Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
365/25.1YRLSB.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA MARGARIDA ALMEIDA
Descritores: EXTRADIÇÃO
REQUISITOS
COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
MANDADO DE DETENÇÃO INTERNACIONAL
RECUSA FACULTATIVA DE EXECUÇÃO
PROCESSO PENDENTE
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 03/19/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EXTRADIÇÃO/M.D.E./RECONHECIMENTO SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. A extradição constitui uma forma de cooperação judiciária internacional em matéria penal, através da qual um Estado requerente pede a outro, Estado requerido, a entrega de uma pessoa que se encontre no território deste último, para efeitos de procedimento criminal, de cumprimento de pena ou de medida de segurança privativa de liberdade, por infracção cujo conhecimento seja da competência dos tribunais do Estado requerente.

II. Os requisitos e condições de admissibilidade da extradição, quando o Estado Português é requerido, são reguladas pelos tratados e convenções internacionais e, na sua falta ou insuficiência, pelo disposto em lei especial, nos termos preceituados no artigo 229º do Código de Processo Penal, designadamente pela lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal (Lei 144/99, de 31 de Agosto).

III. No caso, encontramo-nos numa fase preliminar a tal processo, por virtude da ocorrência de uma detenção não directamente solicitada, decorrente de uma informação oficial oriunda da INTERPOL, nos termos previstos no art. 39.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto.

IV. A Notícia Vermelha da Interpol (Red Notice) é um pedido internacional de localização e prisão provisória de uma pessoa, emitida a pedido de um país-membro da Interpol ou de um tribunal internacional. Assim, esta Notícia Vermelha, embora pressuponha a emissão, pelo país requerente, de um mandado de detenção internacional, não constitui, em si mesma, uma efectiva ordem de prisão, mas antes um alerta e um pedido de cooperação entre os países, para ajuda na localização dos procurados pela justiça de um dos 195 países-membros da Interpol.

V. Corresponde, na sua essência, a uma notificação às autoridades dos países membros, pedindo que averiguem se a pessoa procurada se encontra nos respectivos territórios nacionais e, na afirmativa, solicitando a sua cooperação, podendo a mesma englobar, no caso, a detenção provisória de uma pessoa, tendo em vista a sua eventual e futura extradição.

VI. A detenção provisória, com fundamento em Notícia Vermelha, corresponde a uma fase preliminar prévia à própria fase administrativa da extradição passiva, uma vez que, prosseguindo os autos, terá de ser formalizado o pedido de extradição pelo Estado requerente, a que se seguirá a fase administrativa e, caso venha a ser deferido administrativamente o pedido, prosseguirá então o processado para a fase judicial propriamente dita.

VII. No caso, o requerido foi detido em Portugal, em 1 de Fevereiro de 2025, quando transitava, via aérea, de ... para ....

VIII. Por decisão de 3 de Fevereiro de 2025, do TRL, ao abrigo do disposto no art.º 18.º da Lei 144/99, de 31/08, foi negada a cooperação internacional pedida pela Argentina, ordenada a libertação do requerido e determinado o arquivamento dos autos, com fundamento na circunstância de ter já existido processo preliminar de extradição iniciado em Espanha, em Dezembro de 2024.

IX. Em Espanha foi então decidido que os autos aguardariam, nessa fase preliminar, a iniciativa da Argentina, no que toca à formulação do pedido de extradição do requerido, ficando este último a aguardar, em liberdade e com possibilidade de se movimentar para o estrangeiro, o desenrolar dos autos.

X. Todavia, a Notícia Vermelha não foi eliminada do sistema.

XI. Em Janeiro de 2025, o pedido de extradição, formulado pela Argentina, passou a sua fase administrativa em Espanha, pelo que, mesmo antes da detenção do requerido em Portugal, já existia um processo de extradição em curso, no Reino de Espanha.

XII. Sendo a notícia vermelha um pedido de colaboração, tendo em vista a extradição de uma pessoa procurada, a partir do momento em que ela é encontrada num dos países com acordo de extradição para a Argentina e o processo de extradição se inicia, não existe já qualquer razão para a manutenção da mesma. Quando Espanha certificou que havia encontrado o requerido, que ele reside nesse país e aí foi ouvido, mostra-se alcançado e esgotado o objectivo e o propósito desse alerta que, por tal razão, deveria ter sido retirado do sistema da Interpol.

