Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1295/18.9T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ROSÁRIO GONÇALVES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PRESUNÇÃO JUDICIAL
VIOLAÇÃO DE LEI
DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
JUROS DE MORA
INDEMNIZAÇÃO
SEGURADORA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ATO COMERCIAL
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 06/25/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PARCIALMENTE PROCEDENTE.
Sumário :

I- A nulidade por excesso de pronúncia, prevista na alínea d) do n.º 1 do art. 615.º, do CPC, que sanciona a violação do estatuído no n.º 2 do art. 608.º, do mesmo diploma, apenas ocorre quando o tribunal ad quem conheça de questões que não integrem o objeto do recurso, ou seja, quando o tribunal conheça de matéria que vá além das questões integrantes do pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções.


II- As questões de facto estão reservadas às instâncias, cabendo a derradeira decisão à Relação, a quem estão conferidos os poderes específicos consagrados no art. 662.º, n.º 1 do CPC, só intervindo o STJ., no âmbito do disposto no nº. 3 do art. 674º e nº. 2 do art. 682º, ambos do CPC.


III- Só se justificará o contraditório prévio das partes, para efeitos de salvaguarda da existência de uma eventual decisão surpresa, quando o enquadramento legal convocado pelo julgador for absolutamente díspar daquele que as partes haviam preconizado ser aplicável, de forma que não possam razoavelmente contar com a sua aplicação ao caso.


IV- A redação do atual art. 102º do Código Comercial resulta das alterações que lhe foram introduzidas por força do art. 6º do Decreto-Lei nº. 32/2003, de 17 de fevereiro, o qual veio dar cumprimento ao imperativo comunitário de transposição da Directiva nº. 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de junho, atinente ao estabelecimento de medidas de luta contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais.


V- O diploma não se aplica aos juros relativos a outros pagamentos que não os efetuados para remunerar transações comerciais e também não se aplica aos pagamentos efetuados a título de indemnização por responsabilidade civil, incluindo os efetuados por companhias de seguros.

Decisão Texto Integral:

Processo nº. 1295/18.9T8PVZ.P1.S1


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


6ª. Secção


1-Relatório:


A autora, TÊXTIL ELÉCTRICA, LDA. intentou ação declarativa, com processo comum, contra a ré, GENERALI SEGUROS, S. A., pedindo a sua condenação a pagar-lhe o montante global de 300.000,00 €, acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a citação até integral pagamento, tendo por base alegados prejuízos sofridos pela Autora em consequência de incêndio ocorrido, cabendo à Ré a obrigação de indemnização por força da celebração de contrato de seguro.


A Ré contestou, começando por admitir a celebração de contrato de seguro com a Autora, mas impugnou depois factualidade essencial alegada na p. i., afirmando que a cobertura dos danos emergentes do sinistro dos autos não está contratualmente garantida pela apólice e os prejuízos sofridos pela autora foram substancialmente inferiores àqueles que esta se apresenta a reclamar, não podendo ultrapassar o montante de 192.507,12€.


A Autora exerceu o contraditório relativamente à matéria de exceção invocada pela Ré.


Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, com a consequente absolvição da Ré do pedido.


A autora interpôs recurso de apelação e a Relação proferiu acórdão, com o seguinte teor na sua parte decisória:


«Pelos fundamentos expostos, julgando o recurso parcialmente procedente em matéria de facto e em matéria de direito, decidimos:


a) Alterar a decisão recorrida, condenando a Ré a pagar à Autora o montante de 8.129,82€, acrescido dos respetivos juros de mora contados desde a citação até integral pagamento, à taxa supletiva respeitante a créditos de que sejam titulares empresas comerciais, nos termos previstos no parágrafo 3.º do art. 102.º do Código Comercial, bem assim a pagar à Autora o montante indemnizatório a liquidar ulteriormente em sede de incidente próprio, para reparação dos danos mencionados sob o ponto 30) do elenco dos factos provados, objeto de aditamento nesta instância de recurso, e absolvendo a Ré quanto ao mais peticionado pela Autora a título indemnizatório; e


b) Condenar a Apelante e a Apelada no pagamento das custas do recurso e da ação em igual proporção».


Inconformada, interpôs a ré recurso de revista, concluindo as suas alegações:


1. A recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto que decidiu julgar o recurso parcialmente procedente no que tange a condenação da ré a pagar à autora juros de mora sobre a quantia de 8.129,82€, à taxa supletiva respeitante a créditos de que sejam titulares empresas comerciais; a alteração da matéria de facto provada, com inclusão do facto provado n.º 30; e a condenação da ré a pagar à autora o montante indemnizatório a liquidar em ulterior incidente próprio, para reparação dos danos mencionados sob o ponto 30) do elenco dos factos provados.


2. O acórdão recorrido condenou a recorrente a pagar à Autora o montante de 8.129,82€, acrescido dos respectivos juros de mora contados desde a citação até integral pagamento, à taxa supletiva respeitante a créditos de que sejam titulares empresas comerciais, nos termos previstos no parágrafo 3.º do art.102.º do Código Comercial.


3. O artigo 102º do Código Comercial não se aplica à situação em apreço nos presentes autos, na medida em que aqui é regulado o direito da recorrida a receber da recorrente, uma indemnização pelos danos sofridos com o sinistro ocorrido no dia 22.07.2010.


4. A redacção do actual artigo 102º do Código Comercial deriva, inicialmente, do Decreto-Lei nº 32/2003, de 17 de Fevereiro, o qual veio estabelecer um regime especial para combater os «atrasos de pagamento em transacções comerciais», definidas como transacções entre empresas ou entre empresas e entidades públicas.


5. No entanto, para além de estabelecer uma nova redacção do sobredito preceito, o Decreto-Lei nº 32/2003, de 17 de Fevereiro, introduziu no ordenamento jurídico uma disposição específica destinada a limitar seu âmbito de aplicação.


6. De acordo o teor do n.º 2 do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro, em vigor à data dos factos em apreço nos autos, o artigo 102º do Código Comercial não se aplica aos pagamentos de indemnizações derivadas de responsabilidade civil (contratual ou extracontratual).


7. Assim sendo, estando em causa, nos presentes autos, o direito a uma indemnização devida à recorrente em virtude responsabilidade civil da recorrente, assente exclusivamente na celebração de um contrato de seguro, dúvidas não restam de que a taxa de juros comercial, prevista na sobredita disposição legal, não tem aqui campo de aplicação.


8. A decisão de condenação da recorrente no pagamento da indemnização no valor de 8.129,82€, acrescida de juros sujeitos à taxa prevista para os créditos decorrentes de transacções comerciais mostra-se ilegal e carente da respectiva correcção.


9. Como tal, este segmento da decisão recorrida deve ser revogado e substituído por outra decisão que condene a recorrente a pagar à recorrida a quantia de 8.129,82€, acrescido dos respectivos juros de mora contados desde a citação até integral pagamento, a taxa de juros civis, tal como decorre da aplicação do artigo 559º do Código Civil.


10. Por outro lado,


11. No que tange a reapreciação da matéria de facto julgada provada/não provada, a recorrida manifestou nas suas alegações de recurso, única e exclusivamente, pretender impugnar as respostas vertidas pelo Tribunal de 1ª Instância nas alíneas III, IV e V dos factos julgados não provados.


12. Relativamente a estes concretos pontos da matéria de facto julgada não provada, pretendeu a autora a reapreciação da decisão que os julgou não provados, no sentido de os mesmos serem julgados provados.


13. Ou seja, na acção, a recorrida alegou e tentou demonstrar que mantinha armazenados no armazém que ardeu, um concreto conjunto de bens que resultou destruído e não quaisquer outros bens eventualmente de sua propriedade.


14. Todavia, a autora não logrou demonstrar (1) que era proprietária do indicado concreto conjunto de bens, (2) que tal concreto conjunto de bens se encontrava no interior do armazém que ardeu (3), que esse concreto conjunto de bens resultou destruído no incêndio e (4) que esse conjunto de bens tinha o valor de € 368.579,80.


15. A recorrida interpôs recurso de apelação no sentido de reverter estas concretas decisões de facto, não tendo logrado a alteração de qualquer uma das decisões acerca da matéria de facto julgada não provada.


16. O Tribunal recorrido, extravasando do pedido formulado pela autora em sede de apelação, veio a julgar provado, por via do recurso a presunção judicial não suscitada pela recorrida, o Facto 30 que aqui se dá por reproduzido


17. Salvo o devido respeito, o Tribunal da Relação incorreu no vício de excesso de pronúncia, ao alterar injustificadamente a matéria de facto, para apreciar uma concreta questão que não lhe havia sido colocada pela recorrida nas suas alegações de recurso de apelação, baseando-se ilegalmente no uso de presunções judiciais, circunstância que é geradora da nulidade prevista nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d) do C.P.C.


18. O Tribunal recorrido conheceu de questão não suscitada pela recorrida nas suas alegações de recurso de apelação, posto que esta se limitou a sindicar o juízo efectuado pela 1ª Instância relativamente ao concreto conjunto de bens cuja propriedade, localização no interior do armazém que ardeu, destruição pelo fogo e valor não logrou ver julgado provado em 1ª Instância.


