Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3233/21.2T9VNF-B.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ERNESTO VAZ PEREIRA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
ERRO DE IDENTIDADE
Data do Acordão: 09/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Um erro de identidade na aplicação de prisão preventiva é aquele exemplo de escola para o qual a providência de habeas corpus se mostra talhada. Efetivamente, se fundadamente se configurar uma situação de prisão preventiva de um terceiro à margem da imputação dos factos em vez daquele que efetivamente está indiciado o Supremo não deixará de intervir para de imediato libertar aquele que é extraneus aos factos. Estaríamos perante situação em que nem sequer facto havia para o deter. Com o que não poderia deixar de se aplicar a al. b) do nº 2 do artigo 222 do CPP.

II. É manifesto que um lapso de escrita verificado no despacho de indiciação e repetido no despacho de aplicação da medida de coação no nome do arguido interrogado e em sede de descrição da sua actividade típica não tem mais do que a virtualidade de desencadear um requerimento do MºPº ou a oficiosidade da jurisdição para corrigir o lapso.

III. Não tem seguramente a capacidade de gerar a providência excepcional de habeas corpus que, diga-se, vem sendo usado com demasiada pressa e outra tanta leveza, como da leitura dos sucessivos e correspondentes acórdãos/decisões se verifica.

Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes da 3ª secção criminal



I - RELATÓRIO

I – 1 -Petição

AA, residente na rua..., ... ..., do concelho ..., preso preventivamente desde 12/07/2022, no Estabelecimento Prisional ..., à ordem do processo n.º 3233/21.2T9VNF, Juiz ..., do Juízo de Instrução Criminal ..., vem requerer habeas corpus com os seguintes fundamentos:

No processo referido foi-lhe aplicada a medida de coação de prisão preventiva por despacho datado de 13/07/2022.

E, (transcrição)

“3 – Do despacho em causa verifica-se que consta do ponto 1 dos factos imputados ao aqui Arguido que “desde de data não concretamente apurada, mas pelo menos desde março de 2019 e até ao dia 12.07.2022, o Arguido BB dedicou-se à venda direta e/ou revenda de produtos estupefacientes a terceiros …”

4 – No ponto 2 do mesmo segmento decisório referem-se as localidades onde o mesmo Arguido BB desenvolveu tal atividade, bem como o contacto com clientes/consumidores e o modo de deslocação.

5 – No ponto 3 é referido que no período indicado supra o Arguido BB deslocava-se regularmente ao Bairro ..., no ..., para adquirir produtos estupefacientes,

6 – Em igual peça afirma-se ainda que o Arguido BB, como apoio à indicada atividade de tráfico, possuía um barraco fechado onde se deslocava regularmente, e onde escondia o produto estupefaciente e o dinheiro.

7 – Com base nestes factos, foi aplicada a prisão preventiva ao aqui Arguido AA.

8 – Os factos em causa supra descritos, e que constam da matéria dada como provada que esteve na base da prisão preventiva ao aqui Arguido, se referem a outra pessoa que não este.

9 – A folhas 396 verso é referido em douto despacho do Ministério Público que estava indiciado que, “desde de data não concretamente apurada, mas pelo menos desde março de 2019 e até ao dia 12.07.2022, o Arguido BB dedicou-se à venda direta e/ou revenda de produtos estupefacientes a terceiros …”

10 – De seguida são referidas as localidades onde o mesmo Arguido BB desenvolveu tal atividade, bem como o contacto com clientes /consumidores e o modo de deslocação.

11 – No mesmo despacho é descrito que no período indicado supra o Arguido BB deslocava-se regularmente ao Bairro ..., no ..., para adquirir produtos estupefacientes,

12 – E é ainda afirmado que o Arguido BB, como apoio à indicada atividade de tráfico, possuía um barraco fechado onde se deslocava regularmente, e onde escondia o produto estupefaciente e o dinheiro.

13 – No despacho acabado de mencionar, os factos que estiveram na origem da prisão preventiva, referem-se apenas ao BB e não ao aqui Arguido AA.”

(…)

16 - A decisão na qual se estribou o mandado de detenção e consequente prisão, no dia 13 de julho de 2022, assenta em factos que não são imputados ao aqui Arguido;

17 – Os seja os factos que fundamentaram a medida de coação mais gravosa referem-se a terceiro,

18 – Mas serviram para prender a quem não dizem respeito.

