Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
550/23.0PILRS.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: RECURSO PER SALTUM
FURTO QUALIFICADO
TENTATIVA
ATOS PREPARATÓRIOS
ATOS DE EXECUÇÃO
DESISTÊNCIA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
PENA DE EXPULSÃO
AFASTAMENTO DO TERRITÓRIO NACIONAL
NULIDADE
PROCEDÊNCIA PARCIAL
Data do Acordão: 11/28/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário :

I - Constitui tarefa essencial, na definição da tentativa, a destrinça entre atos preparatórios e atos de execução, uma vez que só estes últimos relevam para efeito da tentativa.

II - No caso de tentativa inacabada (em que o agente, com a sua atuação, não criou todas as condições necessárias à consumação material do crime), basta que o agente desista de prosseguir na execução do crime, isto é, que a abandone, deixando de realizar os atos que ainda faltam. Se, pelo contrário, estiver em causa um caso de tentativa acabada (em que o agente já criou todas as condições da realização típica integral), torna-se necessária uma intervenção do agente destinada a impedir a consumação. Na distinção entre tentativa acabada e inacabada não se pode prescindir da consideração das representações mentais do agente sobre o estádio de realização do facto.

III - Só a desistência voluntária é relevante para afastar a punibilidade do facto tentado, o que significa que o agente tem de atuar por impulso próprio, segundo uma motivação autónoma, e não por imposição de um circunstancialismo exógeno à sua vontade, que se sobreponha ao cumprimento das suas intenções e o prive do domínio da situação.

IV - O STJ tem entendido que, em matéria de revista sobre a medida concreta da pena, a sindicabilidade abrange a correção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de fatores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis.

V - Para a determinação da medida concreta da pena conjunta é decisivo que se obtenha uma visão de conjunto dos factos que tenha em vista a eventual conexão dos mesmos entre si e a relação com a personalidade de quem os cometeu.

VI - O acórdão recorrido não faz qualquer menção ao artigo 135.º da Lei n.º Lei n.º 23/2007, de 04 de julho, que introduziu limites à aplicação da pena acessória de expulsão, que são, também, aplicáveis à decisão de afastamento coercivo ou de expulsão, sujeitos à cláusula derrogatória do n.º 2, que estabelece “limites aos limites” à expulsão. Entre esses limites inscrevem-se as situações de cidadão estrangeiro nascido em território nacional e que aqui resida e que se encontre em Portugal desde idade inferior a 10 anos e aqui resida, o que não foi objeto de qualquer ponderação pelo tribunal de 1.ª instância, no sentido da sua pertinência ou impertinência para a decisão, razão por que se entende que o acórdão recorrido enferma, nesta parte, de nulidade da fundamentação.

Decisão Texto Integral:

RECURSO n.º 550/23.0PILRS.L1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO

1. AA, com os restantes sinais dos autos, foi condenado, por acórdão de ... de ... de 2024, do Juízo Central Criminal de ..., ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ......, pela prática, como reincidente, de cinco crimes de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, alínea f), do Código Penal, nas penas de 2 anos de prisão, por cada um deles, e, efetuado o pertinente cúmulo jurídico de penas, na pena única de 6 anos de prisão.

Mais foi condenado na pena acessória de expulsão do território nacional, nos termos dos artigos 134.º, n.º 1, alíneas e) e f), 140.º, n.º 2, e 151.º, n.º 1, da Lei 23/2007, do artigo 22.º, n.º 1 e 3, da Lei n.º 37/2006, e do artigo 34.º do Decreto-Lei 15/93, pelo período de 6 (seis) anos.

2. O referido arguido interpôs recurso para a Relação, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

A- Salvo o devido respeito pelo Acórdão, que é muito, não pode o Recorrente conformar-se com a condenação e com a pena aplicada, uma vez que o recorrente admitiu a prática dos factos de que vem acusado e não beneficiou da confissão dos factos considerando a pena aplicada.

B- O Recorrente confessou os factos que se lembrava, pois foi notório durante a audiência de discussão e julgamento que o mesmo padece de problemas de saúde, nomeadamente do foro mental, agravados pelo consumo de substâncias psicotrópicas.

C- Considerando aqui a defesa que o mesmo necessita de acompanhamento médico no estabelecimento prisional.

D- Quanto aos crimes do qual o mesmo foi condenado, nos termos do disposto no artigo 71º e 72º do Código Penal, deveria o Tribunal a quo, ter considerado a intensidade do dolo, assim como a sua situação económica do recorrente.

E- Em relação à condenação pela prática como reincidente de cinco crimes de furto qualificado na forma tentada, não pode o aqui recorrente aceitar, pois não foi subtraído qualquer bem aos lesados, uma vez que o próprio teve a consciência de não levar o seu plano avante, conforme, menciona o artigo 24º do Código Penal, existiu uma desistência por parte do agente.

F- Aliás como é mencionado, existiu a condenação por tentativa de furto qualificado, sendo certo que o arguido nada subtraiu.

G- Seja qual for o valor.

H- Salvo melhor opinião, e considerando que a tentativa de furto é punível, conforme é mencionado no disposto do artigo 203º, nº 2 do C.P.

I- Mas não podemos omitir que os mesmos não acorreram, pois, o agente voluntariamente desistiu de prosseguir na execução do crime.

J- Quanto à identificação do arguido, o mesmo possui o nome AA, tendo nascido em Portugal, em Lisboa, tendo como seus pais, AA, de nacionalidade cabo-verdiana, e sua mãe BB, de nacionalidade Angolana.

K- Tanto assim é, que o recorrente tem registo em Portugal, apesar de não possuir a nacionalidade, pois o título de residência caducou quando o mesmo se encontrava detido ao abrigo do anterior processo.

L- Encontrando-se o mesmo confiado à justiça Portuguesa, deveriam providenciar pela sua renovação, o que não sucedeu.

M- Nestes termos, a medida acessória de expulsão do território nacional terá de ser revista, pois o recorrente, nunca se ausentou de Portugal, pais que o viu nascer, nem tem qualquer referência a Cabo Verde, a não ser a nacionalidade do seu progenitor, não tendo ainda qualquer apoio familiar.

N- Mais, nas próprias alegações finais, a Senhora Procuradora do Ministério Público pede que seja ponderando a situação da pena acessória de extradição do arguido pelo facto de o mesmo ter nascido em território nacional.

Deste modo, deverão V. Exas. considerar quanto à pena aplicada ao ora Recorrente, a pena efectiva em cúmulo jurídico de 6 anos de prisão efectiva, por tentativa de furto qualificado, por 5 crimes que o arguido confessou e dos quais não subtraiu qualquer bem.

Assim como não deve ser aplicada a pena acessória de extradição de território nacional, pais que o viu nascer, mais concretamente na ... em ....

3. O Ministério Público, junto da 1.ª instância, respondeu ao recurso, pronunciando-se no sentido do seu não provimento, concluindo (transcrição):

1. A conduta do arguido, de se retirar dos locais onde pretendia introduzir e retirar bens de valor, não pode operar como desistência nos termos e para os efeitos plasmados no artigo 24.º do Código Penal.

2. O comportamento do arguido não foi espontâneo/voluntário, tendo sido compelido a fazê-lo ante a presença de terceiros no interior das residências, fazendo-o após ter escalado muros, partido vidros, estroncando portas.

3. As penas parcelares e única mostram-se ajustadas e adequadas, mostrando-se aplicados correctamente os princípios e critérios de determinação da medida da pena, constantes do disposto nos artigos 40.º e 71.º, do Código Penal.

4. O tribunal a quo teve em consideração as elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir no crime objecto dos presentes autos e bem assim nas elevadas exigências de prevenção especial, realçando, fundamentalmente, os antecedentes criminais do arguido, a ausência de inserção social, profissional e familiar e a sua postura desafiante e irresponsável perante a necessidade de acompanhamento psicológico e a manutenção de consumo de produtos estupefacientes.

5. O tribunal a quo não olvidou a confissão parcial do arguido, atribuindo-lhe o valor que efectivamente possui face à prova carreada para os autos, em conjugação, com a ausência de arrependimento e a postura assumida pelo arguido perante o sistema judiciário.

6. O tribunal a quo explicou por que motivo decretou a pena de expulsão pelo período de 6 anos, assentando a sua ponderação na carência de ligações fortes com Portugal (quer familiares, sociais e profissionais) e na personalidade demonstrada pelo arguido, assente na absoluta ausência de respeito pelas regras em sociedade, através da prática reiterada de ilícitos penais graves, que não permitem afastar que não volte a cometê-los, ameaçando de modo grave a segurança e a ordem pública.

4. Por decisão sumária de 17.07.2024, foi declarado ser o Supremo Tribunal de Justiça (doravante, STJ) o competente para conhecer do recurso, tendo sido determinada a remessa dos autos em conformidade.

5. Neste STJ, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de CPP), emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, devendo, em consequência, ser confirmado o acórdão recorrido.

