Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 4.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MÁRIO BELO MORGADO | ||
Descritores: | JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO INFRAÇÃO DISCIPLINAR DEVER DE LEALDADE DEVER DE OBEDIÊNCIA DEVERES LABORAIS | ||
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Data do Acordão: | 02/01/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
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Sumário : | I. O dever de lealdade inclui um dever de honestidade, que implica uma obrigação de abstenção por parte do trabalhador de qualquer comportamento suscetível de colocar em crise a relação de confiança que deve pautar as suas relações com o empregador, enquanto corolário da boa-fé contratual. II. Dada a natureza fortemente fiduciária do contrato de trabalho, em regra assume especial significado a violação do dever laboral de lealdade, isto em função direta do grau de responsabilidade e posição hierárquica que o trabalhador detenha na empresa. III. Um dos AA. excercia funções como Sales Diretor, sendo o outro responsável pela gestão dos parceiros comerciantes. IV. Provou-se que os mesmos realizaram um negócio de compra e venda de veículos, com o recebimento dos pagamentos e o subsequente transporte das viaturas, sem prévia aprovação pelo departamento financeiro, em infração às regras estabelecidas pelo empregador, negócio que causou um prejuízo de cerca de 60.000,00 €, para além de custos de transporte e recondicionamento, em valor não apurado; bem como que os AA. não comumicaram ao departamento financeiro e aos seus superiores hierárquicos que já se mostrava efetuado o pagamento dos veículos, e entregues estes aos compradores, mormente em troca de e-mails e em reuniões convocadas para discutir os termos desse negócio. V. Grave e culposamente, os AA. violaram os deveres laborais de obediência, lealdade e de promover atos tendentes à melhoria da produtividade da empresa. VI. Tendo em conta a imagem global dos factos, incluindo todas as suas circunstância e consequências, conclui-se – à luz de critérios de razoabilidade, exigibilidade e proporcionalidade – que com a sua conduta os AA. tornaram prática e imediatamente impossível a subsistência da relação laboral. | ||
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Decisão Texto Integral: | Revista n.º 625/21.0T8CSC.L1.S1 MBM/JG/RP Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça I. 1. E... e AA, em ações separadas cuja apensação foi, entretanto, determinada, impugnaram judicialmente a regularidade e licitude do seu despedimento, efetuado por FCA - Portugal, Lda. pedindo que: 2. A R. apresentou articulados de motivação dos despedimentos, alegando, em síntese, que os AA. procederam à venda de viaturas com perdas económicas sem aprovação do departamento financeiro, em desvio dos procedimentos instituídos e ocultando tal circunstância da empregadora, em violação dos deveres de obediência, lealdade e de promover e executar atos tendentes à melhoria da produtividade da empresa. 3. Na 1.ª instância, a ações foram julgadas improcedentes. 4. Interposto recurso de facto e de direito pelos AA., o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), concedendo parcial provimento à impugnação da matéria de facto e, no mais, julgando procedente a apelação e revogando a decisão recorrida: a) Julgou ilícito o despedimento dos AA. b) Condenou a R. a reintegrar os AA., sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, bem como a pagar-lhes as respetivas retribuições mensais (incluindo subsídios de férias, Natal), vencidas e vincendas, desde a data do seu despedimento e até ao trânsito em julgado da decisão, deduzindo-se as quantias que cada um dos AA. tenha recebido a título de subsídio de desemprego, nos termos e para os efeitos do art. 390º, n.º 2, c), do Código de Trabalho. 5. A R. interpôs recurso de revista, sustentando, em resumo, nas conclusões da sua alegação, que a conduta dos recorridos configura justa causa de despedimento. 6. Os AA. contra-alegaram, pugnando pelo improvimento do recurso. 7. O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser negada a revista, em parecer a que as partes não responderam. 