XIII. Já existindo, em Espanha, em data anterior ao início do processo em Portugal, um processo de extradição pendente (que aqui nem sequer realmente se iniciou, pois terminou na fase preliminar, prévia ao princípio do mesmo) deve o mesmo aí ser decidido.

XIV. O artº 18 acima mencionado corresponde a uma cláusula de salvaguarda, permitindo que os Estados requeridos usem dos poderes e competências que são seus, para denegarem facultativamente pedidos de cooperação internacional, salvaguardando assim a soberania portuguesa, que se mantém, dentro destes parâmetros e no âmbito da cooperação internacional.

XV. Processo pendente é qualquer processo pendente que possa obstaculizar a concessão da cooperação pedida, não podendo ser restritivamente interpretado como reconduzindo-se apenas a processos criminais.

XVI. A pendência de um processo de extradição em Espanha, que já ultrapassou a fase administrativa, é elemento que, até por razões meramente práticas ou de senso comum, impede que em Portugal se prossiga o andamento destes autos que nem sequer deveriam ter atingido a fase preliminar.

Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na 3ª secção do Supremo Tribunal de Justiça

*

I – relatório

1. Por despacho de 3 de Fevereiro de 2025, no seguimento da audição do detido AA, foi determinado o seguinte:

Face ao exposto e tudo ponderado, é nosso entendimento que deve ser dado cumprimento ao disposto no art.º 18.º da Lei 144/99, de 31/08, e negar a cooperação internacional pedida pela Argentina. Há um processo com o mesmo objecto pendente em Espanha, pelo que não se justificava manter este processo português pendente, sobretudo tendo a certeza de que o arguido deixará de imediato o território nacional, o que se compreende, quer por ter nacionalidade espanhola, quer por não estar impedido de o fazer pelas autoridades portuguesas.

Nestes termos, determina-se a extinção dos presentes autos de cooperação judiciária internacional, ordenando-se a imediata libertação do requerido AA.

2. Inconformado, veio o MºPº peticionar a revogação da decisão recorrida, a ser substituída por outra que defira a promoção dos autos aguardarem pela apresentação do pedido formal de extradição quanto ao requerido AA.

3. O recurso foi admitido.

4. O requerido respondeu à motivação apresentada, defendendo a improcedência do recurso.

II – questão a decidir.

Devem os autos prosseguir seus termos?

iii – fundamentação.

1. A decisão proferida pelo tribunal “a quo” tem o seguinte teor:

Relativamente à nulidade arguida, solicite previamente à PSP que informe se, no momento da detenção, foi dado conhecimento dos factos ao aqui detido AA. Oportunamente se decidirá.

Quanto à questão fundamental, ou seja estar pendente em Espanha um procedimento de cooperação judiciária internacional, pelos mesmos factos, a pedido da Argentina, no âmbito do qual o arguido foi detido a 18 de Dezembro do ano passado e está designada para o próximo dia 11 de Fevereiro uma diligência, cumpre ponderar várias questões.

Em primeiro lugar, entende-se não ser de aplicar o que se prevê no art.° 37.° n.° 1 da Lei 144/99, de 31 de Agosto, pois aqui não se trata de diversos pedidos de extradição da mesma pessoa, mas apenas de um só pedido.

Por outro lado, o art.° 18.° n.° 1, do mesmo diploma legal, determina que pode ser negada a cooperação quando o facto que a motiva for objecto de processo pendente. Esta é uma situação de negação facultativa da cooperação internacional, o que significa que não é absoluta, exigindo, assim, ponderação.

Portugal é um país baseado na dignidade humana (art.° 1.° da CRP), os direitos fundamentais só podem ser restringidos nos termos do art,° 18.° n.° 2 da CRP e estão também constitucionalmente consagradas amplas liberdades no art.° 27.°.

Significa isto dizer que Portugal é um estado de direito democrático e que a regra é a liberdade, princípio base dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana.

