaram de conviver com os seus familiares e amigos.

6 - Pelos comentários e considerações efectuados pelos vizinhos e amigos que tinham conhecimento da oposição à renovação do contrato de arrendamento, sentindo-se envergonhados e humilhados por os RR. persistirem em continuar a ocupar o locado, sem que para o efeito estivessem legitimados, o que levou os AA. a evitarem de se deslocar em aquele local como faziam habitualmente, para não serem confrontados com a conduta dos RR.

7 - Os AA. fizeram obras no prédio.

8 – Os Autores usaram deliberadamente um documento falso, com o único propósito de pretenderem prevalecer-se de um regime legal, respeitante ao arrendamento, mais favorável.

9 - Ao instaurarem a presente acção, os Autores alegam factos que sabem não corresponderem à verdade, fazendo do processo e dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o único objectivo de entorpecer a acção da justiça.

10 - Os RR. litigam contra a verdade dos factos, de forma consciente.


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II - Fundamentação

1.      Aplicação do Novo Regime do Arrendamento Urbano aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro ao contrato de arrendamento para fins habitacionais

Tendo em conta a data de 25 de Março de 2013 em que terminaram as negociações entre locadores e arrendatários sobre este contrato de arrendamento para fins habitacionais relativa à intenção dos locadores de que  o contrato de arrendamento transite para o regime do NRAU, passe a ter prazo certo e sofra alteração de renda estava, então, em vigor o  Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro nas alterações que lhe foram introduzidas pelas Rectificação. n.º 24/2006, de 17/04 e Lei n.º 31/2012, de 14/08.

Nos termos do disposto no art.º 59.º Novo Regime do Arrendamento Urbano este regime aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.

Como resulta da análise das várias missivas trocadas entre senhorios e arrendatários cujo texto nos permite antever terem sido redigidas por juristas, conhecedores do regime legal antes indicado, as partes seguiram o esquema legal previsto para alteração da renda, do tipo e da duração do contrato.

Convém ter presente que o simples início deste processo de negociação tem como consequência expressa na lei que o contrato passa a ser regido pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) e que todos os contratos de arrendamento vigentes à data da entrada em vigor deste regime, são por ele regulados a partir da sua entrada em vigor.

Todavia o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) tem regulamentação diversa para os contratos celebrados antes e depois da sua entrada em vigor. Quanto ao valor da renda e sua actualização, tipo de contrato e duração há contratos em que as partes fixam livre e incondicionalmente estes três aspectos, e, contratos que atingirão num futuro que, pelo menos levará 7 anos a atingir, esse mesmo patamar. Mesmo as relações contratuais constituídas que subsistam à data de entrada em vigor do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), podem, por acordo das partes, prescindir desse período mínimo de 7 anos para se converterem em contratos de renda, duração e tipo de contrato incondicionados.

Os arrendatários, que pagam, às vezes há várias décadas, uma renda muito inferior à que teriam que pagar por um locado do mesmo tipo se celebrassem um contrato de arrendamento na data de entrada em vigor do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), por regra, não querem suportar o custo de mercado para usufruírem desse bem, ás vezes também não podem suportar esse custo de mercado, e o legislador ciente do custo financeiro da garantia do direito à habitação de todos, estabeleceu uma solução de compromisso na qual os senhorios suportam a grande fatia do apoio social à habitação, e, até o apoio à habitação a custos irrisórios a quem tenha condições de pagar o custo de mercado em muitos dos arrendamentos antigos.

Passamos de um longo período em que as rendas não sofriam alterações a uma fase de tímidas actualizações da renda e, está delineado um esquema temporal alargado que acabará por liberalizar o mercado de arrendamento.

Tudo para dizer que quer a posição assumida no processo pelos autores, quer a posição assumida no processo pelos réus é, em abstracto, juridicamente possível.

Como chegaram a um momento em que se defrontam duas posições diametralmente opostas sobre a transição/não transição do contrato para o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) aplicável aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor e aqueles que ainda anteriores obtiveram o acordo das partes para adoptarem esta regulamentação, tudo se circunscreve à definição do que acordaram as partes efectivamente.