6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do CPP, não foi apresentada resposta ao parecer. Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido, constituindo entendimento constante e pacífico que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, as questões que se suscitam são as seguintes:

- alegada desistência relevante, nos termos do artigo 24.º do Código Penal;

- determinação da pena;

- pena acessória de expulsão.

2. Do acórdão recorrido

2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

NUIPC 603/23.5...

1. Cerca das 17h:00m do dia ... de ... de 2023, o arguido AA dirigiu-se à ..., residência do ofendido CC.

2. O arguido abeirou-se da janela do escritório da habitação e forçou a abertura da mesma, com o objectivo de se introduzir no seu interior e de lá retirar artigos com valor venal e que lhe interessassem e numerário.

3. No entanto, o arguido foi surpreendido pelo ofendido, que se encontrava no interior da residência e que o abordou, após o que aquele encetou fuga do local.

4. Com a conduta acima descrita, visou o arguido entrar na residência do ofendido, sem que para tanto se encontrasse autorizado, contra cuja vontade agia e do que tinha perfeito conhecimento e de lá retirar artigos com valor venal superior a € 102,00 (cento e dois euros) e que lhe interessassem e numerário, para depois os fazer seus, bem sabendo que aqueles não lhes pertenciam, e que actuava sem o conhecimento e contra a vontade do seu dono, o que não logrou por motivos alheios à sua vontade.

5. O arguido estava, igualmente, ciente de que ao forçar a janela da residência do ofendido, tal conduta era apta a provocar estragos na mesma, em valor que não foi possível apurar.

NUIPC 550/23.0...

6. Entre as 12h:30m e as 13h:00m do dia ... de ... de 2023, o arguido AA, que à data trajava uma t-shirt cinzenta e umas calças de fato de treino pretas, dirigiu-se à ..., residência da ofendida DD.

7. No local, o arguido tocou diversas vezes à campainha da moradia e como nenhuma pessoa lhe abriu a porta, de modo não concretamente apurado, o arguido escalou o muro que veda a propriedade, acedeu ao logradouro da mesma.

8. Ali, munido de uma pedra, o arguido partiu o vidro de uma das janelas da sala de modo a conseguir introduzir-se no seu interior e de lá retirar artigos com valor venal e que lhe interessassem e numerário.

9. Porém, o arguido ao aperceber-se de que se encontravam pessoas em casa, fugiu apeado do local.

10. Com a conduta acima descrita, visou o arguido entrar na residência da ofendida DD, sem que para tanto se encontrasse autorizado, contra cuja vontade agia e do que tinha perfeito conhecimento e de lá retirar artigos com valor venal superior a € 102,00 (cento e dois euros) e que lhe interessassem e numerário, para depois os fazer seus, bem sabendo que aqueles não lhes pertenciam, e que actuava sem o conhecimento e contra a vontade do seu dono, o que só não logrou por motivos alheios à sua vontade.

11. O arguido estava, igualmente, ciente de que não possuía autorização da legítima proprietária do local onde entrou, não lhe sendo permitido aceder ao mesmo da forma como o fez, nomeadamente trepando o muro e que, ao partir o vidro da janela da sala, cuja reparação e substituição custou € 518,35 (quinhentos e dezoito euros e trinta e cinco cêntimos), causava estragos à ofendida.

NUIPC 548/23.9...

12. Entre as 12h:00m e as 12h:30m do dia ... de ... de 2023, o arguido AA dirigiu-se à ..., residência da ofendida EE.

13. O arguido escalou o muro que veda a propriedade e logrou entrar na zona do logradouro.

14. Ali, munido de uma pedra, o arguido partiu o vidro de uma das janelas da sala de modo a conseguir introduzir-se no seu interior e de lá retirar artigos com valor venal e que lhe interessassem e numerário.

15. O arguido ao aperceber-se de que se encontravam pessoas em casa, fugiu apeado do local.

16. Com a conduta acima descrita, visou o arguido entrar na residência da ofendida, sem que para tanto se encontrasse autorizado, contra cuja vontade agia e do que tinha perfeito conhecimento e de lá retirar artigos com valor venal superior a € 102,00 (cento e dois euros) e que lhe interessassem e numerário, para depois os fazer seus, bem sabendo que aqueles não lhes pertenciam, e que actuava sem o conhecimento e contra a vontade do seu dono, o que não logrou por motivos alheios à sua vontade.

17. O arguido estava, igualmente, ciente de que não possuía autorização dos donos do local onde entrou, não lhe sendo permitido aceder ao mesmo da forma como o fez, nomeadamente trepando o muro e que, ao partir o vidro da janela da sala, cuja reparação e substituição custou € 1.037,01 (mil e trinta e sete euros e um cêntimo), causava estragos à ofendida.

NUIPC 551/23.9...

18. Entre as 12h:30m e as 13h:00m do dia ... de ... de 2023, o arguido AA, dirigiu-se à ..., residência de FF.

19. O arguido escalou o muro que veda a propriedade e logrou aceder ao logradouro.

20. No local, o arguido forçou a abertura de uma porta das traseiras, para o que arrancou o puxador e, munido de uma pedra, partiu o vidro de uma das janelas da habitação de modo a conseguir introduzir-se no seu interior da residência e de lá retirar artigos com valor venal e que lhe interessassem e numerário.

21. Contudo, o arguido ao aperceber-se de que estava a ser observado por terceira pessoa, fugiu apeado do local.

22. Com a conduta acima descrita, visou o arguido entrar na residência de terceiros, sem que para tanto se encontrasse autorizado, contra cuja vontade agia e do que tinha perfeito conhecimento e de lá retirar artigos com valor venal superior a € 102,00 (cento e dois euros) e que lhe interessassem e numerário, para depois os fazer seus, bem sabendo que aqueles não lhes pertenciam, e que actuava sem o conhecimento e contra a vontade do seu dono, o que não logrou por motivos alheios à sua vontade.

23. O arguido estava, igualmente, ciente de que não possuía autorização dos donos do local onde entrou, não lhe sendo permitido aceder ao mesmo da forma como o fez, nomeadamente trepando o muro e que, ao partir o vidro da janela da sala, cuja reparação e substituição custou cerca de € 2.800,00 (dois mil e oitocentos euros).

NUIPC 532/23.2...

24. Pelas 09h:45m do dia ... de ... de 2023, o arguido AA, dirigiu-se à ..., residência da ofendida GG.

25. O arguido escalou o muro que veda a propriedade e acedeu ao logradouro traseiro da habitação, de modo a conseguir introduzir-se no seu interior e de lá retirar artigos com valor venal e que lhe interessassem e numerário.

26. Acto contínuo, o arguido circundou a residência, olhou para o interior e abandonou o local sem que tivesse subtraído qualquer artigo.

27. Com a conduta acima descrita, visou o arguido entrar na residência de GG, sem que para tanto se encontrasse autorizado, contra cuja vontade agia e do que tinha perfeito conhecimento e de lá retirar artigos com valor venal superior a € 102,00 (cento e dois euros) e que lhe interessassem e numerário, para depois os fazer seus, bem sabendo que aqueles não lhes pertenciam, e que actuava sem o conhecimento e contra a vontade do seu dono, o que não logrou.

28. O arguido estava, igualmente, ciente de que não possuía autorização dos donos do local onde entrou, não lhe sendo permitido aceder ao mesmo da forma como o fez, nomeadamente trepando o muro.

29. Em todas as situações acima descritas, o arguido AA agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo, que as respectivas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, porém não se coibiu de ainda assim actuar.

30. O arguido foi condenado, em cúmulo, na pena de 10 anos de prisão efectiva, pela prática de vários crimes, entre os quais, um crime de roubo e um crime de furto qualificado, no processo 234/12.5..., que correu termos na ....

31. Tal pena transitou em julgado a ... de ... de 2015.

32. O arguido esteve recluso, no cumprimento da referida pena desde ... de ... de 2012 até ... de ... de 2022.

33. Nas condenações englobadas no cúmulo efectuado no processo 234/12.5..., estão dados como provados factos de onde resulta que o arguido efectivamente sonegou bens a terceiros, fazendo-os seus.

34. A condenação e o período de reclusão sofrido pelo arguido decorre de condenações por crimes contra bens patrimoniais e pessoais de terceiros, seja de forma pacífica ou de forma violenta.

35. A condenação e o período de reclusão que o arguido sofreu à ordem do processo 234/12.5... não serviram de suficiente advertência ao arguido da censura da sua conduta e de que não devia sonegar bens pertencentes a terceiros, não se inibindo da prática de crimes dolosos, punidos com pena de prisão superior a 6 meses.

36. O arguido tem nacionalidade Cabo-Verdiana.

37. O arguido não tem autorização de residência permanente válida em Portugal desde ... de ... de 2010, data em que aquela que possuía caducou.

38. O arguido estava, à data dos factos, de relações cortadas com a progenitora, que não lhe permite residir na sua morada, nem lhe confere qualquer suporte familiar.

39. À data dos factos o arguido encontrava-se a pernoitar na via pública, junto ao ..., em ....