Dito isto, tendo em conta a data dos factos, a situação pessoal, económica e social do arguido, considera-se desproporcional a medida cautelar privativa de liberdade. Claro que, não ficando ao arguido privado da liberdade, surgem desde logo duas questões:

a) O arguido reside em Espanha, não tem qualquer ligação a Portugal, nem afectiva, pelo que será expectável que regresse ao seu país, o que significa que não se vislumbra qualquer medida de coação que seja suficiente para que Portugal assegure, se for caso disso, o cumprimento do pedido de extradição;

b) Residindo o arguido em Espanha, também não faz sentido que Portugal continue com um pedido de extradição pendente, que em caso de decisão favorável teria que solicitar ajuda a Espanha.

Face ao exposto e tudo ponderado, é nosso entendimento que deve ser dado cumprimento ao disposto no art.º 18.º da Lei 144/99, de 31/08, e negar a cooperação internacional pedida pela Argentina. Há um processo com o mesmo objecto pendente em Espanha, pelo que não se justificava manter este processo português pendente, sobretudo tendo a certeza de que o arguido deixará de imediato o território nacional, o que se compreende, quer por ter nacionalidade espanhola, quer por não estar impedido de o fazer pelas autoridades portuguesas.

Nestes termos, determina-se a extinção dos presentes autos de cooperação judiciária internacional, ordenando-se a imediata libertação do requerido AA.

Comunique com urgência às autoridades argentinas e espanholas, bem como ao departamento de cooperação judiciária em matéria penal, ao Ministério da Justiça, ao Gabinete Nacional da Interpol e à AIMA .

2. Alega o recorrente, em sede de conclusões, o seguinte:

1. Não se conformando com a Decisão que determinou a extinção do pedido de extradição de AA para a Argentina, vem o Ministério Público interpor recurso para este Supremo Tribunal.

2. O princípio de confiança mútua que subjaz e constitui o cerne da cooperação judiciária internacional funda-se na convicção de que todos os subscritores dos instrumentos daquela cooperação comungam de um conjunto de valores nucleares tributários dos direitos do Homem, estando sujeitos aos mesmos mecanismos específicos e comuns da garantia daqueles valores (Acórdão do STJ de 22 de abril de 2020, Proc. 499/18.9YRLSB.S1.)

3. A douta Decisão de que se recorre, no que concerne ao facto de ter determinado a extinção dos presentes autos de cooperação judiciária internacional em matéria penal, não invoca fundamentos legais válidos.

4. O disposto no art. 18.°, n.° 1, da Lei n.° 144/99, de 31 de agosto, não é aplicável ao caso dos autos, sendo que tal preceito legal deve ser interpretado no sentido de que o processo pendente se refere a um concreto processo criminal e não a processo de extradição, como aliás decorria do 17.°, n.° 1, do DL n.° 43/91, de 22-1, diploma legal que antecedeu a Lei n.° 144/99, de 31de agosto, e por esta revogado, e que tinha a mesma epígrafe (Denegação facultativa da cooperação internacional).

5. Aliás, o facto de haver um processo com o mesmo objeto pendente em Espanha jamais poderia acarretar a extinção ou arquivamento liminar do pedido de extradição relativamente ao requerido AA, pois, não se verifica qualquer situação de litispendência e é ao Estado Requerente, à República Argentina, que cabe, com a apresentação ou não do pedido formal de extradição, determinar o arquivamento do processo que corre termos em Portugal ou do processo que corre termos em Espanha.

6. A douta Decisão recorrida foi prematura devido ao facto de ter dado prevalência ao processo de extradição pendente em Espanha, presumindo, certamente, que as Autoridades Judiciárias Espanholas comunicaram a detenção do requerido e a pendência do processo às Autoridades Judiciárias Argentinas, no entanto, tal comunicação ainda não ocorreu, pois, se tivesse ocorrido, aquando da informação que lhes foi solicitada relativamente à detenção do requerido à ordem dos presentes autos, as Autoridades Argentinas não teriam informado, como informaram, que continuava a haver interesse na detenção do requerido e que na data de 1/2/2025 a notícia vermelha continuava vigente, tudo conforme consta do anexo 2 junto ao requerimento inicial (Referência Citius ...29).