8. A única questão a decidir[1] é a de saber se existe justa causa de despedimento. [2] E decidindo. II. 9. A matéria de facto fixada pelo acórdão recorrido é a seguinte:[3]1. O Trabalhador BB e o Empregador FCA - Portugal, Lda. celebraram contrato de trabalho em 02-11-2017; 2. O Trabalhador, enquanto Fleet & Business Sales Diretor, era responsável por toda a Área de Frotas, Rent-a-Car & Usados, e pela gestão da equipa afecta a esta área, que integra o Trabalhador AA, Responsável de Rent a Car & Usados, e CC, Key Account Manager de Usados; 4. O Trabalhador BB recebeu uma comunicação emitida pelo Empregador, em 22 de Novembro de 2018, com o título «Comportamentos contrários aos procedimentos internos / deveres laborais», com o seguinte teor: 5. O trabalhador AA e o empregador FCA - Portugal, Lda. celebraram contrato de trabalho em 28-08-2017; 6. O trabalhador AA iniciou o seu percurso profissional no Empregador no departamento logístico, como outsourcing; 7. O trabalhador AA prestava, desde Julho de 2019, a sua atividade profissional de Responsável no canal de vendas de carros para as empresas de renting e carros usados, no Departamento de Frotas & Usados do Empregador, sendo responsável pelas vendas de carros novos, pelo canal de venda Rent-a-car e pela venda de carros usados; 8. O trabalhador AA é o responsável pela gestão dos parceiros comerciantes, como seja a Consilcar e a Benecar, e superior hierárquico direto do trabalhador CC; (…) 14. O Empregador é uma empresa que se dedica, entre outros, à importação e distribuição de veículos automóveis do ... (anteriormente), incluindo atividades promocionais e de marketing, bem como de apoio à rede de concessionários; 15. O ..., do qual faz parte o Empregador, constitui um grupo industrial internacional e tem sede em Itália, designado doravante como HQ; 16. No Empregador existe, desde, pelo menos, 2017, um procedimento interno de venda de carros usados, quando se trata de vendas com perdas económicas, o qual é conhecido de todos os trabalhadores da área comercial do Empregador, incluindo os trabalhadores BB e AA, em função da respectiva área de actividade; 17. Após envio das condições comerciais (detalhe de viaturas e valores) por parte de qualquer elemento da área comercial do Departamento de Usados ao Departamento Financeiro (DD) e com conhecimento da Dekra e restante equipa de usados (CC, ou AA no caso de ser o Eng.º CC a submeter o detalhe) o Departamento Financeiro, se aprovar o negócio, valida e carrega os preços em sistema; 18. De acordo com esse procedimento, o Departamento de Carros Usados deve, sempre, previamente a qualquer transação que envolva perdas económicas ou descontos, validar com o Departamento Financeiro a operação, enviando para o Controller da área Financeira (neste caso, DD) a proposta de venda (com detalhe de viaturas e valores do negócio), para aprovação, validação e carregamento dos valores; 19. Caso o Controller de Departamento Financeiro esteja de acordo, deve inserir o preço no sistema, e informar o parceiro Dekra (empresa contratada para dar suporte à atividade de viaturas usadas), que verifica os danos dos veículos e também o parque logístico dos usados, criando um número de pedido; 20. Não existem faturações de viaturas sem validação do departamento financeiro, uma vez que é este que valida, carrega preços e submete à Dekra para posterior disponibilização e faturação no sistema SAP DEUS; 21. Em seguida ao pedido de encomenda e de carregamento de preços no sistema do Controller, a Dekra contacta a FCA Services (entidade financeira responsável por verificar a ordem de encomenda com o pagamento do cliente final), confirmando o prévio pagamento ou disponibilidade de plafond do cliente (para comerciantes ou concessionários, respetivamente), validando novamente em SAP as encomendas para que, com nova intervenção da Dekra, as viaturas tenham uma data de saída de parque (transporte) e consecutivamente faturadas; 22. Deste modo, os veículos em causa ficam fora do stock, faturados e totalmente pagos pelo comprador; 23. Em situações pontuais, sucedia que o pedido de transporte era realizado diretamente pelo Departamento de Usados à Dekra, sem envio de validação prévia do Departamento Financeiro para a Dekra, sem prejuízo de ser necessária, em todo o caso, a aprovação do Departamento Financeiro e o seu carregamento de preços para a