19 - A prisão do Arguido foi motivada

21 – Ora, assentando, como assenta, a prisão preventiva do Arguido, em matéria de facto imputada a terceiro, a qual lhe é absolutamente estranha, é de concluir pela ilegalidade da prisão decretada e materializada no despacho de fls. …;,”

E conclui que “por erro manifesto sobre a pessoa na determinação dos factos imputados e sua causal fundamentação da privação da liberdade do Arguido, é ilegal a prisão decretada, sendo legítima e necessária a providência de Habeas Corpus ora requerida.”

E pede a imediata libertação do arguido.

A Mª Juíza prestou a informação a que alude o artº 223º, nº 1 do CPP. Nestes termos:

“Investigam-se nos presentes autos factos passíveis de consubstanciarem a prática de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21°, n.° 1, do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de janeiro, por referência às Tabelas Anexas I-A e I-B.

O arguido AA foi detido, em flagrante delito, a 12.7.2022, e sujeito a interrogatório judicial de arguido detido no dia 13.7.2022.

No interrogatório foi o arguido confrontado com os factos, meios de prova que os sustentam, tendo prestado declarações, negando a autoria daqueles,

Após despacho fundamentando nos perigos de continuação da actividade de tráfico, perturbação do inquérito e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas foi decidida a aplicação ao arguido AA, para além do TIR já prestado, a medida de coacção de prisão preventiva, nos termos do disposto nos arts. 191° a 193°, 202°, n.° 1, ais. a) e d) e 204°, ais. c) do Código de Processo Penal.

Mantém-se a prisão preventiva do arguido.

Oportunamente, remeta o apenso a criar Supremo Tribunal de Justiça - cfr. art.° 223.°, n.° 1 do C.P.Penal.”

E remeteu para instrução da petição:

 – Informação de início de investigação: de fls. 4 a 8;

- Certidões: de fls. 30 a 46 e 148 a 220;

- Autos de apreensão: de fls. 138, 139, 287, 288, 292 a 295, 307 e 308;

- Autos de pesagem: de fls. 140, 141, 291, 298 e 299;

- Testes rápidos: de fls. 142, 143, 289, 290, 296 e 297;

- Autos de busca: de fls. 272 a 277, 315 a 318 e 323 a 326;

- Autos de inquirição de testemunhas: de fls. 353 a 360;

- Relatórios fotográficos: de fls. 278 a 286, 319 e 320;

- Relatórios intercalares: de fls. 123 a 134 e 361 a 369;

-Relatórios de diligência externa: de fls. 51 a 78,117 a 122,135 a 137 e 246 a 266;

- Folha de suporte: de fls. 309;

- Auto de exame direto a objetos: de fls. 302 e 303;

- Auto de exame e avaliação de veículo: de fls. 310;

- CRC: de fls. 378 a 394;

- Pesquisa da Segurança Social: de fls. 377.

- CRC, de fls. 378 a 394.

- Auto de interrogatório de 13.7.2022.

- CD com as gravações do interrogatório de 13.7.2022.

- Requerimento do arguido de 26.8.2022.

I-3 - Convocada a Secção Criminal deste Supremo Tribunal e efetuadas as devidas notificações, realizou-se a audiência pública, nos termos legais.

A Secção Criminal reuniu seguidamente para deliberação.

II - FUNDAMENTAÇÃO

II-1 - Factualidade pertinente

O arguido AA foi detido em 12/07/2022, na sequência de inquérito em que era visado pela prática de crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21°, n.° 1, do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de janeiro, por referência às Tabelas Anexas I-A e I-B.

E foi sujeito a interrogatório judicial de arguido detido no dia 13.7.2022, onde está devidamente identificado.

A final do interrogatório, tendo sido considerado haver perigos de enorme alarme social, de perturbação de paz pública, de perturbação do inquérito e de continuação da atividade criminosa, per foi decretada a medida de coação de prisão preventiva.

Por manifesto lapso de escrita, sem dúvida causado por erro de copy paste, aparece referência, nos pontos “1” dos despachos de indiciação e de aplicação de medida de coação, em sede de descrição de actividade, a um tal “BB” em vez de AA. Aquele, o “BB”, um personagem inexistente no processo, porque nunca aí referido, e este, AA, sim o arguido detido em 12/07/2022, interrogado em 13/07/2022 e, em termos de medida coativa, preso preventivamente desde o despacho da mesma data, proferido a afinal do interrogatório de AA e pela sua atividade de tráfico.

