Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B3630
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUCAS COELHO
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONDIÇÃO SUSPENSIVA
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
DEVER ACESSÓRIO
DEVER DE PRESTAR
INCUMPRIMENTO
MORA DO CREDOR
MORA DO DEVEDOR
Nº do Documento: SJ200409230036302
Data do Acordão: 09/23/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 337/03
Data: 04/03/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : I - O denominado «acordo de retoma», pelo qual a ré, fornecedora de equipamento dado a determinada pessoa em locação financeira pela autora - 4 máquinas de lavandaria -, se obrigou a comprá-lo a esta ao preço convencionado, no caso de incumprimento do contrato pela locatária em certos termos, mediante simples comunicação escrita da locadora ora demandante, semelhante acordo pode ser qualificado como contrato de compra e venda sob a condição suspensiva do aludido incumprimento e comunicação;
II - Correspondendo, aliás, a interpretação do acordo de retoma como contrato de compra e venda à vontade real comum dos contraentes, a tal compreensão do negócio não pode o Supremo Tribunal de Justiça, conforme o disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 236.º do Código Civil, preferir uma diversa interpretação normativa;
III - Verificada a condição, aperfeiçoou-se entre as partes o contrato de compra e venda do equipamento, produzindo-se consequentemente, mercê do contrato, em sintonia com o sistema delineado nos artigos 874.º e 879.º, além do efeito real da transmissão da propriedade das máquinas para a titularidade da ré [alínea a) do segundo normativo citado], os efeitos obrigacionais da entrega das mesmas [alínea b)], impendendo a obrigação respectiva sobre a autora, e do pagamento do preço [alínea c)], a cargo da ré;
IV - Fluindo do acordo que a entrega do equipamento tinha lugar no estado e local em que se encontrasse, incumbindo à ré proceder ao seu levantamento e recepção em presença de um representante da autora, e convencionando-se ademais que o preço seria liquidado a pronto nesse mesmo local pela ré compradora na data em que procedesse à recepção do equipamento, então o cumprimento das obrigações legalmente emergentes da compra e venda - quer a entrega das máquinas pela autora alienante, quer o pagamento do preço pela ré adquirente - foi tornado dependente do cumprimento da obrigação de levantar o equipamento assumida pela ré, a qual surgia, por seu lado, mediante a comunicação escrita da autora aludida em I;
V - A obrigação de a ré proceder ao levantamento das máquinas compradas, deslocando-se inclusive ao local em que as mesmas se encontrassem, apesar de a entrega delas constituir obrigação legal da vendedora, não se caracteriza como mero «dever de conduta» (Verhaltenspflicht) imposto pelos ditames da boa fé, mas como verdadeiro «dever de prestação» (Leistungspflicht) que nasce com a celebração e o aperfeiçoamento da compra e venda, singularizando no seu conteúdo, significado e escopo os contornos da relação obrigacional que neste tem a sua génese;
VI - A natureza jurídico-concreta desse dever não se reduz sequer ao plano dos deveres de prestação secundários, constituindo antes um «dever de prestação primário», mercê do qual surge a relação obrigacional cunhada na sua especificidade, tanto mais que o cumprimento das obrigações de entrega da coisa e de pagamento do preço, típicas da compra e venda, fora colocado na estrita dependência do cumprimento do referido dever da ré;
VII - Verificado o incumprimento da locação financeira mencionado em I, as comunicações escritas da autora à ré por cartas de 16 de Junho de 1993, 30 de Julho subsequente e 15 de Maio de 1997, solicitando o pagamento do preço e a indicação da data em que a ré pretendia levantar as máquinas, e precisando ainda que o equipamento se encontrava à disposição da ré em determinado local, traduziram verdadeira oferta da prestação das máquinas à respectiva credora por parte da obrigada legalmente à entrega;
VIII - Incumprindo, todavia, a ré o dever de levantamento e recepção do equipamento assim oferecido, ficou por este lado constituída em mora creditoris (artigo 813.º do Código Civil); e deixando, consequentemente, de efectuar o pagamento do preço a que se obrigara, no tempo e lugar da recepção das máquinas, incorreu em mora debitoris no tocante a esta outra prestação (artigos 798.º e 804.º).