faturação; 24. Em Julho de 2020, o Empregador emitiu e difundiu um documento intitulado «Procedimento do processo de aprovação de descontos», que, no que se reporta à atividade de viaturas usadas, tinha o seguinte teor: 25. Este controlo de vendas de carros usados com potenciais perdas económicas por parte do Departamento Financeiro destina-se a permitir que essas perdas fiquem, o mais possível, mitigadas; 26. A venda de usados depende das diretrizes e ambições comerciais estabelecidas pelo Diretor-geral para Portugal, EE, em funções desde 2015; 27. O Empregador, nos anos de 2013 a 2017, registou uma percentagem de entre 46% e 52% no canal de Rent-a-Car, relativamente ao volume total de vendas, o que gerou pressão sobre o stock de Usados, em virtude da retoma (buy-back) de viaturas pelo Empregador; 28. Na análise comparativa entre os valores do stock, o valor de mercado e os objetivos de venda, foi concluído pela equipa de Usados que a empresa registava um diferencial negativo de cerca de 13 milhões de euros entre o valor real e o valor de stock de Usados; 29. O Empregador apresentou, em 2019, o resultado de 32 milhões de euros e vendeu 8.120 viaturas usadas; 30. O Empregador vendeu, em 2020, 2.502 viaturas usadas; 31. De Março a Junho de 2020, vendeu 62 unidades de usados, ao passo que em período homólogo de 2019, o número ascendia a 2.186; (…) 35. Em 6 de Outubro de 2020, o Empregador recebeu, por parte de HQ, o objetivo de acabar o ano com zero unidades acima de 360 dias de stock, do modelo Alfa Romeo Giulia; 36. Em Outubro de 2020, a Ré dispunha de 57 carros usados da marca Alfa Romeo Giulia, os quais haviam sofrido danos enquanto se encontravam parqueados, devido a um fenómeno atmosférico (tornado) ocorrido em Setembro; 37. As viaturas em causa eram de 2016 (15), 2017 (32), 2018 (9), 2019 (1); 38. Em 13-10-2020, foi realizada, pelo Departamento de Usados, uma primeira abordagem ao cliente Benecar, no sentido de avaliar as condições comerciais necessárias para escoar o maior número de viaturas junto desse cliente; 39. Tal abordagem inseria-se numa estratégia de proteção do valor de mercado das viaturas, por força de redução dos clientes através dos quais as mesmas eram vendidas; 40. A Benecar propôs adquirir, com um valor médio de 16.500,00€ (acrescido de IVA), 30 unidades Alfa Romeo Giulia (…); 41.O preço proposto pelo cliente Benecar era inferior, em quantidade desconhecida, ao valor definido para a venda dos automóveis; 42. No dia 23 de Outubro de 2020, pelas 16h00, foi realizada uma reunião (…) com a participação de EE (Director-Geral Delegado para Portugal) DD (Controller Financeiro) e ambos os Trabalhadores; 43. Nesta reunião, foi abordado o tema de escoamento Alfa Romeo Giulia, com um plano de ação proposto pela equipa de usados, vendendo as viaturas a um preço inferior ao valor tabelado para a sua venda, compensado pela previsão do excedente de 299.568,66 a receber da Seguradora, como indemnização pelos danos causados por tornado, e o valor da avaliação desses mesmos danos; 44. A ideia referida foi aplaudida por EE, que defendeu que o excedente da indemnização de 3000.000,00 constituía «um proveito extraordinário da atividade dos Usados que estava a ser inteligentemente reinvestido», criando nos Trabalhadores a impressão da viabilização da ideia de negócio e determinando que o mesmo fosse fechado o mais rapidamente possível; 45. DD informou que o negócio teria de ser apresentado a FF, diretora financeira; 46. A 02-11-2020, foi anunciada a possibilidade de novo estado de emergência em Portugal, sem que houvesse qualquer resposta do Departamento Financeiro; 47. Os Trabalhadores BB e AA consideravam que a janela de oportunidade se encontrava cada vez mais estreita; 48. Em 03-11-2020, o responsável de zona de usados, CC, conseguiu concretizar a negociação de 27 unidades Alfa Romeo Giulia com caixa manual, com a Consilcar, com uma média de 17.500,00 € por viatura; 49. (…) 50. [Em 06-11-2020] o Trabalhador AA procedeu à renegociação das condições para venda com a Benecar, subindo de uma média de 16.500,00€ para 20.500,00€; 51. No dia 11 de Novembro de 2020, o cliente Benecar pagou 620.129,80 Euros pelo lote de 30 viaturas, que foi verificado no dia 20-11-2020, pela FCA Services; 52. No dia 11-11-2020, CC, por correio