Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
086153
Nº Convencional: JSTJ00031033
Relator: FERNANDES MAGALHÃES
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
FALÊNCIA
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ199610150861531
Data do Acordão: 10/15/1996
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N460 ANO1996 PAG164 - AC 11/96 DR IS-A DE 20-11-1996
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Área Temática: DIR CIV - DIR OBG.
Legislação Nacional: L 17/86 DE 1986/06/14 ARTIGO 12 N2.
CCIV66 ARTIGO 9.
DL 437/78 DE 1978/12/28 ARTIGO 7 A B.
Sumário : A salvaguarda legal consagrada na última parte do n. 2 do artigo 12 da Lei 17/86, de 14 de Junho, abrange os créditos privilegiados constituidos antes da sua entrada em vigor, independentemente da data em que é declarada a falência do devedor.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
O Instituto de Emprego e Formação Profissional (I.E.F.P.) interpôs recurso para o Tribunal Pleno do Acórdão de 21 de Outubro de 1993 proferido no recurso de revista n. 81634,
2. Secção invocando oposição com o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Junho de 1993.
Decidida que foi a existência da alegada oposição, prosseguiu o recurso seus regulares termos.
O recorrente nas suas alegações defende, em conclusão, que todos os créditos que tenham sido constituídos antes de 15 de Junho de 1986 gozam de preferência sobre os créditos a que se reporta a Lei 17/86 de 14 de Junho.
O Exmo. Procurador Geral Adjunto acompanha a posição do recorrente propondo assento com a seguinte redacção:
"A salvaguarda legal consagrada na última parte do n. 2 do artigo 12 da Lei 17/86, de 14 de Junho, abrange os créditos privilegiados constituídos antes da sua entrada em vigor, independentemente da data em que é declarada a falência do devedor".
Corridos os vistos cumpre decidir, já que nada há a dizer contra a decisão que declarou verificada a existência de oposição entre os dois aludidos acórdãos recorrido e fundamento.
Como se constata da análise dos dois arestos, e no que importa para a definição do conflito em causa, em ambos acórdãos proferidos em processo de falência, está questionada a graduação decorrente do concurso entre créditos resultantes de apoios financeiros concedidos pelo recorrente I.E.F.P. e créditos emergentes de contrato individual de trabalho, qualquer deles gozando de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário conforme o disposto respectivamente, no artigo 7, alíneas a) e b) do Decreto-Lei 437/78 de 28 de Dezembro e no artigo 12 n. 1 alínea a) e b) da Lei 17/86 de 14 de Junho.
E, como bem diz o Ministério Público, graduação concorrencial essa influenciada, no entanto, pelo disposto no artigo 12 n. 2 da dita Lei 17/86, quando relativamente
à preferência dos créditos dos trabalhadores, estatui que esta opera mas "sem prejuízo, contudo, dos privilégios anteriormente constituídos, com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da presente lei".
Na interpretação e aplicação da evidenciada salvaguarda legal, enquanto o douto acórdão recorrido a entendeu como pressupondo a exigência de reclamação de créditos privilegiados e ali ressalvados antes da entrada em vigor da citada lei (15 de Junho de 1986), ou, no mínimo, em processo de falência, a declaração desta antes dessa data; por sua vez, o douto acórdão fundamento reportou tal salvaguarda à data da constituição dos créditos objecto de privilégio, ou seja, independentemente da posterior localização no tempo da respectiva localização ou, pelo, menos, do decretamento da falência, circunstâncias que para o efeito, implicitamente, julgou irrelevantes.
Daí que, desse entendimento divergente, e, não obstante em ambos os casos, não só a constituição dos créditos do I.E.F.P. antecedera a data da entrada em vigor da Lei 17/86, como também as declarações de falência dos processos subjacentes e, consequentemente, as reclamações desses créditos serem posteriores a esse momento, enquanto o acórdão recorrido concedeu preferência na graduação aos créditos dos trabalhadores sobre os créditos do I.E.F.P., ao invés, no acórdão fundamento, estes prevaleceram sobre aqueles.
Sintetizando ainda mais, dir-se-à que a questão fulcral reside no sentido a dar à expressão constante da parte final do n. 2 do artigo 12 da Lei 17/86 de 14 de Junho ("... sem prejuízo, contudo, dos privilégios anteriormente constituídos, com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da presente lei"):
Se, conforme se fez no acórdão recorrido, com ela pretendeu o legislador marcar uma fase processual, forçosamente ocorrida em momento temporal anterior a 14 de Junho de 1986, a que os créditos anteriormente constituídos tenham de reportar-se.
Ou se, o contrário, com ela se visou tão só melhor explicitar o sentido e alcance da lei, sem o intuito de prejudicar o momento efectivamente relevante que é o da constituição do crédito e inerente privilégio.
Ora, pôe-se aqui, como é óbvio, um problema de interpretação da lei valendo para a sua solução os bem conhecidos princípios do artigo 9 do Código Civil.
Estabelece-se com efeito, neste, preceito legal que:
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema judicial, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete, o pensamento legislativo que não contenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa.
3. Na fixação e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e só sabe exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Como primeira nota a este propósito o dizer-se aqui que não colhe o argumento de pura matriz literal baseada numa ligação última da expressão"... com direito a ser graduados..." com a expressão que imediatamente a antecede "privilégios anteriormente constituídos..." condicionando-a na amplitude da sua carga supressiva, sob pena de então, ter de se concluir que ela não tem qualquer sentido útil, destituída que está de qualquer significado, pois, deixa por explicar a existência de uma vírgula a separar tais contíguas expressões, que bem pode ter como função o ser explicativa e reforçadora da ideia, por ventura, redundante de que a salvaguarda é dirigida aos créditos privilegiados e não a quaisquer outros.