40. À data dos factos, o arguido não tinha emprego, não auferindo qualquer rendimento social.

41. Consta do Relatório Social do arguido HH:

O arguido tem ascendência cabo-verdiana, embora nascido em Portugal , tem nacionalidade Cabo-Verdiana.

AA é o único filho da relação entre os progenitores.

O pai com problemas de alcoolismo, revelou-se uma pessoa agressiva com a família, em particular com a companheira, tendo a separação entre os pais decorrido quando o arguido tinha 4 anos.

A mãe ficou a residir numa barraca num bairro clandestino e, sem condições para sustentar o filho, deixou-o a cargo do agregado paterno, a quem fora atribuída uma habitação social.

Junto deste agregado e num contexto de vivência de um bairro social, AA começou precocemente a manifestar dificuldades em aceitar a autoridade dos adultos e a faltar à escola para se juntar aos grupos do bairro, com os quais começou a cometer ilícitos.

Foi-lhe aplicada uma medida tutelar de internamento em colégio, a qual cumpriu no ... em ... e no ... no ..., onde veio a completar o 9º ano de escolaridade, bem como alguma formação profissional em artes decorativas, carpintaria e informática.

Com o termo da medida aos 18 anos, reintegrou o agregado materno, no qual já se incluía o novo companheiro da mãe, e com o qual o arguido sempre manteve uma relação de conflito de autoridade ao longo dos anos.

Revelou igualmente dificuldades para se reorganizar em meio livre, e começou a acompanhar grupos de pares locais e a consumir drogas junto destes.

A nível laboral, registou apenas trabalhos temporários, permanecendo maioritariamente desocupado e junto dos amigos, no bairro.

Iniciou entretanto um relacionamento afectivo e passou a viver com a namorada na morada desta. Junto da mesma tentou inicialmente reorganizar-se, frequentando uma formação profissional.

Contudo a manutenção de hábitos aditivos e de proximidade aos grupos de referência pró-criminais, contribuíram para os seus primeiros contactos com o sistema judicial.

Verificou-se também neste contexto de vida que, quer a mãe como a companheira, terão sido vítimas de violência doméstica em fases de maior descompensação por parte do arguido, situada entre 2011 e 2012, mas ambas mantiveram uma postura desculpabilizante e tolerante com o arguido, constituindo-se como elementos com fraca capacidade de contenção e de orientação relativamente à sua problemática bem como ao consumo de drogas.

Em maio de 2012 foi preso e condenado por crime de violação, pena á qual acresceram outras condenações, em execução sucessiva, as quais determinaram um cômputo de penas com termo em Julho de 2024 e 5/6 previstos para Junho de 2022.

No EP beneficiou de consultas regulares de psicologia e psiquiatria e fez terapêutica medicamentosa inicialmente, vindo posteriormente a desvalorizar este acompanhamento terapêutico e assumindo igualmente uma postura de rejeição da medicação. Este facto reflectiu-se num quadro de desestabilização e descontrole de comportamento prisional, agravado pela manutenção de consumos de haxixe.

Não beneficiou assim de medidas de flexibilização da pena, fez em geral um percurso institucional irregular, mantendo uma postura de desvalorização e minimização da gravidade dos factos imputados e um discurso evidenciando uma fraca consciência das consequências e implicações da sua conduta para terceiros

Investiu inicialmente nos estudos, tendo frequentado o ensino secundário sem sucesso. Chegou a trabalhar entre ... e ..., mas passou á situação de inactivo, por ser alvo de diversos processos disciplinares. Retomou trabalho em ..., numa fase mais estável

Durante o cumprimento da pena, a companheira, de quem teve entretanto um filho, deixou de o visitar e a mãe apenas se deslocava esporadicamente ao EP, contando assim nesse sentido, com escasso suporte familiar durante o cumprimento da pena.

Foi libertado aos 5/6 da pena, em ..., tendo de acordo com o arguido, reintegrado o agregado familiar materno, onde apenas vivia a mãe e um irmão, na ápoca

Foi encaminhado pelos serviços clínicos do EP para o ..., estando na época a fazer medicação injectável, a qual tendia a rejeitar.

Em meio externo, começou por permanecer mais tempo em casa a ajudar a mãe em tarefas domésticas, manifestando sentimentos de confusão, e dificuldade em lidar com os problemas quotidianos – embora sem registos de ocorrências relevantes.

Foi encaminhado pela equipe da DGRSP que o acompanhava, para consultas de saúde mental, e realizou uma consulta de triagem que apurou estar o arguido dentro dos critérios necessários a um acompanhamento psiquiátrico, devido a psicose tóxica decorrente do consumo excessivo de álcool e drogas.

Contudo, este acompanhamento não deu seguimento, pelo facto de AA ter abandonado a morada de família em ....

De acordo com as informações prestadas pelo arguido, no decorrer da sua permanência junto da família, surgiram desentendimentos com a mãe motivados pela sua situação de desemprego prolongado, modo de vida ocioso e saídas nocturnas, na sequência dos quais deixou a morada de família para viver na rua como sem abrigo.

Na rua pernoitava em vários locais e ... ou ..., em caixotes de cartão ou locais devolutos, onde convivia com outros sem abrigo, retomando consumos de cocaína e haxixe terá sido neste contexto que alegadamente ocorreram os acontecimentos que motivaram a sua actual prisão preventiva em ....

Desde que se encontra preso no EP, que não tem visitas ou apoio familiar, e tem mantido até à data uma conduta sem registos disciplinares. Beneficiou de apoio medico psiquiátrico a nível da toxicodependência, referindo encontrar-se actualmente bem, e mais estabilizado.

Pretende genericamente regressar ao contexto socio familiar, mas não dispõe de contactos familiares que permitam comprovar a disponibilidade da mãe para o voltar a acolher. Refere igualmente a intenção de ingressar no mercado de trabalho, embora o seu percurso anterior e a falta de documentos que o legaliza no país, aponte para dificuldades efectivas a este nível, quando passar à situação de liberdade.

42. O arguido tem averbado no seu CRC as seguintes condenações:-

a. foi julgado e condenado no âmbito do Proc. 312/08.5..., pela prática em ........2008 de um crime de roubo, p. e p. pelo artº 210º nº 1 do C.P, por decisão proferida em ........2009, transitada em julgado em ........2009 na pena de 1 ano de prisão, suspensa na execução pelo período de um ano, com sujeição a regime de prova. Declarada extinta em ........2010

b. foi julgado e condenado no âmbito do Proc. 582/09.1..., pela prática em ........2009 de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo artº 3º do DL 2/98 de 03.01, por decisão proferida em ........2009, transitada em julgado em ........2009 na pena de 45 dias de multa à taxa diária de 10,00 Euros. Declarada extinta em ........2013.

c. foi julgado e condenado no âmbito do Proc. 446/12.1..., pela prática em ........2012 de um crime de roubo qualificado, p. e p. pelo artº 210º nº 2, 204º nº 2 f), um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artº 203º e 204º nº 2 e) e f) e um crime de violação p. e p. pelo artº 164º nº1 a) todos do C.P, por decisão proferida em ........2013, transitada em julgado em ........2013 na pena única de 8 anos de prisão. Declarada extinta em ........2010

d. foi julgado e condenado no âmbito do Proc. 117/12.9..., pela prática em ........2012 de um crime de consumo de estupefacientes p. e p. pelo artº 40º nº 2 do DL 15/93 de 22.01, por decisão proferida em ........2013, transitada em julgado em ........2013 na pena de 40 dias de multa à taxa diária de 5,00 Euros. Declarada extinta em ........2017.

e. foi julgado e condenado no âmbito do Proc. 675/05.4..., pela prática em ........2005 de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo artº 3º do DL 2/98 de 03.01, e de um crime de resistência e coacção sobre funcionário p. e p. pelo artº 347º do C.Penal, por decisão proferida em ........2011, transitada em julgado em ........2011 nas penas respectivamente de 6 meses de prisão substituída por 180 dias de multa à taxa diária de 5,00 Euros e 150 dias de multa à taxa diária de 5,00 Euros. Declaradas extintas em ........2017.

f. foi julgado e condenado no âmbito do Proc. 560/12.3..., pela prática em ........2012 de um crime de furto de uso de veículo p. e p. pelo artº 208º do C.Penal, por decisão proferida em ........2013, transitada em julgado em ........2013 na pena de 7 meses de prisão. Declarada extinta em ........2013.

g. foi julgado e condenado no âmbito do Proc. 234/12.5..., pela prática em ........2012 de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artº 203º e 204º nº 2 e) do C.P, por decisão proferida em ........2015, transitada em julgado em ........2015 na pena de 3 anos de prisão. Declarada extinta em ........2010

h. foi julgado e condenado no âmbito do Proc. 1198/14.6..., pela prática em ........2014 de um crime de ofensa á integridade física qualificada, p. e p. pelo artº 143º e 145º nº 1 do C.P, por decisão proferida em ........2016, transitada em julgado em ........2016 na pena de 1 ano e 3 meses de prisão. Declarada extinta em ........2019.