eletrónico, enviou para a Dekra, com conhecimento do Controller Financeiro (DD) e do Trabalhador AA, dois e-mails, contendo a descrição das viaturas, bem como o respetivo preço e orçamento, com o seguinte teor «(…) Enviar encomenda»; 53. No mesmo dia, CC, enviou, somente para a Dekra, um e-mail, dizendo «Podes pedir o transporte sff», sem autorização do Departamento Financeiro, carregamento de preços ou fatura de suporte à venda, tendo a Dekra iniciado a entrega dos citados veículos; 54. O trabalhador CC enviou o e-mail referido no facto 52. em cumprimento de ordens emanadas do trabalhador AA, seu superior hierárquico direto; (Redação do TRL[4]) 54-A. BB não teve conhecimento, na ocasião, do pedido de transporte efetuado por CC através do e-mail referido no facto 53. (Aditado pelo TRL)[5] 55. Por e-mail remetido, no dia 12-11-2020, GG, da Benecar, informou o trabalhador AA que já havia efetuado a transferência para «liquidação dos Alfa», fazendo a descrição da matrícula dos 30 veículos em causa; 56. Em 12-11-2020, o Controller DD referiu, por correio eletrónico, ao trabalhador CC que o mesmo deveria ter em conta que as propostas constantes dos e-mails de 11-11-2020 estavam pendentes de validação pelo Departamento Financeiro; 57. No dia 17 de Novembro de 2020, o Trabalhador AA enviou a DD, na sequência dos e-mails referidos no ponto anterior, com conhecimento de FF, do Trabalhador BB e de CC, o seguinte e-mail: 58. No mesmo dia, DD respondeu ao e-mail, com conhecimento das mesmas pessoas: 59. No mesmo dia, na sequência dos restantes e-mails, FF remeteu e-mail a DD e AA, dizendo que o negócio não podia ser fechado, com conhecimento das demais pessoas até aí integradas na corrente de e-mails e ainda de II (Diretor-geral) e EE (Diretor-geral Delegado); 60. O Trabalhador BB trocou as seguintes mensagens via Whatsapp com EE nesse mesmo dia 18-11-2021: (redação do TRL[6]) 61. No dia 18-11-2020, BB enviou um e-mail a FF, explicando os detalhes do negócio e do projeto de venda, com informação quanto ao excedente da indemnização proposta pela seguradora, pedindo a aprovação do departamento financeiro; 62. FF, em resposta, no mesmo dia, referiu que o facto de o Trabalhador ter partilhado detalhes do negócio não significava que o negócio já estivesse aprovado, dizendo que, a menos que recebesse um e-mail seu ou da sua equipa com aprovação, não poderia completar o negócio; 63. O Trabalhador BB, no mesmo dia, respondeu ao email, dizendo que tal era claro para si; 64. Em 18-11-2020, um número não concretamente apurado de viaturas encontravam-se fora das instalações do Empregador, tendo sido entregues àqueles clientes; 65. Não existiu fatura de venda e as viaturas continuaram a constar do stock do Empregador; 66. A Consilcar, em 20-11-2020, transferiu montante total de 465.637,28 €, respeitante a 27 dos 57 carros; 67. No dia 23-11-2020, via e-mail, em resposta a um pedido de esclarecimentos realizado por DD, a pedido de FF, o Trabalhador AA, após resposta aos citados esclarecimentos, declarou: «O negócio está concluído! Pelos motivos explicados acima, parece-nos razoável e necessário a aplicação do 300K no deal»; 68. Nos dias 24-11-2020 e 27-11-2020 realizaram-se duas videochamadas entre a equipa de Usados, onde se incluíam os trabalhadores, e o CFO de Espanha e Portugal, o MD Espanha e Portugal, II, o trabalhador AA, o Diretor de Recursos Humanos, KK, DD e EE (Diretor-geral Delegado para Portugal), com vista a discutir os termos da venda das 57 viaturas; 69. Nessas reuniões, os Trabalhadores insistiram com a venda, sendo-lhes referido por FF, por KK, por DD e pelo General Manager, II, que o projeto de venda não estava autorizado; (redação do TRL[7]) 70. Em momento algum, os Trabalhadores BB e AA referiram nessa reunião que a venda já havia sido efetuada, paga e entregues as viaturas; 71. Em 30-11-2020, a proposta de venda foi apresentada à Área Financeira de HQ pelo Controller DD; 72. Porém, nesse mesmo dia, a venda foi bloqueada e colocada em espera pelo LL, MM, para uma análise mais detalhada; 73. Após a posição final transmitida pela empresa, o negócio não se viabilizou para a totalidade das viaturas, tendo sido recolhidas todas as viaturas que se encontravam nos clientes, com excepção de 12 viaturas, 10 para a Consilcar e 2 para a