7. A ser assim, a Decisão recorrida, ao ter sido tomada prematuramente, obstaculizou, por um lado, a que o presente pedido de extradição passasse da fase preliminar para a fase administrativa e, por outro lado, que houvesse lugar, eventualmente, e pelo menos, à fase administrativa.

8. O facto da Decisão recorrida ter sido tomada prematuramente fez com que o pedido de extradição não tivesse seguido os trâmites legais.

9. No entanto, e como resulta claro dos autos, a extradição foi pedida pela República Argentina ao abrigo do Acordo sobre Extradição Simplificada entre a República Argentina, a República Federativa do Brasil, o Reino de Espanha e a República Portuguesa, assinado em Santiago de Compostela, em 3 de novembro de 2010, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 15/2015, o qual tem primazia e prevalece sobre as normas da legislação ordinária interna, como acontece, nomeadamente com a Lei n.° 144/99, de 31 de agosto (cf. art. 8.°, n.° 2, da CRP).

10. A obrigação de extraditar que resulta para os Estados contratantes do referido Acordo apenas pode ser recusada quando ocorrem os motivos de inadmissibilidade ou de recusa facultativa expressamente previstos.

11. Trata-se, pois, de um regime próprio e taxativo em matéria de causas de recusa de extradição no âmbito do referido Acordo de Extradição, que delimita em conformidade a soberania dos Estados Contratantes, inexistindo lacuna a preencher nesse domínio, pelo que não faz sentido recorrer às normas da Lei n.° 144/99, de 31 de agosto.

12. Aliás, na própria notícia vermelha relativa ao pedido de detenção do requerido, garante-se que a extradição será solicitada após detenção da pessoa em causa, em conformidade com a legislação nacional e/ou com os tratados bilaterais e multilaterais aplicáveis, garantindo assim a República Argentina o cumprimento dos tratados bilaterais e multilaterais aplicáveis.

13. Por outro lado, no caso dos autos, prevalece também o princípio do reconhecimento mútuo, assente na confiança mútua entre Estados e, por isso, havia que se tentar viabilizar a entrega do requerido para prossecução da ação penal ao Estado emitente, desde que não existissem razões formais ou materiais que obstassem ao seu deferimento.

14. Não cabe ao Tribunal substituir-se ao Ministro da Justiça na decisão sobre a admissibilidade ou não do pedido de extradição, na eventualidade do mesmo ser formulado pelo Estado Requerente, já que se trata de uma decisão política e administrativa do próprio Estado Português, que permite dar início ao processo judicial de extradição, cabendo ao Tribunal, isso sim, decidir na fase judicial do processo se a extradição, nos termos em que a mesma venha a ser eventualmente considerada admissível pelo Estado Português, se deve ser executada ou recusada, de acordo com o direito interno e as Convenções a que Portugal esteja vinculado.

15. Consequentemente, deve ser revogada a Decisão recorrida, por violação do disposto nos artigos 1.º e 7.º do Acordo sobre Extradição Simplificada entre a República Argentina, a República Federativa do Brasil, o Reino de Espanha e a República Portuguesa, assinado em Santiago de Compostela, em 3 de novembro de 2010, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 15/2015, em 9 de janeiro de 2015 e nos artigos 18.º, n.º 1 e 39.º da Lei nº 144/99, de 31 de agosto, e substituída por outra que que defira a promoção dos autos aguardarem pela apresentação do pedido formal de extradição quanto ao requerido AA.

3. Ponto prévio.

Na resposta que o requerido apresentou, para além da impugnação aos fundamentos invocados no recurso, suscitou ainda a nulidade de falta de entrega ao requerido de documentação relativa aos motivos da sua detenção no momento em que a mesma foi formalizada e a restrição injustificada aos direitos fundamentais do mesmo, por virtude de tal.

Sucede que tal questão – invocada no decurso do interrogatório judicial do requerido – não foi apreciada no despacho ora alvo de recurso, uma vez que, como consta do mesmo, foram pedidas informações complementares necessárias a habilitar a decisão.

Essa questão veio posteriormente a ser decidida, em 27 de Fevereiro de 2025, no sentido de que nenhuma irregularidade havia sido cometida.

Constata-se, pois, que tal questão, se mostra arredada do escopo do presente acórdão, uma vez que não foi no seu âmbito decidida, por um lado e, por outro, porque a decisão que efectivamente a apreciou, se mostra já definitiva.