19. Para além disso, ao alterar a matéria de facto nos termos em que o fez, o Tribunal da Relação julgou provada (1) a existência de bens (2) propriedade da autora interior do armazém que ardeu, identificados como produtos pertencentes à autora, sem qualquer limite de qualidade e quantidade e, bem assim, (3) a sua total destruição.


20. É notório que o tribunal recorrido extravasou dos seus poderes, pois estava vedado à 2ª Instância a reapreciação da decisão acerca de matéria de facto, nos termos em que o fez, sob pena de incorrer no vício de excesso de pronúncia previsto na al. d) n.º 1 do artigo 615º do CPC.


21. Reconhecendo e declarando a suscitada nulidade da decisão, deve a mesma ser revogada por esse Venerando Tribunal, eliminado do elenco dos factos provados o facto julgado provado sob o n.º 30. O que se requer.


22. Ademais,


23. Sem prejuízo de tudo quanto se deixou dito, a recorrente entende, salvo o devido respeito por opinião diversa, que ao alterar a decisão acerca da matéria de facto provada, nos termos em que o fez, o Tribunal da Relação do Porto incorreu na violação do preceituado no artigo 674º do CPC, interpretado extensivamente.


24. Com efeito, tendo o recurso de apelação por objecto a impugnação da matéria de facto julgada não provada, o Tribunal da Relação procedeu à alteração dos factos julgados provados, aditando-lhe, além do mais, o facto 30.


25. No âmbito de reapreciação e modificabilidade da decisão da matéria de facto, o novo julgamento a realizar pela 2ª Instância destina-se a aferir eventuais erros de julgamento sobre pontos de facto concretos perpetrados pela 1ª Instância.


26. Importa que a Relação indique os fundamentos que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência permitam controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado.


27. Por seu turno, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de direito e não julga de facto, a não ser em situações excepcionais, tal como decorre, para além do mais, do preceituado no n.º 3 do artigo 674º do CPC, constituindo jurisprudência prevalecente a que considera competir a este Venerando Tribunal decidir se o uso de presunções judiciais padece de manifesta ilogicidade (aqui por interpretação extensiva do preceito) ou se parte (base da presunção) de factos não provados (cf., por ex., Ac. STJ de 24/9/2020 (proc nº 127/16), Ac. STJ de 19/10/2021 ( proc. nº 295/20), disponíveis em www dgsi.pt.


28. No caso em apreço, e salvo o devido respeito por opinião diversa, crê a recorrente que a fixação do facto provado n.º 30, tal como ele emerge da decisão recorrida, parte de factos não provados e padece de ilogicidade.


29. Os factos base de que o Tribunal da Relação do Porto extraiu a presunção que lhe permitiu julgar provado o facto n.º 30 são, no essencial, os contantes dos pontos 13), 14) e 26) dos factos provados


30. De acordo com a decisão recorrida, o Tribunal da Relação considerou “verosímil”, em termos de maior probabilidade do acontecer, que o sinistro em causa conduziu a incineração de produtos pertencentes à autora, essencialmente fio têxtil e malhas, embora em quantidade, qualidade e valor não determinados, com o que a recorrente não se conforma.


31. A redacção do facto provado n.º 13 permite afirmar qual era a utilização dada pela autora ao armazém em causa nos autos no dia 22.07.2010, qual seja, o de armazenar mercadorias, designadamente fio têxtil e malhas.


32. Nada se refere nesse facto, nem em qualquer outro facto julgado provado nos autos, que a autora possuía bens de sua propriedade no interior do armazém que ardeu no dia 22.07.2010.


33. Mas, para além de muitas outras justificações plausíveis para a utilização do armazém, bem podia suceder que, para além de mercadorias suas, estivessem no interior do armazém, àquela data, mercadorias da mesma natureza, mas propriedade de terceiros e à guarda da autora ou à consignação.


34. Nos termos do facto provado 14), sabe-se que no dia 22-07-2010 estavam armazenados rolos de tecidos de poliéster e algodão, acondicionados em paletes de madeira e bobinas de fio dos mesmos materiais, no interior da nave do armazém que ardeu.


35. Mas nada se sabe relativamente à propriedade desses bens, sendo que, nesse mesmo dia estavam no interior do armazém em causa nos autos várias máquinas retorcedoras pertencentes à sociedade comercial “C..., Lda.”(facto provado 15), bem como, um cofre que o administrador do senhorio da autora (AA) tentou retirar do local.


36. Nada se provou nos autos relativamente à razão pela qual tais bens se encontravam no interior do armazém arrendado à autora, tal como sucedeu quanto aos rolos de tecidos de poliéster e algodão, acondicionados em paletes de madeira, e às bobinas de fio dos mesmos materiais que também se encontravam acondicionados no interior do armazém que ardeu.


37. Por outras palavras, a factualidade em que o Tribunal recorrido fundou a presunção judicial a que recorreu, bem como os demais factos provados nos autos, não permitem afirmar sem margem para dúvida razoável, que os rolos de tecidos de poliéster e algodão, acondicionados em paletes de madeira e as bobinas de fio dos mesmos materiais, ou sequer alguns destes bens, eram propriedade da autora.


38. Do mesmo modo que, à data, existiam várias máquinas retorcedoras no interior do armazém em causa nos autos, propriedade da sociedade C..., Lda., bem podia dar-se o caso de os rolos de tecidos de poliéster e algodão, acondicionados em paletes de madeira e as bobinas de fio dos mesmos materiais serem também propriedade dessa mesma sociedade.


39. Donde, não é possível afirmar, com base na factualidade provada nos autos, que existiam produtos pertencentes à autora no interior do armazém que ardeu em 22.08.2010, nomeadamente fio têxtil e malhas, e que tais bens foram reduzidos a cinzas.


40. De resto, importa sublinhar que o Tribunal da Relação extraiu, por presunção judicial, que os ditos produtos (fio têxtil e malhas) eram pertença da autora ao arrepio da prova produzida no processo.


41. Resultou da prova pericial realizada no processo a manifesta impossibilidade de afirmar que bens se encontravam no interior do armazém em causa nos autos, atenta a insuficiência/falta dos registos contabilísticos da autora.


42. Atenta tal circunstância, era possível, senão mesmo provável, que o stock da autora estivesse no local onde essencialmente desenvolvia a sua actividade, ou seja, na sua unidade industrial situada em ....


43. Na verdade, nenhum elemento de prova constante dos autos permite afirmar que a autora tinha bens de sua propriedade no interior do dito armazém, sendo que a facturação da autora junta como petitório não tem essa virtualidade, pois, como bem sublinhado no relatório pericial de fls…, o que está em causa é a falta da documentação atinente à movimentação das mercadorias existentes no armazém ao longo do tempo.


44. A decisão de julgar provado que “o incêndio descrito nos pontos que antecedem reduziu a cinzas produtos pertencentes à Autora, essencialmente fio têxtil e malhas, em quantidade, qualidade e valor não determinados” carece de factos base que lhe sirvam fundamento e, como tal, de ilogicidade.


45. O silogismo judicial que subjaz à afirmação deste facto carece de lógica, posto que atende em exclusivo ao destino que a autora dava ao armazém dos autos para afirmar que havia bens da sua propriedade interior do armazém, quando, na verdade, isso não resultou de toda a prova produzida nos autos. Antes pelo contrário!


46. Da prova produzida resultou que o armazém que ardeu albergava, à data do sinistro, bens de terceiros no seu interior, bem podendo ser esse o caso das malhas e dos fios têxteis existentes no interior do dito armazém, ali depositados à consignação ou à guarda da autora.


47. Não vê a recorrente como seria possível, nesta fase do processo, liquidar em fase posterior qualquer indemnização atinente à alegada perda sofrida pela autora com a destruição, pelo fogo, do fio têxtil e das malhas que supostamente lhe pertenciam, quando esta não logrou provar por documentos, por testemunhas e por prova pericial ser a proprietária de tais bens, quanto mais o seu alegado prejuízo.


48. Como tal, essa decisão deve ser revogada por Vossas Excelências e substituída por outra que elimine o facto provado n. 30 do elenco dos factos julgados provados do processo.


49. Deve ser igualmente revogado o segmento da decisão recorrida que condena a recorrente a pagar à autora qualquer montante indemnizatório, a liquidar ulteriormente em sede de incidente próprio. O que se requer.


50. O Acórdão recorrido violou o disposto no artigo 102º do Código Comercial e, bem assim, o preceituado nos artigos 615º e 674º do CPC.


A autora contra-alegou, concluindo as suas alegações:


1 - Entende a ora Recorrente que a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto não se coaduna com o Direito aplicável ao caso dos autos, pelo que se mostra carecida de reapreciação, invocando, sumariamente, três fundamentos:


iv. Erro na determinação da norma aplicável, no que respeita à questão dos juros de mora;


v. Nulidade prevista na al. d) do nº1 do artigo 615º do CPC ao ter fixado o facto provado nº30;


vi. Violação do artigo 674º do CPC, no que tange a fixação do facto provado 30º por manifesta falta de factos base e por ilogicidade da inferência judicial.


2 - Sucede, não assiste qualquer razão ao recurso de revista ora interposto pela Recorrente, o qual carece de qualquer fundamento e deverá ser julgado improcedente pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça e manter-se integralmente o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto.