Benecar, aos valores inicialmente acordados, fruto de as mesmas já estarem prometidas ao cliente final ou de terem sido concluídas as respectivas reparações, gerando um prejuízo de cerca de € 60.000,00 para o empregador, tendo este ainda de suportar custos de transporte e recondicionamento, em valor não concretamente apurado; 74. Outros parceiros do Empregador, tendo tomado conhecimento deste negócio, referiram também ter interesse na compra daquelas viaturas pelo preço que foi praticado junto da Benecar e Consilcar; 75. As viaturas em causa encontravam-se à venda no site dos clientes Consilcar e Benecar, após terem saído do parque; 76. No dia 02-12-2020, II (Diretor Geral para Portugal e Espanha), FF (CFO da R. para Portugal e Espanha), EE (Diretor Geral Delegado para Portugal) e KK (DRH da R.) tiveram conhecimento de que as viaturas foram retiradas das instalações e entregues aos clientes, bem como que a Consilcar havia realizado o pagamento do lote de 27 viaturas; (redação do TRL[8]) 77. No dia 13-01-2021, à noite, o Trabalhador BB telefonou a FF; 78. Nessa mesma conversa telefónica, o Trabalhador BB solicitou-lhe que lhe enviasse o número de telemóvel de II, uma vez que não o tinha, situação que de imediato foi feita via mensagem de Whatsapp; 79. O Trabalhador BB telefonou no dia 14 de Janeiro de 2021 a II, que não pôde atender a chamada, afiançando que ligaria o que se veio a verificar no dia seguinte, ou seja, a 15 de Janeiro de 2021; 80. O trabalhador BB e KK realizaram uma chamada telefónica, no dia 19 de Janeiro de 2021, às 11H49 (hora de Portugal), que teve a duração de 48min e 16s, durante a qual o trabalhador BB teve a oportunidade de lhe detalhar todo o processo, realçando igualmente o papel determinante de EE na concretização do negócio; 81. Obteve a resposta de que «não trabalham numa estrutura militar, pelo que a lógica de cadeia de comando não se aplica»; 82. Nessa mesma conversa, foi transmitido que no dia seguinte seria marcada uma reunião (call) com o Trabalhador BB e com o Trabalhador AA, com o objetivo de ouvir a versão deste último, sendo estes, nessa reunião, surpreendidos com a existência de um procedimento disciplinar; “83. FF, no dia 21-01-2021, enviou correio eletrónico à Dekra, com o seguinte teor: 84. Em 20-01-2021, o Empregador decidiu a instauração de processo disciplinar com vista ao despedimento do trabalhador BB; (…) 99. Em 20-01-2021, o Empregador decidiu a instauração de processo disciplinar com vista ao despedimento do Trabalhador AA; (…) 117. EE não foi objeto de qualquer ação disciplinar; (…) 10. A “questão fundamental” que constitui o objeto processual das ações movidas pelos autores à ré consiste em determinar se ocorre justa causa de despedimento, questão que se desdobra nas sub-questões correspondentes aos três requisitos – ou, dito de outra forma, elementos constitutivos (cfr. art. 342º, nº 1, do Código Civil) – deste conceito [cfr. arts. 128º, 330.º, n.º 1, e 351.º, do Código do Trabalho (CT)]. Elementos que são os seguintes: i) uma infração disciplinar, ou seja, um comportamento ilícito e culposo do trabalhador;[9] ii) a impossibilidade prática e imediata de subsistência da relação de trabalho[10] (e, conexamente, a proporcionalidade do despedimento); iii) a existência de um nexo de causalidade entre o dito comportamento e esta impossibilidade. O direito do empregador ao despedimento pressupõe a verificação cumulativa dos três requisitos, os quais, em termos de precedência lógico-jurídica, se estruturam pela ordem indicada. Como sinaliza NN[11], “se se atentar nos diversos termos do artigo 351º/2, logo se verifica que eles têm diversos graus de indeterminação”, o que “tem dois aspetos ou implicações: “(a) o da própria justa causa em si, que aparece ora mais concreta, ora mais vaga, no texto da alínea que a contenha; (b) o das relações dessa justa causa com a ideia básica do nº 1; quanto mais indeterminada for a justa causa, mais necessário é recorrer à definição geral dada pela lei, para apurar a sua concretização.” 