Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
14456/18.1T8PRT.P3.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
DEVER DE INFORMAÇÃO
INTERPRETAÇÃO LITERAL
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I – O regime contratual do contrato de seguro vem a emergir, de forma essencial, do clausulado geral e especial acordado no instrumento do seguro que constitui a apólice, clausulado que deve ser interpretado com observância das regras do art.º 236.º n.ºs 1 e 2 do CCiv, por remissão da norma do art.º 10.º do D-L nº446/85 de 25/10.

II – As cláusulas de exclusão da responsabilidade devem ser formuladas em termos claros e precisos, permitindo ao segurado conhecer plenamente a extensão exacta da garantia do seguro e mais devem contribuir para o discernimento do risco, não para o eliminar.

III - Na dúvida sobre o alcance da cláusula de exclusão da responsabilidade da seguradora, deve prevalecer o sentido mais literal, por ser aquele que mais favorece o segurado (cf. art.º 11.º n.º2 do D.-L. n.º 446/85).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

As Partes, o Pedido e o Objecto do Processo

CAF - Confecções Amaral e Filhos, Ld.ª, intentou a presente acção, com processo de declaração e forma comum contra COSEC - Companhia de Seguros de Créditos, S.A., pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de €37.031.98, acrescida de juros calculados à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Alegou ter celebrado com a Ré um contrato de seguro de crédito, sendo que ao abrigo do mesmo lhe participou, em 19 de abril de 2016, a “ameaça de sinistro” traduzida na “suspensão de pagamento” da cliente M..., SL., cuja insolvência veio a ser declarada.

Todavia, nada recebeu no processo de insolvência, sendo que, apesar de verificado sinistro abrangido pela cobertura do contratado seguro, a Ré recusa pagar-lhe a quantia contratualmente devida.

A Ré alegou ter-se verificado causa de exoneração da sua obrigação de indemnizar ao abrigo do contrato de seguro que firmou com a autora, porquanto esta, após a constituição da situação de “ameaça de sinistro”, continuou a fornecer bens e serviços à cliente, contrariando assim as condições gerais desse contrato.

Referiu ainda ocorrer causa de exclusão da sua responsabilidade, dado que o seguro que contratou com a autora não abrange os créditos constituídos sobre clientes que já se encontrem em situação de “ameaça de sinistro”.


As Decisões Judiciais

Na decisão final proferida em 1ª instância, a acção foi julgada improcedente e a Ré absolvida do pedido – entendeu-se que a Autora incumpriu com normas constantes das condições gerais do seguro, no sentido de que sempre que se verificasse uma situação de ameaça de sinistro, o segurado obrigava-se a suspender as entregas de bens ou a prestação de serviços para o cliente em causa, salvo acordo prévio da Ré e sob pena de exoneração do pagamento de indemnização a cargo dessa Ré.

Recorrida tal decisão de apelação, por parte da Autora, na Relação entendeu-se proceder na íntegra a acção, agora por força do entendimento de que “não opera a cláusula de exclusão prevista em contrato de seguro de crédito, na qual se estabelece que ficam excluídos do seguro os créditos constituídos sobre clientes da segurada que já se encontrem em situação de “ameaça de sinistro”, quando esse evento se registou em relação a um crédito constituído em momento anterior ao início de vigência da respetiva cobertura relativamente ao cliente inadimplente”.


Inconformada agora a Ré, recorre de revista, sumariando-a com as seguintes conclusões:

1.ª Salvo o devido respeito, que é muito, o douto Acórdão recorrido decidiu incorrectamente que (1) a recorrente não se exonerou validamente da sua responsabilidade; (2) que não é aplicável a exclusão dos créditos em causa nos autos do contrato de seguro de crédito; (3) que a recorrente não podia excluir da cobertura os créditos em causa nos autos, (4) não reconhecendo oficiosamente o abuso de direito que configura o exercício do direito da acção pela recorrida e constituem as questões que submetemos à apreciação deste Supremo.

2.ª O Tribunal a quo procurou saber qual o conceito de “ameaça de sinistro” expresso contratualmente mas analisando-o de forma direccionada e limitada à causa de exclusão citada, interpretando incorrectamente o contrato ajuizado, designadamente sem delimitar aquele conceito e sem identificar os pressupostos da constituição da “situação de ameaça de sinistro”, o que é inaceitável, considerando que a constituição da situação de ameaça de sinistro tem uma enorme relevância contratual, designadamente pelas importantes obrigações que fixa e pelas consequências do respectivo incumprimento.

3.ª Para a conclusão constante da decisão recorrida, o Tribunal da Relação socorreu-se apenas do elemento gramatical do artigo 3.º das condições gerais da apólice e do texto da garantia n.º ...37 junto aos autos, sem vislumbrar que a interpretação assim limitada, prescindindo da análise global do contrato ajuizado, não podia conduzir a um resultado seguro, pelo que entendeu que se verifica a situação de ameaça de sinistro contratualmente relevante para os efeitos da exoneração e exclusão citada, quando reportada a créditos do segurado que estejam abrangidos pela cobertura do seguro, desprezando em absoluto a consideração da situação de ameaça de sinistro quando reportada a créditos do segurado que não gozem de garantia expressamente atribuída pela seguradora de créditos, o que constitui uma interpretação inadmissível e que teve reflexo nas respectivas decisões em recurso e que se encontram em absoluta desconformidade com o contrato de seguro ajuizado.

4.ª A definição da situação da “ameaça de sinistro” e que interessa alcançar, não constando expressamente das definições contratuais, deve ser obtida como em qualquer outra interpretação, a partir dos elementos literais constantes do contrato de seguro ajuizado, em conformidade com as regras legais de interpretação a que o Tribunal recorrido estava vinculado, designadamente as impostas pelo artigo 238.º n.º1 do Código Civil, na medida em que o contrato de seguro é um negócio formal “e as declarações não podem valer sem um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento ainda que imperfeitamente expresso” e que o Tribunal a quo violou.

5.ª Sem prejuízo daquela tarefa decorrente das regras legais da interpretação, o intérprete devia também procurar perceber e apreender quais os efeitos/objectivos que foram pretendidos com a concreta estipulação contratual a interpretar; tarefa interpretativa que o Tribunal da Relação também não operou, ou seja identificando as razões que presidiram à previsão contratual daquela “situação de ameaça de sinistro”, considerando designadamente as importantes consequências contratuais da sua constituição.

6.ª Seguindo de perto a doutrina sobre a matéria, a “ameaça de sinistro” é um conceito típico dos contratos de seguro de créditos e verifica-se sempre que um crédito se mantenha em divida posteriormente à data do respectivo vencimento, inicial ou prorrogado e o segurado não obtenha o seu pagamento em determinado prazo previsto na apólice de seguro.