3 – O alegado pela ora recorrente relativamente à ilegalidade de sujeição do montante de 8.129,82€ à taxa prevista para os créditos decorrentes de transacções comerciais, carece de qualquer razão e a decisão ora recorrida deverá manter-se na integralidade.


4 - O seguro de incêndio, previsto nos arts. 149.º a 151.º LCS, não é um seguro de responsabilidade civil.


5 - Os seguros de responsabilidade civil estão definidos no art. 137.º da LCS e inserem-se no capítulo II, secção I intitulada seguros de responsabilidade civil, como sendo aqueles em que o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros.


6 - Já os seguros de incêndio surgem no mesmo capítulo, mas na secção seguinte, a secção II, fora do âmbito dos seguros de responsabilidade civil.


7 - Quer isto dizer que os pagamentos de indemnizações ocorridas no âmbito deste seguro – que não é de responsabilidade civil – segue o regime do diploma em apreço, que remete para o Cód. Comercial, assim se impondo que, sendo duas empresas, ainda que o contrato apenas respeite à atividade comercial de uma delas, são aplicáveis juros comerciais.


8 - Com efeito, está em causa o cumprimento do contrato de seguro de danos, mediante a prestação prevista para o risco transferido, esta consiste na entrega ao segurado do montante do capital correspondente aos prejuízos sofridos em consequência do sinistro.


9 - Na verdade, apesar de muitas vezes se aludir a “indemnização” quando se fala na prestação das seguradoras, esta expressão só é rigorosa nos contratos de seguro de responsabilidade civil, onde estas garantem a cobertura da obrigação de indemnizar do tomador de seguro perante terceiros lesados, caso em que se abstrai da atividade económica das contraentes e se atribuem juros à taxa civil; em contraponto, no contrato de seguro de danos em coisas, outorgado por empresas no exercício das respetivas atividades económicas comerciais, estamos no domínio do artigo 230º do Código Comercial, razão pela qual os juros têm como fonte o citado artigo 102º § 3º.


10 - Assim, da conjugação desta norma com o artigo 2º nº 1 da Portaria nº 277/2013 de 26 de Agosto e os avisos publicados pela Direção Geral de Tesouro e Finanças nº 8671/2016 de 12 de Julho, nº 2583/2017 de 14 de Março, nº 8542/2017 de 1 de Agosto, nº 1989/2018 de 13 de Fevereiro, nº 9939/2018 de 26 de Julho, nº 2553/2019 de 15 de Fevereiro, nº 11571/2019 de 6 de Agosto, nº 1568/2020 de 30 de Janeiro, nº 10974/2020 de 29 de Julho, nº 2239/2021 de 4 de Fevereiro, nº 13486/2021 de 16 de Julho, nº 1535/2022 de 25 de Janeiro e nº 13997/2022 de 14 de Julho, publicados pela Direção Geral de Tesouro e Finanças, resulta que essa taxa é de 7%.


11 - Neste entendimento, versa o Supremo Tribunal de Justiça, no douto acórdão de 11/02/2010, sobre o processo nº 186/03.2TBCMN.G1.S1, que data vénia se transcreve para os devidos efeitos:


“Versando o litígio sobre a obrigação da seguradora de ressarcir o seu segurado pelos danos, conexionados com os riscos seguros, sofridos em coisa integrada no estabelecimento comercial do segurado, que exerce actividade empresarial enquadrável no art. 230º do C Com., estamos perante um crédito de que é titular empresário comercial, por virtude da exercício da respectiva actividade, pelo que, no caso de incumprimento pontual, são devidos juros moratórios `a taxa agravada prevista no art.102º daquele Código.”


12 - Em face do exposto, não se verifica no douto acórdão recorrido o alegado erro na determinação da norma aplicável no que respeita à questão dos juros de mora, pelo que, deverá improceder a pretensão da ora recorrente e manter-se integralmente a decisão proferida.


13 - A decisão recorrida em determinou a modificação da matéria de facto e aditou ao elenco dos factos provados, o facto 30 que versa o seguinte: - “O incêndio descrito nos pontos que antecedem reduziu a cinzas produtos pertencentes à Autora, essencialmente fio têxtil e malhas, em quantidade, qualidade e valor não determinados.”


14 - O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto determinou e bem a modificação da matéria de facto com referência à globalidade da materialidade inserta sob os pontos III) e IV) do elenco dos factos não provados da sentença recorrida, tal como foi suscitado pela ora Recorrida.


15 - Aliás, é o que decorre diretamente da fundamentação do Tribunal a quo ao que referir no acórdão recorrido: “O que deixámos dito não conduz, ainda assim, à impossibilidade de operarmos em alguma medida a modificação da decisão recorrida em torno da matéria de facto em apreço”.


16 - O douto acórdão ora recorrido não extravasa em momento algum o pedido formulado pela ora Recorrida na sua apelação dirigida ao Tribunal da Relação do Porto, posto que, o facto provado 30 aditado pelo douto acórdão decorre por referência à globalidade da materialidade inserta sob os pontos III) e IV) do elenco dos factos não provados da sentença recorrida, relativamente à qual a Recorrida pediu a reapreciação da prova e alteração da matéria de facto.


17 - Pelo que, o Tribunal a quo não excedeu os seus poderes de reapreciação da decisão acerca da matéria de facto nem incorreu em excesso de pronúncia já que a factualidade aditada à matéria de facto decorre materialidade inserta sob os pontos III) e IV) do elenco dos factos não provados da sentença recorrida, acompanhada de um juízo de probabilidade lógica prevalecente assente na matéria de facto dada como assente na sentença recorrida e no pedido formulado pela ora Recorrida de reapreciação da prova sobre os pontos III, IV e V da matéria de facto dada como não provada.


18 - O Tribunal da Relação, ao modificar a matéria de facto fixada pelo tribunal de 1ª instância, invalidando o juízo de apreciação da prova, atuou dentro dos limites dos seus poderes-deveres.


19 - Pelo que, não padece da nulidade excesso de pronúncia o acórdão recorrido na sequência da impugnação da decisão da matéria de facto efetuada pela ora Recorrida e ao abrigo dos poderes de intervenção oficiosa conferidos pelo artigo 662.º, alterou a redacção de factos que teve por conclusivos e procedeu ao aditamento de factos provados, dentro do pedido formulado, como é o presente caso.


20 - Por conseguinte, a invocada nulidade por excesso de pronúncia não se verifica e tão pouco configura um vício formal integrador de nulidade da sentença, podendo antes, apenas por mera hipótese académica configurar erro de julgamento – o que não se verifica no acórdão recorrido -, estando, por isso, fora do conceito legal de vícios da sentença previstos no artigo 615.º do CPC.


21 - Por conseguinte, não se verifica qualquer nulidade do acórdão proferido por excesso de pronúncia e, ainda que tal se verificasse – o que não se consente nem concede e por mera hipótese de raciocínio se formula – o uso deficiente pela Relação dos poderes que lhe são atribuídos pela lei processual, em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, não configura nenhuma das nulidades da sentença, previstas no artigo 615.º do CPC, normativo aplicável à 2.ª instância, por força do disposto no artigo 666.º do mesmo Código, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito, o que desde já está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça nos termos do artigo 662º, nº4 do CPC.


22 – Em caso de recurso com impugnação relativa à matéria de facto, pode e deve, a Relação lançar mão das presunções judiciais, seja para alterar os factos dados como provados e não provados, bem como para desenvolver a matéria de facto dada como provada na 1.ª instância, dando novos factos como provados com base em factos declarados provados no tribunal a quo.


23 - Em face do exposto, não se verifica a nulidade de excesso de pronúncia previsto na al d) do artigo 615º do CPC, devendo manter-se integralmente o douto acórdão proferido, nomeadamente, mantendo no elenco dos factos provados o facto julgado provado sob o nº30.


24 - Insurge-se a Recorrente contra o acórdão proferido pelo Tribunal a quo, invocando violação do artigo 674º do CPC, referindo nas suas conclusões de recurso que “Violação do artigo 674º do CPC, no que tange a fixação do facto provado 30º por manifesta falta de factos base e por ilogicidade da inferência judicial”.


25 - Ora, não assiste qualquer razão à Recorrente, porquanto, o douto acórdão proferido quanto à reapreciação dos meios de prova, respeitou o princípio da livre apreciação das provas e os poderes conferidos à 2ª instância no artigo 662º do CPC.


26 - A posição do Tribunal da Relação do Porto é, aliás, absolutamente clara no douto acórdão recorrido ao referir que “Movemo-nos no domínio do que a doutrina considera como standard de prova ou critério da suficiência da prova, que se traduz numa regra de decisão indicadora do nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira.”


27 – Assim entendeu e bem o Tribunal da Relação do Porto que, a conjugação de todos os meios de prova a que nos vimos referindo, desde logo elencados na decisão recorrida, mas também de certos factos julgados provados e inquestionados, designadamente os descritos sob os respetivos pontos 13), 14) e 26), resulta aquele Tribunal a qui, em termos de maior probabilidade do acontecer, que o sinistro em causa conduziu a incineração de produtos pertencentes à Autora, essencialmente fio têxtil e malhas, embora em quantidade, qualidade e valor não determinados.