Mas, é certo, quer no despacho de indiciação do MP quer no despacho de aplicação da medida de coação se refere o tal “BB” no ponto 1 desses despachos.  Mas logo a seguir, nos pontos 6 a 12, 15 a 18, 20 a 27, 29 a 31, e 35, 38 e 39, se aponta para a correta identificação do arguido detido e interrogado, AA. Assim, como nessas peças processuais se indicam todos os elementos de prova referentes ao AA. E onde, em sede de identificação, está, por assunção própria, devidamente identificado. Sendo o CRC junto deste e não daquele inexistente “BB”. O próprio defensor, a final do interrogatório, se limita a contestar a aplicação da sobredita medida de coação nada apontando em ternos de erro de identidade do arguido nem em termos de atividade do “BB”. Apesar de ter estado presente no interrogatório e ter tido acesso ao despacho de imputação e ao despacho de aplicação da medida de coação, que leu e ouviu e que lhe foram notificados.

O peticionante não faz qualquer referência de existência ou de atividade de “BB” ou de sua intervenção processual que confusão de identidade com o AA possa originar.

O peticionante assenta o pedido num alegado erro de identidade, porque, afirma, se imputa a atividade ao “BB” não se pode prender AA.  

De todos os elementos que nos foram enviados e da informação do tribunal de 1ª instância o que se extrai é que onde se escreveu “BB” dever-se-ia ter escrito “AA”, tendo ocorrido um manifesto lapso de escrita naqueles sobreditos pontos.

Mas o lapso não afrontou a verdade do ato ou o essencial do interrogatório.

O inquérito desde o início que visa AA, todos os elementos de prova se alinham contra a sua prática de tráfico de estupefacientes, não foi questionada a sua identidade ou levantada confusão de identidade com terceiro, nomeadamente em sede de indiciação e de despacho de aplicação de medida de coação, após seu interrogatório como arguido, onde esteve assistido por advogado, e com despacho notificado a ambos.

Nenhuma referência é feita a atividade de tal “BB”.

Por isso, é que, pese embora não refira o lapso, certamente já corrigido, é que a informação da mma juíza de 1ª instância vem tão assertiva, impressiva e de forma tão inequívoca. E, reforçando-a, para que dúvidas não subsistam, fez questão de enviar a panóplia de peças processuais que enviou, de modo a que de forma inequívoca se visse quem é o visado no inquérito, quem está indiciado pela prática daquele ilícito e a quem foi aplicada a medida de prisão preventiva.

Pelo que temos de concluir que a nomeação de tal “BB” nos pontos 1 suprarreferidos se constituiu como um lapso de escrita e onde está tal nomeação deveria constar AA.

1.O habeas corpus tem fundamento constitucional.

Nos termos do artigo 31, nº 1, da CRP, na redação da revisão constitucional de 1997, “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.”

“Na estrutura com que a Constituição o consagrou, o habeas corpus caracteriza-se pela sua natureza de “providência” judicial (nº 2), que tem como objeto imediato “o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal”, visando, por isso, a tutela da liberdade física ou de locomoção.” (in, “Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda, Rui Medeiros, nota ao artigo 31)

Não é um recurso, não é um substitutivo ou sucedâneo do recurso, muito menos o recurso dos recursos, é um instituto a manter distinto dos recursos (cfr “Curso de Direito Processual Penal”, Ii, Germano Marques da Silva). É uma “providência” que não se confundindo com o recurso, pode até correr termos lado a lado e simultaneamente (219, nº 2)[i].

Providência expedita, com caráter de urgência a ser decidida em 8 dias (art. 31, nº 3, da CRP), e extraordinária, porque, fora da ordem normal de garantias recursórias, está destinada a valer “contra o abuso de poder” e a por cobro a situações de manifesta ilegalidade de uma prisão.

Situações essas que vêm expressa e taxativamente previstas no artigo 222, nº 2, do CPP.

E só essas.

Porque, como sublinha Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal, vol. II, 324., “nem todos os casos de injusta prisão são situações de prisão ilegal”.

Só, pois, os casos de prisão manifestamente ilegal – na apreciação formal a que obriga o artº 222º, nº 2 do CPP – é que podem ser objecto desta providência excepcional em que se traduz o habeas corpus.