7.ª O contrato ajuizado e a interpretar identifica no artigo 5.º II alínea a) das Condições Gerais que a ameaça de sinistro constitui-se, quando:

A – “Seja comunicado à seguradora um atraso ou falta de pagamento de um CRÉDITO SEGURO ou”

B – “Em qualquer caso, quando se mantenha o não pagamento, total ou parcial, de CRÉDITO, após o decurso do prazo estipulado na Apólice para prorrogações sem necessidade de autorização prévia da Cosec”.

8.ª Do elemento literal expresso na conclusão anterior resulta a estipulação de dois “tipos” ou conceitos de créditos, cujo atraso ou não pagamento se encontra contratualmente previsto para desencadear a situação de “ameaça de sinistro”, pois, por um lado, refere-se a “CRÉDITO SEGURO” (o que goza da garantia do seguro) e por outro singelamente a “CRÉDITO” (independentemente de gozar de garantia do seguro).

9.ª Ao limitar a interpretação das situações de “ameaça de sinistro” apenas como reportados a “CRÉDITOS SEGUROS”, o Tribunal da Relação violou flagrantemente o disposto no artigo 238.º n.º1 do Código Civil, na medida em que nos encontramos no domínio do negócio formal e a declaração não pode valer sem um mínimo de correspondência no texto do que se encontra contratualmente estipulado, sendo certo que tal estipulação reporta-se tanto a “CRÉDITOS”, como a “CRÉDITOS SEGUROS”, e não fornece qualquer suporte à incorrecta interpretação do Tribunal recorrido a implicar a sua revogação, uma vez que a “situação de ameaça de sinistro” se reporta expressa e literalmente, não só aos créditos que gozam de garantia, mas também a todos os outros créditos do segurado.

10.ª Aliás, a conclusão anterior impõe-se da análise das restantes alíneas daquele artigo 5.º II das condições gerais, que se referem tanto a “CRÉDITOS”, como a “CRÉDITOS SEGUROS”, pois a alínea b) refere-se singelamente a “CRÉDITO” (ou seja independentemente de gozar ou não da garantia); já a alínea c) refere-se a “CRÉDITOS SEGUROS” (o que goza de garantia), tendo sido estipulados em relação a cada um daqueles “tipos” de créditos os respectivos actos ou factos desencadeadores da constituição da ameaça de sinistro.

11.ª Naturalmente que para a discussão relevam os conceitos de “crédito” e de “crédito seguro” o primeiro expresso no artigo preliminar das condições gerais, a definir que se consideram como “CRÉDITOS - As quantias facturadas ou debitadas pelo segurado, com pagamento a prazo, emergentes das operações identificadas nas condições particulares da apólice”, o que significa que aquele conceito contratual, prescinde completamente da existência de cobertura do contrato de seguro, ou seja, abstrai de qualquer garantia concedida pela seguradora.

12.ª Com recurso ao n.º 1 do artigo 3.º das mesmas condições gerais, verifica-se que diferentemente de “CRÉDITOS”, os “CRÉDITOS SEGUROS”, consubstanciam um conceito mais restrito, pois correspondem aos “créditos sobre clientes estabelecidos nos mercados previsto nas condições particulares até aos “LIMITES DE CRÉDITOS” fixados ou aceites pela Cosec para cada cliente que se constituam durante a vigência da Apólice”.

13.ª Ora, como decorre do ponto II do citado artigo 5.º, quer os “CRÉDITOS”, quer os “CRÉDITOS SEGUROS”, encontram previsão contratual expressa literalmente como aptos para desencadearem a situação de ameaça de sinistro, motivos pelos quais a interpretação do Tribunal recorrido encontra desconformidade com a regra expressa no artigo 238.º n.º1 do Código Civil e não pode manter-se, sendo certo que a decisão recorrida, fez tábua rasa do que literalmente está expresso no contrato de seguro de crédito ajuizado, decidindo que a interpretação para situação de “ameaça de sinistro” se reporta apenas aos CRÉDITOS SEGUROS, apesar do contrato formal constar expressamente que aquela situação também se reporta a “CRÉDITOS”.

14.ª Certo é que o Tribunal recorrido não assumiu, pelo menos de forma correcta, a posição do “declaratário normal”, pois este não teria qualquer dúvida em considerar as inúmeras referências contratuais a “CRÉDITO” por contraposição a “CRÉDITO SEGURO” (ou vice-versa) e facilmente perceberia a distinção entre os conceitos e a sua aplicação às diferentes e respectivas previsões contratuais constitutivas da situação de “ameaça de sinistro”, ao contrário do que fez o Acórdão recorrido ao completo arrepio das regras estabelecidas para a interpretação dos negócios formais previstas no citado artigo 238.º n.º 1 do Código Civil.

15.ª Daí que, como no caso concreto, a segurada, ora recorrida, dispunha não só de “CRÉDITOS SEGUROS” sobre o seu cliente abrangidos pela garantia n.º ...37 com início da validade em 27/1/2016 emitida pela recorrente e com o limite de € 50.000,00, mas também de “CRÉDITOS” não abrangidos por qualquer garantia, como eram os créditos constantes da provada factura n.º ...07 de 17/7/2015, certo é que qualquer um deles se encontra literal e expressamente previsto como aptos para desencadear a situação de “ameaça de sinistro”, desde que respeitadas as condições previstas para cada um deles.

16.ª À mesma conclusão chegaremos na interpretação contratual de acordo com os efeitos/objectivos pretendidos pela estipulação da situação de “ameaça de sinistro” e que se encontra intimamente relacionado às importantes obrigações de comunicação e informação impostas contratualmente ao segurado, pois, o que legitimamente se pretende com a estipulação da situação de ameaça de sinistro é, designadamente, evitar a produção de danos.

17.ª Na verdade e contrariamente à interpretação restritiva da decisão em Revista, consta do contrato de seguro, que deve ser interpretado globalmente como qualquer outro, mais concretamente no n.º 2 do artigo 4.º das Condições Gerais da Apólice:“ Ao submeter os clientes para apreciação da Cosec, o Segurado deve fornecer todos os elementos e informações desfavoráveis de que disponha, sob pena da aplicação no n.º 3 do artigo 11.º”, verificando-se neste normativo a ausência da referência a qualquer crédito, mas apenas a “clientes” do segurado, sendo, por isso, certo, que ainda que o segurado não disponha de qualquer crédito constituído sobre determinado cliente, ainda assim, está obrigado a fornecer todos os elementos e informações desfavoráveis de que disponha sobre o mesmo quando o submete à apreciação do seguro, uma vez que são essenciais no âmbito do contrato de seguro de crédito, pois é primordialmente perante as informações prestadas pelo segurado que a recorrente classificará o seu cliente e definirá as condições de venda que deverão observar-se para pleno enquadramento contratual na apólice de seguro de crédito e de cobertura de eventual sinistro, decidindo se assume o risco proposto, o que pressupõe o conhecimento de qualquer circunstância que possa influir em tal decisão e que seja do conhecimento do segurado.