4. Apreciando.

Não restam dúvidas, nos presentes autos, que as circunstâncias do caso se resumem ao seguinte:

a. AA foi detido no dia 1 de Fevereiro de 2025, pelas 22 horas, no Aeroporto ..., em ..., por virtude da Notícia Vermelha emitida pelas Autoridades Judiciárias Argentinas, inserida pela INTERPOL, com n.° ...12 e NR. de controlo ...64, tendo em vista a sua detenção e extradição para esse país.

b. O Estado emitente, República Argentina, garante que a extradição formal do requerido será solicitada em conformidade com a sua legislação nacional e/ou tratados bilaterais e multilaterais aplicáveis, conforme fez constar de referida notícia vermelha.

c. Em 18 de Dezembro de 2024, na sequência da mesma Notícia Vermelha, foi o requerido ouvido, no JUZGADO CENTRAL DE INSTRUCCION N° ... ... e, a final, foi determinada a liberdade provisória do mesmo, mediante as seguintes obrigações:

· fixação de um telefone onde possa ser imediatamente contactado em Espanha, bem como correio electrónico;

· fixação de um domicílio em Espanha, devendo qualquer alteração ao mesmo ser imediatamente comunicada àquele juízo de instrução.

Foi ainda advertido de que o incumprimento destas medidas cautelares poderiam determinar a agravação das mesmas, podendo chegar ao decretamento, novamente, da sua prisão provisória.

d. Espanha não comunicou à Argentina o teor integral desta decisão.

e. Em 29 de Janeiro de 2025, pelo mesmo Juízo de Instrução de Espanha, foi reconhecido ter sido recebido o Acordo do Conselho de Ministros de continuação, em processo judicial, do presente processo de extradição, relativo ao arguido Sr. AA, n/ 23/01/1965, solicitado pelas Autoridades Judiciais da ARGENTINA, juntamente com a correspondente documentação de extradição, pelo que foi agendada uma audição do requerido, para dia 11 de Fevereiro de 2025.

f. Essa audição já foi realizada, o requerido opôs-se à sua entrega, não renunciou ao princípio da especialidade e a sua situação em termos de medidas cautelares foi mantida “qua tale”.

5. Vejamos então.

A extradição constitui uma forma de cooperação judiciária internacional em matéria penal, através da qual um Estado requerente pede a outro, Estado requerido, a entrega de uma pessoa que se encontre no território deste último, para efeitos de procedimento criminal, de cumprimento de pena ou de medida de segurança privativa de liberdade, por infracção cujo conhecimento seja da competência dos tribunais do Estado requerente.

Os requisitos e condições de admissibilidade da extradição, quando o Estado Português é requerido, são reguladas pelos tratados e convenções internacionais e, na sua falta ou insuficiência, pelo disposto em lei especial, nos termos preceituados no artigo 229º do Código de Processo Penal, designadamente pela lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal (Lei 144/99, de 31 de Agosto).

6. No caso, o requerido é de nacionalidade espanhola, sendo o Estado requerente a Argentina, pelo que é aplicável ao caso o Acordo sobre Extradição Simplificada entre a República Argentina, a República Federativa do Brasil, o Reino de Espanha e a República Portuguesa, assinado em Santiago de Compostela, em 3 de Novembro de 2010, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 15/2015.

Como determina o artº 1º nº2 desse Acordo, em todos os aspectos relativos à extradição não previstos no presente Acordo, será aplicado o estabelecido nos instrumentos bilaterais ou multilaterais vigentes entre as Partes que contenham disposições sobre o tema ou nas normas internas sobre a matéria, isto é, a Lei n.° 144/99, de 31 de Agosto.

Esse Acordo entrou em vigor no dia 16 de Setembro de 2015, para o Reino de Espanha e para a República Portuguesa. O Acordo entrou em vigor, para a República Argentina, a 25 de Fevereiro de 2017.

