Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
370/18.4T8SLV-A.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: CONTRATO A FAVOR DE TERCEIRO
ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
PROMESSA UNILATERAL
EXONERAÇÃO
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 09/29/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A declaração de um terceiro feita apenas ao devedor, através da qual assume pagar uma dívida deste, sem qualquer intervenção do credor, não integra uma assunção de dívida, prevista no artigo 595.º do Código Civil, mas sim uma promessa de exoneração de dívida, também apelidada promessa de liberação, prevista no artigo 444.º, n.º 3, do Código Civil, no capítulo dos contratos a favor de terceiro, sendo qualificada pela doutrina como um contrato a favor de terceiro impróprio.

II. Neste tipo negocial, o promitente compromete-se perante o devedor (promissário) a desonerá-lo de uma obrigação, cumprindo-a em seu lugar, ou seja, efetuando em vez dele a prestação devida ao credor, distinguindo-se da assunção de dívida devido ao promitente apenas assumir esta obrigação perante o devedor e sem qualquer aprovação do credor, pelo que apenas o promitente tem o direito de exigir dele a exoneração prometida, continuando o credor a poder exigir do devedor o cumprimento da obrigação.

III. A declaração de promessa de exoneração de dívida apenas reflete a constituição da obrigação de pagamento da dívida do promissário ao credor e não a de pagar ao promissário o valor dessa dívida, pelo que este não pode recorrer a um processo executivo para pagamento de quantia certa, apresentando como título a escritura onde foi efetuada aquela promessa, para obter do promitente o pagamento de uma quantia equivalente ao valor da dívida assumida.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

AA interpôs execução para pagamento de quantia certa contra a Executada.

A Executada deduziu oposição, através de embargos, alegando, além do mais, a inexistência de título executivo.

O Exequente contestou, afirmando a suficiência do título executivo apresentado.

Foi proferido despacho saneador, com valor de sentença, na audiência prévia que julgou procedente a oposição, com fundamento na insuficiência do título executivo, julgando extinta a execução.

Desta decisão recorreu o Exequente para o Tribunal da Relação que julgou procedente a apelação e revogou a sentença recorrida, decretando a improcedência da oposição e determinando o prosseguimento dos trâmites executivos.

Do acórdão do Tribunal da Relação recorreu agora a Executada, alegando, além do mais, a insuficiência do título executivo, concluindo pela extinção da execução.

O Exequente respondeu, pronunciando-se pela manutenção da decisão recorrida.


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II – O objeto do recurso

Tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre, desde logo, verificar se a obrigação exequenda está suportada por título com força executiva.


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III – Os factos

Neste processo consideraram-se provados os seguintes factos:

1. O título executivo apresentado na execução consiste em escritura pública de cessão de quota e assunção de obrigação, celebrada entre Exequente e BB, esta por si e na qualidade de gerente com delegação de poderes de gerência do restante gerente CC, em representação da aqui Executada, e designadamente constante do segmento referente à cessão de obrigação o seguinte: "Mais declarou a segunda, na invocada qualidade: Que, em nome da sociedade que representa em face da presente cessão e do Considerando Único desta escritura, a sociedade Assume a obrigação do primeiro outorgante no montante de duzentos e quarenta mil euros, que está atualmente garantida pela sociedade através do arresto do crédito de que aquele era devedor, procedimento cautelar a correr os seus termos pelo 1 ° ..., Processo n.°791/10.... apenso aos autos de Ação Ordinária que correm presentemente termos pelo ... do mesmo Tribunal ..., Processo n.°787/10...., Encontrando-se a exigibilidade dessa obrigação a ser discutida atualmente no Processo Judicial n.°1323/13.... a correr os seus termos pela Comarca ... - ... - Instância Central – ... Secção Cível – J l. Declarou finalmente o primeiro outorgante: Que em face dos presentes contratos aqui exarados, nada mais tem a receber, seja a que título for, quer da sociedade representada da segunda outorgante, quer de algum dos seus sócios".