11. In casu, para caracterizar a justa causa de despedimento a R. imputou aos AA.: i) a realização de um negócio de compra e venda de veículos, com o recebimento dos pagamentos e o subsequente transporte, sem prévia aprovação pelo departamento financeiro, em infração às regras estabelecidas pelo empregador, negócio que causou um prejuízo de cerca de 60.000,00 €, para além de custos de transporte e recondicionamento, em valor não concretamente apurado; ii) não terem os AA. comunicado ao departamento financeiro e aos seus superiores hierárquicos que já se mostrava efetuado o pagamento dos veículos, e entregues estes aos compradores, mormente em troca de e-mails que tiveram lugar nos dias 18 e 23 de novembro de 2020 e em reuniões que tiveram lugar em 24 e 27 do mesmo mês, convocadas para discutir os termos desse negócio. A primeira instância considerou terem os AA. violado os deveres de obediência, de lealdade e de promover atos tendentes à melhoria da produtividade da empresa, previstos no art. 128.º, n.º 1, alíneas e), f) e h), do CT. Mais considerou que se configuravam infrações disciplinares laborais graves, concluindo-se, consequentemente, pela existência de justa causa de despedimento. A Relação confirmou terem sido infringidos os deveres referidos em primeiro e terceiro lugar (o que é inequívoco), mas afastou a infração do dever de lealdade. Desde já se adianta que sem razão, pelas razões que se passam a expor. b) – Infração do dever de lealdade. 12. Entre outras obrigações, o trabalhador deve “guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios” [art. 128º, nº 1, f) do CT]. Como v.g. julgou o Ac. desta Secção Social (como todos os que se citarem sem menção em contrário) de 05.06.2013, P. 192/10.0TTVNF.P1S1, “o dever de lealdade tem uma dimensão ampla, que abrange, para além do cumprimento do contrato, de acordo com a boa fé, um especto pessoal e um especto organizacional, cujo conteúdo se densifica quando os trabalhadores exercem cargos de responsabilidade na gestão financeira da empresa”. Efetivamente, “o dever de lealdade (…) tem um alcance normativo que supera os limites do sigilo e da não concorrência, impondo ao trabalhador que aja, nas relações com o empregador, com franqueza, honestidade e probidade, em consonância, aliás, com a boa fé que deve presidir à execução do contrato, nomeadamente, vedando-lhe comportamentos que determinem situações de perigo para o empregador ou para a organização da empresa, por um lado, e, por outro, impondo-lhe que tome as atitudes necessárias quando constate uma ameaça de prejuízo”.[12] Vale por dizer que aqui se inclui um dever de honestidade que implica uma obrigação de abstenção por parte do trabalhador de qualquer comportamento suscetível de colocar em crise a relação de confiança que deve pautar as suas relações com o empregador, enquanto corolário da boa-fé contratual.[13] Na verdade, nos termos do art. 126º, do CT, epigrafado “deveres gerais das partes”, “o empregador e o trabalhador devem proceder de boa fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento das respetivas obrigações”, sendo ainda certo que, “na execução do contrato de trabalho, as partes devem colaborar na obtenção da maior produtividade (…)”. Precisando a delimitação deste dever na sua tríplice dimensão (obrigacional, pessoal e organizacional), refere Maria do Rosário Palma Ramalho:[14] “Na dimensão restrita, o dever de lealdade (…) concretiza-se, essencialmente, no dever de não concorrência e no dever de sigilo. (…) Em sentido amplo, (…) é o dever orientador geral da conduta do trabalhador no cumprimento do contrato. (…) [A] primeira dimensão (…) corresponde a uma exigência geral em matéria de cumprimento dos contratos. (…) O elemento da pessoalidade explica que (…) seja, até certo ponto, uma lealdade pessoal, cuja quebra grave pode constituir motivo para a cessação do contrato. É este elemento (…) que justifica, por exemplo, o relevo de condutas extralaborais (…), bem como o relevo da perda de confiança pessoal (…). (…) [P]ara além da lealdade (…) ao empregador, enquanto contraparte (…), releva também a sua lealdade à empresa ou organização do empregador. Nesta (…) dimensão (…), o grau de intensidade do dever de lealdade e as consequências do seu incumprimento dependem do tipo de funções do trabalhador e da natureza do seu vínculo de trabalho, em concreto.” 