18.ª As regras contratualmente estabelecidas para a comunicação da ameaça dos sinistros visam prevenir as consequências particularmente gravosas que ocorrem com a respectiva violação, pois é da maior relevância que os segurados comuniquem à seguradora as faltas de pagamento de facturas por parte dos seus clientes e que o façam antes que a solvabilidade dos mesmos seja posta definitivamente em causa, como é da maior relevância o lapso de tempo que decorre até que tal incumprimento chegue ao conhecimento da seguradora, uma vez que o risco assumido traduzido na incapacidade de solver dívidas vencidas não surge de forma imediata e generalizada, antes se revela através de sinais associados a dificuldades no pagamento de dívidas, como sejam atrasos nos pagamentos, pedidos de prorrogação do prazo de vencimento de facturas ou pagamentos parciais de fornecimentos, sendo certo que a existirem tais circunstâncias e sendo do conhecimento do segurado, são indispensáveis para que a recorrida/seguradora possa aferir conscientemente do limite máximo de risco que pode assumir ou até não conceder garantia alguma como se vê do n.º 3 do citado artigo 4.º I. das condições gerais.

19.ª Destas regras decorre que os objectivos fixados pela estipulação da situação de ameaça de sinistro, não pode reportar-se apenas aos “CRÉDITOS SEGUROS”, como decidiu o Tribunal recorrido, mas sim a todos os CRÉDITOS do segurado sobre aquele cliente, ou seja, independentemente de gozarem ou não de garantia expressamente atribuída pela seguradora, sendo, por isso, certo (e independentemente do que resulta à saciedade do elemento literal clausulado), que também os objectivos perseguidos com a estipulação da situação da ameaça de sinistro e respectivos deveres de informação e comunicação impostos ao segurado, apontam claramente no sentido daquela situação de ameaça de sinistro se reportar a todos os “CRÉDITOS” do segurado, pois para evitar a produção de danos é completamente indiferente que o atraso ou falta de pagamento se reporte ou não apenas a créditos seguros, certo que é a informação do incumprimento relativamente a todo e quaisquer créditos do segurado são relevantes para aquele objectivo.

20.ª Aliás, a situação de “ameaça de sinistro” muito mais do que se reportar a qualquer crédito, antecede-o, pois reporta-se à situação do cliente do segurado quando conjugada com a obrigação do segurado informar a seguradora de qualquer informação desfavorável do seu “cliente” de que tenha conhecimento nos termos do artigo 4.º n.º 2 das Condições Gerais.

21.ª Entender diversamente, como fez o tribunal recorrido, é admitir prescindível aquela informação à seguradora e levar a mesma, verdadeiramente enganada, a atribuir uma garantia que não atribuiria se dela tivesse tido conhecimento, o que constitui uma interpretação contratual que não se encontra em consonância com os princípios da boa-fé que obrigava a tutelar a confiança recíproca de cada uma das partes, designadamente quanto ao cumprimento do dever de informação sobre circunstâncias desfavoráveis do cliente de segurado, designadamente relativamente a “créditos” (todo e qualquer crédito) num plano de probidade, lealdade e honestidade, sendo pois certo que a disciplina contratual quanto à ameaça de sinistro se reporta às situações de incumprimento do cliente do segurado relativamente a qualquer crédito, ou seja, independentemente do mesmo gozar ou não de qualquer garantia do seguro de crédito e que o obriga a respeitar o principio de colaboração e ao dever geral de salvamento, designadamente previsto na epigrafe IV n.º2 do mesmo artigo do contrato de seguro – colaboração na redução de prejuízos: “Em especial sempre que se verifique uma situação de ameaça de sinistro, o segurado obriga-se a suspender as entregas de bens ou a prestação de serviços para o cliente em causa, salvo acordo prévio da Cosec.

22.ª Desfeito o equívoco interpretativo da decisão recorrida, dúvidas não há que existia a situação de “ameaça de sinistro” quando a recorrida procedeu aos fornecimentos ao seu cliente a coberto da garantia n.º ...37 com início da validade a 27-1-2016 emitida pela recorrente, pois é certo que a recorrida procedeu à comunicação da ameaça de sinistro em 19 de Abril de 2016, e dizia respeito a fornecimentos à sua cliente M..., efectuados entre 17-08-2015 e 21-3-2016 e não pagos por aquela, conforme factos provados sob os ns.º 48 e 49, sendo também certo que, no âmbito do processo de sinistro com a entidade M..., a factura mais antiga que foi comunicada à recorrente pela recorrida é a identificada sob n.º ...07, datada de 17/08/2015- cfr. factos provados sob os n.ºs 50 e 52

22.ª Dúvidas também não há, que aquela factura ...07 foi emitida durante a vigência da Apólice, - cfr. facto provado sob o n.º 3, segundo o qual a apólice ajuizada remonta a 1 de Abril de 2013, pelo que a mesma confessadamente não paga pelo seu cliente, constituía, assim, um “crédito” da recorrida, para os efeitos previstos nas Condições Gerais da Apólice.

23.ª Ora, como decorre do contrato de seguro de crédito sub judice, e do ponto 51 dos factos provados, a recorrida poderia fixar o prazo de pagamento dos créditos dentro do prazo de 120 dias, o que fez pois tal factura ...07 de 17-8-2015 tinha vencimento a 90 dias, ou seja, a 17/11/2015 - cfr. artigo 5.º, I n.º1 das condições gerais e VI n.º2 das condições particulares, sendo o prazo máximo para prorrogação do vencimento inicial de 60 dias sem autorização da recorrente, nos termos do disposto no artigo 5.º I n.º 2 das condições gerais e VI n.º 2 das condições particulares- cfr. facto considerado provado sob o n.º 51.

24.ª Como resulta da comunicação da ameaça do sinistro supra referida, e dos factos considerados como provados, os créditos da recorrida sobre a sua cliente e não pagos remontam a 17-8-2015, data de emissão da factura da autora n.º ...07, com vencimento a 17-11-2015, motivos pelos quais a situação da ameaça de sinistro constituiu-se a 17-1-2016, ou seja, 60 dias subsequentes ao vencimento inicial da factura emitida pela recorrida, sendo certo que apesar disso a recorrida efectuou a esse seu cliente novos fornecimentos posteriormente à data da situação de ameaça de sinistro, ou seja, posteriormente a 17-01-2016, procedendo à emissão da factura n.º ...08 de 1/2/2016 e seguintes emitidas, não comunicando à recorrente o incumprimento do seu cliente quando solicitou a garantia do seguro n.º 137 com início em 27/01/2016.- cfr. factos provados sob os pontos 35 e 53.