Determina o artº 1º nº1, desse Acordo, que as Partes comprometem-se, nos termos do presente Acordo, a conceder de forma recíproca a extradição de pessoas reclamadas por outra Parte para efeitos de procedimento penal ou para cumprimento de pena imposta pela prática de um crime que admita a extradição

Por seu turno, o artº 4º nº5 estipula que as Partes devem cooperar entre si, em particular no que diz respeito aos aspetos processuais e probatórios, para garantir a eficiência do processo e a realização dos objetivos do presente Acordo.

O artº7 estipula ainda que, quando razões de urgência o justifiquem, a autoridade competente da Parte requerente poderá solicitar a detenção ou prisão preventiva da pessoa a extraditar, através dos canais estabelecidos no artigo anterior ou por intermédio da Organização Internacional de Polícia Criminal — INTERPOL.

Tal Acordo contém ainda alguns normativos específicos que, para o caso que ora apreciamos, não se mostram relevantes.

7. Atendendo a que não consta de tal Acordo o formalismo processual atinente à tramitação do pedido de extradição, caberá, a esse propósito, socorrermo-nos do constante na Lei nº 144/99, de 31 de Agosto.

O processo de extradição comporta uma fase administrativa (que se traduz na decisão político-administrativa do Estado Português de admissibilidade ou não do pedido formal de extradição apresentado por um outro Estado e é um pressuposto prévio do processo judicial de extradição (artº 47 da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto) e uma fase judicial (que só se inicia em caso de deferimento do pedido pelo Ministro da Justiça – artº 50.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto), que decorre junto do Tribunal da Relação.

8. No caso que ora nos ocupa, em bom rigor, encontramo-nos numa fase preliminar a tal processo, por virtude da ocorrência de uma detenção não directamente solicitada, decorrente de uma informação oficial oriunda da INTERPOL, nos termos previstos no art. 39.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto.

9. De facto, o aqui requerido foi detido, quer em Portugal, quer em Espanha, por virtude de uma Notícia Vermelha (red notice), emitida pela Interpol.

A Notícia Vermelha da Interpol (Red Notice) é um pedido internacional de localização e prisão provisória de uma pessoa, emitida a pedido de um país-membro da Interpol ou de um tribunal internacional. Não é um mandado de prisão propriamente dito, mas um alerta para que as autoridades ao redor do mundo colaborem na captura de uma determinada pessoa. Cabe depois a cada país decidir se age ou não com base na Notícia Vermelha, já que a Interpol não tem autoridade para realizar prisões directamente.

Assim, esta Notícia Vermelha, embora pressuponha a emissão, pelo país requerente, de um mandado de detenção internacional, não constitui, em si mesma, uma efectiva ordem de prisão, mas antes um alerta e um pedido de cooperação entre os países, para ajuda na localização dos procurados pela justiça de um dos 195 países-membros da Interpol.

Corresponde, na sua essência, a um alerta, a uma notificação às autoridades dos países membros, pedindo que averiguem se a pessoa procurada se encontra nos respectivos territórios nacionais e, na afirmativa, solicitando a sua cooperação, podendo a mesma englobar, no caso, a detenção provisória de uma pessoa, tendo em vista a sua eventual e futura extradição.

A detenção provisória, com fundamento em Notícia Vermelha, corresponde a uma fase preliminar prévia à própria fase administrativa da extradição passiva, uma vez que, prosseguindo os autos, terá de ser formalizado o pedido de extradição pelo Estado requerente, a que se seguirá a fase administrativa acima descrita e, caso venha a ser deferido administrativamente o pedido, prosseguirá então o processado para a fase judicial propriamente dita.

10. É neste âmbito que o requerido foi detido em Portugal, quando transitava, via aérea, de ... para ....

Esta detenção provisória foi declarada válida pelo tribunal “a quo”, não sendo a sua validade impugnada neste recurso. E foi por decorrência dessa detenção provisória que foi ouvido e que foi decidido negar a sua extradição provisória, ao abrigo do disposto no artº 18.º da Lei 144/99, de 31/08.

11. Entende o recorrente pela inaplicabilidade ao caso do disposto neste artigo, porque o disposto no art. 18.°, n.° 1, da Lei n.° 144/99, de 31 de agosto, não é aplicável ao caso dos autos, sendo que tal preceito legal deve ser interpretado no sentido de que o processo pendente se refere a um concreto processo criminal e não a processo de extradição, como aliás decorria do 17.°, n.° 1, do DL n.° 43/91, de 22-1, diploma legal que antecedeu a Lei n.° 144/99, de 31de agosto, e por esta revogado, e que tinha a mesma epígrafe (Denegação facultativa da cooperação internacional).