13. O processo de concretização do negócio em causa decorreu entre 3 e 11 de novembro de 2020, isto sem que o departamento financeiro houvesse concedido a necessária autorização e sendo certo, como também valorizou a Relação, que os AA. estavam conscientes da necessidade dessa autorização, que conheciam e de que foram sendo avisados. Nas diferentes interações que os AA. tiveram com os seus superiores hierárquicos e com os responsáveis pelo departamento financeiro – mormente nas trocas de emails ocorridas nos dias 18 e 23 de novembro de 2020 e nas reuniões dos dias 24 e 27 de novembro – nunca os mesmos informaram que o negócio já se encontrava ultimado, que a Consilcar havia realizado o pagamento das viaturas e que elas haviam sido transportadas para os clientes por indicação sua. Uma vez que durante este período os responsáveis pelo departamento financeiro continuavam a insistir que o negócio carecia da sua aprovação, não pode deixar de concluir-se que o silêncio dos autores, escondendo a real situação, visava criar uma aparência de conformidade com as regras de gestão da empresa e fazer-lhes crer que o negócio ainda estava em aberto. Com efeito, só no dia 02.12.2020, II (Diretor Geral para Portugal e Espanha), FF (CFO da R. para Portugal e Espanha), EE (Diretor Geral Delegado para Portugal) e KK (DRH da R.) tiveram conhecimento de que as viaturas tinham já sido retiradas das instalações e entregues aos clientes, bem como que a Consilcar havia realizado o pagamento do lote de 27 viaturas (facto nº 76). Se bem compreendemos, a Relação entende que do e-mail remetido a DD pelo A. AA, no dia 23 de novembro (dizendo: “O negócio está concluído!” – facto 67), se extrai que o mesmo estaria a comunicar o pagamento de todos os veículos vendidos, razão pela qual não mereceria censura o facto de os AA. não terem referido na reunião dos dias 24 e 27 de novembro que a venda já havia sido negociada e paga. Diferentemente, e em termos a que globalmente acompanhamos, ponderou a sentença da 1ª instância: “É na sequência da informação prestada pelo Trabalhador BB, a 18.11.2020, que viria a ser remetido o pedido de esclarecimento, por parte de DD, a 23.11.2020, que foi objeto de resposta a 23.11.2020, pelo Trabalhador AA, que finaliza o e-mail dizendo que «o negócio está concluído». (…) [O] sentido e o alcance desta frase, quando lida pelo Departamento Financeiro, não se identifica com uma conclusão cabal do negócio, quanto a todos os seus aspetos, efeitos e operações, como bem se deduz da imediata resposta de FF (sem comentários quanto à última frase, falamos amanhã na reunião), (…) que só poderia ter sido interpretado como sendo uma conclusão do ponto de vista comercial e não uma conclusão das negociações, pagamento e transporte. Como é evidente, as reuniões de 24 e 27 de Novembro tinham como pressuposto que o negócio não se encontrava concluído e que, para FF, DD (que se aquilatou estar presente na reunião), II, KK, mas também EE, o mesmo ainda estava em apreciação, sendo impossível acompanhar a alegação dos Trabalhadores de que seria supérfluo ou desnecessário mencionar o estado em que o mesmo, no plano factual e prático, se encontrava. Neste sentido, sendo tais reuniões dirigidas a avaliar a acuidade e validade da arrojada proposta dos Trabalhadores, apenas no âmbito de absurdo se poderia conceber que todos os intervenientes estavam ao corrente do ponto em que o mesmo se encontrava, tanto mais que, nessa linha, optariam por incrementar a farsa enviando a proposta para o HQ em Itália.” Argumenta ainda a Relação que não está provado que qualquer dos AA. tenha ordenado o transporte das viaturas ou, sequer, que dele tivesse conhecimento, tendo-se provado que o A. BB não teve conhecimento, na ocasião, do pedido de transporte efetuado por CC através do e-mail referido no facto 53 (facto 54-A). Não nos parece que daqui se extraia qualquer elemento decisivo, sendo certo que, levando esta lógica ao limite não se configuraria a violação de qualquer dever laboral por banda dos AA.… O determinante é que, independentemente das diferentes dimensões concretas do processo, na sequência da ação dos AA. e com o seu conhecimento, o negócio em causa se concretizou entre 3 e 11 de novembro de 2020, sem que os mesmos alguma vez o tenham comunicado aos seus superiores hierárquicos e aos responsáveis pelo departamento financeiro – mormente nas trocas de emails ocorridas nos dias 18 a 23 de Novembro de 2020 e nas reuniões dos dias 24 e 27 de Novembro. Acresce que o negócio em causa gerou um prejuízo de cerca de 60.000,00 € para o empregador, tendo este ainda de suportar custos de transporte e recondicionamento, em valor não concretamente apurado (facto nº 73). O que, indubitavelmente, configura uma grave violação do dever de lealdade. c) – justa causa de despedimento. 