25.ª Não há, pois, dúvidas que quando a recorrida solicitou a garantia à recorrente, existia já uma situação de ameaça de sinistro, pois a recorrida havia emitido a factura ...07 de 17/08/2015, com vencimento a 90 dias, acrescida de 60 dias após o vencimento inicial, ocorrendo a situação de ameaça de sinistro em 17-01-2016, sendo indesmentível que a recorrida dispunha de um “crédito” sobre o seu cliente sem o devido pagamento “após decorrido o prazo estipulado na apólice para prorrogações sem necessidade de autorização prévia da Cosec”. – cfr. segunda parte da alínea a) do ponto II do artigo 5.º das Condições Gerais da Apólice, e, portanto, em situação de ameaça de sinistro, pelo que a recorrida deveria nos termos do disposto no artigo 5.º IV n.º 2 das condições gerais: “Em especial, sempre que se verifique uma situação de ameaça de sinistro, o segurado obriga-se a suspender as entregas de bens ou a prestação de serviços para o cliente em causa, salvo acordo prévio da Cosec”, o que não fez, pois continuou a efectuar fornecimentos à sua cliente, sem acordo ou sequer conhecimento da recorrente.

26.ª Tal continuação indevida dos fornecimentos ao cliente pela recorrida, implica que nos termos do disposto no n.º 3 do ponto IV do artigo 5.º das condições gerais da apólice,” O incumprimento da obrigação estabelecida no n.º 2 da parte IV deste artigo confere sempre à Cosec o direito de se exonerar do pagamento de qualquer indemnização relativa à ameaça comunicada, independentemente de alegação ou prova de dano”, motivos pelos quais a recorrente se exonerou validamente da obrigação de indemnizar a recorrida, como bem decidiu o Tribunal de 1.ª instância, motivos pelos quais se impõe a revogação do douto acórdão recorrido, julgando válida aquela exoneração e, consequentemente, a recorrida ser absolvida do pedido.

27.ª Mas para além disso, aquela continuação indevida de fornecimentos pela recorrida, tem outra consequência pois, de acordo com o disposto no art.º 3.º n.º 5, alínea d) das Condições Gerais da Apólice, ficam excluídos do seguro os créditos constituídos sobre Clientes que já se encontrem em situação de ameaça de sinistro, o que é exactamente o caso dos créditos da recorrida cuja indemnização reclama e que se encontram excluídos do seguro, contrariamente à decisão sob Revista motivada pela errada interpretação da douta decisão recorrida.

28.ª Por outro lado e independentemente da situação de ameaça de sinistro, não subsiste qualquer dúvida, nem sequer da douta decisão recorrida, que a recorrida omitiu informação desfavorável muito relevante sobre o seu cliente, quando solicitou a garantia – cfr. factos provados sob o n.º 53.º, sendo certo que por força do princípio da globalidade, característica endógena do contrato

de seguro de crédito e expresso contratualmente – cfr artigo 4.º I n.º1, a celebração deste tipo de contrato, implica que todos os clientes do segurado do mercado interno e/ou do mercado externo, com excepção de Angola, aos quais venda a crédito, estão abrangidos pelo contrato de seguro, independentemente da existência de qualquer garantia para o cliente específico, como de resto de forma cristalina resulta do douto Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo 551/13.7TVPRT.P1.S1.

29.ª Assim sendo, como é, também resulta inaceitável a decisão recorrida, pois o funcionamento do previsto no artigo 11.º n.º 3 das Condições gerais não se refere apenas a “CRÉDITOS SEGUROS”, uma vez que, não existe qualquer razão para distinguir o período anterior ao inicio da vigência de uma garantia, do período posterior àquela vigência, como faz o acórdão recorrido, uma vez que o n.º 2 do artigo 4.º das Condições Gerais da Apólice: “Ao submeter os clientes para apreciação da Cosec, o Segurado deve fornecer todos os elementos e informações desfavoráveis de que disponha, sob pena da aplicação no n.º 3 do artigo 11.º”

30.ª Ora, como dele se vê, o citado n.º 3 do artigo 11.º consagra não só um direito à resolução do contrato, mas também e alternativamente àquela resolução, um direito da seguradora a “restrigir a eficácia do contrato de seguro de forma a excluir da cobertura o CRÉDITO ou CRÉDITOS afectados” quando esteja em causa omissão que induza a seguradora em erro sobre a situação dos clientes ou dos créditos seguros”, como é o caso dos autos, motivos pelos quais a circunstância de não ter sido exercido o direito à resolução do contrato, não impedia a recorrente de exercer aquele outro direito, de natureza diferente da resolução, consubstanciada na “exclusão da cobertura o crédito ou créditos afectados pela omissão, dissimulação, ou falsa declaração relativa à situação do cliente ou crédito seguro”, como fez ao abrigo do citado artigo 11.º n.º 3 das Condições Gerais.

31.ª E compreende-se porque, pois provada a omissão da recorrida na prestação de informação desfavorável relativa ao seu cliente e ao não pagamento do crédito que sobre ele já dispunha-– cfr. facto provado sob o n.º 53, apesar de estar obrigada a transmitir tal informação nos prazos contratuais, a recorrida potenciou o risco do cliente devedor em termos altamente prejudiciais para a recorrente que, sem conhecer a informação omitida, atribuiu e manteve em vigor uma garantia para o risco àquele cliente/devedor e que de outra forma não seria atribuída ou cessaria imediatamente, sendo certo que não é um procedimento de boa-fé propor ao segurador que assuma determinado risco de crédito, quando o segurado bem sabe e omite na prestação da informação a que contratual e legalmente está obrigado, que já existem facturas vencidas e não pagas, como no caso em apreço em que culminou na insolvência daquele seu cliente- cfr. facto provado sob o n.º 38.

32.ª Aliás, a mera prorrogação do prazo de vencimento da factura, já era naturalmente um elemento e informação desfavorável de que a recorrida dispunha e que estava obrigada a comunicar à recorrente, sob pena de aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 11.º das Condições Gerais, o que sempre implicaria a total improcedência da acção, por isso, resulta incompreensível o “prémio” atribuído à recorrida pela decisão recorrida, afastando a aplicabilidade do disposto no artigo 11.º n.º3 e que constitui uma decisão chocante, por injusta, já que nada impedia a seguradora recorrente, como fez, de restringir a eficácia do seguro excluindo da cobertura os créditos afectados com aquela omissão, certo que a omissão da informação muito relevante e em causa verificou-se no período anterior ao início da vigência da garantia emitida pela recorrente. Cfr. facto provado sob o n.º 53.

33.ª Por isto, a acção deveria ter sido julgada improcedente, não só por a A. ter efectuado os fornecimentos cujos créditos se encontravam seguros em situação de ameaça de sinistro – artigo 5.º IV, n.º 2 e 3, mas também por ter infringido os deveres de informação, o que na disciplina contratual conduz, não só à exclusão dos créditos seguros – artigo 3 n.º 5 al.d), mas também à exclusão da cobertura nos termos do artigo 11 n.º 3 todos das Condições Gerais, pois são estas as consequências contratuais expressas, desde pelo menos o ano de 2013 e que a recorrida bem conhecia, para a dupla violação das suas obrigações contratuais.