Citando o ac. do STJ de 1/2/2007, Proc. 07P353, “a providência excepcional de habeas corpus não se substitui nem pode substituir‑se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. Está reservada, quanto mais não fosse por implicar uma decisão verdadeiramente célere — mais precisamente «nos oito dias subsequentes» ut art. 223.º, n.º 2, do Código de Processo Penal — aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas, como o são os casos de prisão «ordenada por entidade incompetente», «mantida para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial», e como o tem de ser o «facto pela qual a lei a não permite». Não se esgotando no expediente de excepção os procedimentos processuais disponíveis contra a ilegalidade da prisão e a correspondente ofensa ilegítima à liberdade individual, o lançar mão daquele expediente só em casos contados deverá interferir com o normal regime dos recursos ordinários: justamente, os casos indiscutíveis ou de flagrante ilegalidade, que, por serem‑no, permitem e impõem uma decisão tomada com imposta celeridade. Sob pena de, a não ser assim, haver o real perigo de tal decisão, apressada por imperativo legal, se volver, ela mesma, em fonte de ilegalidades grosseiras, porventura de sinal contrário, com a agravante de serem portadoras da chancela do Mais Alto Tribunal, e, por isso, sem remédio”.

O que se reitera no Ac. deste STJ de 23/7/2021, Proc. 52/19.0SVLSB-A.S1 [4], o habeas corpus “não é um recurso, - ordinário ou extraordinário. É uma providência que visa colocar perante o Supremo Tribunal de Justiça a questão da ilegalidade da prisão em que o requerente se encontra nesse momento ou do grave abuso com que foi imposta. Visa apreciar se a prisão foi determinada pela entidade competente, se o foi por facto pelo qual a lei a admite, se se mantém pelo tempo decretado e nas condições legalmente previstas. Para o que pode ser necessário equacionar da legalidade formal ou intrínseca do ato decisório que determinou a privação de liberdade, mas não mais que isto. Não é uma via procedimental para submeter ao STJ a reapreciação da decisão da instância que determinou a prisão ou à ordem da qual o requerente está privado da liberdade. Não se destina a questionar o mérito do despacho judicial ou da sentença condenatória que impôs a prisão nem a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades de que possam enfermar”.

“No habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade. Procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal. (…) O habeas corpus não pode ser reconvertido num “recurso abreviado”, (…) O processamento acelerado do habeas corpus não se coaduna, aliás, com a análise de questões com alguma complexidade jurídica ou factual, antes se adequa apenas à apreciação de situações de evidente ilegalidade, diretamente constatáveis pelo confronto entre os factos sumariamente recolhidos e a lei”(in  HABEAS CORPUS: PASSADO, PRESENTE, FUTURO, Maia Costa, Revista Julgar, N.º 29 – 2016.

Por isso, é que, por exemplo, não cabe num habeas corpus discutir a suficiência ou insuficiência dos indícios, em ordem a imputar ao requerente a prática de um crime de homicídio qualificado. Como não cabe, aliás, no âmbito desta providência excepcional de habeas corpus, apreciar os requisitos de necessidade, adequação e proporcionalidade de que depende a aplicação da prisão preventiva . (cfr. Acs. STJ de 22/9/2021, Proc. 3825/21.0T9CSC-A.S1 e de 14/4/2021, Proc. 292/21.1PASNT-A.S1 e 03/01/22, 2184/21).

Como não se destina a questionar o mérito do despacho judicial ou da sentença condenatória que impôs a prisão nem a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades de que possam enfermar (cfr STJ 15/12/2021, 1420/11).

Que não é um recurso, nem ordinário nem extraordinário, di-lo logo a CRP ao qualifica-lo como providência e ao diferenciá-lo do recurso, mesmo em termos de normativos, arts 31 e 32; ao impor-lhe como pressuposto uma situação de “abuso de poder”, o que na força hegemónica vinculante constitucional pré-determina o demais processual;  di-lo outrossim o CPP desde logo na qualificação, em conformidade constitucional, de providência, de diferenciação do recurso, o que bem se revela logo na sua inserção sistemática, di-lo também no respetivo processado, ao obrigar a uma decisão célere em oito dias, só com fundamentos taxativos e só com intervenção do MP na audiência.

Certo é que, apesar da sua excepcionalidade de providência, o habeas corpus vem sendo usado com demasiada pressa e outra tanta leveza. Basta para tanto concluir fazer um rápido exercício de leitura dos últimos habeas corpus subidos a este Supremo e que, por falta de fundamento, improcederam.  

