Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2688/05.7TBCLD.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: JUSTIFICAÇÃO JUDICIAL
COMPETÊNCIA MATERIAL
CONSERVADOR DO REGISTO PREDIAL
ACESSO AO DIREITO
DIREITO DE ACÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 07/11/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS - TRIBUNAIS.
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO - REGISTO PREDIAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - GARANTIAS DA COMPETÊNCIA.
Doutrina:
- J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa”, Anotada, 4ª Ed., pp. 408/409.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 102.º, N.º1.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRGP) - DL Nº 284/84, DE 22.08: – ARTIGO 116.º.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRGP), COM AS ALTERAÇÕES DO DL N.º 273/2001, DE 13-10: - ARTIGO 117.º-H, N.º 2.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 20.º, N.º1, 202.º, NºS. 1 E 2, 205.º, Nº2.
DL N.º 273/2001, DE 13-10: - ARTIGO 8.º, N.º2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 25.11.04, E DE 03.03.05, AMBOS ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Na ausência de subjacente litígio, com a entrada em vigor, em 01-01-2002, do DL n.º 273/2001, de 13-10, a competência, em razão da matéria, para o conhecimento das acções a que, anteriormente, correspondia o denominado “processo de justificação judicial”, passou a radicar, originariamente, nos conservadores do registo predial, que dela ficarão privados, em caso de ulterior dedução de oposição pelos interessados (art. 117.º-H, n.º 2, do CRgP).

II - Tal não acarreta violação do disposto no art. 20.º, n.º 1, da CRP, porquanto o correspondente direito carece de conformação através da lei, não sendo, por outro lado, o respectivo titular privado de submeter a sua causa à apreciação de um tribunal, a qual é garantida, em todos os casos, como possibilidade de recurso.
Decisão Texto Integral:
Proc. nº 2688/05.7TBCLD.L1.S1[1]

(Rel. 126)[2]

                              Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1 – AA e BB instauraram, em 14.07.05, na comarca de Caldas da Rainha (com distribuição ao 2º Juízo), acção declarativa, com processo comum e sob a forma ordinária, contra GG e mulher, HH (agora representados pelas suas herdeiras habilitadas, CC e DD) e INCERTOS, pedindo que as AA. sejam reconhecidas como legítimas proprietárias do prédio rústico sito no lugar e freguesia de Salir do Porto, concelho de Caldas da Rainha, composto por mato, com a área de 14 032 m2, a confrontar, de Sul, com o próprio, de Norte, com EE e, de Nascente e Poente, com estrada pública.

       Fundamentando a respectiva pretensão, alegaram, em resumo e essência:

                                                     /

--- As AA. são as únicas e universais herdeiras, por óbito, de FF;

--- Da herança aberta por óbito de FF faz parte o prédio urbano, composto de um moinho de vento e logradouro, situado no lugar e freguesia de Salir do Porto, concelho de Caldas da Rainha, descrito na Conservatória do Registo Predial de Caldas da Rainha sob o nº 58 505, do Livro B-143, e inscrito na matriz respectiva sob o art. 146, a confrontar, de Norte, com herdeiros de EE, de Sul, Poente e Nascente, com estrada, adquirido por aquele a GG e HH, por escritura pública de compra e venda celebrada em 27.06.78, na Secretaria Notarial de Caldas da Rainha;

--- Da escritura não consta a área do prédio;

--- Na matriz, o prédio é composto de moinho de vento e possui a área de 408 m2;

--- Na Conservatória do Registo Predial, o prédio está inscrito e descrito sem menção a qualquer área;

--- O prédio, desde que foi adquirido, não sofreu qualquer alteração, sempre foi possuído em toda a sua extensão e, desde sempre, as AA. se convenceram que o FF teria comprado o moinho e toda a área circundante;

--- Em meados de 2004, as AA. mandaram fazer um levantamento topográfico do terreno, tendo constatado que tem a área total de 14 440 m2;

--- Perante esta discrepância, as AA. tentaram corrigir a matriz, no sentido de aumentar a área do prédio urbano, o que não lhes foi permitido, em virtude do fim a que se destina a área em falta, ser puramente rústica em toda a sua composição;

--- O prédio, na realidade, é composto, na sua parte urbana, por moinho de vento e logradouro e, na parte rústica, por mato, em toda a sua extensão;

--- Desde a aquisição, há mais de 26 anos, o FF e mulher passaram a considerar o prédio seu, no todo, incluindo a parte rústica, sempre utilizaram a parcela de terreno com a área de 14 440 m2, providenciando pela sua manutenção, conservação e limpeza, roçando os matos, como prevenção de incêndios, e tinham na parcela rústica animais, nomeadamente cavalos, e, até, os seus estábulos, tudo isto à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de exercerem um direito próprio de legítimos proprietários;

--- A A., AA, e seu falecido marido, FF, sempre utilizaram a sua parcela de terreno, no todo, com a área de 14 440 m2.

       Não foi apresentada qualquer contestação, na sequência das citações a que, regularmente, se procedeu.