34.ª Como decorre das conclusões anteriores e independentemente delas, há um outro motivo para julgar a presente acção improcedente já que a mesma configura um manifesto abuso de direito, de conhecimento oficioso, pois, não existindo dúvidas que a pretensão indemnizatória da recorrida assenta na sua própria infracção contratual, consubstanciada na omissão de informação gravemente desfavorável ao seu cliente e que estava obrigada contratualmente a transmitir à recorrente, tendo-a conduzido a emitir uma garantia que aquela não emitiria na posse de tal informação, para além de voluntariamente agravar o risco e consequentemente a indemnização peticionada, continuando os fornecimentos aquele seu cliente já em incumprimento, o que excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé.

35.ª O principio da boa-fé tem particular importância e relevância no âmbito contratual, impondo às partes que ajam de modo honesto, correto e leal, e que se comportem de modo a não frustrar a posição da contraparte, constituindo um padrão de conduta que deve conformar toda a relação contratual, pelo que tal principio de boa-fé obrigava a recorrida ao dever de informar a recorrente, quando solicitou a garantia para o seu cliente, que o mesmo não tinha pago a factura n.º ...07 na data do seu vencimento ou posteriormente (independentemente da previsão contratual dessa mesma obrigação), permitindo à recorrente/ seguradora, a possibilidade de avaliar devidamente o risco existente na garantia solicitada.

36.ª Ao omitir esta informação, a recorrida enganou a recorrente que, não conhecendo a mesma, emitiu uma garantia que não teria emitido se estivesse na posse daquela informação.

37.ª Tal comportamento, não consentâneo com a honestidade e lealdade, é absolutamente contrário ao principio de boa-fé expresso no artigo 334.º do Código Civil, sendo certo que e a instauração da presente acção com fundamento na garantia prestada pela recorrente por causa do engano provocado pela omissão da informação da recorrida, configura um abuso de direito que por chocar o sentimento de justiça, sempre deveria culminar na total improcedência da acção, rejeitando a atribuição de um indevido prémio ao contraente infractor, ou seja àquele que omitiu informação muito relevante desfavorável ao seu cliente e que agora a decisão recorrida permitiu prevalecer-se.

38.ª O douto acórdão recorrido violou os artigos 238.º n.º1 e 334.º ambos do Código Civil, pelo que deve ser revogado e mantida a sentença proferida em primeira instância por respeitar integralmente a disciplina contratual, assim se fazendo Justiça.


Por contra-alegações, a Autora pugna pela negação da revista.


Da Relação vêm fixados os seguintes Factos:

1. A Autora CAF – Confeções Amaral & Filhos, Lda. é uma sociedade comercial por quotas, com sede na rua de São Sebastião, nº 810, freguesia de Lijó, Barcelos e que se dedica, com escopo lucrativo, à indústria têxtil e de vestuário, importação e exportação.

2. Por seu turno, a Ré Cosec – Companhia de Seguros de Créditos, S.A. é uma sociedade anónima que se dedica com carácter habitual e fim lucrativo à atividade seguradora, designadamente no ramo de seguro de créditos, cobrindo o não pagamento de vendas a crédito de bens e serviços, em Portugal ou no estrangeiro, oferecendo ainda um serviço de apoio para minimizar situações de incumprimento e otimizar a gestão de risco da empresa.

3. Em 1ABR2013 e no desenvolvimento das respetivas atividades comerciais, Autora e Ré celebraram um contrato de seguro de crédito, nos termos do qual esta se obrigava, entre o mais, a indemnizar aquela dos prejuízos sofridos em consequência da verificação de risco de crédito, estando o referido contrato de seguro titulado pela apólice nº ...76, tendo a Ré, através da Garantia nº ...37, atribuído um “Limite de Crédito Garantido, Riscos Comerciais de € 50.000,00” (cinquenta mil euros), com “Início de Validade 27/01/2016”, nos termos do qual esta se obrigava a indemnizar a Autora dos prejuízos sofridos em consequência da verificação de risco de crédito à cliente M..., SL.

4. As condições gerais da apólice de seguro de crédito, subscritas pela Autora, foram elaboradas e redigidas pela Ré sem prévia negociação com a Autora e sem que esta colaborasse na sua elaboração ou discutisse o seu teor e com a predisposição para, de antemão, serem aplicadas em bloco a uma vasta pluralidade de contratos ou uma generalidade de pessoas.

5. A Autora limitou-se a aceitar que o contrato de seguro em causa é regido por tais condições gerais, sem que tivesse sido dada pela Ré à Autora a possibilidade de lhes introduzir modificações, tendo as partes negociado apenas algumas das condições particulares do contrato celebrado: valor de coberturas e mercados.

6. A Autora forneceu à Ré elementos por esta solicitados, designadamente, os relacionados com a sua carteira de clientes, balanços e contas de resultado, para que esta percebesse qual a realidade do potencial segurado.

7. Nos termos das respetivas condições gerais da apólice, constituíram, entre outras, as seguintes coberturas do mencionado contrato:

a) Mora do cliente que subsista por prazo superior ao prazo de constitutivo do sinistro aplicável, fixado nas Condições Especiais ou nas Condições Particulares da Apólice;

b) Falência ou insolvência do Cliente, comprovada por decisão judicial transitada em julgado;

c) Concordata, moratória ou outra medida de efeitos equivalentes celebrada com o cliente e homologada no âmbito de processo judicial, oponível ao segurado;

d) Insuficiência de meios de pagamento do cliente comprovada judicialmente ou reconhecida pela Ré, nomeadamente, quando se verifique a cessão de atividade e inexistência de património penhorável do cliente.

8. Nos termos das condições gerais da referida apólice, são considerados indemnizáveis os créditos sobre clientes estabelecidos nos mercados previstos nas condições particulares, até aos limites de crédito fixados ou aceites pela Ré para cada cliente, que se constituam durante a vigência da apólice e desde que os correspondentes sinistros sejam participados até ao final do ano seguinte ao termo do período de vigência em que o crédito se constituiu.

9. E a percentagem garantida de créditos foi limitada pela Ré em 80%, para os clientes do mercado interno, e em 90% para os clientes de mercado externo.

10. E um capital máximo tarifável de € 700.000.

11. Para além da questão específica do facultar seguro de crédito, e da subsequente indemnização em caso de incobrabilidade, outro aspeto que foi determinante na celebração do contrato com a Ré em concreto foi o facto de esta prestar serviços de apoio com vista à prevenção de riscos.

12. Como na altura informou a Autora e como ainda hoje publicita, a Ré faz uma avaliação e monitorização diária da situação financeira dos clientes dos seus segurados.

13. A Ré transmite aos seus segurados a seguinte informação: “Através da maior e melhor base de dados privada de informação empresarial em Portugal e da rede da E... (acionista COSEC e líder mundial de Seguro de Créditos), com equipas especializadas na recolha, análise e classificação do risco de milhões de empresas em todo o mundo, com o estudo de perspetivas de risco económico, politico e financeiro a nível de países e sectores e com as melhores práticas na cobrança e recuperação de créditos:

1. Ajudamos a identificar os clientes certos para efetuar negócio e o respetivo limite de crédito.

2. Monitorizamos e alertamos imediatamente sobre alterações no comportamento de risco e/ou pagamento dos clientes com quem mantém vendas a crédito para que atue em conformidade.