Tal significa, além do mais, que não nos podemos quedar pela consideração deste único elemento, impondo-se que se tenha em conta a "ratio legis", isto é, se procure determinar o sentido da norma em função da própria razão de ser dela ou do seu sentido prático.
É sabido, como diz Engish, in Introdução ao Pensamento Jurídico, 2. ed., pág. 112 "o preceito da lei deve na dúvida ser interpretado de modo a ajustar-se o mais possível às exigências da vida em sociedade e ao desenvolvimento de toda a nossa cultura".
Como salienta o Prof. Castanheira Neves, in Metodologia Jurídica, Problemas Fundamentais, pág. 84," o problema jurídico - normativo da interpretação não é o de determinar a significação, ainda que significação jurídica, que exprimam as leis ou quaisquer normas jurídicas, mas o de obter dessas leis ou normas um critério prático normativo adequado de decisão dos casos concretos (como critério - hipótese exigido, por um lado, e a submeter, por outro lado, ao discurso normativamente problemático do juízo decisório desses casos).
Uma boa interpretação da lei não é aquela que, numa pura perspectiva hermenêutica-exegética, determina correctamente o sentido textual da norma; é antes aquela que numa perspectiva prático - normativa utiliza bem a norma como critério de justa decisão do problema concreto".
Há, pois, que surpreender em derradeira análise, uma interpretação do segmento normativo em que se contêm a excepção legal, que, sem esquecer, por um lado a justa ponderação dos interesses em jogo, e, por outro, a certeza do direito, se indentifique com uma solução compatível com a letra e o espírito da lei.
E nesta conformidade temos desde logo que acentuar que a circunstância de um direito de crédito na altura da sua constituição ter automaticamente associado, por força da lei, num privilégio creditório, é sua qualidade intríseca, bem pouco ou nada tem a ver, por lhe serem alheias, com a eventualidade da sua reclamação, verificação ou graduação em processo de falência.
Isso quer dizer que se tem de afastar a solução adoptada no acórdão recorrido na medida em que marca num momento temporal injustificado para o serem ou não privilegiados os créditos em questão e como tal considerados na competente graduação.
E não se pode olvidar, no concernente à certeza do direito a confusão que gera tal solução, pois, tendo ela excluído como momento relevante o da constituição do crédito e inerente privilégio, deparam-se-nos quatro momentos jurídico - processualmente relevantes, todos eles sustentáveis e que se podem, enfim escolher: o da sentença de declaração de falência; o da reclamação do crédito; o da sua verificação; e o da sentença da sua graduação.
Mas para além disto (e como até o próprio acórdão recorrido não deixa de lembrar) não se afigura justo que, no confronto entre um crédito derivado do financiamento de um projecto (de promoção e manutenção de postos de trabalho) e os créditos dos beneficiários desse projecto, o primeiro seja preterido nas relações entre si.
E, assim, os créditos do recorrente I.E.F.P. resultantes de apoios financeiros para acções de manutenção e promoção do emprego, concedidos em data muito anterior à da entrada em vigor de Lei 17/86 e gozando, por essa razão, de privilégio mobiliário e imobiliário por força do artigo 7, alíneas a) e b) do Decreto-Lei 437/78 de 28 de Dezembro, estão cobertos pela salvaguarda legal da parte final do n. 2 do artigo 12 da Lei 17/86, por preencherem o respectivo requisito temporal.
Esta é, sem sombra de dúvida a solução, desde logo por melhor proteger as fundadas expectativas do credor, expectativas essas reforçadas no caso "sub judice", atenta a natureza e finalidade dos créditos concedidos.
Como refere o Prof. Castanheira Neves ou "O actual problema metodológico da interpretação jurídica, "Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 117, pág. 193," o legislador não usa palavras e exprime enunciados que terão, porventura, um sentido linguístico gramatical comum apenas para comunicar (digamos literalmente) em sentido comum, quer antes prescrever uma intenção jurídica através dessas palavras e desses enunciados".
A exigência da interpretação jurídica tem fundamento normativo e o que a faz imprescindível é o acto normativo da utilização metodológica (metodológica - normativa) de um critério jurídico no juízo decisório de um concreto problema normativo - jurídico.
Ou seja, o que se pretende com ela não é compreender, conhecer a norma em si, mas obter dela ou através dela o critério exigido pela problemática e adequada decisão justificativa do caso.
O que significa evidentemente que é o caso e não a norma o "prius" problemático - intencional e metódico (v. Prof.
Castanheira Neves; Revista citada, ano 118, pág. 258).
Ora, sendo assim, e tendo em conta uma interpretação teleológica, actual e razoável (cf. Engish, ob. cit.) há que ter como boa, no caso "sub judice" não a solução do acórdão recorrido, mas a solução oposta encontrada no acórdão fundamento.
Pelo exposto se concede provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido e se uniformiza a jurisprudência nos seguintes termos:
A salvaguarda legal consagrada na última parte do n. 2 do artigo 12 da Lei 17/86, de 14 de Junho, abrange os créditos privilegiados constituídos antes da sua entrada em vigor, independentemente da data em que é declarada a falência do devedor.
Sem custas.

Lisboa, 15 de Outubro de 1996.

Fernandes Magalhães.
Correia de Sousa.
Almeida e Silva.
Figueiredo de Sousa.
César Marques.
Sá Couto.
Aragão Seia.
Pais de Sousa.
Roger Lopes.
Martins da Costa.
Herculano Lima.
Costa Soares.
Machado Soares.
Miranda Gusmão.
Cardona Ferreira.
Mário Cancela.
Sampaio da Nóvoa.
Costa Marques.
Nascimento Costa.
Lopes Pinto.
Henriques de Matos.
Sousa Inês.
Ramiro Vidigal.
Metello de Nápoles.