2. Do requerimento executivo, cujo teor integral se dá por reproduzido, resulta, designadamente, a seguinte exposição de factos:

1.º - A Executada "Empresa de Exploração Hoteleira S..., Lda", por escritura pública de Cessão de Quota e Assunção de Obrigação, outorgada a 27/5/2015, assumiu a obrigação do Exequente AA no montante de 240.000,00 € (duzentos e quarenta mil euros). Mais consta na referida escritura que, se encontrava a ser discutida a exigibilidade dessa obrigação no processo n.° 1323/13...., que correu termos pela Comarca de ... - ... - Instância Central - 2." Secção Cível – J 1.

2.º - Sucede que foi proferida sentença, a 31 de maio de 2016, em que condenou o exequente ao pagamento de 240.000,00 €, (duzentos e quarenta mil euros) tudo acrescido dos juros vencidos e vincendos à taxa convencionada de 7%, desde 10.11.2013, até integral pagamento.

3.º - Em 11 de Julho de 2016, o exequente AA interpôs recurso de tal Sentença.

4.º - Em 13 de Julho de 2017, foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora, relativamente a tal recurso, no qual foi decidido pela improcedência do recurso, confirmando-se a Sentença recorrida.

5.º - Tal Acórdão, nos termos previstos no n.° 3, art.° 671° CPC, não era recorrível, pelo que a decisão há muito que transitou em julgado.

6.º - Nem antes, nem depois da data do trânsito em julgado da referida Sentença, o exequente foi pago de qualquer valor relacionado com a dívida sob apreço.

7.º - A Executada, foi notificada da referida sentença, através de Notificação Judicial Avulsa, a 28/10/2017, sendo certo que, até à data, não cumpriu a obrigação que assumiu perante escritura de Cessão de quota e assunção de obrigação.

3. No processo executivo instaurado em 27/02/2018, foi proferido o primeiro despacho, datado de 14/03/2018, no qual consta: Antes de mais, deverá o exequente juntar aos autos a certidão das decisões que foram proferidas no âmbito do Processo n.° 1323/13.....

4. Em 28/05/2018 o Exequente veio juntar aos autos de execução certidão do acórdão da Relação e da sentença de 1.ª Instância proferidos no processo 1323/13.....

5. Em 30/05/2018, nos autos de execução, foi proferido despacho do seguinte teor: Uma vez que não resulta dos autos qualquer fundamento para indeferir liminarmente a presente execução, ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo 726.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art.º 855.º, n.º 5 do mesmo diploma, deverá o Sr. Solicitador de Execução proceder à citação da executada para, no prazo de 20 dias, pagarem ou oporem-se à execução.

6. Nos autos de execução a executada foi citada por carta registada datada de 07/06/2018.

7. Um dos pedidos formulados pelas autoras contra o Exequente/Embargado no âmbito da ação 1323/13.... era a sua condenação no pagamento da quantia de € 240 000,00, acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa convencionada de 7% até integral pagamento, condenação esta, que lhe foi imposta pela sentença de 1ª instância e que veio a ser confirmada pelo acórdão do TRE de 13/07/2017.


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IV – O direito aplicável

1. Da suficiência do título executivo

O Exequente pretende através da presente execução que a Executada lhe pague € 240.000,00, correspondente ao valor da dívida que aquele foi condenado a pagar a DD, EE e FF, no processo n.º 1323/13...., invocando a obrigação assumida pela Executada de liquidar essa dívida.

Como título executivo juntou uma escritura pública na qual a representante da Executada declarou que, em nome da sociedade que representa em face da presente cessão e do Considerando Único desta escritura, a sociedade assume a obrigação do primeiro outorgante no montante de duzentos e quarenta mil euros, que está atualmente garantida pela sociedade através do arresto do crédito de que aquele era devedor, procedimento cautelar a correr os seus termos pelo 1 ° ..., Processo n.°791/10.... apenso aos autos de Ação Ordinária que correm presentemente termos pelo ... do mesmo Tribunal ..., Processo n.°787/10...., encontrando-se a exigibilidade dessa obrigação a ser discutida atualmente no Processo Judicial n.°1323/13.... a correr os seus termos pela Comarca ... - ... - Instância Central – ... Secção Cível – J1.