3. Partilhamos análises económicas para que identifique rapidamente novas oportunidades de mercado e possa tomar as melhores decisões de crédito e de investimento.

4. Incrementamos valor ao seu negócio, tanto na proteção da tesouraria da sua empresa como na minimização de custos de gestão de créditos e na perceção de maior segurança junto de instituições financeiras e outros investidores.

5. Atuamos localmente e em qualquer parte do mundo, ao primeiro de sinal de incumprimento na cobrança e recuperação de créditos, com taxas de sucesso comprovadamente acima da média do mercado e, na maioria das situações, antes do prazo de verificação do sinistro.

6. Asseguramos a indemnização até 30 dias após a verificação de um sinistro, para que não comprometa a liquidez da sua empresa.

7. Acompanhamos permanentemente a gestão da sua apólice, com um gestor de cliente próprio, um atendimento telefónico especializado e um sistema de gestão online disponível 24h por dia.

8. Temos uma oferta flexível e à medida de qualquer empresa nacional”.

14. A Autora é uma microempresa familiar, que se insere numa área de atividade altamente concorrencial e com reduzidas margens de lucro, tendo cerca de 15 funcionários à data da celebração do contrato de seguro.

15. O contrato de seguro de crédito celebrado com a Ré representava um enorme esforço de tesouraria, tendo sido celebrado com um duplo objetivo: i) reduzir o risco de recebimento dos fornecimentos efetuados e ii) obtenção de informações e orientações para as futuras relações com os seus clientes com vista à concessão ou manutenção de fornecimentos a crédito, constituindo assim também uma ferramenta de gestão e controlo.

16. A Autora, confiando nessas aptidões e competências da Ré, passou a determinar e orientar os seus negócios, baseando-se nesses conhecimentos especializados.

17. Na verdade, quando surgia um cliente novo, ou quando um cliente pretendia ver aumentado o volume de fornecimentos, a Autora passou a orientar-se pelas informações facultadas pela Ré, no sentido de se davam cobertura ao crédito, se diminuíam ou se aumentavam o valor da cobertura, etc., para assim darem uma resposta em conformidade, perante as mais diversas solicitações.

18. Tal era naturalmente expectável, pois a Ré publicitava e informava que dispunha da “maior e melhor base de dados empresarial no mercado interno” e dispunha de “uma experiente equipa de analistas e suportada por um sistema de rating próprio”, pelo que quando analisavam e davam resposta a um pedido de cobertura de crédito, acreditava a Autora que a Ré fornecia uma indicação segura e correta sobre o estado económico-financeiro de um cliente com quem trabalhasse já, ou com que pretendesse vir a trabalhar no futuro.

19. A sociedade M..., SL., com sede em ..., Espanha era cliente da Autora desde o ano de 2011.

20. No início do contrato com a Ré, em 2013, a Autora pediu a inclusão desse cliente, solicitando uma cobertura de € 75.000, tendo a Ré incluído a M... como cliente coberto pelas garantias do seguro, com € 25.000 de cobertura.

21. A Ré, em OUT2013, excluiu esse cliente do âmbito das coberturas do contrato.

22. A Autora continuou a fornecer a M..., pelo que continuou também a solicitar cobertura desse cliente junto da Ré, o que esta negava.

23. A Autora solicitou durante o ano de 2014 a inclusão deste cliente nas garantias da apólice, mas a Ré não o abrangeu nas garantias do seguro.

24. A Autora, no início de 2015, solicitou novamente cobertura para a M..., pelo montante de € 75.000, tendo a Ré concedido a cobertura de € 20.000, que veio a retirar passados 10 dias.

25. Em finais de 2015, a M... solicitou à Autora uma encomenda para a nova campanha de 2016.

26. A M..., nessa altura, estava com o plafond de crédito que a autora lhe havia atribuído praticamente todo tomado.

27. E estava a cumprir com a forma de pagamento que havia acordado com a Autora, os quais estavam devidamente calendarizados.

28. Esses fornecimentos, efetuados durante o ano de 2015, não estavam cobertos pelas garantias da apólice do contrato celebrado com a Ré.

29. Como essa possível encomenda para a campanha de 2016 compreendia valores elevados e a M... pretendia uma rápida entrega da mesma, a Autora, antes de a confirmar, solicitou à Ré que incluísse essa empresa entre os clientes seguros pela apólice de seguro de crédito que contratara, pelo montante de € 50.000.

30. A Ré, então, através da Garantia nº ...37, comunicou à Autora a concessão do crédito solicitado, atribuindo um “Limite de Crédito Garantido, Riscos Comerciais de € 50.000”, com “Início de Validade 27/01/2016” e, conforme expressamente referiu, “A presente garantia aplica-se aos créditos constituídos a partir do início da sua validade, substituindo as anteriores relativas ao mesmo cliente”.

31. Segundo o estipulado nas condições gerais e particulares da apólice, os limites de crédito garantidos só são válidos se a apólice estiver em vigor, se o país do cliente estiver incluído na apólice e se o cliente estiver incluído no seguro.

32. Uma vez que a Ré, através da Garantia nº ...37, em 27JAN2016, passou a cobrir os riscos comerciais do cliente M..., entendeu a Autora que esse cliente estava em boa situação económica e financeira, pois até passava a ser garantido e avalizado por uma seguradora de crédito e pela totalidade da cobertura solicitada.

33. E entendeu também a Autora que a Ré analisou as suas contas e obteve informações de fontes credíveis que lhe permitira passar a dar cobertura pelo seguro, pois se tivesse piorado a situação ou se estivesse em risco, a Ré não a abrangeria pela apólice.

34. Conforme se extrai da lista de clientes com garantias em vigor à data de 6JAN2015, o valor máximo que a Ré concedia de cobertura a cada cliente da Autora era de € 30.000.

35. Confiando na avaliação dada pela Ré e com o conforto da garantia concedida, foi assim a Autora incentivada a continuar e mesmo a aumentar os fornecimentos à referida M..., pelo que, no exercício daquela sua atividade de fabrico e venda de artigos têxteis e de vestuário, forneceu ao seu cliente M... as mercadorias melhor discriminadas nas seguintes faturas:

- 1) Fatura nº ...08, emitida em 1FEV2016, com data de vencimento de 1MAI2016, no valor de € 4.863,20;

- 2) Fatura nº ...54, emitida em 16FEV2016, com data de vencimento de 16MAI2016, no valor de € 1.437,80;

- 3) Fatura nº ...66, emitida em 19FEV2016, com data de vencimento de 19MAI2016, no valor de € 1.176,00;

- 4) Fatura nº ...77, emitida em 16MAR2017, com data de vencimento de 14JUN2016, no valor de € 14.401, e

- 5) Fatura nº ...03, emitida em 21MAR2016, com data de vencimento de 19JUN2016, no valor de € 14.392,50.

36. A Autora, em 19ABR2016, teve conhecimento que a M..., muito provavelmente, não iria efetuar o pagamento dos fornecimentos em questão.