12. Estipula o artº 18 nº1 o seguinte:

Denegação facultativa da cooperação internacional

1 - Pode ser negada a cooperação quando o facto que a motiva for objecto de processo pendente ou quando esse facto deva ou possa ser também objecto de procedimento da competência de uma autoridade judiciária portuguesa.

Salvo o devido respeito, que é muito, não vemos em que medida a interpretação seguida pelo tribunal “a quo”, se mostre insuportada pelo normativo.

13. De facto, no caso presente, estamos perante uma situação que, a prosseguirem os autos em Portugal, se tornaria não só caricata, como susceptível de criar incidentes entre dois países, que nem sequer têm qualquer interesse directo na detenção do requerido, designadamente Portugal e Espanha (basta pensar que Portugal deferia a extradição e Espanha negava-a; iria Portugal exigir a entrega do requerido, residente em Espanha, para proceder à sua entrega à Argentina? Com que fundamento legal? E como tornaria sequer tal comando exequível?), como, em bom rigor, absolutamente contrária ao espírito de cooperação internacional, onde radicam os acordos internacionais de extradição.

Expliquemos sucintamente porquê.

14. O processo preliminar de extradição iniciou-se em Espanha, em Dezembro de 2024. E no uso dos poderes e das competências, nessa matéria, que apenas a Espanha soberanamente competem, foi então aí decidido que os autos aguardariam, nessa fase preliminar, a iniciativa da Argentina, no que toca à formulação do pedido de extradição do requerido, ficando este último a aguardar, em liberdade e com possibilidade de se movimentar para o estrangeiro, o desenrolar dos autos.

Já em Janeiro deste ano, o pedido de extradição, formulado pela Argentina, passou a sua fase administrativa, como se constata pelo que supra se deixou referido, pelo que não existe qualquer dúvida que, mesmo antes da detenção do requerido em Portugal, já existe um processo de extradição em curso, no Reino de Espanha.

15. O que sucedeu foi que Espanha não informou devidamente a Argentina que, por sua vez, não informou a Interpol, da decisão que havia sido tomada em Dezembro de 2024. E daí decorreu que a notícia vermelha se tivesse mantido activa, não tendo sido eliminada, como deveria ter sucedido.

A essa deficiente comunicação é obviamente estranho o requerido, assim como é Portugal e daí que se entenda que a detenção provisória ocorrida se tenha de considerar como formalmente válida, até porque as forças policiais competentes portuguesas confirmaram, junto da Argentina, a validade da manutenção do alerta.

16. Não obstante, é um facto que, tivesse ocorrido a comunicação entre Espanha e Argentina como devia, a situação dos presentes autos nunca teria ocorrido.

E, de facto, não deveria ter sucedido, pois é manifesto que, sendo a notícia vermelha um pedido de colaboração, tendo em vista a extradição de uma pessoa procurada, a partir do momento em que ela é encontrada num dos países com acordo de extradição para a Argentina e o processo de extradição se inicia, não existe já qualquer razão para a manutenção da mesma. A colaboração pedida, através desta notícia, foi alcançada, sendo esse o objectivo da mesma. Quando Espanha certificou que havia encontrado o requerido, que ele reside nesse país e aí foi ouvido, mostra-se alcançado e esgotado o objectivo e o propósito desse alerta que, por tal razão, deveria ter sido retirado do sistema da Interpol.

A entender-se de outra forma teríamos a possibilidade de, tendo os autos prosseguido em Portugal e sendo aqui também deliberado manter o requerido em liberdade, podendo ausentar-se do país, poderia vir a ser detido em mais n países, por esse mundo fora (e, atenta a sua profissão, poderia ser um amplo leque deles), com a consequência de poderem existir, em simultâneo (seguindo-se a tese do recorrente) dois, dez ou dezenas de processos de extradição, relativos à mesma pessoa, aos mesmos factos e ao mesmo crime.