Por convite do Tribunal foi junta ao processo executivo certidão do acórdão da Relação e da sentença de 1.ª Instância proferidos no processo n.º 1323/13...., no qual o Exequente foi condenado a pagar a quantia de € 240.000,00.

Toda a execução deve ter na sua base um título que documente a constituição ou reconhecimento da obrigação exequenda, com o grau de certeza necessário para que sejam aplicadas medidas coercivas, visando a satisfação do respetivo direito de crédito (artigo 10.º, n.º 5, do Código de Processo Civil).

Uma das espécies dos títulos dotados de força executiva é constituída pelos documentos exarados ou autenticados por notário que importem a constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação (artigo 703.º, n.º 1, b), do Código de Processo Civil).

O Exequente apresentou como título da obrigação que pretende executar uma escritura pública em que a Executada, através da sua representante, declarou assumir a obrigação do Exequente, no valor de € 240.000,00, cuja exigibilidade estava a ser discutida no Processo n.º 1323/13...., o que foi aceite pelo Exequente.

Interpretando a declaração constante do título apresentado, com o sentido que lhe daria um declaratário normal, colocado na real posição do declaratário (artigo 236.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) a Executada assumiu apenas perante o Exequente, e com o acordo deste, a obrigação de pagar uma dívida daquele, no valor de € 240.000,00, cujas credoras eram DD, EE e FF, se a existência desta dívida e a sua exigibilidade viesse a ser reconhecida em ação judicial que se encontrava pendente, tendo como partes o Exequente e outros, como Réus, e aquelas credoras, como Autoras.

O documento em causa titulava, pois, uma convenção através da qual Executada e Exequente acordaram a constituição de uma obrigação condicional pela Executada, uma vez que esta assumiu a obrigação de pagar uma dívida litigiosa do Exequente, pelo que a constituição dessa obrigação estava dependente do resultado da ação onde se discutia a existência dessa dívida (condição suspensiva).

No entanto, independentemente da problemática da verificação da condição suspensiva e do cumprimento dos requisitos estabelecidos no artigo 275.º do Código Civil, previamente, coloca-se a questão de saber se a obrigação exequenda corresponde à que se terá constituído com a convenção estabelecida entre o Exequente e a Executada, sem qualquer intervenção do credor da dívida cujo pagamento foi assumido por esta última

O facto desta convenção não contar com qualquer intervenção do credor, não existindo uma assunção da dívida perante ele, antes se tratando de uma declaração de um terceiro (a Executada) ao devedor (o Exequente), em que assume pagar uma dívida deste, não estamos perante uma transmissão singular de dívida ou assunção de dívida, prevista no artigo 595.º do Código Civil, mas sim perante a figura da promessa de exoneração de dívida, também apelidada promessa de liberação, assunção de cumprimento, assunção interna de dívida ou ainda acolação, prevista no artigo 444.º, n.º 3, do Código Civil, no capítulo dos contratos a favor de terceiro, sendo qualificada pela doutrina como um contrato a favor de terceiro impróprio.

Neste tipo negocial, o promitente compromete-se perante o devedor (promissário) a desonerá-lo de uma obrigação, cumprindo-a em seu lugar, ou seja, efetuando em vez dele a prestação devida ao credor, distinguindo-se da assunção de dívida devido ao promitente apenas assumir esta obrigação perante o devedor e sem qualquer aprovação do credor, pelo que apenas o promitente tem o direito de exigir dele a exoneração prometida, continuando o credor a poder exigir do devedor o cumprimento da obrigação [1]. O credor mantém-se como um estranho a este contrato entre promitente e promissário.

Note-se que a Executada, no caso concreto, não se obrigou a entregar ao Exequente uma quantia correspondente à dívida deste para com as acima referidas credoras, de modo a permitir-lhe satisfazer essa dívida, caso a ação onde a mesma se encontrava a ser discutida tivesse um desfecho desfavorável ao Exequente. A Executada obrigou-se antes a pagar ao credor essa dívida, caso a mesma viesse a ser reconhecida nessa ação.