37. A Autora, de imediato, comunicou à Ré a “Ameaça de Sinistro” relativa ao cliente M..., SL., a qual foi rececionada em 19ABR2016 e devidamente registada pela Ré.

38. E o Julgado de lo Mercantil nº 1, de ..., Espanha, proferiu decisão denominada “auto”, declarando em situação de “Concurso Voluntario nº 57/2016-P” a entidade mercantil M..., SL., por ter sido considerado o seu estado atual de insolvência.

39. A Autora não recebeu qualquer quantia no âmbito do referido processo de insolvência, estando em dívida a totalidade dos valores relativos às faturas supra discriminadas,

40. o que é do integral conhecimento da Ré, que nesse processo representou a Autora.

41. Relativamente ao mencionado cliente M..., SL., a Ré mantinha válida a garantia de pagamento da quantia de € 50.000, cobertura essa que só veio a cancelar a partir de 5MAI2016.

42. A Ré recusou-se a pagar a quantia devida em virtude da garantia de crédito que prestou à Autora, invocando incumprimento ao disposto no artigo 5º, Ponto IV nº 2 das Condições Gerais da Apólice.

43. A Ré, apesar de por diversas vezes instada pela Autora para pagar, não procedeu ao pagamento da mencionada quantia nos termos das condições contratadas.

44. Nas negociações que se seguiram, a Ré enviou à Autora um e-mail, datado de 11ABR2017, com o teor de folhas 37 e que se dá aqui por reproduzido.

45. A Ré não concedeu esse montante de cobertura – de € 50.000 – a mais nenhum cliente da Autora.

46. A Autora enviou à Ré, que a recebeu, a missiva que se mostra junta a folhas 37 verso a 38, datada de 9SET2016 e cujo teor se dá aqui por reproduzido.

47. Após a concessão pela Ré de um crédito garantido limitado a € 50.000 ao cliente M..., SL., a Autora forneceu a esta mercadorias, no montante total de € 36.270,50.

48. Em 19 de abril de 2016 a autora informou a ré que a sua cliente M... tinha débitos por liquidar que, nessa data, ascendiam a € 72.020,66.

49. E dizia respeito a fornecimento da Autora à sua cliente M..., efetuados entre 17AGO2015 e 21MAR2016 e não pagos por aquela.

50. A fatura ...07, datada de 17AGO2015, tinha vencimento a 17NOV2015.

51. De acordo com o que estipula o artigo 5º I nº 2 das Condições Gerais o segurado poderá acordar com os seus clientes prorrogações, por uma ou mais vezes, dos créditos seguros, até ao prazo máximo de prorrogação aplicável, expressamente indicado nas Condições Especiais ou nas Condições Particulares da apólice, prevendo o artigo VI nº 2 das Condições Particulares como prazo máximo para prorrogação sem autorização prévia da COSEC 60 dias.

52. Na data da comunicação referida em 48º, os créditos da autora sobre a sua cliente M..., SL., e não pagos, remontavam a 17 de agosto de 2015, data de emissão da fatura nº ...07, com vencimento a 17 de novembro de 2015.

53. A autora efetuou fornecimentos de mercadorias ao seu cliente M..., SL. em data posterior a 17 de novembro de 2015, sendo que quando solicitou a garantia do seguro nº 137, com início em 27 de janeiro de 2016, não deu conhecimento à ré que a sua cliente ainda não havia procedido ao pagamento da fatura nº ...07.


Conhecendo:


I


O contrato de seguro de crédito submete-se ao regime que consta do D.-L. n.º 183/88 de 24 de Maio, republicado com o D.-L. n.º 31/2007 de 14 de Fevereiro.

Pode definir-se o mais geral contrato de seguro como “o negócio jurídico pelo qual uma das partes (a seguradora) se obriga a cobrir o risco que certo facto futuro e incerto (sinistro) constitui para a outra parte (segurado), mediante prestação certa e periódica (prémio), que este se compromete a efectuar” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 5.ª ed., pg.661).

Portanto, trata-se de um contrato caracterizadamente aleatório – se a obrigação do segurado é certa, a obrigação da seguradora é incerta e futura.

O concreto contrato de seguro de crédito abarca os riscos derivados de faltas ou atrasos no pagamento de montantes devidos ao credor – art.ºs 161.º n.º1 al.a) da Lei do Contrato de Seguro (Lei n.º 72/2008 de 16/4) e 3.º n.º1 al.c) do D.-L. n.º183/88, designadamente em consequência de insolvência judicialmente declarada (art.º 4.º n.º1 al.a) do D.-L. n.º 183/88). Trata-se de um verdadeiro contrato de indemnização (cf. S.T.J. 9/3/95 Bol.445/564).

Enunciam esses citados preceitos os riscos que podem ser transferidos e os factos que deles são geradores, embora o regime contratual venha a emergir, de forma mais essencial, do clausulado geral e especial que vier a ser acordado, no instrumento do seguro que constitui a respectiva apólice.

Este clausulado deve ser interpretado com observância das regras do art.º 236.º n.ºs 1 e 2 do CCiv, até por remissão da norma do art.º 10.º do D-L nº446/85 de 25/10 (cláusulas contratuais gerais), regras que apontam para que a declaração negocial deva ser interpretada pelo critério do declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, sem prejuízo do conhecimento, pelo declaratário, da vontade real do declarante.

Como escreveu Vasco Lobo Xavier, na Revista Decana (cit. in S.T.J. 10/12/96 Bol.462/419), “o declaratário normal, por cujos olhos se há-de configurar o sentido decisivo da declaração negocial é também o declaratário razoável, ou, mais precisamente, “o participante honesto do comércio jurídico”, na expressão de Larenz (Metodologia da Ciência do Direito)”.



II


O art.º 2.º das Condições Gerais da apólice dos autos cobria os riscos de:

- mora do cliente, subsistindo por prazo superior ao prazo constitutivo do sinistro – 120 dias, vistas as condições particulares da apólice;

- falência ou insolvência do cliente;

- concordata, moratória ou medida judicial de efeito equivalente;

-insuficiência de meios de pagamento pelo cliente, comprovada judicialmente ou reconhecida pela seguradora.

O art.º 3.º n.º5 das mesmas Condições Gerais constituía cláusula de exclusão, abrangendo, entre outros:

- os créditos não declarados ao seguro (al.c);

- os créditos constituídos sobre clientes que já se encontrem em situação de ameaça de sinistro (al.d).

Nos termos do art.º 5.º n.º II/a), a situação de ameaça de sinistro constitui-se quando seja comunicado à Cosec atraso ou falta de pagamento de crédito seguro ou, em qualquer caso, quando se mantenha o não pagamento, total ou parcial, de crédito, após decorrido o prazo estipulado na apólice para prorrogações sem necessidade de autorização prévia da Cosec; quando o crédito não seja pago nas datas de vencimento prorrogadas com acordo da seguradora; quando ocorra, relativamente ao cliente “acto ou facto susceptível de conduzir a atraso ou falta de pagamento dos créditos seguros (…)”.