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
"A", com sede no Porto, instaurou em 9 de Dezembro de 1997, contra B., sediada em Lisboa , acção ordinária que veio a seguir termos no Tribunal de Setúbal, tendente à condenação desta a pagar-lhe 3 232 579$00, acrescidos dos juros moratórios legais vencidos desde 16 de Junho de 1993 e vincendos até integral pagamento.
Alega que a ré lhe forneceu determinado equipamento mobiliário (máquinas) de lavandaria para que a autora, no exercício da sua actividade comercial, o desse em locação financeira a C, vinculando-se a demandada, em resumo, a comprar-lhe de novo o equipamento, no caso de incumprimento da locatária, por preço proporcionado ao prejuízo sofrido pela demandante.
E vindo realmente a verificar-se o incumprimento da locação financeira a propósito celebrada, por falta de pagamento de rendas que deu lugar à resolução do contrato, a autora exigiu à ré a aludida quantia a título de preço da «retoma», recusando esta, todavia, o pagamento.
Contestada a acção e prosseguindo o processo os trâmites legais, a sentença final, de 11 de Fevereiro de 2002, julgou a acção procedente, condenando a ré nos pedidos.
Apelou esta com sucesso, tendo a Relação de Évora em provimento do recurso decretado a improcedência da acção e a absolvição da ré.
Do acórdão neste sentido proferido, em 3 de Abril de 2003, traz a autora a presente revista, cujo objecto, considerando a respectiva alegação e suas conclusões, à luz da fundamentação da decisão em recurso, consiste estritamente em saber se a ré incorreu em mora no tocante às obrigações emergentes da compra e venda do equipamento.
II
1. A Relação considerou assente a matéria de facto já dada como provada na 1.ª instância, procurando de algum modo corrigir o procedimento - incorrecto e assaz perturbador -, aí reiterado, de dar por reproduzido e assente o conteúdo e teor de documentos e documentos juntos ao processo.
Para essa factualidade se remete nos termos do n.º 6 do artigo 713.º do Código de Processo Civil, interessando, todavia, aludir desde já aos seguintes factos nuclearmente relevantes, sem prejuízo de outras alusões pertinentes:
1.1. «Em Março de 1990 a ré assumiu perante a autora as obrigações que constam do documento de fls. 7 dos autos cujo teor se dá por inteiramente reproduzido, por referência a um contrato de locação financeira celebrado entre a segunda e D e tendo por objecto os bens de equipamento que constam da factura de fls. 8» [alínea c) da especificação];
1.2. O documento de fls. 7 dado como reproduzido é uma carta subscrita pela ré, com data de 5 de Março de 1990, dirigida à autora, na qual declara - com referência ao aludido contrato de locação financeira sobre o equipamento constante da factura de fls. 8, por ela fornecido à autora ao preço de 4 375 800$00 - que, no caso de incumprimento por parte da locatária, «nos obrigamos, mediante simples comunicação escrita de V. Ex.as:
- «a adquirir o equipamento à A a pronto pagamento no estado e local em que se encontrar, pelo preço correspondente ao montante do capital em dívida na data do início do incumprimento;
- «o pagamento será feito na data do levantamento do equipamento, acrescido de juros de mora sobre o capital em dívida na data do início do incumprimento pelo período decorrido entre a data do incumprimento e o respectivo pagamento;
- «o levantamento do equipamento será feito por pessoal especializado da fornecedora "B, Lda." na presença de um representante da A;
- «para efeitos de definição de incumprimento da locatária, considera-se que há incumprimento logo que deixe de liquidar:
- 2 rendas consecutivas, ou
- 3 rendas não consecutivas.
«Por sua vez a A, contra o pagamento acima, procederá à resolução do contrato, sub-rogando a fornecedora nos seus direitos sobre a locatária.»