2.2. Considerou-se, assim, na fundamentação de facto do acórdão recorrido (transcrição):

A convicção do tribunal formou-se, no que aos factos provados respeita, fundou-se essencialmente nas declarações do arguido que confessou parcialmente a prática de todos dos factos constantes da acusação com excepção dos constantes do nuipc 603/23.5... Porém e relativamente a estes factos a testemunha CC, ofendido, prestou um depoimento claro, conciso e coerente, e relatou ao tribunal o sucedido e procedeu a reconhecimento presencial do arguido em fase de inquérito, nenhuma dúvida tendo resultado quanto à identificação do arguido e a autoria do mesmo nos factos constantes da acusação no que se reporta ao mencionado nuipc.

As restantes testemunhas de acusação, DD, EE, II e GG, depuseram penas e só relativamente ao valor dos danos causados e modo de entrada do arguido nos respectivos imoveis, o que fizeram de modo sereno, isento e coerente, em termos absolutamente coincidentes com os tidos por demonstrados, logrando obter a convicção do Tribunal.

Atendeu-se ainda aos Autos de reconhecimentos pessoais, de fls. 10, 11, 22, 23, 39 a 41, 119, 120 dos autos; Fotogramas, de fls. 15 a 17, 104, 105 dos autos; Auto de visionamento, de fls. 84 a 97 dos autos; Certidões, de fls. 204 a 220 e 226 a 241 dos autos;

Foi igualmente ponderado, o teor do relatório social do arguido e atendeu-se também ao CRC do arguido junto aos autos.

*

3. Apreciando

3.1. Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o tribunal recorrido determinou que os autos subissem a este STJ, para conhecimento do recurso, invocando o artigo 432.º, n.º1, al. c), do CPP, o que justifica umas breves considerações sobre a competência do Supremo Tribunal de Justiça.

Dispõe o artigo 432.º, sob a epígrafe “Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”:

«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;

d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.

2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º»

São pressupostos cumulativos do recurso direto para o STJ:

- a aplicação de pena superior a 5 anos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo;

- que o recurso vise exclusivamente o reexame da matéria de direito, ou seja interposto com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410.º.

Nos termos do AFJ n.º 5/2017 (Diário da República n.º 120/2017, Série I de 2017-06-23, páginas 3170 – 3187):

«A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas.»

No caso em apreço, o objeto do recurso é um acórdão condenatório, proferido por um tribunal coletivo, em que foram aplicadas ao recorrente penas parcelares não superiores a cinco anos de prisão, mas que foram cumuladas numa pena única conjunta de seis anos de prisão, visando o recurso as questões relativas à subsunção dos factos na desistência relevante, determinação da medida da pena e aplicação da pena acessória de expulsão.

Por conseguinte, o recurso circunscreve-se ao reexame de matéria de direito, da competência do STJ [artigos 432.º, n.ºs 1, al. c), e 2, e 434.º do CPP], sem prejuízo do disposto na parte final da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, segundo o qual se pode recorrer com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, que não foram invocados pelo recorrente e que, a partir da decisão de facto e da respetiva motivação, também não se evidenciam.

3.2. O tribunal recorrido condenou o arguido pela prática de cinco crimes de furto qualificado, na forma tentada.

Contrapõe o arguido/recorrente que não foi subtraído qualquer bem aos lesados, “uma vez que o próprio teve a consciência de não levar o seu plano avante”, existindo, da sua parte, uma desistência relevante.

É sabido que o tipo legal de crime, em função da natureza fragmentária do direito penal e do princípio nullum crimen sine lege, define determinadas condutas humanas como puníveis por violadoras de bens jurídicos essenciais à vida em comunidade, garantindo que só os comportamentos subsumíveis a um tipo de crime previamente definido são puníveis.

Na forma comum do aparecimento da infração criminal, esta verifica-se com o preenchimento completo do tipo respetivo.

O direito penal é um direito do facto, que não vai ao ponto de se intrometer nas intenções ou nos pensamentos, sendo pacífico que o pensamento ou a mera decisão interior não releva para efeitos penais de punição – cogitatio non punitur.

Do mesmo modo, em princípio, os chamados atos preparatórios não são puníveis, conforme estabelece o artigo 21.º do Código Penal.

Estes (os atos preparatórios) apenas excecionalmente são puníveis, quando o próprio ato preparatório preenche, já por si, um tipo de crime autónomo ou quando o ato preparatório é punível em virtude de uma disposição especial (cf. artigo 21.º, in fine, do CP).

Existem ainda formas imperfeitas do crime em que existe já uma vontade definida da prática de uma conduta tipificada como crime, mais ou menos exteriorizada em atos, sem que o resultado final chegue, porém, a verificar-se.

O fundamento e os limites da punibilidade da tentativa tornaram-se, nos dois últimos séculos, das questões mais controvertidas na dogmática jurídico-penal (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª edição, p. 688 e seguintes).

Os atos relevantes para a tentativa não são definidas pelo tipo legal de crime, mas resultam de normas constantes da parte geral do Código Penal.

Estabelece o artigo 22.º, n.º1, do Código Penal, que há tentativa quando o agente pratica atos de execução de um crime, que decidiu cometer, que não se consuma por motivos estranhos ao agente.

Constitui, assim, tarefa essencial, na definição da tentativa, no confronto do artigo 21.º e do n.º1 do artigo 22.º, a destrinça entre atos preparatórios e atos de execução, uma vez que só estes últimos relevam para efeito da tentativa.

Os atos preparatórios, a que se refere o artigo 21.º, do Código Penal, não são definidos expressamente pela lei: esta apenas define os “atos de execução”.

Assim, o atos preparatórios são definidos por argumento a contrario sensu: serão todos aqueles que, embora conexionados com a prática do crime que o agente já decidiu cometer, ainda não se enquadram no conceito de atos de execução - definidos pelo artigo 22.º, n.º 2, do Código Penal.

Nos termos do referido preceito são atos de execução:

a) Os atos que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime;

b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; e

c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.

A alínea a) do n.º 2 do artigo 22.º acolhe as teorias formais objetivas quando formuladas no sentido de que são atos de execução todos os que preenchem um elemento típico. A partir daqui, importará interpretar o elemento em causa no contexto da realização típica integral, com eventual recurso ao plano do agente para iluminar a verdadeira natureza do ato praticado.

A alínea b) corresponde a um alargamento do círculo de atos de execução. No ensinamento de Figueiredo Dias, sempre que se trata de crime de execução não vinculada e, muito especialmente, quando a descrição típica se limita ao uso de uma palavra (em regra, um verbo) através do qual se designa a ação que provoca o resultado típico, a mencionada alínea equipara aos atos típicos (parciais) previstos na alínea a) todos aqueles que são idóneos – isto é, adequados (segundo os conhecidos termos da doutrina da adequação, nomeadamente de acordo com um juízo ex ante, de prognose póstuma) – a produzir o resultado típico (ob. cit., p. 703).

Há, porém, segundo aquele autor, que fazer intervir algumas precisões.

A primeira é a de que, tratando-se de crimes de mera atividade, à idoneidade para “produzir o resultado” típico deverá equivaler a idoneidade para integral realização do tipo (casos em que a palavra “resultado” é tomada na aceção de intranquilidade do bem jurídico protegido). A segunda é a de que a alínea b) deve ser considerada em conexão com a alínea c), pois de outro modo correr-se-ia o risco “de aplicar a al. b) contra a teleologia específica das doutrinas que estão na sua base – as doutrinas materiais objetivas -, fundadas na imediação, iminência ou estreita proximidade do perigo típico representada pelo acto praticado”, sem o que haveria o perigo de considerar como de execução “atos que não penetraram ainda no âmbito de proteção típica da norma incriminatória” (ob. cit., p. 704).

Relativamente à alínea c) do artigo 22.º, integra ainda elementos da doutrina da adequação apelando à “experiência comum”, “às circunstâncias imprevisíveis”, à “natureza a fazer esperar”, salientando Figueiredo Dias as dificuldades de interpretação que se colocam e propondo o recurso aos critérios de conexão de perigo e de conexão típica (ob. cit., p. 705-708).

Para Taipa de Carvalho (A Legítima Defesa, Coimbra Editora, 1995, p. 271-272) o legislador procedeu “a um alargamento, posto que limitado, do conceito e do âmbito temporal dos atos de execução, de modo que, hoje e de iure condito, não só os atos formalmente tipificados (…) e «os que são idóneos a produzir o resultado típico (…) são atos de execução, mas também os que, apesar de em si não serem adequados a produzir o resultado, todavia a experiência comum indique que a eles se seguirá, imediatamente, a prática de atos idóneos a produzir o resultado (…)”, sendo que a referida alínea c) “parece não ser outra coisa que a assunção legislativa da teoria doutrinal da chamada conexão típica espácio-temporal, isto é, da continuidade e imediatidade entre o último estádio da preparação e o primeiro estádio da execução típica (…).”