28 - A matéria de facto assente nos pontos 13, 14 e 26, com referência à globalidade da materialidade inserta sob os pontos III) e IV) do elenco dos factos não provados da sentença recorrida, determinou assim o douto entendimento do Tribunal a quo na reapreciação da matéria de facto ao determinar o aditamento ao elenco dos factos provados o ponto 30): “O incêndio descrito nos pontos que antecedem reduziu a cinzas produtos pertencentes à Autora, essencialmente fio têxtil e malhas, em quantidade, qualidade e valor não determinados.”


29 - O raciocínio lógico do Tribunal a quo assente no critério da probabilidade lógica prevalecente – insiste-se – não se reporta à probabilidade como frequência estatística mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis, foi devidamente determinado com a conjunção da matéria de facto assente nos pontos 13, 14 e 26 da sentença.


30 - Ora, o Thema Decidendum dos presentes autos centra-se em apurar da responsabilidade da ora Recorrente / Ré sobre o valor indemnizatório peticionado pela Recorrida / Autora, em virtude do incêndio ocorrido nas suas instalações na ..., em função do contrato de seguro celebrado entre ambas.


31 - Dos factos provados 13 e 14 da sentença resulta que a nave onde deflagrou o incêndio era utilizadas para armazenar mercadorias, designadamente fio têxtil malhas e que no dia 22.07.2010, data em que deflagrou o incêndio referido nos autos, estavam armazenados rolos de tecidos de poliéster e algodão acondicionados em paletes de madeira e bobinas de fio dos mesmos materiais.


32 - Já o facto provado 26 da sentença em consequência do incêndio que deflagrou em 22-07-2010, todo o recheio armazenado na nave 2 (i. e., na nave esquerda) do referido pavilhão industrial registou perda total.


33 - Daqui resulta que, conforme doutamente entendeu o Tribunal a quo, ainda que a restante prova produzida pela Autora, incluindo o resultado da prova pericial, não lograsse esclarecer a quantidade de mercadoria existente no armazém – o que foi sempre rebatido pela ora Recorrida já que em sua defesa todos os elementos trazidos evidenciam que era possível calcular a respetiva mercadoria, tanto assim é que o Tribunal a quo determinou a sua liquidação posterior em incidente próprio -, tal não significa que a Autora não tivesse mercadoria sua no local, muito pelo contrário, o armazém estava carregado de mercadoria até ao tecto, sendo que os relatórios da Policia Cientifica da Polícia Judiciária, bem como, informação de serviço elaborada pela Policia Judiciária na data da ocorrência, a par dos pareceres técnicos juntos pela Autora aos autos, são unânimes nesta matéria: o armazém tinha enorme carga térmica proveniente de bobines de fio e rolos de tecido que estavam amontoados em várias paletes até ao tecto (facto provado 25 da sentença), o que provocou que o incêndio tomasse as enormes dimensões que mobilizaram centenas de bombeiros no local, sendo que se verificaram reacendimentos vários dias após a deflagração de 22.07.2010.


34 - Pelo que, é incontornável que o armazém (a nave 2) estava carregada de mercadoria de tal forma que a carga térmica no local era elevadíssima ao ponto de fazer desabar toda a estrutura do armazém em questão de minutos, é o que de resto decorre os relatórios da Policia Cientifica da Polícia Judiciária, bem como, informação de serviço elaborada pela Policia Judiciária, a par dos pareceres técnicos juntos pela Autora aos autos.


35 - Não poderia ter sido outra a conclusão do Tribunal a quo, que já em sede de 1ª instância deveria ter prevalecido, porquanto, se ficou demonstrado que a Autora utilizava o armazém para armazenar mercadoria e que no dia do incêndio estavam armazenados rolos de tecidos de poliéster e algodão acondicionados em paletes de madeira e bobinas de fio dos mesmos materiais que foram totalmente destruídos, com toda a certeza ou com enorme juízo de probabilidade que a mercadoria no local lhe pertencia, fosse a que título fosse, para o exercício da sua atividade.


36 - O facto de existir mercadoria no local onde deflagrou o incêndio que era utilizado pela Recorrida para armazenar a referida mercadoria, faz concluir que a mercadoria destruída lhe pertencia.


37 - Acresce ainda, ainda que o Tribunal a quo entenda não resultarem elementos nos autos para quantificar quanta mercadoria destruída pertencia à Autora, não é por não se ter demonstrado este facto que poderia o Tribunal da 1ª instância concluir que nenhuma mercadoria destruída lhe pertencia já que resulta dos autos, nomeadamente, dos relatórios da policia judiciária e da polícia científica que o incêndio teve proporções enorme devido à quantia de carga térmica, diga-se mercadoria, que existia no local no momento em que deflagrou o incêndio.


38 - É uma evidência inegável que existia enorme quantia de mercadoria no local onde deflagrou o incêndio, local esse que era utilizado pela Recorrida para armazenar mercadoria (facto provado 13 e 14).


39 - O recurso à presunção judicial para o aditamento do facto provado nº30 ao elenco dos factos provados é, assim, admissível e lógica face aos à factualidade dada como assente pela sentença.


40 - Com a entrada em vigor do novo C.P.C., o art. 662.º (que corresponde ao art. 712.º do anterior C.P.C.), foi alterado e ampliou os poderes da Relação quanto à modificabilidade da matéria de facto, dispondo agora o seu n.º 1 que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” (sublinhado nosso).


41 - E o n.º 2 do mesmo artigo dá continuidade a essa ampliação de poderes, consagrando uma série de situações em que a Relação pode proceder à alteração da matéria de facto e, inclusive ordenar a produção de novos meios de prova e até anular a decisão proferida na 1.ª instância.


42 - É agora inequívoca a autonomia decisória da Relação, podendo esta formar a sua própria convicção, desde que devidamente fundamentada, mediante a reapreciação dos meios de prova, segundo o princípio da livre apreciação das provas, à semelhança da 1.ª instância, sem estar sujeita à apreciação e convicção que esta formou nem a limitações decorrentes do princípio da imediação da prova.


43 - A este propósito veja-se o douto Acórdão proferido pelo S.T.J. de 19-01-2017, Proc. n.º 841/12.6TBMGR.C1.S1, Relator: António Joaquim Piçarra, que data vénia se transcreve:


“Face à competência alargada da Relação em sede da impugnação da decisão de facto (art.º 662º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), é lícito à 2ª instância, com base na prova produzida constante dos autos, reequacionar a avaliação probatória feita pela 1ª instância, nomeadamente no domínio das presunções judiciais, nos termos do n.º 4 do art.º 607º, aplicável por via do art.º 663º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil”.


44 - Sempre se dirá que relativamente à decisão da reapreciação da matéria de facto proferida pelo Tribunal da 1ª instância nos termos do artigo 662º, 1 e 2 do CPC, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, pelo que, toda a fundamentação da Recorrente inserida nas sua alegações e nas conclusões de recurso não é atendível e não poderá ser conhecida (artigo 662º, nº4 do CPC).


45 - O STJ pode sindicar a aplicação da lei adjectiva pela Relação em qualquer das dimensões relativas à decisão da matéria de facto provada e não provada (arts. 662.º, n.os 1 e 2, 674.º, n.º 1, al. b), do CPC) – não uso ou uso deficiente ou patológico dos poderes-deveres em segundo grau, controlando o respectivo modo de exercício em face do enquadramento e limites da lei para esse exercício, contudo, conforme acima referido, não é esse o presente caso já que não se verifica, quer numa interpretação restritiva quer numa interpretação extensiva no artigo 674º do CPC, a alegada ilogicidade na decisão da Relação nem tão pouco a mesma emerge de factos não provados.


46 - Nas suas conclusões de recurso refere a Recorrente que não vê como seria possível, nesta fase do processo, liquidar em fase posterior qualquer indemnização atinente à alegada perda sofrida pela Autora com a destruição do fio têxtil e malhas que lhe pertenciam se esta não logrou provar por documentos, testemunhas e prova pericial, contudo, esta alegação não faz qualquer sentido.


47 - Estando apenas em causa, na liquidação, determinar ou fixar o quantum indemnizatório devido pelos danos sofridos pela Autora com o incêndio referido nos autos - que implica a determinação da sua quantidade, qualidade e valor - têm a Autora, aqui Recorrida, o ónus de carrear nesse incidente factos bastantes para o efeito.


48 - Ora, obviamente, não basta a factualidade que foi alegada nesta ação, até porque se o fosse evitar-se-ia o incidente de liquidação, tendo-se fixado logo na sentença o quantum indemnizatório devido.


49 - Não se pode olvidar que o incidente de liquidação existe, precisamente, para se fixar ou precisar a condenação (que fora genérica), sendo que, para além de a sentença proferida no incidente de liquidação não poder alterar o que ficou decidido na sentença de condenação, esse incidente – como referem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS PIRES DE SOUSA2 – “não pode findar com sentença de improcedência, a pretexto de que o requerente não fez prova, na medida em que tal equivaleria a um non liquet e violaria o caso julgado formado com a decisão definitiva anterior, que reconheceu à parte um crédito, apenas dependente de liquidação (cfr. STJ 4-7-19, 5071/12). Seria, de resto, um paradoxo o incidente de liquidação culminar na negação de um direito anteriormente firmado por sentença. Neste domínio, a única questão em aberto é a da medida da liquidação e nunca a existência do direito respetivo”.