1.3. Da factura junta a fls. 8, emitida pela ré à autora na mesma data de 5 de Março de 1990, consta o equipamento referido, composto de 4 máquinas - a saber: Máq. L/seco marca Union (...); Máq. passar a ferro marca Pony (...); Máq. lavar roupa marca Miele (...); Secador marca Miele -, os respectivos preços unitários, e o já mencionado preço global de 4 375 800$00, incluindo IVA;
1.4. «Conhecedora da actividade comercial da autora, propôs-se então a ré à autora garantir-lhe que, em caso de incumprimento contratual por parte da locatária, ela recompraria o equipamento a um preço proporcionado ao prejuízo que a autora sofresse» (quesito 3.º);
1.5. «A locatária (...) só pagou à autora 12 rendas das contratualmente previstas no montante de 111.673 $00»(2), e «por isso a autora enviou à mesma locatária a carta» de fls. 19 e 20, datada de 16 de Junho de 1993, «resolvendo nessa altura o contrato de locação financeira que com esta tinha celebrado» (quesitos 6.º e 7.º);
1.6. Na mesma data de 16 de Junho de 1993 em que comunicou à locatária a resolução do contrato, a autora enviou à ré e esta recebeu a carta de fls. 22, informando-a do incumprimento, e solicitando, conforme o acordo de «retoma», o pagamento imediato da quantia em dívida de 3 232 579$00 e a comunicação da «data em que pretendem levantar o equipamento», constituído pelas 4 máquinas de lavandaria [alínea g)] (3);
1.7. «Já em 13 ou 14 de Agosto de 1991, por carta registada com A/R a autora avisou a ré de uma situação de incumprimento da locatária (...), solicitando o pagamento das quantias em débito.» «A ré, na sequência de comunicação da autora, deslocou-se às instalações da locatária onde lhe foi dito que estava a diligenciar um acordo que resolvesse o diferendo com a autora.» «O gerente da ré deslocou-se várias vezes às instalações da lavandaria no intuito de levantar as máquinas.» (quesitos 8.º, 9.º e 10.º);
1.8. «A autora após levantar o equipamento das instalações da locatária depositou-o em Leiria» (quesito 16.º);
1.9. Deu-se como reproduzido e assente o teor da carta de 15 de Maio de 1997, junta a fls. 43, que a autora enviou à ré e esta recebeu, comunicando-lhe nomeadamente que «os bens encontram-se à n/guarda e à v/disposição nas instalações da Pórtico, Lda., em Charneca da Carreira de Água, Barosa, Leiria», recordando ainda que pela carta de «16 de Junho de 1993, ao abrigo do acordo de retoma (...) reclamou a importância de 3 232 579$00 (IVA incluído), resultante do incumprimento (...) ocorrido em 5 de Março de 1991», na qual também era solicitada a sua «intervenção no levantamento dos equipamentos», nada se tendo, porém, concretizado [alínea o)];
Transcreve-se o contexto da carta especificada a título de melhor elucidação:
«Vimos pela presente lembrar que em 16/6/93, ao abrigo do acordo de retoma subscrito por V. Ex.as, no contrato identificado em epígrafe, a A, reclamou a importância de Esc. 3 232 579$00 (IVA incluído), resultante do incumprimento/capital em dívida, ocorrido em 5/3/91.
Do mesmo modo era solicitado a V. Ex.as, a intervenção no levantamento dos equipamentos.
Entretanto, e uma vez nada concretizado, a A, não teve outra alternativa (recuperou os bens em 21/7/95).
Pelo exposto, somos a informar:
1) - os bens encontram-se à n/ guarda e à v/ disposição, nas instalações da ...., Lda., em Charneca da Carreira de Água, Barosa, Leiria - Telefone 044 856022;
2) - encontram-se (perante a A), em débito desde 16/6/93, da importância supra-citada, valor aquele, sujeito obviamente ao acréscimo de juros de mora à taxa de 15%.
Assim, para o pagamento da quantia em dívida, dispõem V. Ex.as, do prazo de 10 dias, a contar da data de recepção desta carta. Findo este prazo, será imediatamente e sem mais, instaurada a competente acção judicial.» [alínea o) da especificação]
1.10. «O restante equipamento em falta descrito na factura de fls. 8 dos autos e aludido na alínea c) da especificação foi já vendido» (quesito 18.º) (4) ..
2. A partir dessa factualidade, ponderando o direito tido por aplicável, a sentença julgou como sabemos a acção procedente, condenando a ré nos pedidos.
Considerou fundamentalmente que o acordo entre as partes dito de «retoma» implicava a assunção pela ré da obrigação de comprar à autora o equipamento locado, se a locatária deixasse de pagar 2 rendas consecutivas ou 3 alternadas, bastando nesse sentido a mera comunicação escrita da autora para a ré readquirir, pelo montante em dívida, o equipamento.
Foi o que exactamente aconteceu: a locatária não solveu as prestações previstas e a ré ficou sujeita à obrigação de comprar o equipamento, tanto mais que a autora lhe comunicou o vencimento da obrigação por carta de 16 de Junho de 1993 (supra, II, 1.6.).
E não a tendo cumprido, ficou em mora desde a data daquela comunicação (artigo 805.º, n.º 1, do Código Civil), incorrendo em responsabilidade contratual e no dever de indemnizar a autora (artigos 798.º e 799.º, n.º 1).
3. A Relação concluiu ao invés não se ter verificado incumprimento do «contrato de retoma» imputável à ré, absolvendo-a, com sabemos, do pedido e revogando a sentença do Tribunal de Setúbal, em resumo com os fundamentos seguintes.
Desde logo, considera o acórdão sub iudicio inexistir divergência entre as partes no tocante à qualificação do negócio jurídico como compra e venda, e à produção do efeito real de transferência da propriedade dos respectivos bens para a demandada mediante a comunicação do incumprimento da locatária através da carta de 16 de Junho de 1993 (supra, II, 1.10.), conforme decidido na sentença sem que no recurso dela interposto se questionassem estes aspectos.
Restava, pois, no conjunto de obrigações emergentes da compra e venda - entrega da coisa e pagamento do preço [artigo 879.º, alíneas b) e c)] - a questão de saber qual a obrigação da ré e se esta foi ou não cumprida.
Pois bem. O que neste conspecto foi estipulado no contrato de 5 de Março de 1990 (supra, II, 1.2.), é que a ré adquiriria o equipamento à autora «a pronto pagamento no estado e local em que se encontrar», e que «o pagamento será feito na data do levantamento do equipamento». A data do levantamento determinava, por conseguinte, a data do pagamento, não havendo prazos diferentes para o cumprimento das prestações.
Ora, a autora exigiu à ré, mediante carta de 16 de Junho de 1993 (supra, II, 1.10.), o pagamento imediato do preço, limitando-se solicitar-lhe a indicação da data em que a ré pretendia levantar o equipamento, sem do mesmo passo haver oferecido a entrega, ou declarado que o levantamento do mesmo seria em simultâneo.
Assim, mostrando a matéria de facto provada que o equipamento se encontra em poder da autora, assistia e assiste à ré, tratando-se de contrato sinalagmático, a faculdade de recusar o pagamento do preço sem incorrer em mora (artigo 428.º, n.º 1) - ademais, a ré fizera diversas diligências de colaboração no sentido do cumprimento da compra e venda, como por exemplo as deslocações do seu gerente aludidas no quesito 10.º (supra, II, 1.7.) (5).
4. Da decisão dissente a autora mediante a presente revista, rematando a alegação em 57 extensas e repetitivas conclusões, que sintetizaríamos nos nucleares tópicos seguintes:
4.1. Face ao incumprimento do contrato de locação financeira pela locatária, a autora resolveu o contrato mediante carta a esta dirigida em 16 de Junho de 1993;
4.2. Na mesma data diligenciou por carta junto da ré, no sentido do cumprimento na íntegra do «acordo de retoma», predispondo-se por sua parte a assumir as obrigações do mesmo emergentes, para o que solicitava a indicação da data em que a demandada pretendia levantar o equipamento a fim de a autora se fazer aí representar;
4.3. Com efeito, resulta claramente do contrato que o pagamento seria feito quando do levantamento do equipamento pela ré - por «pessoal especializado da fornecedora B» -, estando presente um representante da autora;
4.4. A ré não satisfez, porém, a solicitação até ao presente, apesar de a autora a ter interpelado de novo no mesmo sentido mediante carta de 15 de Maio de 1997, nunca procedeu ao levantamento do equipamento por culpa sua, nem demonstrou desde 1993 qualquer interesse em fazê-lo;
4.5. Não assistia portanto à ré a faculdade de recusar o pagamento do preço, uma vez que a ela se deve o facto de não ter havido tradição do equipamento;
4.6. Consequentemente, no contrato bilateral em causa, por um lado ocorreu mora creditoris da ré, à luz do artigo 813.º do Código Civil, porquanto, interpelada em 1993 e 1997 para designar a data de levantamento do equipamento, não o fez, deixando de praticar os actos necessários ao cumprimento da obrigação da autora recorrente, e recusando mesmo a prestação que esta lhe oferecia;
4.7. Por outro lado, houve mora debitoris da mesma no tocante ao pagamento do preço, a solver com o levantamento do equipamento posto à sua disposição, mas não levantado por causa imputável à ré, que deste modo incorreu em responsabilidade contratual pelo incumprimento (artigos 798.º, 799.º, n.º 1, 804.º, 805.º, n.º 1, 806.º e 813.º);
4.8. O acórdão recorrido violou, por conseguinte, os citados preceitos do Código Civil.
5. Na sua contra-alegação pronuncia-se a ré pela confirmação do acórdão recorrido, salientando nomeadamente o facto - provado mercê da resposta ao quesito 18.º (fls. 93 e 133; cfr. supra, II, 1.8. e nota 4 - de a autora ter entretanto vendido a terceiros uma parte das máquinas que constituíam o equipamento, não podendo em consequência reclamar o respectivo preço.
III
Coligidos os necessários elementos de apreciação, cumpre decidir.
1. Resulta de todo o exposto que em 5 de Março de 1990 foi celebrado entre autora e ré um «acordo de retoma» de equipamento constituído por máquinas de lavandaria que esta fornecera e vendera àquela, a fim de pela primeira serem dadas a determinada pessoa em locação financeira.
Nos termos desse acordo, caso a locatária incumprisse em certos termos o contrato de locação, obrigava-se a ré, mediante simples comunicação escrita da autora: a adquirir-lhe de novo as máquinas, a pronto pagamento, no estado e local em que se encontrassem, pelo preço correspondente ao montante da dívida da locatária na data do incumprimento, acrescido dos juros de mora respectivos; a levantar o equipamento, em presença de um representante da autora; a pagar o preço e os juros na data do levantamento das máquinas.
2. Se bem que visando um escopo funcionalmente garantístico do locador contra o inadimplemento das obrigações do locatário no leasing de base, o negócio que vem de se esboçar é relativamente independente do contrato de locação financeira celebrado - figura contratual cuja conceitualização, por seu turno, não pressupõe de plano necessariamente uma relação jurídica triangular extensiva ao fornecedor do bem (6) -, sendo por isso susceptível de construção e interpretação jurídica autónoma.
Poderia assim pensar-se na figuração linear do contrato de compra e venda sob condição suspensiva do incumprimento da locação e da conexa admonição à ré, aliás harmónica dir-se-ia com as soluções inferidas do convénio pela interpretação consensual dos contraentes.
Sobre tudo releva, efectivamente, a existência de consenso entre as partes no sentido de que, pelo incumprimento da locatária e da comunicação escrita da autora à ré, consoante a previsão do denominado «acordo de retoma», se aperfeiçoou entre ambas um contrato de compra e venda do equipamento, determinando a produção do efeito real de tansmissão da propriedade das máquinas, bem como as obrigações de entrega/levantamento das mesmas e de pagamento do preço nas condições de tempo e lugar gizadas no acordo.
E sendo essa a vontade real dos contraentes que flui dos factos relevantes e do entendimento pacífico das instâncias nesse plano, a tal compreensão do negócio, conforme o entendimento corrente dos ns.º 1 e 2 do artigo 236.º do Código Civil, não poderia este Supremo Tribunal preferir quiçá uma diversa interpretação normativa.
3. As divergências surgem, bem ao invés, a partir daqui.
Em suma. A ré devia, por um lado, proceder ao levantamento das máquinas no local, por último, da cidade de Leiria em que a autora, logrando finalmente recuperar o seu domínio após a resolução do contrato de locação, lhe comunicou tê-las ao seu dispor. Cumprindo-lhe, por outro lado, solver o preço aquando do levantamento.
Posto isto, considera o acórdão sub iudicio que a autora exigiu o preço das máquinas vendidas, mas absteve-se de oferecer a entrega destas, pelo que a ré podia, sem incorrer em mora, recusar o pagamento nos termos do n.º 1 do artigo 428.º do Código Civil - exceptio non adimpleti contractus.
Sustenta em contraponto a autora recorrente que a ré não gozava desta faculdade por lhe ser imputável o não levantamento do equipamento, implicando do mesmo passo mora na sua qualidade de credora da entrega da coisa, e mora na sua posição de devedora do preço não solvido.
4. Entendemos, tudo ponderado, que a razão está do lado da recorrente.
4.1. Consoante a vontade real dos contraentes no acordo de «retoma», verificado o incumprimento do contrato de locação financeira nele previsto e a consequente comunicação da autora à ré a que o mesmo se refere - incluindo a determinação do preço, em montante aliás não litigioso -, assim se aperfeiçoou entre as partes um contrato de compra e venda do equipamento em apreço.
Produziram-se consequentemente mercê do contrato, em sintonia com o sistema tipificado nos artigos 874.º e 879.º do Código Civil, além do efeito real da transmissão da propriedade das máquinas para a titularidade da ré [alínea a) do segundo normativo citado], os efeitos obrigacionais da entrega das mesmas [alínea b)], impendendo a obrigação respectiva sobre a autora, e do pagamento do preço [alínea c)], a cargo da ré.
Pois bem. Na dilucidação do problema da mora da ré concernente ao cumprimento destas obrigações, objecto do presente recurso, relevam primacialmente os vectores de tempo e lugar de efectivação das correspondentes prestações, cujo regime o Código Civil enuncia a título supletivo nos artigos 772.º e segs. e 777.º e segs., respectivamente.
4.2. Trata-se, porém, de normação grosso modo aqui inaplicável, uma vez terem as partes estipulado no contrato as regras básicas aplicáveis em ambas as vertentes, como oportunamente se viu (supra, II, 1.1. e 1.2.).
Assim, quanto ao lugar, ficou determinada no acordo a entrega do equipamento no local em que o mesmo se encontrasse, sem restrições, precisando-se incumbir à ré pelo seu pessoal proceder ao levantamento ou recepção do mesmo em presença de um representante da autora. O preço seria, por sua vez, liquidado pela ré nesse mesmo local a pronto pagamento.
Pagamento este - observando agora as prestações pelo prisma do tempo de cumprimento - que igualmente se convencionou dever ser efectuado pela ré compradora na data em que procedesse à recepção do equipamento perante o representante da autora.
Sublinhe-se em breve parêntesis que do cumprimento desta obrigação de levantar o equipamento, pela ré assumida, foi, por conseguinte, tornado dependente o cumprimento das obrigações legalmente emergentes da compra e venda - quer a entrega da coisa pela vendedora A, quer o pagamento do preço pela compradora E.
E só não podia compreensivelmente especificar-se a data nem o prazo do levantamento das máquinas porque tudo estava subordinado ao incumprimento, futuro e incerto, do contrato de locação financeira.
Não se olvide, porém, que as obrigações da ré, em especial a obrigação chave de levantar o equipamento, surgiam mediante comunicação escrita da autora.
E daí que, verificado o incumprimento da locação financeira, a autora o tenha comunicado à ré, primeiro mediante carta de 16 de Junho de 1993, reafirmada em 30 de Julho seguinte, solicitando o pagamento do preço e a indicação da data em que a ré pretendia levantar as máquinas (supra, II, 1.6. e nota 3) e, mais tarde, por carta de 15 de Maio de 1997, precisando que o equipamento se encontrava à disposição da ré em local certo de Leiria, e reiterando o teor daquela outra missiva quanto ao pagamento do preço e ao levantamento das máquinas ainda não concretizado, como se provou (supra, II, 1.9.)
Nos termos expostos, apesar de admonição da demandante, a ré não cumpriu a obrigação, emergente do acordo de «retoma», de levantar as máquinas no local em que se encontrassem, e por último em Leiria, de cujo adimplemento dependia como vimos o cumprimento da obrigação legal de entrega que impendia sobre a autora.
Não tem, por conseguinte, fundamento plausível, salvo o devido respeito, a asserção do acórdão em recurso segundo a qual a autora exigiu à ré o preço das máquinas, mas sem do mesmo passo lhe haver oferecido a entrega destas ou declarado que a mesma teria lugar em simultâneo, o que tal autorizaria, na suposição da Relação, a legítima recusa do pagamento do preço à sombra do n.º 1 do artigo 428.º do Código Civil.
Muito ao invés de tal omissão, antes a autora a todas as luzes concitou a ré a levantar o equipamento na data que a esta aprouvesse, desde que a decisão lhe fosse transmitida, habilitando-a a fazer-se representar.
Tratou-se dito por outras palavras, verdadeiramente, de, na sua posição de obrigada legalmente à entrega, oferecer a prestação em causa à respectiva credora.
E assim se configurando realmente a situação, de modo algum se não se erra pode considerar-se preenchido o tipo legal da excepção de não cumprimento delineado no citado normativo do Código Civil.
4.3. Como racionalizar, todavia, no plano jurídico aquela obrigação da ré? Não virá efectivamente a despropósito na presente fundamentação ensaiar em breve rasgo um passo mais, perquirindo acerca da sua natureza, na perspectiva do respectivo incumprimento.
A relação obrigacional emergente de contrato sinalagmático - assim no caso sub iudicio - caracteriza-se como relação jurídica em que dois ou mais sujeitos se encontram reciprocamente investidos no direito de exigir e na obrigação de cumprir certas prestações que justamente determinam o tipo da relação obrigacional (7).
Trata-se de «deveres de prestação» - Leistungspflichten - que a singularizam, conferindo-lhe conteúdo e significado. Certa prestação do devedor ou de ambas as partes na relação bilateral, cuja realização representa normalmente a consecução do escopo em que se esgota a relação obrigacional.
Entre estes avultam os «deveres de prestação primários» ou «principais», mercê dos quais surge a relação obrigacional cunhada na sua especificidade - v. g., os deveres de entrega da coisa do vendedor e de pagamento do preço do comprador.
Mas a seu lado, num plano acessório e de menor significado, conquanto participando com eles na configuração da relação obrigacional, surgem por vezes determinados «deveres de prestação secundários», justamente, que nem por nascerem eventualmente no desenvolvimento ulterior deixam de repousar na relação originária - v. g., o dever de indemnização por danos resultantes da mora ou cumprimento defeituoso de um dever de prestação primário.
Além dos deveres de prestação, emergem ainda lateralmente «outros deveres de conduta» (weitere Verhaltespflichten) com fonte na relação obrigacional, consoante a intensidade da específica vinculação, em diferente medida e extensão, deveres de mútuo respeito e consideração pelos interesses da contraparte, traduzindo o tipo de comportamento que é possível esperar em geral de contratantes probos e leais, decorrendo numa palavra do princípio da boa fé.
Um dos traços individualizadores das duas categorias reside na circunstância de os deveres de prestação, ao invés normalmente dos demais deveres de conduta, terem por via de regra o seu conteúdo definido de antemão, o que torna possível a exigência judicial da prestação mediante acção de cumprimento, como a presente.
Em face da sumária teorização esboçada, facilmente se concluirá que a obrigação impendente sobre a ré de proceder ao levantamento das máquinas compradas, deslocando-se inclusive ao local onde as mesmas se encontrassem, apesar de a entrega delas constituir obrigação legal da vendedora, uma similar obrigação não se caracteriza como mero dever de conduta imposto pelos ditames da boa fé. Trata-se de verdadeiro dever de prestação que nasce com a celebração do contrato de compra e venda, definindo desde o início os contornos da relação obrigacional que nele tem a sua génese.
Crê-se inclusivamente que a natureza jurídico-concreta desse dever não se reduz ao plano dos deveres de prestação secundários.
Como houve o ensejo de mostrar, o cumprimento das obrigações de entrega da coisa e de pagamento do preço, típicas da compra e venda, foi colocado na estrita dependência do cumprimento do aludido dever da ré, concorrendo este, por consequência, de modo relevante para a definição na origem da relação obrigacional.
4.4. Incumprindo, pois, um semelhante dever da recepção do equipamento, que verdadeiramente lhe era oferecida como se notou pela obrigada à entrega, mediante comunicações escritas de 16 de Junho de 1993, reiterada em 30 de Julho subsequente, e por último de 19 de Maio de 1997, ficou por este lado a ré em mora creditoris, nos termos do artigo 813.º do Código Civil.