Analisando o caso vertente:

- No que concerne ao NUIPC 603/23.5..., o arguido dirigiu-se à residência de CC, abeirou-se da janela do escritório da habitação e forçou a abertura da mesma, com o objetivo de se introduzir no seu interior e de lá retirar artigos com valor venal e que lhe interessassem e numerário.

No entanto, o arguido foi surpreendido pelo ofendido, que se encontrava no interior da residência e que o abordou, após o que aquele encetou a fuga do local.

Com a sua conduta, visou o arguido entrar na residência do ofendido e de lá retirar artigos com valor venal superior a 102,00€ (cento e dois euros) que lhe interessassem e numerário, para depois os fazer seus, bem sabendo que aqueles não lhe pertenciam e que atuava sem o conhecimento e contra a vontade do seu dono, o que não logrou por motivos alheios à sua vontade.

- No que concerne ao NUIPC 550/23.0..., o arguido dirigiu-se à residência de DD, tocou diversas vezes à campainha da moradia e, como nenhuma pessoa lhe abriu a porta, o arguido, de modo não concretamente apurado, escalou o muro que veda a propriedade, acedeu ao logradouro da mesma. Ali, munido de uma pedra, partiu o vidro de uma das janelas da sala de modo a conseguir introduzir-se no seu interior e de lá retirar artigos com valor venal e que lhe interessassem e numerário.

Ao aperceber-se de que se encontravam pessoas em casa, fugiu apeado do local.

Com a conduta descrita, visou o arguido entrar na residência da ofendida e de lá retirar artigos com valor venal superior a 102,00€ (cento e dois euros) que lhe interessassem e numerário, para depois os fazer seus, bem sabendo que aqueles não lhe pertenciam e que atuava sem o conhecimento e contra a vontade do seu dono, o que não logrou por motivos alheios à sua vontade.

- No tocante ao NUIPC 548/23.9..., o arguido dirigiu-se à residência de EE, escalou o muro que veda a propriedade e logrou entrar na zona do logradouro.

Ali, munido de uma pedra, o arguido partiu o vidro de uma das janelas da sala de modo a conseguir introduzir-se no seu interior e de lá retirar artigos com valor venal e que lhe interessassem e numerário.

Ao aperceber-se de que se encontravam pessoas em casa, fugiu apeado do local.

Com a conduta descrita, visou o arguido entrar na residência da ofendida e de lá retirar artigos com valor venal superior a 102,00€ (cento e dois euros) que lhe interessassem e numerário, para depois os fazer seus, bem sabendo que aqueles não lhe pertenciam e que atuava sem o conhecimento e contra a vontade do seu dono, o que não logrou por motivos alheios à sua vontade.

- No que respeita ao NUIPC 551/23.9..., o arguido dirigiu-se à residência de FF, escalou o muro que veda a propriedade e logrou aceder ao logradouro.

No local, o arguido forçou a abertura de uma porta das traseiras, para o que arrancou o puxador e, munido de uma pedra, partiu o vidro de uma das janelas da habitação de modo a conseguir introduzir-se no seu interior da residência e de lá retirar artigos com valor venal e que lhe interessassem e numerário.

Contudo, ao aperceber-se de que estava a ser observado por terceira pessoa, fugiu apeado do local.

Com a conduta descrita, visou o arguido entrar na residência do ofendido e de lá retirar artigos com valor venal superior a 102,00€ (cento e dois euros) que lhe interessassem e numerário, para depois os fazer seus, bem sabendo que aqueles não lhe pertenciam e que atuava sem o conhecimento e contra a vontade do seu dono, o que não logrou por motivos alheios à sua vontade.

- Finalmente, no que toca ao NUIPC 532/23.2..., o arguido dirigiu-se à residência de GG, escalou o muro que veda a propriedade e acedeu ao logradouro traseiro da habitação, de modo a conseguir introduzir-se no seu interior e de lá retirar artigos com valor venal e que lhe interessassem e numerário. Ato contínuo, circundou a residência, olhou para o interior e abandonou o local sem que tivesse subtraído qualquer artigo.

Quanto a este NUIPC, deu-se como provado que visou o arguido entrar na residência de GG, “sem que para tanto se encontrasse autorizado, contra cuja vontade agia e do que tinha perfeito conhecimento e de lá retirar artigos com valor venal superior a 102,00€ (cento e dois euros) e que lhe interessassem e numerário, para depois os fazer seus, bem sabendo que aqueles não lhes pertenciam, e que atuava sem o conhecimento e contra a vontade do seu dono, o que não logrou. O arguido estava, igualmente, ciente de que não possuía autorização dos donos do local onde entrou, não lhe sendo permitido aceder ao mesmo da forma como o fez, nomeadamente trepando o muro”.

Relativamente a todas as referidas ocasiões, o acórdão recorrido deu como assente que o arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as respetivas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, ciente de que não possuía autorização dos donos do local onde entrou, não lhe sendo permitido aceder aos mesmos da forma como o fez, nomeadamente trepando o muro.

Considerando que o tipo subjetivo de ilícito da tentativa é o mesmo que o do crime consumado, apresenta-se inequívoca a existência de dolo do agente (factualmente descrito nos factos provados do acórdão), verificando-se, igualmente – o que, aliás, não é questionado -, a prática de atos de execução e não de meros atos preparatórios de crimes de furto qualificado. Isto porquanto, a nosso ver, os atos praticados pelo arguido (pelo menos os dos pontos 1 a 23), sendo inerentes à própria execução, na sua inserção no plano de agente, se ainda não produziam, por si, a lesão do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do crime consumado, antecipavam já, claramente, em estreita conexão de continuidade espácio-temporal, uma situação de perigo para esse bem.

Importa apreciar se os factos provados permitem configurar uma situação de desistência, como pretende o recorrente.

Estabelece o artigo 24.º do Código Penal:

«1 - A tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime, ou impedir a consumação, ou, não obstante a consumação, impedir a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime.

2 - Quando a consumação ou a verificação do resultado forem impedidas por facto independente da conduta do desistente, a tentativa não é punível se este se esforçar seriamente por evitar uma ou outra.»

O artigo 24.º pressupõe, por um lado, que a consumação, incluído o resultado que a ela pertença ou que para ela releve, não chegue a ter lugar e, por outro, que isso fique a dever-se ao próprio agente.

No caso de tentativa inacabada (em que o agente, com a sua atuação, não criou todas as condições necessárias à consumação material do crime), basta que o agente desista de prosseguir na execução do crime, isto é, que a abandone, deixando de realizar os atos que ainda faltam. Se, pelo contrário, estiver em causa um caso de tentativa acabada (em que o agente já criou todas as condições da realização típica integral), torna-se necessária uma intervenção do agente destinada a impedir a consumação. Na distinção entre tentativa acabada e inacabada não se pode prescindir da consideração das representações mentais do agente sobre o estádio de realização do facto.

Em suma, a desistência é relevante quando:

- o agente abandona a execução do crime (artigo 24.º, n.º 1, 1.ª parte);

- o agente impede a consumação (artigo 24.º, n.º 1, 2.ª parte);

- o agente impede a verificação do resultado não compreendido no tipo, mas que interessa ainda à valoração do ilícito (artigo 24.º, n.º 1, 3.ª parte);

- o agente faz um esforço sério para evitar a consumação do crime ou o seu resultado (não compreendido no tipo de crime), ainda que a consumação ou a verificação do resultado não se tenham efetivamente verificado em razão de facto independente da conduta do desistente (artigo 24.º, n.º 2).

In casu, estamos perante tentativas inacabadas, exigindo-se, como já se disse, para a verificação de desistência relevante, que o agente deixe de prosseguir a execução do crime, isto é, que a abandone.

Só a desistência voluntária (da tentativa inacabada como da acabada) é relevante para afastar a punibilidade do facto tentado, o que significa que o agente tem de atuar por impulso próprio, segundo uma motivação autónoma, e não por imposição de um circunstancialismo exógeno à sua vontade, que se sobreponha ao cumprimento das suas intenções e o prive do domínio da situação. Como assinala Germano Marques da Silva (Direito Penal Português, II, 1998, p. 244), o agente podia prosseguir, mas não quer, pois se o agente desiste porque foi ou vai ser impedido de prosseguir, a desistência não é voluntária.

Nos factos provados 1 a 23 - NUIPC 603/23.5..., NUIPC 550/23.0..., NUIPC 548/23.9... e NUIPC 551/23.9... – o arguido abandonou a execução em razão de ser surpreendido pelo ofendido (caso no NUIPC 603/23.5...), de se aperceber de que estava a ser observado ou da presença inesperada de pessoas no local.

O arguido, nas referidas ocasiões, acabou por sair dos locais sem consumar os crimes, mas não motu próprio, mas porque vendo-se surpreendido pelo dono da casa, ou confrontado com a circunstância inesperada de estar a ser observado ou de se encontrarem pessoas nos locais visados, foi-lhe manifesto que já não podia prosseguir ou que a continuação da execução comportava riscos que uma qualquer pessoa razoavelmente não correria. Por isso, o arguido, perante as circunstâncias exteriores com as quais foi confrontado, “fugiu apeado” dos locais, não se verificando, por conseguinte, desistência nos termos do artigo 24.º supra transcrito.