       Após, foi proferida decisão que julgou o tribunal demandado incompetente, em razão da matéria, para os termos e conhecimento da acção, com a inerente absolvição dos RR. da instância.

       Apelaram as AA., tendo a Relação de Lisboa mantido a decisão recorrida.

       Daí o presente recurso de agravo viabilizado pelo preceituado nos arts. 678º, nº2, 734º, nº1, al. a) e 754º, nº3, todos do CPC na pregressa redacção, com o mesmo visando as agravantes a revogação do acórdão recorrido, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes e relevantes conclusões:

                                                     /

1 – A competência material afere-se pela relação litigiosa submetida à apreciação do tribunal nos exactos termos unilateralmente afirmados pelo A. da pretensão e pelo pedido formulado;

2 – No caso dos autos, as recorrentes interpuseram a acção declarativa com vista à obtenção de uma sentença que declare e as reconheça como legitimas proprietárias do prédio rústico, sito no lugar e freguesia de Salir do Porto, concelho de Caldas da Rainha, composto por mato, com a área de 14.032m2, por o terem adquirido por usucapião, com vista a proceder à sua descrição e inscrição no registo, em seu nome.

3 – Para a prossecução da aludida finalidade, necessitam de uma decisão para que possam obter a primeira inscrição;

4 – Pelo que estamos perante uma vulgar acção judicial de condenação para reconhecimento do direito de propriedade, por via da usucapião;

5 – E não se pode entender que as recorrentes se poderiam socorrer, na Conservatória do Registo Predial, do procedimento previsto no artigo 116° do CRP, na medida em que tal, com toda a certeza, lhes teria sido indeferido, em virtude do prédio estar omisso e não ser possível a sua inscrição na matriz;

6 – Conforme supra referido, as recorrentes pretendem uma decisão que lhes permita uma primeira inscrição do prédio, o que só será possível com a acção judicial;

7 – Por outro lado, sempre se dirá que a circunstância das recorrentes poderem, eventualmente, ter-se socorrido de algum dos procedimentos previstos no Código do Registo Predial não afasta, necessariamente, a possibilidade e o direito de, em alternativa, intentarem acção judicial para ver reconhecido o seu direito de propriedade com base na usucapião;

8 – O DL nº 273/2001, de 01/01/2002, ao dar nova redacção ao Código do Registo predial e revogar o regime de processo de justificação judicial de registo, não atribuiu competência exclusiva às Conservatórias de Registo Predial e notários para o reconhecimento do direito de propriedade com base na usucapião, nem o legislador através de alguma outra lei, retirou alguma matéria da competência dos Tribunais para a atribuir a outras entidades, não judiciais ou jurisdicionais;

9 – Dispõe o artigo 20° n°1 da Constituição da República Portuguesa que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos;

10 – Sendo os Tribunais órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, incumbe-lhes assegurar a defesa de direitos e interesses e dirimir conflitos e as suas decisões são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades (arts. 202° n°/s 1 e 2 e 205° n°2, todos da Constituição da República Portuguesa);

11 – Face ao direito fundamental dos cidadãos de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, e em virtude de a todo o direito corresponder a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, sem que haja lei a determinar o contrário, o Tribunal Judicial é competente, em razão da matéria, para conhecer o pedido das recorrentes de reconhecimento do direito de propriedade com base na usucapião;

12 – Tal direito não pode ser afastado pela circunstância de, em alternativa, poderem utilizar um dos meios processuais previstos no Código do Registo Predial;

13 – Salvo o devido respeito, não se compreende como pode o Tribunal Judicial ser considerado incompetente, em razão da matéria e, em consequência, não ser conhecido o pedido formulado pelas recorrentes;

14 – O Tribunal " a quo", ao decidir como decidiu, violou os arts. 102°, n°1 do CPC, 116° e 120° do Código do Registo Predial, 20° n°1, 202°, nº/s 1 e 2 e 205°, n°1, da Constituição da Republica Portuguesa;

15 – Assim, deve ser dado provimento ao presente recurso e revogada a decisão recorrida, substituindo-se por outra que considere o Tribunal Judicial competente, em razão da matéria, para apreciar o pedido formulado pelas recorrentes.  

       TERMOS EM QUE, com o douto suprimento, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando a douta decisão recorrida, substituindo-a por outra que considere o Tribunal competente, em razão da matéria, para  apreciar o pedido formulado pelas AA., seguindo-se os ulteriores termos.

       Inexistem, nos autos, contra-alegações.

       Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

                                                  *

2 - Perante o teor das conclusões formuladas pelas recorrentes – as quais (exceptuando questões de oficioso conhecimento não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso (arts. 660, nº2, 661º, 672º, 684º, nº3, 690º, nº1 e 726º todos do CPC na pregressa e, aqui, aplicável redacção[3]) –, constata-se que a única questão por si suscitada e que, no âmbito do agravo, demanda apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso consiste em saber se o tribunal demandado, em sintonia com o julgamento das instâncias e contra o propugnado pelas agravantes, é desprovido de competência, em razão da matéria, para os termos e conhecimento da presente acção.

       Apreciando:

                                                    *

3 – