Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
358/22.0GCSTS-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JORGE GONÇALVES (RELATOR DE TURNO)
Descritores: HABEAS CORPUS
PENA DE PRISÃO
CUMPRIMENTO DE PENA
PRISÃO ILEGAL
FUNDAMENTOS
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 12/26/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I - Tendo em vista que os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de se reconduzir, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2, do artigo 222.º, do CPP, o Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado, em jurisprudência uniforme, que importa apenas verificar: (a) se a prisão, em que o peticionário atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, proferida por autoridade judiciária competente; (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite; e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial.

II - A providência de habeas corpus não serve para sindicar a bondade da condenação transitada em julgado, razão por que tudo o que se alegue a esse respeito não tem, no contexto desta providência, qualquer cabimento. A única forma de alterar a condenação transitada é através do pedido de revisão da mesma, sujeito a tramitação própria e autónoma prevista nos artigos 449.º a 466.º do CPP - pedido que, a verificar-se, não tem efeito suspensivo, do processo ou da decisão, não lhe sendo aplicável o regime dos recursos ordinários.

III - Cumprindo o peticionário uma pena de prisão que lhe foi imposta por decisão judicial transitada em julgado e não tendo ainda decorrido o respetivo prazo, não se verifica uma situação de ilegalidade da prisão, sendo manifestamente infundada a petição de habeas corpus formulada

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 358/22.0GCSTS-A.S1

(Turno)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO

1. AA, com os restantes sinais dos autos, veio, pessoalmente, por meio de requerimento manuscrito, com invocação do artigo 220.º do Código de Processo Penal, apresentar pedido de habeas corpus “em virtude de prisão ilegal”, alegando, em suma, não ter cometido o crime por que foi condenado.

2. Foi prestada a informação referida no artigo 223.º, n.º1, parte final, do Código de Processo Penal (doravante, CPP), nos termos que, seguidamente, se transcrevem:

«Perante a providência de “Habeas Corpus” apresentada pelo condenado AA no dia de ontem no Tribunal da Relação do Porto, nos termos do disposto nos artigos 222.º e 223.º do Código de Processo Penal, cumpre-me informar V. Ex.ª da tramitação processual seguinte:

1.º Por sentença proferida em ... de ... de 2024, AA foi condenado, entre o mais, numa pena de dois anos e sete meses de prisão efectiva pela prática de um crime de violência doméstica, p. e .p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.

2.º O arguido interpôs recurso da sobredita decisão, o qual veio a ser admitido no dia ... de ... de 2024.

3.º A sentença veio a ser integralmente confirmada por Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto no dia ... de ... de 2024, transitado em julgado no dia ... de ... de 2024.

4.º No dia ... de ... de 2024, o arguido deu entrada no Tribunal da Relação do Porto de um requerimento subscrito por mão própria, em que solicita a anulação da sentença.

5.º No dia ... de ... de 2024 foi proferido douto despacho, pela Veneranda Relação do Porto, que determinou se informasse o arguido que os motivos de discordância quanto ao Acórdão deveriam ser formulados em requerimento subscrito pelo Il. Defensor.

6.º Em face do trânsito em julgado da decisão condenatória, no dia ... de ... de 2024 foi proferido despacho que determinou a emissão de mandados de detenção e condução do arguido ao estabelecimento prisional para cumprimento da pena de 2 (dois) anos e (sete) meses de prisão em que foi condenado nos presentes autos.

7.º No dia ... de ... de 2024 o condenado deu entrada voluntária no Estabelecimento Prisional ....

8.º No dia ... de ... de 2024 a pena foi liquidada.

9.º Em ... de ... de 2024, o arguido apresentou um requerimento, subscrito por si, para “interposição de recurso de revisão”, na sequência do qual foi proferido despacho com o seguinte teor: «Tendo o arguido apresentado “recurso de revisão” através de requerimento por si subscrito, dê conhecimento do mesmo ao seu defensor a quem se concede o prazo de 10 dias para requerer o que tiver por conveniente quanto à observância dos pressupostos formais exigidos pelo art. 451.º do CPP.».

10.º Por fim, no dia ... de ... de 2024, o defensor informou os autos de que apresentou pedido de escusa de patrocínio à Ordem dos Advogados.

Se bem se alcança o teor da argumentação do requerente, este sustenta o pedido de habeas corpus na alegação de não ter praticado os factos que lhe foram imputados e pelos quais foi condenado. Sem prejuízo de tal fundamentação não se subsumir aos fundamentos tipificados no art. 222.º n.º 2 do CPP, sempre se diga que, como avulta dos marcos processuais acima enunciados, o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado, proferida pelo tribunal competente e confirmada pelo tribunal superior, radica em factos tipificados na lei como ilícito criminal e a prisão não se estendeu além dos prazos fixados.

Tudo para concluir, por linear – e sempre sob ressalva do superior entendimento de V. Ex.ª – que o presente habeas corpus é manifestamente infundado, devendo ser mantido o cumprimento da pena imposta ao arguido.

Remeta-se, de imediato, os presentes autos ao Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, com certidão de todas as peças processuais acima elencadas.»

3. O processo encontra-se instruído com a documentação pertinente.

4. Realizou-se audiência, nos termos legais, após o que o tribunal reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Questão a decidir:

Saber se o peticionário se encontra, como alega, ilegalmente preso.

2. Factos

A matéria factual relevante para o julgamento do pedido resulta da petição de habeas corpus, da informação prestada, da certidão que acompanha os presentes autos e da consulta CITIUS do processo, extraindo-se os seguintes dados de facto e processuais (em súmula):

1.º Por sentença proferida em ... de ... de 2024, AA foi condenado, entre o mais, numa pena de dois anos e sete meses de prisão (efetiva) pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

2.º O arguido interpôs recurso da sobredita decisão, vindo a Relação do Porto, por acórdão de ... de ... de 2024, a negar provimento ao recurso, confirmando a decisão condenatória.

3.º No dia ... de ... de 2024, o ora peticionário apresentou na Relação do Porto requerimento por si subscrito, solicitando a anulação da sentença.

4.º No dia ... de ... de 2024 foi proferido despacho a determinar se informasse o arguido que os motivos de discordância quanto ao acórdão deveriam ser formulados em requerimento subscrito pelo respetivo defensor.

5.º No dia ... de ... de 2024, tendo em consideração o trânsito em julgado da condenação, foi proferido despacho que determinou a emissão de mandados de detenção e condução do arguido ao estabelecimento prisional para cumprimento da pena de 2 (dois) anos e (sete) meses de prisão em que fora condenado.

6.º No dia ... de ... de 2024, o condenado deu entrada voluntária no Estabelecimento Prisional ....

7.º A pena foi liquidada no dia ... de ... de 2024.

8.º Em ... de ... de 2024, o ora peticionário apresentou um requerimento, subscrito por si, para “interposição de recurso de revisão”, na sequência do qual foi proferido despacho com o seguinte teor: «Tendo o arguido apresentado “recurso de revisão” através de requerimento por si subscrito, dê conhecimento do mesmo ao seu defensor a quem se concede o prazo de 10 dias para requerer o que tiver por conveniente quanto à observância dos pressupostos formais exigidos pelo art. 451.º do CPP.»

*

3. Direito

3.1. Nos termos do artigo 27.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança, excetuando-se a privação da liberdade, no tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos previstos no n.º 3 do mesmo preceito constitucional.

O artigo 31.º da CRP consagra o direito à providência de habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer pela própria pessoa lesada no seu direito à liberdade, ou por qualquer outro cidadão no gozo dos seus direitos políticos, por via de uma petição a apresentar no tribunal competente.

A lei processual penal, dando expressão ao referido artigo 31.º da CRP, prevê duas modalidades de habeas corpus: em virtude de detenção ilegal e em virtude de prisão ilegal.

No caso, o peticionário invoca o artigo 220.º, relativo a “detenção ilegal”, preceito que, manifestamente, não é aplicável ao caso, pois não estamos perante uma “detenção” (medida, por natureza, precária), mas sim perante uma “prisão” na sequência de sentença transitada em julgado.

Dispõe o artigo 222.º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”:

«1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.»

A jurisprudência deste Supremo Tribunal vem considerando que constituem fundamentos da providência de habeas corpus os que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão (acórdão de 06.04.2023, proc. n.º 130/23.0PVLSB-A.S1, disponível em www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação).

Tem também decidido uniformemente o Supremo Tribunal de Justiça que a providência de habeas corpus, por um lado, não se destina a apreciar erros de direito, nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade (por todos, o acórdão do STJ, de 04.01.2017, proc. n.º 109/16.9GBMDR-B. S1, e jurisprudência nele citada) e, por outro, que a procedência do pedido pressupõe a atualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que é apreciado o pedido (entre muitos, o acórdão de 19.07.2019, proferido no proc. n.º 12/17.5JBLSB, com extensas referências jurisprudenciais).

Tendo em vista que os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de se reconduzir, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2, do artigo 222.º, do CPP, o Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado, em jurisprudência uniforme, que importa apenas verificar: (a) se a prisão, em que o peticionário atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, proferida por autoridade judiciária competente; (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite; e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (acórdãos de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TDPRT-A.S1, de 18.05.2022, proc. 37/20.3PJLRS-A.S1, e de 06.09.2022, proc. 2930/04.1GFSNT-A.S1).

3.2. O peticionário, tendo pendente mandado de detenção e condução a estabelecimento prisional, entregou-se livremente, em 18.09.2024, no Estabelecimento Prisional ..., para cumprimento da pena de prisão que lhe foi imposta.

A providência de habeas corpus não serve para sindicar a bondade da condenação transitada em julgado, razão por que tudo o que se alegue a esse respeito não tem, no contexto desta providência, qualquer cabimento.

A única forma de alterar a condenação transitada é através do pedido de revisão da mesma, sujeito a tramitação própria e autónoma prevista nos artigos 449.º a 466.º do CPP - pedido que, a verificar-se, não tem efeito suspensivo, do processo ou da decisão, não lhe sendo aplicável o regime dos recursos ordinários.

Perante o exposto, cumprindo o peticionário uma pena de prisão que lhe foi imposta por decisão judicial transitada em julgado e não tendo ainda decorrido o respetivo prazo, não se verifica uma situação de ilegalidade da prisão, sendo manifestamente infundada a petição de habeas corpus formulada.

3.3. O artigo 223.º, n.º6, do CPP, estabelece: «Se o Supremo Tribunal de Justiça julgar a petição de habeas corpus manifestamente infundada, condena o peticionante ao pagamento de uma soma entre 6 UC e 30 UC.»

A jurisprudência tem considerado, a propósito do recurso, que este é manifestamente infundado quando, através de uma avaliação sumária dos seus fundamentos, se pode concluir, sem margem para dúvidas, que está votado ao insucesso.

O mesmo critério deve ser utilizado para determinar quando uma petição de habeas corpus é “manifestamente infundada”, justificando a aplicação de uma sanção processual pecuniária, penalizadora do uso manifestamente censurável da providência por evidente ausência de pressupostos e fundamentos.

É o que ocorre no presente caso, em que é patente e indubitável, numa avaliação perfunctória dos fundamentos do pedido de habeas corpus, que a prisão em causa não é ilegal.

Em consequência, deve o peticionário ser condenado, para além da tributação devida nos termos do artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III, do Regulamento das Custas Processais, também numa soma, nos termos do artigo 223.º, n.º 6, do CPP, que, in casu, se fixa em 6 UC.

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III - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes de turno do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus ora em apreciação.

Custas pelo peticionário, com 3 UC de taxa de justiça (artigo 8.º, n.º 9, do R. Custas Processuais e Tabela III anexa), sendo ainda condenado, nos termos do artigo 223.º, n.º 6, do CPP, no pagamento de uma soma de 6 (seis) UC, a título de sanção processual.

Supremo Tribunal de Justiça, 26 de dezembro de 2024

(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Jorge Gonçalves (Relator)

Jorge Raposo (1.º Adjunto)

Maria de Deus Correia (2.ª Adjunta)

Mário Belo Morgado (Presidente)