50 - Acresce que, se, mesmo após a iniciativa oficiosa, a prova produzida em tal incidente for insuficiente para fixar a quantia devida, poderá o Tribunal, como última ratio, recorrer à equidade a fim de se lograr fixar aquele quantitativo.


51 - Em face do exposto, sem prejuízo de tudo quanto exposto acima, relativamente à inadmissibilidade do presente recurso de revista quanto à questão da reapreciação da matéria de facto atento o disposto no artigo 662º, nº4 do CPC, sempre se dirá que o acórdão recorrido não merece qualquer reparo, encontrando-se a questão jurídica em causa devidamente fundamentada e decidida em consonância com a reapreciação da matéria de facto que se afigurou necessária para a boa decisão da causa.


Foram colhidos os vistos.


2- Cumpre apreciar e decidir:


Da admissibilidade do recurso


O recurso de revista nos termos do nº. 1 do art. 671º do CPC., cabe do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1ª. instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.


No caso vertente, a ré foi absolvida do pedido na 1ª. Instância e parcialmente condenada no Tribunal da Relação, havendo ainda uma alteração de factualidade, não se verificando uma situação de dupla conforme.


Assim sendo, será o recurso de revista admissível.


As conclusões do recurso delimitam o seu objeto, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil.


As questões a dirimir consistem em aquilatar:


- Sobre a verificação da nulidade constante da al. d) do nº. 1 do art. 615º do CPC.


- Erro na determinação da norma aplicável aos juros de mora.


A matéria de facto delineada nas instâncias foi a seguinte:


1) A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à indústria de tecelagem e fiação.


2) A atividade – indústria têxtil – da Autora foi sendo, essencialmente, desenvolvida a partir da sua unidade industrial –fábrica – sita em ....


3) A Ré é uma empresa de seguros, que atua em Portugal, exercendo a atividade seguradora e disponibilizando produtos (seguros e resseguros) nos ramos não vida, devidamente autorizada e licenciada pelo Instituto de Seguros de Portugal para o efeito.


4) Por documento escrito intitulado «Contrato de Arrendamento Comercial», datado de 01-06-2009, entre AA, na qualidade de presidente do conselho de administração e em representação da sociedade N..., SA, e BB, na qualidade de administradora e em representação da sociedade Empresa Têxtil Elétrica, Lda., foi celebrado um acordo com o teor que consta do documento 1 apresentado com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido, pelo qual AA, em representação da sociedade N..., SA, declarou arrendar a nave 2 (i. e., a nave esquerda) de um pavilhão industrial sito na Rua ... – sendo esta nave 2 também identificada como armazém situado na Rua ... –, à Empresa Têxtil Elétrica, Lda., que por intermédio de BB aceitou tal acordo, pelo prazo de um ano, renovável, com início em 01-06-2009, mediante a contrapartida anual de € 60.000, a pagar em duodécimos mensais de € 5.000 cada.


5) Em 10-10-2009, a Autora celebrou com a Ré (então designada Companhia de Seguros Tranquilidade, S. A.). o contrato de seguro denominado Multirrisco Industrial, titulado pela apólice n.º ........07, que tinha como objeto o recheio situado nos seguintes locais de risco: armazém situado em ...; armazém situado na Rua ..., nos termos que constam das respetivas condições particulares da apólice, com o teor que consta do documento 2 apresentado com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.


6) A referida apólice contemplava, entre outras, a cobertura de «INCÊNDIO, QUEDA DE RAIO E EXPLOSÃO».


7) No que diz respeito ao armazém situado na Rua ..., o capital seguro quanto ao respetivo recheio, para a cobertura de «INCÊNDIO, QUEDA DE RAIO E EXPLOSÃO», foi fixado no valor máximo de € 300.000,00, sem qualquer franquia.


8) A Ré submeteu o contrato de seguro que celebrou com Autora às condições gerais e especiais com o teor que consta do documento 2 apresentado com a contestação, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.


9) Em 22-07-2010 (data em que deflagrou o incêndio), o contrato de seguro celebrado entre a Autora e a Ré encontrava-se válido e em vigor.


10) No dia 22-07-2010, cerca das 19.45 horas, na nave 2 (i. e., na nave esquerda) do pavilhão industrial sito na Rua ..., deflagrou um incêndio.


11) No dia 22-07-2010, o pavilhão industrial sito na Rua ..., encontrava-se dividido em duas naves autónomas, nascente (i. e., a nave direita) e poente (i. e., a nave esquerda), separadas por um corredor interior central, na direção norte – sul que dava acesso ao exterior através de um portão metálico situado no extremo sul.


12) A nave 2 (i. e., na nave esquerda) do pavilhão industrial sito na Rua ..., tinha uma área de cerca de 2.000 m2 e era constituída por paredes em tijolo rebocado, com cobertura em chapa de fibrocimento, assente numa estrutura metálica, existindo teto falso forrado a lã de vidro.


13) Em 22-07-2010, a nave 2 (i. e., na nave esquerda) do pavilhão industrial sito na Rua ..., era utilizada pela Autora para armazenar mercadorias, designadamente fio têxtil e malhas.


14) Em 22-07-2010, no interior da nave 2 (i. e., na nave esquerda) do pavilhão industrial sito na Rua ..., estavam armazenados rolos de tecidos de poliéster e algodão acondicionados em paletes de madeira e bobinas de fio dos mesmos materiais.


15) Em 22-07-2010, no interior da referida nave 2, também se encontravam várias máquinas retorcedoras pertencentes a C..., Lda.


16) No dia 22-07-2010, entre as 19:00h e 19:15h, AA, deslocou-se ao pavilhão industrial sito na Rua ..., na companhia de CC, motorista da sociedade N..., SA, tendo descarregado, no corredor interior central, 3 paletes de malha felpa Italiana – 52/48% polyester, com o total de 1.292,50 kg, e com o intuito de retirar de uma divisão administrativa, um cofre, o que não conseguiram, face à dimensão deste.


17) Tanto AA, como CC nada detetaram de anormal no imóvel que pudesse supor o incêndio.


18) No dia 22-07-2010, cerca das 19:30h, saíam fumo e labaredas da referida nave 2 (i. e., na nave esquerda) do pavilhão industrial sito na Rua ..., havendo projeção de pedaços das chapas de fibrocimento da cobertura dessa nave 2.


19) Dado o alerta do incêndio para os bombeiros, pelas 19:41h, a primeira corporação saiu do quartel dos Bombeiros Voluntários de ... pelas 19:45h chegando ao local cerca de 5 minutos depois.


20) Aquando da chegada dos bombeiros, pelas 19:50h, a estrutura da cobertura em fibrocimento havia colapsado, na zona central.


21) O incêndio atingiu rapidamente elevadíssimas proporções, tendo sido dado como extinto já depois das 15:00h do dia seguinte, não obstante o esforço de 53 bombeiros, apoiados por vinte viaturas de nove corporações de bombeiros e o apoio da GNR, da Polícia Judiciária, da Cruz Vermelha, da Câmara Municipal e da Proteção Civil ....


22) Para apuramento, nomeadamente, das causas do incêndio foi instaurado processo de inquérito que correu termos com o n.º 1088/10.5..., no âmbito do qual foi proferido despacho de arquivamento.


23) Durante os trabalhos de remoção dos escombros e análise do local, a equipa do Laboratório de Polícia Científica recolheu diversos vestígios, registados da seguinte forma:


vestígio 1 – recolha de líquido de cor acastanhada que se encontrava dentro de um garrafão plástico com a capacidade de 5 Lt. e com rótulo “Arauto – Água desmineralizada”, localizado do lado direito à entrada do corredor de acesso aos pavilhões;


vestígio 2 – recolha de um líquido de açor acastanhada que se encontrava no interior de um jerrican cortado, localizado do lado esquerdo à entrada do corredor de acesso aos pavilhões junto a um saco de plástico com aparas de madeira;


vestígio 3 – saco de papel com três garrafões plásticos de água, com capacidade de 5 Lt. e com rótulo “O.........” entre outros, localizado no exterior das instalações por baixo de um canteiro de flores, sendo vestígio 3A – recolha de um líquido de cor amarelada de um dos garrafões; vestígio 3B – recolha de um liquido de cor acastanhada de um dos garrafões; vestígio 3C – recolha de um liquido de cor azulada de um dos garrafões;


vestígio 4 – recolha de fragmentos de tecido carbonizado que se encontravam na zona do pavilhão mais próxima da entrada;


vestígio 5 – recolha de material não identificado carbonizado junto ao piso na zona de fragmentação do mesmo.


24) Submetidos a análise química foi detetada a presença de: gasóleo nas amostras dos vestígios 1, 3A, 3B e 3C; um produto inflamável de origem petrolífera na amostra do vestígio 2; gasolina na amostra do vestígio 4.


25) Os danos observados no que sobrou das mercadorias e equipamentos existentes no interior do imóvel, assim como nas paredes e pavimento, permitiram identificar três focos de incêndio simultâneos, distintos e sem linhas de propagação entre si, situados, respetivamente, na zona central da nave poente, onde estavam amontoadas várias paletes com bobines de fio e rolos de tecido, na zona próxima do quadro elétrico e na zona de armazenamento de tecidos, situada do lado esquerdo da entrada nessa nave.


26) Em consequência do incêndio que deflagrou em 22-07-2010, todo o recheio armazenado na nave 2 (i. e., na nave esquerda) do referido pavilhão industrial registou perda total.


27) Em 22-07-2010, o pavilhão industrial sito na Rua ..., estava à venda.


28) C..., Lda. instaurou contra Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A. ação que correu termos no ... Juízo de Competência Cível de ..., sob n.º 3345/11.0..., reclamando indemnização no valor de € 498.375,80, alegadamente correspondente ao valor de 11 máquinas retorcedoras que teriam resultado destruídas pelo incêndio supra referido.


29)Tendo esta ação sido julgada totalmente improcedente, por decisão transitada em julgado, com fundamento na origem por ato voluntário humano do incêndio e por não cobertura de atos de vandalismo.


30) Aditado pelo Tribunal da Relação:


- O incêndio descrito nos pontos que antecedem reduziu a cinzas produtos pertencentes à Autora, essencialmente fio têxtil e malhas, em quantidade, qualidade e valor não determinados.


31) Aditado pelo Tribunal da Relação


- O ponto V) do elenco dos factos não provados da sentença recorrida passou a integrar o ponto 31) do elenco dos factos julgados provados:


- A Autora despendeu a quantia de 8.129,82€ com a remoção dos escombros das mercadorias que se encontravam armazenadas na nave 2 (i. e., na nave esquerda) do referido pavilhão industrial.


Factos julgados não provados na 1.ª instância


I) Anteriormente à celebração do contrato de seguro supra referido em 5) a 9) ou aquando da celebração desse contrato, a Ré comunicou à Autora das condições gerais e especiais com o teor que consta do documento 2 apresentado com a contestação.


II) As condições gerais e especiais com o teor que consta do documento 2 apresentado com a contestação foram explicadas à Autora, anteriormente à celebração do contrato de seguro supra referido em 5) a 9) ou aquando da celebração desse contrato.


III) Em 22-07-2010, a Autora mantinha armazenados na nave 2 (i. e., na nave esquerda) do referido pavilhão industrial, os seguintes stocks (fio) e produto acabado:


- 56.705,62 kg de fio de várias qualidades, nomeadamente fio de 100% algodão, mistura de algodão e acrílico, mistura de algodão e linho, mistura de viscose e algodão, mistura de polyester e algodão, 100% polyester, rayon viscose, etc.;


- 28.504,70 kg de malha, nomeadamente malha jersey e rib;


- 18.018,80 metros de tecido de algodão.


IV) Cujo valor total ascendia a € 368.579,80.


V) Passou a facto provado pela Relação.


Vejamos:


Insurge-se a recorrente quanto ao acórdão proferido, na medida em que entende padecer o mesmo de excesso de pronúncia.


Para tanto, invocou que o Tribunal da Relação conheceu de questão não suscitada pela ora recorrida nas suas alegações de recurso, pois, alterou injustificadamente a matéria de facto, designadamente quanto ao facto número 30 que aditou, sem que tal questão lhe tenha sido suscitada nas alegações de recurso de apelação.


Ora, nos termos constantes da alínea d) do nº. 1 do art. 615º do CPC., é nula a sentença, quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.


Esta omissão está relacionada com o comando contido no nº.2 do art. 608º do CPC., exigindo-se ao julgador que resolva todas as questões que as partes lhe tenham suscitado, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.


A nulidade por excesso de pronúncia, prevista na alínea d) do n.º 1 do art. 615.º, do CPC, que sanciona a violação do estatuído no n.º 2 do art. 608.º, do mesmo diploma, apenas ocorre quando o tribunal ad quem conheça de questões que não integrem o objeto do recurso, ou seja, quando o tribunal conheça de matéria que vá além das questões integrantes do pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções.


Contudo, uma coisa é a nulidade de sentença e outra coisa será o erro de julgamento.


Na situação concreta, o que sucede é que a ré recorrente não se conforma com a análise da factualidade operada pela Relação e daí a arguição da sua nulidade.


Contudo, uma coisa é a nulidade de sentença e outra coisa será o erro de julgamento.


Ora, no recurso de apelação que a autora interpôs, estava em causa a impugnação dos factos dados como não provados, na 1ª. Instância sob os nºs. III, IV e V.


Ao apreciar da impugnação fáctica, o Tribunal da Relação escreveu o seguinte no seu acórdão:


« … da conjugação de todos os meios de prova a que nos vimos referindo, desde logo elencados na decisão recorrida, mas também de certos factos julgados provados e inquestionados, designadamente os descritos sob os respetivos pontos 13) – “Em 22-07-2010, a nave 2 (i. e., na nave esquerda) do pavilhão industrial sito na Rua ..., era utilizada pela Autora para armazenar mercadorias, designadamente fio têxtil e malhas” –, 14) – “Em 22-07-2010, no interior da nave 2 (i. e., na nave esquerda) do pavilhão industrial sito na Rua ..., estavam armazenados rolos de tecidos de poliéster e algodão acondicionados em paletes de madeira e bobinas de fio dos mesmos materiais” – e 26) – “Em consequência do incêndio que deflagrou em 22-07-2010, todo o recheio armazenado na nave 2 (i. e., na nave esquerda) do referido pavilhão industrial registou perda total”, resulta para nós verosímil, em termos de maior probabilidade do acontecer, que o sinistro em causa conduziu a incineração de produtos pertencentes à Autora, essencialmente fio têxtil e malhas, embora em quantidade, qualidade e valor não determinados.


Nestas circunstâncias, tudo visto e ponderado, o que podemos julgar como provado nesta instância de recurso, com referência à globalidade da materialidade inserta sob os pontos III) e IV) do elenco dos factos não provados da sentença recorrida, reconduz-se ao seguinte, que passará a integrar o elenco dos factos provados, sob o ponto 30):


- “O incêndio descrito nos pontos que antecedem reduziu a cinzas produtos pertencentes à Autora, essencialmente fio têxtil e malhas, em quantidade, qualidade e valor não determinados”.


Relativamente ao apontado ponto V) do elenco dos factos não provados, não podemos de modo algum comungar da leitura feita pelo Exmo. Juiz de Direito nesta matéria.


A fatura correspondente ao documento n.º 12 junto com a petição inicial, em conjugação com o sentido do depoimento da gerente da Autora prestado em audiência de julgamento, meios de prova não contrariados de forma relevante pela produção de qualquer outro, justificam a nosso ver, à luz do princípio da livre apreciação da prova pelo juiz, e segundo um critério de maior probabilidade do acontecer, que se julgue provado o facto em questão.


Termos em que julgamos o recurso procedente nesta parte e, consequentemente, o facto descrito como não provado sob o ponto V) passa a integrar o elenco dos factos provados sob o ponto 31)».


A síntese conclusiva quanto à modificação da decisão recorrida em matéria de facto, operada pela Relação, resultou no aditamento ao elenco dos factos provados o ponto 30) e o ponto V) do elenco dos factos não provados da sentença recorrida passou a integrar o ponto 31) do elenco dos factos julgados provados.


Embora mantendo o modelo de reponderação, a reforma de 2013 apetrechou a segunda instância de instrumentos que lhe permitem formar uma convicção própria e autónoma sobre os factos que interessem à boa decisão do recurso, mas também que lhe impõem que dê relevo a factos não alegados, que surjam durante a instrução.


O artigo 662.º, nº.1 do CPC. é disso sintomático, quando passou a decretar imperativamente, em vez de «pode», como anteriormente, que a Relação «deve» alterar a decisão de primeira instância sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.


Por outro lado, n.º 2 do mesmo preceito atribui um vasto leque de poderes/deveres inquisitórios ao tribunal.


Mas não se ficam por aqui os poderes oficiosos da Relação de alterar o julgamento de facto, pois pode também desconsiderar matéria de natureza estritamente jurídico-conclusiva (artigos 607.º, 4 e 663.º, 2) corrigir a decisão de facto que viole normas imperativas de direito probatório material (artigos 5.º, 3, 607.º, 4 e 5 e 662º, 1), considerar factos notórios e de conhecimento funcional não ponderados pela primeira instância (artigos 5.º, 2 c) e 412.º) e ainda aproveitar-se de factos instrumentais, mas também complementares e concretizadores que já resultavam da instrução da causa em 1.ª instância (artigo 5.º, 2).


As questões de facto estão reservadas às instâncias, cabendo a derradeira decisão à Relação, a quem estão conferidos os poderes específicos consagrados no art. 662.º, n.º 1 do CPC.


A competência do Supremo Tribunal de Justiça está circunscrita à matéria de direito, enquanto tribunal de revista, não podendo debruçar-se sobre a matéria de facto, ficando vinculado aos factos fixados pelo Tribunal recorrido, a que aplica definitivamente o regime jurídico tido por adequado, nos termos do nº. 1 do art. 682º. do CPC.


Porém, dispõe o nº. 2 do mesmo preceito, que a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no nº. 3 do artigo 674º do CPC.


E o nº. 3 do art. 674º do CPC., admite a revista com fundamento em ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.


O Supremo Tribunal, embora não possa censurar o uso feito pela Relação dos poderes conferidos por aquele preceito, sempre poderá verificar se a Relação ao usar tais poderes, agiu ou não dentro dos limites conferidos pela lei para os exercer (cfr. Ac. do STJ. de 16-12-2020, in www.dgsi.pt).


E na situação, sub judice, o Tribunal da Relação atuou no âmbito dos poderes que a lei lhe confere.


Mas, a recorrente insiste que o Tribunal recorrido, extravasou o formulado no recurso de apelação, ao julgar provado, por via do recurso a presunção judicial não suscitada pela recorrida, o desfecho quanto ao facto 30º.


No concernente às presunções judiciais, escreve Francisco Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, Almedina, 2015, Vol. II, pág. 524 «Ao Supremo apenas cabe ajuizar, por ser uma questão de direito, se as presunções judiciais/naturais extraídas pelas instâncias violam o disposto nos arts. 349º e 351º do CC, isto é, se foram tiradas de factos desconhecidos ou irrelevantes para firmar factos desconhecidos, se exigem um grau superior de segurança na prova, se conflituam com a factualidade material provada ou ainda, se contrariam um facto que tenha sido submetido a concreta discussão probatória e que o tribunal considerou não provado ou padecerem de manifesta ilogicidade.


Contudo, poderá sempre, o Supremo censurar a decisão da Relação no que respeita a conclusões ou ilações de factos, infrinja o limite, designadamente quando o uso de tais presunções houver conduzido à violação de normas legais, isto é, decidir se, no caso concreto, era ou não permitido o uso de tais presunções».


As presunções judiciais inserem-se no contexto do apuramento da matéria de facto, e daí que os factos tidos por demonstrados à luz delas não podem, em sede de recurso de revista, ser objeto de escrutínio por parte do STJ, exceto se houver violação de norma legal impositiva em matéria de meios de prova, ou se padecerem de ilogicidade ou partirem de factos não provados.


A posição da jurisprudência neste Supremo Tribunal de Justiça é esmagadora no sentido de entender que as presunções judiciais, constituindo matéria de facto, são insindicáveis pelo STJ., ou seja, o único controlo que esta instância pode fazer é conferir se o iter percorrido para retirar a presunção judicial respeitou as regras legais do procedimento probatório, não violando normas legais impositivas, a existência de factos-base, admissibilidade (art. 351.º do CC), inexistência de ilogicidade ou arbitrariedade manifesta, ou se partirem de factos não provados ou de factos instrumentais não explicitados (nomeadamente, Acs. do STJ. de 2-11-2023, 31-102023, 4-7-2023, in http://www.dgsi.).


As presunções são essencialmente operações probatórias simples ou demonstrativas (João de Castro Mendes, O conceito de prova em processo civil, Lisboa: 719) que a lei define como sendo as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349.º CC).


Não sendo propriamente meios de prova, a sua inclusão no capítulo das provas justifica-se dada «a sua atinência à teoria das provas» (cfr. Prof.Vaz Serra, Provas, Direito Probatório Material, Lisboa).


Ora, do acabado de expor, resulta não se configurar nos autos, qualquer excesso de pronúncia, não padecendo o acórdão proferido de qualquer extravasamento do que lhe foi submetido para apreciação.


Efetivamente, o acórdão proferido conheceu das questões que lhe foram colocadas, não padecendo de nulidade, o mesmo ocorrendo no âmbito da impugnação factual que lhe foi apresentada, procedendo dentro dos cânones legais par o efeito.


De igual modo, não foi violado o princípio do contraditório, nem proferida qualquer decisão surpresa, de que urja conhecer oficiosamente.


Efetivamente, constitui um princípio basilar, o exercício do contraditório, plasmado no art. 3º, nº. 3 do CPC., devendo o juiz observá-lo ao longo de todo o processo.


De acordo com o mesmo, o tribunal não poderá resolver o conflito de interesses, que lhe é colocado para apreciação por uma das partes, sem que a outra seja chamada a formular a sua posição.


Quando as decisões assentam em fundamentos que não foram ponderados pelas partes, poderá ocorrer uma decisão-surpresa.


Como se aludiu no Ac. do STJ. de 12-1-2021, in www.dgsi.pt «Só se justificará a audição prévia das partes quando o enquadramento legal convocado pelo julgador for absolutamente díspar daquele que as partes haviam preconizado ser aplicável de forma que não possam razoavelmente contar com a sua aplicação ao caso».


Porém, no caso em apreço, tal não sucedeu.


Ao ter sido impugnada a matéria de facto, ambas as partes estavam na posse de todas as posições possíveis, seja aditamento, suprimento ou modificação da mesma.


Todas as soluções plausíveis foram espelhadas no conteúdo dos articulados.


A ninguém foi coartada a possibilidade de uma participação efetiva no desenvolvimento do litígio, quer a nível de facto, quer de direito, nem tal foi sequer suscitado, desde logo, pelas partes.


O enquadramento jurídico dado pelo Tribunal da Relação do Porto à situação, não emerge de factualidade nova ou de que as partes não tivessem tido já pleno e extenso conhecimento, pois, moveu-se dentro da factualidade enformadora do pedido e da causa de pedir, sendo expetável o seu desfecho.


Destarte, não merece censura este segmento do recurso, nada havendo a alterar, não padecendo o acórdão de vício de nulidade que o invalide.


Também não se conforma a recorrente com a solução adotada no acórdão, no concernente à condenação nos juros de mora comerciais.


O acórdão recorrido decidiu condenar a Ré a pagar à Autora o montante de 8.129,82€, acrescido dos respetivos juros de mora contados desde a citação até integral pagamento, à taxa supletiva respeitante a créditos de que sejam titulares empresas comerciais, nos termos previstos no parágrafo 3.º do art. 102.º do Código Comercial.


Porém, entende a recorrente que o artigo 102º do Código Comercial não se aplica à situação em apreço nos presentes autos, na medida em que aqui é regulado o direito da recorrida a receber da recorrente, uma indemnização pelos danos sofridos com o sinistro ocorrido no dia 22.07.2010, fora do regime estatuído pelo Decreto-Lei nº. 32/2003, de 17 de fevereiro.


Como tal, este segmento da decisão recorrida deve ser revogado e substituído


por outra decisão que condene a recorrente a pagar à recorrida a quantia de 8.129,82€, acrescido dos respetivos juros de mora contados desde a citação até integral pagamento, à taxa de juros civis, tal como decorre da aplicação do artigo 559º do Código Civil.


Ora, os juros moratórios visam indemnizar o credor pelo não cumprimento atempado de uma obrigação pecuniária.


Os juros moratórios variam consoante estejam em causa créditos civis, do art. 559º do Código Civil ou créditos subsumíveis ao art. 102º do Código Comercial, sendo a taxa dos juros comerciais mais elevada do que a taxa dos juros civis.


O art. 102º § 3º do Código Comercial dispõe que, os juros moratórios legais e os estabelecidos sem determinação de taxa ou quantitativo, relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou coletivas, são os fixados em portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça.


A redação do atual art. 102º do Código Comercial resulta das alterações que lhe foram introduzidas por força do art. 6º do Decreto-Lei nº. 32/2003, de 17 de fevereiro, o qual veio dar cumprimento ao imperativo comunitário de transposição da Directiva nº. 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de junho, atinente ao estabelecimento de medidas de luta contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais.


Como escreve Ana Afonso, A Obrigação de Juros Comerciais Depois Das Alterações Introduzidas pelo Decreto-Lei nº. 32/2003, de 17 de fevereiro, in Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, págs. 178-179, «O art. 2º do Decreto-lei nº. 32/2003 delimita, positiva e negativamente, o respetivo âmbito e regência. O nº. 1 começa por determinar a aplicação do diploma, a todos os pagamentos efetuados como remunerações de transações comerciais, cujo conceito é adiante explicitado pelas definições das alíneas a) e b) do art. 3º. O nº. 2 do mesmo art. 2º vem, seguidamente, excluir do respectivo campo de aplicação: os contratos celebrados com consumidores; os juros relativos a outros pagamentos e os pagamentos efetuados a título de indemnização por responsabilidade civil, incluindo os efetuados por companhias de seguros».


Com efeito, o art. 2º do Decreto-Lei nº. 32/2003, de 17 de fevereiro, define no seu nº. 1, que o diploma se aplica a todos os pagamentos efetuados como remuneração de transações comerciais.


Dispondo o seu nº. 2


- São excluídos da sua aplicação:


a) Os contratos celebrados com consumidores;


b) Os juros relativos a outros pagamentos que não os efectuados para remunerar transacções comerciais;


c) Os pagamentos efectuados a título de indemnização por responsabilidade civil, incluindo os efectuados por companhias de seguros.


A disciplina definida pelo diploma em apreço, não se aplica a todas as obrigações de pagamento em dinheiro, mas apenas àquelas que constituem o correspetivo de uma transação comercial.


O conceito de transação comercial opera sob um perfil objetivo, respeitante à natureza e ao objeto do contrato do qual deriva a obrigação pecuniária de pagamento do preço e sob um perfil subjetivo, relativo à qualidade dos contraentes, ou seja, de acordo com a orientação daquele diploma, qualquer contrato celebrado entre empresas ou entre empresas e entidades públicas que comporte o fornecimento de mercadorias ou a prestação de serviços constitui uma transação comercial.