Deixou a ré consequentemente de efectuar a prestação do preço a que se obrigara, no tempo e lugar da recepção das máquinas, incorrendo por isso em mora debitoris desde a mesma data, tal como vem alegado pela recorrente.
5. Segue-se como lógico corolário extrair as consequências do incumprimento não definitivo da ré na segunda vertente, em função do pedido de pagamento do preço acrescido dos juros moratórios legais.
Pois bem. O pedido do preço compreende-se como correspectivo sinalagmático das 4 máquinas objecto da compra e venda que integra a causa de pedir da acção, cuja propriedade se transferiu para a titularidade da ré pelo aperfeiçoamento do contrato, embora mantendo-se as mesmas na detenção da autora.
Provou-se, todavia, que uma parte dessas máquinas detidas pela autora foi já vendida (supra, II, 1.10. e nota 4), e não se dispõe de elementos que permitam determinar qual o quantitativo do preço a que a autora tem direito.
Nestas condições, o apuramento do montante da responsabilidade da ré dentro dos limites do pedido concretamente formulado deve remeter-se para execução, nos termos do n.º 2 do artigo 661.º do Código de Processo Civil.
6. Por todo o exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcialmente a revista, revogando o acórdão recorrido e condenando a ré a pagar à autora o montante, concernente ao preço e aos juros moratórios, que se liquidar em execução, dentro dos limites do pedido.
Custas por ambas as partes na proporção de 1/10 para a autora e 9/10 para a ré (artigo 446.º do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário a esta concedido (supra, nota 1).

Lisboa, 23 de Setembro de 2004
Lucas Coelho
Bettencourt de Faria
Moitinho de Almeida
-----------------------------
(1) Que litiga com apoio judiciário oportunamente concedido (fls. 66/67).
(2) No acórdão da Relação que estamos a seguir escreveu-se 11 673$00, mas trata-se de lapsus calami. Como se vê das «Condições Particulares» do contrato de locação financeira eram devidas 48 rendas mensais, sendo a primeira de 561 000$00 e as restantes de 111 673$00 (fls. 15, ponto III). Sendo aliás esta a importância que figura no respectivo quesito 6.º.
(3) Na sequência de outra correspondência acerca de um pretenso acordo entre a autora e a locatária inadimplente, a validade desta carta de 16 de Junho de 1993 foi reafirmada pela autora à ré mediante carta de 30 de Julho seguinte, junta a fls. 42, cujo teor se dá como reproduzido e assente na alínea n) da especificação - têm-se neste conspecto presentes determinados erros materiais de datas facilmente detectáveis.
(4) A fim de melhor se compreender o sentido deste ponto de facto refira-se o seu enquadramento nos precedentes quesitos 15.º, 16.º e 17.º: «15.º Foi à revelia da ré e sem o seu conhecimento que a autora levantou o equipamento das instalações da locatária em Maio de 1995?» - resposta não provado; «16.º A autora ao proceder do modo descrito em 15.º e sem qualquer contrato da ré depositou o dito equipamento em Leiria, onde apenas se encontram duas máquinas - uma de limpeza a seco e outra de engomar?» - provado apenas «que a autora após levantar o equipamento das instalações da locatária depositou-o em Leiria»; «17.º Estas máquinas referidas em 16.º encontram-se à venda?» - não provado. Provou-se, por conseguinte, mediante a resposta ao quesito 18.º, terem sido vendidas duas das quatro máquinas descritas na factura de fls. 8 (supra, II, 1.3.); provavelmente as duas últimas aí indicadas.
(5) Ao que parece, estas diligências situam-se, todavia, temporalmente na sequência da comunicação de 13/14 de Agosto de 1991 (supra, II, 1.7.), e não conduziram em todo o caso à recepção do equipamento.
(6) Karl Larenz/Claus-Wilhelm Canaris, Leherbuch des Schuldrechts, B. II, Besonderer Teil, 2. Halbb., 13. völl. neuverf. Auf., C. H. Beck, München, 1994, pág. 66.
(7) Larenz e Antunes Varela, apud acórdão deste Supremo, de 15 de Janeiro de 2004, na revista n.º 4122/03, 2,ª Secção, que ora se segue por momentos.