É certo que, em caso de não cumprimento da obrigação liberatória assumida pelo promitente (aqui a Executada), o promissário (aqui o Exequente), poderá exigir do promitente uma indemnização pelos danos causados pelo incumprimento, nos termos do artigo 798.º, do Código Civil [2], podendo contar-se entre esses danos o valor que o Exequente teve que desembolsar no pagamento da dívida assumida, mas, nesta hipótese, não nos encontramos perante a satisfação da obrigação contratualmente assumida, mas sim perante o pagamento de uma indemnização pelo não cumprimento dessa prestação.

Por esta razão, o documento autêntico que acompanha a presente ação executiva, no qual se insere a declaração obrigacional da Executada de assumir o pagamento da dívida do Exequente apenas reflete a constituição dessa obrigação e não a de pagar ao Exequente o valor da sua dívida, pelo que não lhe era possível recorrer a um processo executivo para pagamento de quantia certa, apresentando como título esse documento para obter da Executada o pagamento de uma quantia equivalente ao valor da dívida assumida [3]. Caso o Exequente tenha satisfeito essa dívida, face ao incumprimento da Executada, terá que recorrer a uma ação declarativa em que demonstre o incumprimento da promessa de liberação de dívida e o prejuízo por si sofrido com esse incumprimento.

Não sendo o título apresentado idóneo a executar a obrigação cuja satisfação se pretende, não se verifica um pressuposto essencial do processo executivo, pelo que a execução não pode prosseguir, devendo ser declarada extinta.

Perante esta conclusão, fica prejudicada a apreciação das demais questões colocadas pela Recorrente neste recurso de revista, importando julgar procedente o recurso, revogar o acórdão recorrido e repristinar a sentença proferida na primeira instância, a qual julgou procedentes os embargos deduzidos pela Executada, com fundamento na insuficiência do título executivo.


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Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso de revista e, em consequência, revogar o acórdão recorrido, repondo-se a decisão da sentença proferida na 1.ª instância.


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Custas do recurso e dos embargos pelo Exequente.


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Notifique.


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Lisboa, 29 de setembro de 2022

João Cura Mariano (Relator)

Fernando Baptista

Vieira e Cunha

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[1] Sobre esta figura e a sua diferenciação quer da assunção de dívida quer dos contratos a favor de terceiro em sentido próprio, VAZ SERRA, Promessa de Liberação e Contrato a Favor de Terceiro, B.M.J. n.º 72, pág. 83-94, CARLOS MOTA PINTO, Cessão da Posição Contratual, Almedina, 1982, pág. 115, nota 1, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., Almedina, 2013, pág. 363-369, DIOGO LEITE DE CAMPOS, Contratos a Favor de Terceiro, Almedina, 1980, pág. 69-71, MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, vol. IX, 3.ª ed., 2019, pág. 848, HUGO RAMOS ALVES, Código Civil Comentado. II Das Obrigações em Geral, Almedina, 2021, pág. 314-315, ARMANDO TRIUNFANTE, Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 175, MARGARIDA REGO, A Promessa de Exoneração de Dívida a Terceiro. Pretexto para uma Reflexão sobre o Conceito de Prestação, “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida”, vol. II, Almedina, 2011, pág. 681-707, e Código Civil Anotado, Almedina, 2017, pág. 573-575, e TIAGO AZEVEDO RAMALHO, O Princípio da Relatividade Contratual e o Contrato a Favor de Terceiro. Da Titularidade do Direito à Prestação por Parte do Beneficiário, Coimbra Editora, 2013, pág. 43-61 e 73-74, nota 59.
[2] ARMANDO TRIUNFANTE, ob. e loc. cit., e HUGO RAMOS ALVES, ob. cit., pág. 315.
[3] Neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 01.07.2004, Proc. 04B1845 (Rel. Ferreira de Almeida), e o Acórdão da Relação de Coimbra de 14.09.2010, Proc. 207-B/1999 (Rel. Manuel Capelo).