Lê-se no acórdão recorrido:

«No caso vertente e como descrito na matéria de facto dada como provada, o arguido em todas as situações descritas introduziu-se no logradouro das residências dos ofendidos e tentou sempre introduzir-se nas mesmas, apenas não concretizando a sua intenção de dali retirar bens propriedade dos ofendidos por ter sido sempre surpreendido na sua actuação, ou seja por motivos alheios à sua vontade.»

Porém, se é assim quanto aos factos provados 1 a 23, o mesmo não se pode afirmar quanto aos factos do NUIPC 532/23.2... – factos 24 a 28 -, pois não se diz, em parte alguma, que o arguido tenha sido surpreendido fosse por quem fosse.

O que se deu como provado foi que o arguido dirigiu-se à residência da ofendida, GG; escalou o muro que veda a propriedade e acedeu ao logradouro traseiro da habitação, de modo a conseguir introduzir-se no seu interior e de lá retirar artigos com valor venal e que lhe interessassem e numerário; ato contínuo, o arguido circundou a residência, olhou para o interior e abandonou o local sem que tivesse subtraído qualquer artigo.

Independentemente da questão de saber se o arguido, neste caso concreto, chegou a praticar atos de execução, certo é que o crime de furto que pretendia realizar não foi consumado e que, entre os factos provados, não se descreve qualquer circunstancialismo exógeno à vontade do arguido que o tenha determinado a não prosseguir com os seus intentos.

Por conseguinte, no pressuposto de que o arguido, quanto a tais factos, haja ultrapassado o estádio dos atos preparatórios, é de concluir que operou uma desistência relevante que exclui a punibilidade da tentativa.

A impunidade da tentativa não obsta à consideração de que o arguido praticou, como crime consumado, o de introdução em lugar vedado ao público, previsto no artigo 191.º, do Código Penal – cujos elementos tipificadores estão dados como provados -, pelo qual, aliás, foi acusado pelo Ministério Público (em concurso aparente com o de furto qualificado), pelo que por esse crime deve ser condenado, concorrendo, no caso, as circunstâncias de ter sido quanto ao mesmo exercido o direito de queixa (fls. 30 e 111) e de ter sido imputado ao arguido, como já se assinalou, na acusação pública, o que dispensa qualquer comunicação nos termos dos artigos 358.º, n.º3 e 424.º, n.º3, do CPP.

3.3. Antes de entrarmos na questão da determinação das penas, importa fazer alguns reparos quanto à decisão de facto.

Constata-se que no ponto de facto provado 42 c) diz-se que a pena aí em causa foi “declarada extinta em ........2010”.

É manifesto o lapso: uma pena imposta em ........2013 não pode ter sido declarada extinta em ....

Por conseguinte, impõe-se suprimir esse segmento sobre a data da extinção da pena, além de que facilmente se constata que a pena imposta nesse processo, em cúmulo, foi de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses e não de 8 (oito) anos, transitada em julgado em ........2014 (sendo que, posteriormente, as penas parcelares foram cumuladas no processo 234712.5PILRS).

O mesmo se diga quanto ao ponto de facto provado 42 g): não pode ter sido declarada extinta em ........2010 uma pena imposta em ........2015.

Afigura-se-nos que só um lapso na utilização do processador de texto poderá explicar a repetição, também aqui, da referida data – cuja menção deve ser suprimida.

3.4. Lê-se no acórdão recorrido, quanto à determinação das penas principais, parcelares e conjunta:

«(…)

- crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos arts. 203º, n.º 1 e 204º, nºs. 2, al. e), 202º, al. e), 22º e 23º e 73º, todos do Código Penal: prisão de 1 (um) mês a 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses.

Vem contudo o arguido acusado como reincidente, o que implica a alteração da medida abstracta da pena nos termos previstos no artº 75º do C.Penal, pelo que a medida abstracta da pena a considerar será de pena de prisão de 1 mês e 10 dias a 5 anos e 4 meses.

Na escolha e determinação da medida concreta da pena haverá que ter presente as molduras abstractamente aplicáveis a cada um dos crimes e os critérios constantes dos artigos 40, 70 e 71 do Código Penal.

Estes preceitos consagram o entendimento de que toda a pena tem como suporte axiológico normativo uma culpa concreta e que o julgador se encontra limitado pelo respeito da dignidade da pessoa humana, pelas exigências de prevenção geral e especial.

Os factores concretos a ter em conta na determinação da medida da pena são, de acordo com a sistematização do n.º 2 do artigo 71 do Código Penal, fundamentalmente, os que estão relacionados com a execução do facto (alíneas a), b), e c), os relativos à personalidade do agente (alíneas d) e f) e, por último, os factores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto.

Para além das molduras penais abstractas previstas no nosso ordenamento, há ainda que considerar a respeito da factualidade imputável a este arguido e exigências de prevenção especial e geral, o seguinte:

- a ilicitude elevada dos factos que lhe são imputados, considerando o potencial danoso , e o elevado grau de envolvimento na actuação geral; Será de referir que o modo de execução dos crimes revela uma elevada intensidade e desígnio criminoso, o que necessariamente tem se der ponderado de forma intensa e negativa

- a forte intensidade do dolo, na modalidade de dolo directo;

- o comportamento anterior, com registo de antecedentes criminais e entre outros pela prática de crimes contra o património e até mesmo de igual tipo legal .

- as condições sociais, económicas e pessoais – denotando ausência de integração a nível social profissional e familiar.

É, pois, neste contexto, forçoso concluir que as exigências de prevenção especial, são muito elevadas, assim como as de prevenção geral, porquanto, se tratam de infracções que exigem uma resposta institucional intensa e eficaz, sobretudo de carácter preventivo.

"Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida" - cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Editorial Notícias, 1993, pp. 72 e 73.

A concretização dos dias de prisão far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção: "como limite que é, a medida da culpa serve para determinar um máximo de pena que não poderá em caso algum ser ultrapassado, (...) não para fornecer em última instância a medida da pena: esta dependerá, dentro do limite consentido pela culpa, de considerações de prevenção" - cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Editorial Notícias, 1993, p. 238).

(…)

Nestes termos e ponderando, em conjunto, os critérios enunciados, entende-se adequado fixar a pena concreta, como justa e adequada, em 2 anos de prisão, pela prática de cada um dos crimes de furto qualificado, previsto e punível pelo artigo n.º º 2, alínea e) do artigo 204º do Código Penal.

Do cúmulo jurídico:

O n.º 1 do artigo 30 do Código Penal ao dispor, sob a epígrafe: “Concurso de crimes”, que:

“O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.” Trata da pluralidade de infracções e não da sua punição.

Do ponto de vista da sua punição, o concurso de crimes pode conduzir ao concurso de penas (que dá lugar a uma pena única, resultante de um cúmulo de penas parcelares) ou à sucessão de penas (em que as diversas penas permanecem autónomas).

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 77 do Código Penal:

“Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”

Pelo exposto, temos de concluir estar perante um concurso efectivo de infracções. O arguido cometeu 5 (cinco) crimes.

Assim, para que o arguido seja condenado em pena única, terá de estabelecer-se a pena do concurso, que, segundo a norma legal referida, terá como limite superior a soma das penas concretamente aplicadas e como limite mínimo a mais elevada das penas aplicadas.

Deste modo, a pena de prisão terá o seu limite inferior em 2 anos e o seu limite superior em 10 anos.

Resulta da referida norma legal que o sistema da pena única, através do cúmulo jurídico, impõe a reapreciação dos factos e da personalidade do arguido em conjunto.

Ora, ponderada a gravidade dos factos na sua globalidade e as considerações já tecidas a respeito de cada um dos tipos de crime imputados ao arguido e principalmente a gravidade dos factos e as fortíssimas exigências de prevenção geral e também especial, em face da existência de antecedentes criminais, e pese embora a confissão parcial do arguido, o certo é que a mesma não revelou decisivamente ou de modo relevante para a descoberta da verdade já que em todas as situações o arguido foi reconhecido por testemunhas. Assim, entende-se que se mostra adequada à culpa e às exigências de prevenção geral e especial de socialização do mesmo, a pena única de 6 (seis) anos de prisão.»

3.4.1. A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º, do Código Penal, que as finalidades das penas se reconduzem à proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).

Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cf., com interesse, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).

Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exato de pena.

Estabelece o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, relevantes para a medida concreta da pena, pela via da culpa e/ou pela da prevenção, dispondo o n.º3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjetiva no artigo 375.º, n.º1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.

Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma submoldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção atuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 227 e ss.).

Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º2, Abril-Junho de 2002, pp. 181 e 182), apresenta três proposições, em jeito de conclusões, da seguinte forma sintética:

«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»

De acordo com o referido artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, há que considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) –, e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes por via da prevenção geral, traduzida na necessidade de proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança da comunidade na norma violada, e bem assim as relevantes no plano da prevenção especial, que permitam fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro e assim avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se aqui o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e)] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente, a que se referem as circunstâncias das alíneas e) e f), adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista das exigências de prevenção especial.