Um erro de identidade na aplicação de prisão preventiva é aquele exemplo de escola para o qual a providência de habeas corpus se mostra talhada. Efetivamente, se fundadamente se configurar uma situação de prisão preventiva de um terceiro à margem da imputação dos factos em vez daquele que efetivamente está indiciado o Supremo não deixará de intervir para de imediato libertar aquele que é extraneus aos factos. Estaríamos perante situação em que nem sequer facto havia para o deter. Com o que não poderia deixar de se aplicar a al. b) do nº 2 do artigo 222 do CPP.

Mas, no caso, erro de identidade se não configura. Aqui o que se deteta é um erro de escrita, um lapso manifesto de escrita, certamente por duplo erro de copy paste[ii], no despacho de indiciação e no despacho de aplicação de medida de coação, que oficiosamente deverá ser corrigido, se ainda o não foi.

Como assevera a informação vertida nos autos pelo tribunal de 1ª instância e como ex abundantia se extrai não se verificou qualquer erro de identidade na aplicação da medida de coação de prisão preventiva ao arguido aqui peticionante.

Na ausência de falha identificativa, cumprido que foi o artigo 141, nº 3, do CPP, o que se impõe é a retificação do lapso de escrita fazendo constar AA, o verdadeiro e único arguido indiciado e interrogado, no lugar onde consta “BB”. Como para caso similar o Supremo já o disse, “Essa correção pode ser feita oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, e deve sê-lo, quando possível, pelo próprio juiz que cometeu o erro ou lapso a emendar, ou, excecionalmente, pelo tribunal superior, mas, neste caso, unicamente se já tiver subido o recurso da respetiva sentença.”, (in ac. do STJ de 11/03/1993, CJ-STJ 1993-I-212)[iii]. E por maioria de razão se pode corrigir o erro de escrita no despacho de aplicação de medida de coação. Aliás, a correção impõe-se pela própria natureza do processo que, sendo uma sucessão ordenada de atos e formalidades em ordem a uma decisão final de ilibação ou de condenação, não pode deixar de corresponder à verdade dos atos que nele se integram.

Não havendo erro de identidade não pode proceder a petição.

III - DECISÃO

Termos em que

- se acorda em indeferir a requerida concessão da providência de Habeas Corpus por manifestamente infundada, nos termos do disposto no artigo 223º nº 4 al. b do CPP;

Uma vez que presente petição de habeas corpus se mostra manifestamente infundada, nos termos do artigo 223, nº 6, vai o peticionante sancionado com a soma de 7 UCs;

- Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos do artigo 8º nº 9 da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

STJ, 6 de Setembro de 2022.

Ernesto Vaz Pereira (Relator)

Lopes da Mota (1º Adjunto)

Conceição Gomes (2ª Adjunta)

Nuno António Gonçalves (Presidente da Secção)

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[i] Com a introdução do nº 2 através da reforma do CPP de 2007, o legislador terminou com a querela jurisprudencial de saber se podia interpor-se recurso e providência de habeas corpus em simultâneo visando ambos a libertação imediata do arguido. Respondeu afirmativamente, porque “não existe relação de litispendência ou de caso julgado” entre os dois meios processuais.   
[ii] Acaba por ser frequente este tipo de lapsos. Claro que quanto maior for o uso da cópia mais redobrada atenção se nos exige. Nada, porém, que de pronto se não resolva no próprio processo. Os mais antigos códigos, ainda vinha longe o copy paste, já acautelavam a correcção de erros materiais. Recentemente o Prof. Lamas Leite, in “Férias judiciais” e alguns desabafos”, in “Público”, 19/07/2022, alertava para a erradicação da “doença do copy paste” embora não no segmento dos erros materiais que provoca mas sim na endémica sucessiva transcrição de enormes peças processuais ou suas partes. Resta saber, porém, se à omissão dessas partes processuais não corresponderá logo a seguir, ainda que injustificadamente, a arguição de vício de omissão de pronúncia, com os sequentes andamentos processuais que carrega. Diremos, como para tudo, est modus in rebus.      
[iii] O acórdão faz questão de alertar para os casos de correção recorríveis. Porque, se for recorrível, e cita Maia Gonçalves, in “CPP Anotado”, 1992, pag. 531, e o ac. da RP de 29/11/1989, CJ, XIV, 5º-233, para não se bulir com o direito ao recurso deve a correção ser efetuada pela 1ª instância.