Teremos de analisar as diversas declarações emitidas por senhorios e inquilinos e precisar qual o concreto sentido das declarações que proferiram, por nos termos do disposto 236º do Código Civil a declaração negocial valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, e, quando a vontade real do declarante seja conhecida pelo declaratário, ser de acordo com esta que vale a declaração emitida. Sabemos que “o declaratário normal, por cujos olhos se há-de configurar o sentido decisivo da declaração negocial é também o declaratário razoável, ou, mais precisamente, “o participante honesto do comércio jurídico”, na expressão de Larenz (cit. in S.T.J. 10/12/96 Bol.462/419).

O processo negocial foi desencadeado pelos senhorios que propuseram:

1 - que o contrato de arrendamento transite para o regime do NRAU,

2 - passe a ser do tipo prazo certo – 1 ano,

3 - com novo valor da renda mensal de 150,00 € - carta de 21 de Janeiro de 2013.

Os arrendatários responderam em 26 de Fevereiro de 2013:

1. Oponho-me a que o contrato de arrendamento transite para o regime do NRAU,

2. Oponho-me ao prazo de duração do contrato,

3. Oponho-me novo valor da renda mensal de 150,00 €

4. Proponho novo valor da renda mensal de 100,00 €.

Os senhorios responderam em 15 de Março de 2013:

1. Aceito o valor da renda por vós proposto, de 100,00 € mensais.

2. Dado que aceito o valor da renda de 100,00 € mensais por vós proposto, o contrato de arrendamento fica submetido ao NRAU a partir do 1º dia do segundo mês seguinte ao da recepção da presente missiva (art. 33º, nº. 4, do NRAU), data em que é devido o valor da nova renda.

3. Dado que não há acordo acerca do tipo ou da duração do contrato, esse considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de 5 anos, conforme dispõe o art. 33º, n.º 4, al. b) do NRAU.

Os arrendatários responderam em 3 de Abril de 2013:

1 - Acusam a recepção da missiva anterior onde: “V.ª Ex.ª comunica a aceitação da renda proposta na mossa missiva datada de 26 de Fevereiro de 2013, no valor de 100,00 € mensais” e concluem:

2 - fica o contrato de arrendamento do imóvel em causa submetido ao NRAU,

3 - com o valor de renda mensal de 100,00 €,

4 - pelo período de 5 anos, valor esse devido a partir do 1º dia do 2º mês seguinte ao da nossa recepção da vossa missiva que a esta antecede.

Esta última comunicação dos arrendatários foi entendida pelos autores como contendo um acordo de que o contrato passava a reger pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) de forma incondicionada quanto à renda, ao prazo e tipo de contrato. Cremos que se trata de um equívoco de interpretação do sentido desta última comunicação. A referência de que fica submetido ao Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), na sequência das anteriores comunicações entre as partes tem apenas o alcance da sua submissão àquele regime de forma mitigada aplicável aos arrendamentos vigentes na data de entrada em vigor do NRAU, na fase 2, digamos, por ausência, expressamente referida pelos autores na missiva anterior, de acordo entre as partes quanto à alteração do tipo e duração do contrato. Não houve uma alteração da posição negocial dos arrendatários de que já que iam passar a pagar uma renda mensal superior, também passariam a aceitar alterar o prazo e o tipo do contrato. Nada nos autos indica de que terão efectuado qualquer alteração à sua posição inicial expressa em 26 de Fevereiro de 2013.

Os arrendatários invocaram que o rendimento anual bruto corrigido  do seu agregado familiar era inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais e fizeram-no claramente, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 35.º e 36.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, para beneficiaram da obrigação do senhorio ter que renovar este processo negocial, decorridos os cinco anos e ainda mais dois anos até, eventualmente, poder vir a denunciar o contrato de arrendamento, se a tal nada mais das condições de vida dos arrendatários se constituir como barreira intransponível, nos termos legais.

A mesma interpretação da declaração negocial foi atingida pelo tribunal recorrido, pelo que não enferma aquele acórdão do erro de julgamento que lhe vinha apontado, o que determina a sua confirmação.


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III – Deliberação

Pelo exposto, nega-se a revista, e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


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Lisboa, 16 de Março de 2023

Ana Paula Lobo (Relatora)

Afonso Henrique Cabral Ferreira

Isabel Salgado