O STJ tem entendido que, em matéria de revista sobre a medida concreta da pena, a sindicabilidade abrange a correção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de fatores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, mas não abrangerá “a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado” (Figueiredo Dias, ob cit., §254, p. 197; acórdãos do STJ, de 29.3.2007, no processo n.º 07P9025; de 8.11.2023, no processo n.º 808/21.3PCOER.L1.S1; de 02.05.2024, processo n.º 6409/22.1JAPRT.S1).

Releva, no caso, a ilicitude elevada dos factos, sendo que o modo de execução dos crimes revela uma elevada intensidade do desígnio criminoso.

O arguido tem um vasto e diversificado passado criminal, denotando ausência de integração a nível familiar, social e profissional.

São muito elevadas as necessidades de prevenção especial, como elevadas são as exigências de prevenção geral.

Neste contexto, entendemos que, no quadro do binómio formado pela culpa e pela prevenção, tendo em vista a moldura de prisão de cada um dos quatro crimes de furto qualificado na forma tentada, a fixação de cada pena concreta em 2 (dois) anos de prisão mostra-se ajustada.

Quanto à pena pelo crime de introdução em lugar vedado ao público, de prisão até 3 meses ou multa até 60 dias, o tribunal, nos termos do disposto no artigo 70.º, perante a previsão abstrata de uma pena compósita alternativa, deve dar preferência à multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação e suficiência face às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de socialização, preterindo-a a favor da prisão na hipótese inversa.

A nosso ver, impõe-se, face às exigências de prevenção, a opção pela prisão, que, de harmonia com os critérios legais supra referidos, é fixada em 2 (dois) meses.

Nos crimes puníveis com penas compósitas alternativas de prisão ou multa, a opção pela fixação da pena concreta dentro da moldura da pena de prisão, não impõe a aplicação, a final, da pena de prisão efetiva, pois incumbe ao tribunal ponderar a aplicação das penas de substituição que a lei consagra e que, face ao quantum da pena concretamente determinada, sejam suscetíveis de virem a ser aplicadas.

Aliás, embora não sendo evidente e não colhendo posição unânime, tem-se sustentado que nos crimes puníveis com penas alternativas de prisão ou multa, nada obsta a que o tribunal escolha a pena de prisão, ao abrigo do artigo 70.º do Código Penal (segundo o critério de conveniência ou maior ou menor adequação) e, nos termos do artigo 45.º do mesmo compêndio legal (segundo o critério de necessidade), a deva substituir por multa (nesse sentido, Figueiredo Dias, ob. cit. em último lugar, p. 364; Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 3.ª edição, 1.º Volume, p. 602; Maria João Antunes, Consequências jurídicas do crime, Coimbra 2010-2011, p. 53).

Temos como evidente que, in casu, a dita pena de prisão não deve ser substituída, tendo em vista as prementes necessidades de prevenção do cometimento de futuros crimes.

3.4.2. No que toca à determinação da medida concreta da pena conjunta do concurso, aos critérios gerais contidos no artigo 71.º, n.º1, acresce um critério especial fixado no artigo 77.º, n.º1, 2.ª parte, do Código Penal: “serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso.

Refere Cristina Líbano Monteiro (A Pena «Unitária» do Concurso de Crimes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, págs. 151 a 166) que o Código rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente.

Como se diz no acórdão do STJ, de 31.03.2011, proferido no processo 169/09.9SYLSB.S1, a pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção - dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes.

Em suma, para a determinação da medida concreta da pena conjunta é decisivo que se obtenha uma visão de conjunto dos factos que tenha em vista a eventual conexão dos mesmos entre si e a relação com a personalidade de quem os cometeu.

As conexões ou ligações fundamentais, na avaliação da gravidade do ilícito global, são as que emergem do tipo e número de crimes; da maior ou menor autonomia e frequência da comissão dos delitos; da igualdade ou diversidade de bens jurídicos protegidos violados; da motivação subjacente; do modo de execução, homogéneo ou diferenciado; das suas consequências e da distância temporal entre os factos – tudo analisado na perspetiva da interconexão entre todos os factos praticados e a personalidade global de quem os cometeu, de modo a destrinçar se o mesmo tem propensão para o crime, ou se, na realidade, estamos perante um conjunto de eventos criminosos episódicos, devendo a pena conjunta refletir essas singularidades da personalidade do agente.

A revelação da personalidade global emerge essencialmente dos factos praticados, mas também importa ponderar as condições pessoais e económicas do agente e a sua recetividade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado, elementos particularmente relevantes no apuramento das exigências de prevenção.

No caso em apreço, existe alguma homogeneidade nas condutas praticadas e proximidade temporal (3 das condutas ocorrem no mesmo dia). No entanto, o arguido revela uma personalidade desviante, deficientemente formada, sendo manifestas e acentuadas as necessidades de prevenção, especial e geral. Recluso desde 8 de abril de 2012 até 29 de junho de 2022, cerca de um ano depois já se encontrava a cometer os crimes aqui em causa. Consumidor de estupefacientes e, à data da detenção, a viver na rua como sem abrigo, o arguido não conta, presentemente, com o apoio da família.

Para a determinação da pena única a lei não estabelece quaisquer critérios aritméticos.

Não se ignora, porém, a existência de jurisprudência do STJ que, perante a amplitude da moldura penal do concurso, advoga que se adicione à parcelar mais elevada uma fração variável das restantes penas parcelares (sendo frequente ver somada, à pena mais grave, frações das demais penas que variam desde ½ até 1/5), tendo como referência diversos critérios jurisprudenciais e convocando um denominado «fator de compressão» que deve atuar entre o mínimo e o máximo da moldura penal prevista no artigo 77.º, n.º2, do Código Penal. Fala-se, a este propósito, da existência, por um lado, de um efeito “expansivo” das outras penas sobre a parcelar mais grave, e, por outro, de um efeito “repulsivo” a partir do limite da soma aritmética de todas as penas, que resulta de uma preocupação de proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar, em relação ao conjunto de todas elas.

A determinação da pena única, a nosso ver, quer pela sua sujeição aos critérios gerais da prevenção e da culpa, quer pela necessidade de proceder à avaliação global dos factos na sua ligação com a personalidade, não é compatível com a utilização de critérios matemáticos de fixação da sua medida. A convocação desses critérios apenas poderá ser entendida, porventura, como coadjuvante, e não mais do que isso, quando existe uma grande margem de amplitude na pena a aplicar, tendo em vista as exigências dos princípios da proporcionalidade e proibição do excesso, mas sempre procurando a solução justa de cada caso concreto, apreciado na sua particular singularidade.

Neste quadro, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto todos os factos em presença, a sua relacionação com a personalidade do recorrente neles documentada e os fins das penas, dentro da moldura abstrata aplicável à pena do cúmulo – prisão de 2 anos a 8 anos e 2 meses -, julgamos adequada a condenação na pena única conjunta de 5 (cinco) anos de prisão.

3.4.3. O artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, estabelece:

«O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.»

Traduzindo-se na não execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos, entendemos, com o apoio da melhor doutrina, que a suspensão constitui uma verdadeira pena autónoma, de substituição, constituindo pressuposto material da sua aplicação que o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, conclua pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente que se traduza na seguinte proposição: a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Por sua vez, constitui pressuposto formal de aplicação da suspensão da prisão, que a medida desta não seja superior a 5 anos.

O referido artigo 50.º consagra um poder-dever, ou seja um poder vinculado do julgador, que terá de decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização das finalidades da punição, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos (Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, 18.ª edição, p. 215).

São finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção geral e de prevenção especial, a determinar a preferência por uma pena de substituição – como é a suspensão da execução da prisão –, sem perder de vista que a finalidade primordial é a de proteção dos bens jurídicos. Não está aqui em causa uma qualquer finalidade de compensação da culpa, mas considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, em função das quais se limita o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto da suspensão da execução da pena (Figueiredo Dias, ob. cit., p. 344).

No caso, como já se disse, são muito relevantes as necessidades de prevenção especial, constatando-se que as condenações pretéritas do recorrente e uma longa pena de prisão não o inibiram de voltar a delinquir, o que denota a sua insensibilidade ao efeito dissuasor das penas impostas e demonstra que a eventual opção por uma pena de substituição se mostraria desprovida de eficácia preventiva.

O passado criminal do arguido é extenso e regista condenações por diversas tipologias de crimes.

O que ressalta é que o arguido, fora do ambiente prisional, foi incapaz de manter-se longe da criminalidade.

Neste quadro circunstancial, entendemos não ser possível formular um juízo de prognose favorável em relação ao arguido, não sendo de aplicar, por conseguinte, pena de substituição.