14. Os deveres laborais que no caso vertente se mostram violados assumem indiscutível relevância, nomeadamente no tocante à infração do dever de lealdade, dada a natureza fortemente fiduciária do contrato de trabalho. Daí que, segundo NN,[15] “estando em jogo a questão da confiança, a concretização da causa é mais estrita: a decisão fica menos dependente do apelo a outros fatores circundantes, uma vez que se torna, por via direta, segura a presença de uma impossibilidade de prosseguir na relação laboral considerada”. Embora não se nos afigure que da quebra de confiança decorra sempre – direta, segura e automaticamente – a impossibilidade prática de subsistência da relação de trabalho, é inegável que a demonstração deste elemento fica consideravelmente facilitada nos casos em que a quebra de confiança se revela objetivamente fundada na infração do dever de lealdade, isto em função direta do grau de responsabilidade e posição hierárquica que o trabalhador tenha na empresa, ou por outras palavras, da extensão da “delegação de poderes no trabalhador” e da “atinência das funções exercidas à realização final do interesse do empregador”. [16] Aliás, como é pacífico na doutrina e na jurisprudência, “nos cargos de direção ou de confiança, a obrigação de lealdade constitui uma parcela essencial, e não apenas acessória, da posição jurídica do trabalhador”.[17] 15. No caso em apreço, ambos os trabalhadores tinham responsabilidades de gestão na empresa: BB era Sales Diretor; e AA era o responsável pela gestão dos parceiros comerciantes, como seja a Consilcar e a Benecar, e superior hierárquico direto do trabalhador CC. Por outro lado, o A. BB já tinha antecedentes de práticas deste tipo, tendo sido formalmente advertido pela empresa, em 22 de Novembro de 2018, para o facto de as mesmas serem “intoleráveis para as funções que desempenha” (facto nº 4). Em face do conjunto dos factos provados, é patente, como refere a sentença da 1ª instância, que os recorridos “demonstraram, com a sua conduta, uma total desadequação no respeito pelos interesses do empregador e pela confiança de que, até aí, foram merecedores”; e, neste contexto, “não se vislumbra como possa haver retorno da situação de rutura da confiança que os Trabalhadores causaram, perante o desrespeito pelo dever de obediência e lealdade que deviam ao Empregador, de quem não é concebível voltar a acreditar na capacidade daqueles para promoverem e executarem os procedimentos que o mesmo instituiu para melhorar a produtividade da empresa, que se caracteriza, como resulta dos factos provados, por uma intensa atividade, que envolve interesses financeiros elevados”. 16. Em suma: Grave e culposamente, os AA. violaram os deveres laborais de obediência, lealdade e de promover os atos tendentes à melhoria da produtividade da empresa. Tendo em conta a imagem global dos factos, incluindo todas as suas circunstância e consequências (art. 351.º, n.º 3, do CT), concluímos – à luz de critérios de razoabilidade, exigibilidade e proporcionalidade – que com a sua conduta os AA. tornaram prática e imediatamente impossível a subsistência da relação laboral (arts. 330.º, n.º 1, e 351.º, n.º 1 e 2, do mesmo diploma). Vale por dizer que se configura justa causa de despedimento. Conclusão que, refira-se, sempre se imporia, dada a gravidade objetiva e subjetiva da conduta dos recorridos, independentemente da discutida – e aqui reconhecida – violação do dever de lealdade. IV. 17. Nestes termos, concedendo a revista, acorda-se em declarar a licitude do despedimento dos autores e, revogando-se o acórdão recorrido, em absolver a recorrente dos pedidos, ficando consequentemente a prevalecer, nos seus precisos termos, a decisão da 1ª instância.As custas da revista e da apelação ficam a cargo dos autores, repristinando-se igualmente o decidido na 1.ª instância quanto a custas. Lisboa, 1 de fevereiro de 2023 Mário Belo Morgado (Relator) Júlio Manuel Vieira Gomes Ramalho Pinto ___________________ |