Este entendimento, salvo o devido respeito, constituiria o oposto dos objectivos da cooperação internacional, pois estaríamos perante uma verdadeira atrapalhação internacional.

17. Atento o que se deixa dito, temos de concluir que, por um lado e em bom rigor, os presentes autos nem sequer deveriam ter tido, em Portugal, a fase preliminar a que se assistiu, pois a Notícia Vermelha deveria ter sido devidamente eliminada do sistema, em Dezembro de 2024.

Mas, uma vez que tal não sucedeu, resta constatar que já existe, em Espanha, em data anterior ao início do processo em Portugal, um processo de extradição pendente (o nosso, em bom rigor, nem sequer realmente se iniciou, pois terminou na fase preliminar, prévia ao princípio do mesmo) e, como tal, deve o mesmo aí ser decidido.

Para além do mais, nada impede a Argentina de, vindo tal pedido a ser negado (o que se desconhece se sucederá ou não) voltar a emitir Notícia Vermelha ou, sabendo onde o requerido se encontra, formular pedido de extradição, quer para Portugal, quer para qualquer outro país do mundo.

18. O que não pode suceder, nem faz qualquer sentido em termos de cooperação internacional, é a manutenção de dois processos pendentes, com o mesmo conteúdo preciso, relativamente ao mesmo requerido, aos mesmos factos, aos mesmos ilícitos e ao mesmo país requerente, a serem decididos por dois diversos países – que é o que o requerente pretende que venha a ocorrer - sendo certo, para além do mais, que não residindo o requerido em Portugal, mas apenas por aqui tendo passado ocasionalmente, não se vislumbra sequer como qualquer decisão que viesse a ser proferida por um tribunal português, se mostraria remotamente exequível.

Mais:

Não se vislumbra qualquer agasalho legal, para a manutenção da Notícia Vermelha, após a detenção do requerido em Espanha, pois um dos fins desta é, precisamente, o auxílio na localização da pessoa procurada.

Se o procurado é encontrado num determinado país e aí reside, a finalidade de tal Notícia mostra-se alcançada, havendo que ser eliminada, por esgotamento do fim a que se destina – localizar um procurado.

O que resta é o prosseguimento do processo de extradição, no país onde o requerido foi encontrado, por virtude daquele mecanismo.

19. Por seu turno, o artº 18 acima mencionado corresponde a uma cláusula de salvaguarda, permitindo, dentro de um leque com alguma amplitude – precisamente porque a vida é feita de muitas condicionantes, que o legislador dificilmente consegue antecipar – que os Estados requeridos usem dos poderes e competências que são seus, para denegarem facultativamente pedidos de cooperação internacional, salvaguardando assim a soberania portuguesa, que se mantém, dentro destes parâmetros e no âmbito da cooperação internacional.

Que estamos perante uma cláusula de salvaguarda, cremos não oferecer dúvida, atendendo não só às situações previstas no seu nº 1 mas, igualmente, à previsão do seu nº2: Pode ainda ser negada a cooperação quando, tendo em conta as circunstâncias do facto, o deferimento do pedido possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal.

20. Não vemos, pois, porque razão a menção a processo pendente, no nº1 desse artigo, se reconduza apenas ao sentido que o recorrente propugna. Processo pendente é qualquer processo pendente que possa obstaculizar a concessão da cooperação pedida. E, neste caso, não restam dúvidas que a pendência de um processo de extradição em Espanha, que já ultrapassou a fase administrativa, é elemento que, até por razões meramente práticas ou de senso comum, impede que em Portugal se prossiga o andamento destes autos que, repete-se, nem sequer deveriam ter atingido a fase preliminar.

Para além do mais, decorre desse processo pendente que, na realidade, o requerido reside em Espanha e não em Portugal, razão pela qual nem sequer se vislumbra como poderia prosseguir no nosso país um pedido relativo a alguém que aqui, de facto, se não encontra.

Temos, pois, de concluir que não assiste razão ao recorrente, soçobrando a sua pretensão.

iv – decisão.

Pelo exposto, acorda-se em considerar improcedente o recurso interposto pelo mºpº e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Sem custas.

Lisboa, 19 de Março de 2025

Maria Margarida Almeida (Relatora)

António Augusto Manso

Carlos Campos Lobo