E como refere a mesma autora, Ana Afonso, na obra identificada a fls. 194-195, «O diploma aplica-se a todos os pagamentos efetuados como remuneração de transações comerciais, mas apenas a estes. Consequentemente, não se aplica aos juros relativos a outros pagamentos que não os efetuados para remunerar transações comerciais e também não se aplica aos pagamentos efetuados a título de indemnização por responsabilidade civil, incluindo os efetuados por companhias de seguros.


O diploma não se aplica, conforme a alínea c) do nº. 2 do art. 2º, à indemnização devida, quer esta tenha como fonte o incumprimento de obrigação contratual, quer tenha como fonte um ilícito extracontratual.


Sempre que uma companhia seguradora efetuar pagamento de uma indemnização a título de cobertura de responsabilidade civil pelo respectivo segurado, o diploma também não se lhe aplica».


A mesma orientação preconizou Miguel Pupo Correia, Direito Comercial Direito da Empresa, Coimbra Editora a pág. 433-434, afirmando «O art. 2º, nº 2, do DL nº. 32/2003 inclui nas suas três alíneas as espécies de contratos excluídos da aplicação do diploma: Contratos com consumidores; Juros relativos a pagamentos que não resultem de transações comerciais e os pagamentos efetuados a título de indemnização por responsabilidade civil, incluindo os efetuados por companhias de seguros.


Só se aplica aos pagamentos devidos a título de cumprimento voluntário de obrigação contratual, mas não de indemnizações por responsabilidade civil, seja por incumprimento de uma obrigação contratual, seja por violação de um dever jurídico de outra natureza gerador de um ilícito extracontratual».


O Decreto-Lei nº. 32/2003 veio a ser revogado pelo Decreto-Lei nº. 62/2013, de 10 de maio, mas a alínea c) do nº. 2 do art. 2º permaneceu idêntica, ou seja, mantém-se a exclusão do seu campo de aplicação, dos pagamentos de indemnização por responsabilidade civil, incluindo os efetuados por companhias de seguros.


No caso em apreço, está em causa o pagamento de uma indemnização decorrente de responsabilidade civil da seguradora, em consequência da celebração de um contrato de seguro, vigente em 22-7-2010, quando deflagrou o incêndio.


A qualificação jurídica efetuada no acórdão da Relação, não foi questionada,


Constando da mesma, o seguinte:


«Os factos provados evidenciam o estabelecimento de uma relação jurídica entre Autora e Ré, assente num acordo subordinado a um conjunto de condições, desde logo nos termos que constam dos documentos juntos aos autos, o qual configura um contrato de seguro, por corresponder inequivocamente ao conteúdo típico previsto no art. 1.º do Regime do Contrato de Seguro (RCS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril: “Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”».


Assim, não nos encontrando no âmbito de uma transação comercial e estando a seguradora excluída da obrigação de juros comerciais, aplicar-se-á à situação dos autos, o regime geral da lei civil.


Da análise dos autos, nada consta sobre a estipulação das partes atinente à fixação de qualquer taxa de juros moratórios.


Nos termos do nº. 1 do art. 559º do Código Civil, os juros legais e os estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo são fixados em portaria conjunta dos Ministros da Justiça e das Finanças e do Plano.


De acordo com o seu nº. 2, a estipulação de juros superiores à fixada nos termos do número anterior deve ser feita por escrito, sob pena de serem apenas devidos na medida dos juros legais.


Em consequência, decide-se que a taxa de juros aplicável para cálculo dos juros de mora é a taxa legal, revogando-se o acórdão recorrido, nesta parte.


Sumário:


- A nulidade por excesso de pronúncia, prevista na alínea d) do n.º 1 do art. 615.º, do CPC, que sanciona a violação do estatuído no n.º 2 do art. 608.º, do mesmo diploma, apenas ocorre quando o tribunal ad quem conheça de questões que não integrem o objeto do recurso, ou seja, quando o tribunal conheça de matéria que vá além das questões integrantes do pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções.


- As questões de facto estão reservadas às instâncias, cabendo a derradeira decisão à Relação, a quem estão conferidos os poderes específicos consagrados no art. 662.º, n.º 1 do CPC, só intervindo o STJ., no âmbito do disposto no nº. 3 do art. 674º e nº. 2 do art. 682º, ambos do CPC.


- Só se justificará o contraditório prévio das partes, para efeitos de salvaguarda da existência de uma eventual decisão surpresa, quando o enquadramento legal convocado pelo julgador for absolutamente díspar daquele que as partes haviam preconizado ser aplicável, de forma que não possam razoavelmente contar com a sua aplicação ao caso.


- A redação do atual art. 102º do Código Comercial resulta das alterações que lhe foram introduzidas por força do art. 6º do Decreto-Lei nº. 32/2003, de 17 de fevereiro, o qual veio dar cumprimento ao imperativo comunitário de transposição da Directiva nº. 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de junho, atinente ao estabelecimento de medidas de luta contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais.


- O diploma não se aplica aos juros relativos a outros pagamentos que não os efetuados para remunerar transações comerciais e também não se aplica aos pagamentos efetuados a título de indemnização por responsabilidade civil, incluindo os efetuados por companhias de seguros.


3- Decisão:


Nos termos expostos, acorda-se em julgar parcialmente procedente a revista e, consequentemente:


a) Condena-se a Ré a pagar à Autora o montante de 8.129,82€, acrescido dos respetivos juros de mora, à taxa legal dos juros civis.


b) No mais se mantendo o acórdão proferido.


Custas a cargo da autora e da ré, na proporção do decaimento.


Lisboa, 25-6-2024


Maria do Rosário Gonçalves (Relatora por vencimento)


Graça Amaral


Luís Correia de Mendonça (com voto de vencido)


Voto vencido porquanto não mereceu acolhimento a posição que defendi no projecto e que, em síntese, assentava nas seguintes ideias:


i) A moderna doutrina processual está de acordo que o terreno da prova por presunções judiciais constitui o local ideal para o proferimento das chamadas decisões-surpresa (Cfr., entre outros Salvatore Patti, Le Prove, seconda edizione, Giuffré, Milano 2021:828, Salvatore Patti, «Le presunzioni semplici:relievi introduttivi», a cura di Salvatore Patti e Roberto Poli, Il ragionamento presuntivo, G. Giappichelli, Torino, 2022, Anna Rosa Eremita, Il sindicato della cassazione sulle presunzioni semplici, Cacucci Editore, Bari, 2022:84 e ss. e José Luís Seoane Spiegelberg, La Prueba en Ley de Enjuiciamiento Civil, Disposiciones Generales y Presunciones, 2.ª, edición, Thomson-Aranzadi, 2007:367).


ii) Como opina Salvatore Satta, «as partes devem ter acima de tudo a possibilidade de contestar a probabilidade inerente à relação entre facto conhecido e facto ignorado, posto que o facto ignorado deve ser «racionalmente» (ou como se lê em algumas sentenças, razoavelmente) provável» («Le presunzioni…», cit:19).


iii) Se se reconhece e autoriza que o juiz recorra a presunções na redacção da sentença, é natural que essa operação [facto base+nexo lógico=facto presumido] esteja rodeada de garantias em benefício dos sujeitos processuais e do próprio sistema, designadamente a actuação prévia do contraditório (artigo 3.º, 3 CPC)..


iv) O contraditório não é apenas um princípio estruturante do processo civil; é uma garantia que pode ser qualificada como direito processual fundamental.


v) Os direitos, liberdades e garantias são regras e princípios jurídicos imediatamente eficazes, por via directa da Constituição, e vinculam os tribunais (artigo 18.º, 1 CRP).


vi) No caso sujeito, a Relação, considerou que «da conjugação de todos os meios de prova a que nos vimos referindo, desde logo elencados na decisão recorrida, mas também de certos factos julgados provados e inquestionados, designadamente os descritos sob os respetivos pontos 13), 14) e 26) resulta verosímil, em termos de maior probabilidade do acontecer, que o sinistro em causa conduziu a incineração de produtos pertencentes à Autora, essencialmente fio têxtil e malhas, embora em quantidade, qualidade e valor não determinados».


vii) Mais concretamente raciocinou:


a) Se alguém é utilizador de um armazém, para aí guardar mercadorias, designadamente fio têxtil e malhas,


b) Se, nesse dia, estavam no armazém rolos de tecido, de poliéster e algodão, acondicionados em paletes de madeira e bobina de fio;


c) Se, em consequência do incêndio, houve uma perda total de todo o recheio do armazém;


d) Então pode inferir-se dos referidos indícios, que aquele utilizador do armazém era proprietário de alguns bens, designadamente fio têxtil e malas (ainda que de quantidade, qualidade e valor não determinados).


viii) Não discutindo o rigor lógico do «silogismo factual» efectuado, parece-me que a Relação, apesar de ter julgado improcedente o recurso da autora quanto aos factos não provados III e IV, inferiu, por recurso à prova por presunções, matéria que depois veio a preencher um novo facto (30), sem que às partes tenha sido dada a oportunidade de participarem e influenciarem essa decisão.


Entendi, pelo exposto, que houve violação do princípio do contraditório e por isso censuraria a decisão recorrida.


Luís Correia de Mendonça