3.5. Insurge-se o arguido/recorrente contra a pena acessória de expulsão que lhe foi imposta.

Diz-se no acórdão recorrido:

«Requereu o Ministério Público a aplicação da pena acessória de expulsão do território nacional, em conformidade com o disposto no artigo 151º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, na redacção introduzida pela Lei nº 29/2012, de 9 de Agosto, actualmente na versão da Lei 56/23 de 6.10.

Estabelecia o Decreto-Lei 244/98, de 8 de Agosto, que podia ser expulso o cidadão estrangeiro não residente condenado por crime doloso com pena superior a 6 meses de prisão [(art.º 101º/1-a)].

Entretanto, a Lei 23/2007, de 4 de Julho, que revogou o referido Decreto-Lei 244/98, de 8 de Agosto, veio estabelecer novas regras relativas à matéria da expulsão e à pena acessória de expulsão para a generalidade dos cidadãos estrangeiros que não sejam cidadãos de Estados membros da União Europeia nos seus artigos 134º a 180º, estipulando o artigo 4º, nº2, alínea a), que “a presente lei não é aplicável a nacionais de um Estado membro da União Europeia”.

Nos artigos 140º, nº2, e 151º, nºs 1, 2 e 3, da referida Lei encontram-se definidas as condições em que os tribunais aplicam a medida acessória de expulsão a cidadãos estrangeiros não comunitários.

Para que seja decretada a expulsão, esta há-de revelar-se necessária e proporcional à luz da gravidade do crime e dos fins das penas, o que supõe a ponderação das circunstâncias do caso concreto, designadamente no que se refere às consequências concretas da expulsão de um estrangeiro com ligação pessoal, familiar ou profissional a Portugal.

De harmonia com o disposto no nº2 do artigo 151°, o tribunal dever ter em conta, na aplicação da pena, a gravidade dos factos praticados pelo arguido, a sua personalidade, a eventual reincidência, o grau de inserção na vida social, a prevenção especial e o tempo de residência em Portugal; dispondo o nº3 que a expulsão de cidadãos estrangeiros com residência permanente só deverá, por regra, ser decretada quando a sua conduta constituir uma ameaça suficientemente grave para a ordem pública ou a segurança nacional.

O arguido tem nacionalidade Cabo-Verdiana.

Apesar de nascido em Portugal, nunca regularizou a sua situação em território nacional.

O arguido em Portugal apenas tem a sua mãe e um filho, sendo que não mantém contacto com nenhuma destas pessoas.

Não tem meios de subsistência em território nacional e à data dos factos vivia na situação de sem abrigo, pernoitando na rua e sem qualquer actividade profissional. Aliás o seu percurso profissional foi sempre incipiente.

O único elemento de conexão, com o território nacional como referido é a sua mãe e um filho, com o qual o arguido não mantém contactos, consequentemente, não tem com estes qualquer referência ou vinculação afectiva.

São pois, os elementos de conexão bastante ténues.

O arguido violou normas que punem actos de conhecida gravidade e alarme. Conforme se explicitou, é bastante acentuado o grau de ilicitude da conduta do arguido.

Acresce que o arguido tem vasto passado criminal, evidenciando a reiteração da conduta do arguido qualidades desvaliosas da sua personalidade, ou seja, a uma propensão para a prática de actos de actos criminosos. Aliás, pode-se dizer que o arguido em Portugal apenas tem praticado crimes, não se lhe conhecendo qualquer outro tipo de conduta que vá para além da prática de crimes e na sua maior parte muito graves, como sejam as condenações sofridas pela prática de crimes de violação, furto qualificado, roubo qualificado, ofensas corporais qualificadas, resistência e cocção sobre funcionário.

Mostra-se, assim, verificado que as condutas assumidas pelo arguidos constituem uma ameaça real, actual e suficientemente grave para a ordem pública e, nessa mediada, afecta um interesse fundamental da sociedade.

Assim, atenta a gravidade dos factos e por se verificarem os pressupostos, o tribunal tem por adequada aplicar ao arguido a pena acessória de expulsão do território nacional pelo período de 6 anos nos termos do artigo 151º da Lei 56/2023.»

No dispositivo do acórdão recorrido, diz-se que o tribunal decidiu:

«3. Condenar o arguido AA na pena acessória de expulsão do território nacional, nos termos do artigo 134º, n.º 1, alíneas e) e f), e 140º, nº2, e 151º, nº1, da Lei 23/2007, do artigo 22.°, n.º 1 e 3, da Lei n.º 37/2006, e do artigo 34º do Decreto-Lei 15/93, pelo período de 6 (seis) anos.»

A menção ao artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 15/93, só pode constituir um lapso.

A nosso ver, a fundamentação apresentada é insuficiente, sendo, até, contraditória.

Diz-se que o arguido tem ascendência de Cabo Verde e que, embora nascido em Portugal, tem nacionalidade cabo-verdiana.

Não se infere da matéria provada qualquer relação do arguido com Cabo Verde, designadamente, se alguma vez lá viveu, pois nada se diz a esse respeito, antes se extrai o contrário: que o arguido nasceu em Portugal e que os seus pais se separaram quando o arguido tinha 4 anos, ficando a mãe a residir numa barraca, num bairro clandestino, enquanto o arguido ficou a cargo do agregado paterno, a quem fora atribuída uma habitação social. Tudo isto, aparentemente, em Portugal.

Junto deste agregado e num contexto de vivência de um bairro social, o arguido começou precocemente a manifestar dificuldades em aceitar a autoridade dos adultos e a faltar à escola para se juntar aos grupos do bairro, com os quais começou a cometer ilícitos.

Foi-lhe aplicada uma medida tutelar de internamento em colégio, a qual cumpriu no ... em ... e no ... no ..., onde veio a completar o 9.º ano de escolaridade, bem como alguma formação profissional em artes decorativas, carpintaria e informática. Mais uma vez, tudo isto em ....

Com o termo da medida aos 18 anos, reintegrou o agregado materno, no qual já se incluía o novo companheiro da mãe, e com o qual o arguido sempre manteve uma relação de conflito de autoridade ao longo dos anos.

Posteriormente, começam os problemas de natureza criminal sinalizados no CRC.

Quando o acórdão recorrido afirma que os elementos de conexão com o território nacional são “bastante ténues”, fica por esclarecer que conexão tem o arguido com o país da sua nacionalidade, para além da cidadania formal, já que, tendo nascido em Portugal, em .../.../1988, toda a sua vida de 36 anos aparenta ter decorrido apenas em Portugal, pelo menos em função da forma como estão descritos os factos, nada se dizendo sobre qualquer tipo de contacto ou período de residência fora do território nacional, nomeadamente em Cabo Verde, onde o arguido diz nunca ter estado alguma vez desde que nasceu.

O acórdão recorrido não faz qualquer menção ao artigo 135.º da Lei n.º Lei n.º 23/2007, de 04 de julho, que introduziu limites à aplicação da pena acessória de expulsão, que são, também, aplicáveis à decisão de afastamento coercivo ou de expulsão, sujeitos à cláusula derrogatória do n.º 2, que estabelece “limites aos limites” à expulsão.

Entre esses limites inscrevem-se as situações de cidadão estrangeiro nascido em território nacional e que aqui resida e que se encontre em Portugal desde idade inferior a 10 anos e aqui resida.

Nada disto foi objeto de qualquer ponderação pelo tribunal de 1.ª instância, no sentido da sua pertinência ou impertinência para a decisão, razão por que se entende que o acórdão recorrido enferma, nesta parte, de nulidade da fundamentação, a ser suprida pelo tribunal a quo, se necessário for com obtenção de elementos adicionais que entenda indispensáveis para decidir sobre a questão da aplicação da referida pena acessória.

*

III - DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em:

A) Determinar a retificação dos pontos de facto provados, 42 c) e 42 g), eliminando de ambos as menções “Declarada extinta em ........2010” e, ainda, quanto ao ponto de facto provado 42 c), consignar que a pena imposta nesse processo, em cúmulo, foi de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses, transitada em julgado em ........2014;

B) No provimento parcial do recurso, revoga-se o acórdão recorrido na parte em que condenou o arguido pela prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, alínea f), do Código Penal, no que concerne aos factos do NUIPC 532/23.2... (ofendida GG), crime de que se absolve o arguido;

C) Condena-se o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto no artigo 191.º, do Código Penal (factos do NUIPC 532/23.2...), na pena de 2 (dois) meses de prisão;

D) Em cúmulo jurídico da pena indicada em C) com as penas parcelares dos restantes quatro crimes de furto qualificado por que o arguido foi condenado em 1.ª instância – e que se confirmam -, vai o mesmo condenado na pena única conjunta de 5 (cinco) anos de prisão;

E) Declara-se a nulidade do acórdão recorrido, pela razões sobreditas, no segmento em que se reporta à pena acessória de expulsão, devendo o tribunal recorrido, em novo acórdão, suprir a nulidade em causa.

Sem tributação.

Supremo Tribunal de Justiça, 28 de novembro de 2024

(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Jorge Gonçalves (Relator)

Celso Manata (1.º Adjunto)

Vasques Osório (2.º adjunto)