Também nos termos do art.º 5.º n.ºIV/1 das cláusulas gerais, “o segurado será diligente na prevenção dos riscos e na redução dos prejuízos, tomando acções segundo o estabelecido na apólice e o que for determinado por escrito pela Cosec, ao longo da vigência do seguro e enquanto se mantiverem os seus efeitos”.

E, para o art.º 5.º n.º IV/2, sempre que se verifique uma situação de ameaça de sinistro, o segurado obriga-se a suspender as entregas de bens ou a prestação de serviços para o cliente, salvo acordo prévio da Cosec.

O incumprimento desse dever (art.º 5.º n.ºIV/3) “acarreta a redução das indemnizações, em função do dano causado, podendo, quando as acções ou omissões do segurado impedirem a cobrança dos créditos seguros ou a recuperação dos valores indemnizados, a Cosec exonerar-se do pagamento da indemnização ou reclamar do segurado a devolução de indemnização já paga; o incumprimento do n.º2 confere sempre à Cosec o direito de se exonerar do pagamento de qualquer indemnização relativa à ameaça comunicada, independentemente do dano”.

Aliás (art.º 5.º n.ºIII/3), a Cosec fica exonerada da obrigação de indemnizar prejuízos relativos a quaisquer créditos do segurado sobre cliente em situação de ameaça de sinistro, se a mesma não tiver sido comunicada à Cosec nos seis meses seguintes à sua constituição.

Já em face do art.º 4.º n.º I/1, o segurado obriga-se a submeter à apreciação da Cosec todos os clientes com quem mantenha operações de crédito, mais devendo fornecer todos os elementos e informações desfavoráveis de que disponha, sob pena de aplicação do disposto no n.º3 do art.º 11.º, que confere à seguradora o direito de resolver o contrato, com efeitos retroactivos ao início da vigência ou da revogação, ou o direito de a seguradora restringir a eficácia do contrato, dele excluindo determinados clientes do segurado ou determinados créditos.



III


Na interpretação destas disposições contratuais se jogou a divergência das instâncias:

- para o Juízo Local, verifica-se a cláusula de exclusão do art.º 3.º n.º5 das Condições Gerais, posto que os créditos relativos à garantia reclamada foram constituídos sobre cliente que já se encontrava em situação de ameaça de sinistro (al.d); exclusão ou exoneração de pagamento também prevista no art. 5.º nºIV/3; na verdade, à data em que acordou a garantia do seguro com a Ré, o segurado não podia deixar de saber que existia crédito anterior ao início da garantia e que se encontrava em situação de ameaça de sinistro, decorridos mais de 60 dias depois do vencimento de uma factura da responsabilidade da cliente incluída na cobertura negociada em 27/1/2016;

- para a Relação, há que distinguir: a ameaça de sinistro apenas será contratualmente relevante com relação a créditos constituídos em momento coberto pela garantia (únicos abrangidos pelo seguro – art. 1.º n.º1 parte final das Condições Gerais); a não informação acerca do incumprimento relativo a determinada factura anterior à vigência da garantia, em abstracto podendo constituir “ameaça de sinistro”, à luz do disposto nos art.ºs 4.º n.º I/1 e 11.º nº3 das Condições Gerais, desencadeia apenas as consequências da possibilidade conferida à seguradora de resolução do contrato ou da respectiva redução.



IV


Ajuizou bem a Relação.

As cláusulas de exclusão da responsabilidade devem ser formuladas em termos claros e precisos, permitindo ao segurado conhecer plenamente a extensão exacta da garantia do seguro (Bertrand Beignier, Droit du Contrat d`Assurance, 1999, pgs. 181 e 182).

Não faria sentido que a violação da obrigação da comunicação de ameaça de sinistro fosse, a um tempo, causa de exclusão da responsabilidade da seguradora e, ao mesmo tempo, causa de resolução do contrato, assim gerando uma verdadeira possibilidade de sobrevicção da seguradora e uma outra possibilidade acrescida, conferida à seguradora, de não fazer operar a cobertura do seguro.

Por outro lado, as cláusulas de exclusão devem contribuir para o discernimento do risco e não para o eliminar, contribuindo assim para que o objecto do contrato possa desaparecer.

Esse o entendimento do declaratário normal, colocado na posição da Autora.

De todo o modo, na dúvida sobre que créditos se deveriam considerar sob “ameaça de sinistro”, deveria prevalecer o sentido mais literal utilizado pela Relação, por ser aquele que mais favorece o segurado (cf. art.º 11.º n.º2 do D.-L. n.º 446/85).

Há assim que concluir, como atrás explicitado, que “a ameaça de sinistro apenas será contratualmente relevante com relação a créditos constituídos em momento coberto pela garantia (únicos abrangidos pelo seguro – art. 1.º n.º1 parte final das Condições Gerais); a não informação acerca do incumprimento relativo a determinada factura anterior à vigência da garantia, em abstracto podendo constituir “ameaça de sinistro”, à luz do disposto nos art.ºs 4.º n.º I/1 e 11.º nº3 das Condições Gerais, desencadeia apenas as consequências da possibilidade conferida à seguradora de resolução do contrato ou da respectiva redução”.

Não deixa de ser verdade, é certo, que, “à data em que acordou a garantia do seguro com a Ré, o segurado não podia deixar de saber que existia crédito anterior ao início da garantia e que se encontrava em situação de ameaça de sinistro, decorridos mais de 60 dias depois do vencimento de uma factura da responsabilidade da cliente incluída na cobertura negociada em 27/1/2016” – mas uma tal constatação não pode fazer renascer, por aplicação do instituto do abuso de direito (art.º 334.º do CCiv), as exclusões contratuais, sobretudo quando se constata que a Ré não utilizou o meio à sua disposição, nos termos das condições gerais, de resolução do contrato.

Concluindo:

I – O regime contratual do contrato de seguro vem a emergir, de forma essencial, do clausulado geral e especial acordado no instrumento do seguro que constitui a apólice, clausulado que deve ser interpretado com observância das regras do art.º 236.º n.ºs 1 e 2 do CCiv, por remissão da norma do art.º 10.º do D-L nº446/85 de 25/10.

II – As cláusulas de exclusão da responsabilidade devem ser formuladas em termos claros e precisos, permitindo ao segurado conhecer plenamente a extensão exacta da garantia do seguro e mais devem contribuir para o discernimento do risco, não para o eliminar.

III - Na dúvida sobre o alcance da cláusula de exclusão da responsabilidade da seguradora, deve prevalecer o sentido mais literal, por ser aquele que mais favorece o segurado (cf. art.º 11.º n.º2 do D.-L. n.º 446/85).

Deliberação:

Nega-se a revista.

Custas pela Recorrente.

S.T.J., 15/12/2022

                           

Vieira e Cunha (Relator)

Ana Paula Lobo                           


Afonso Henrique Cabral Ferreira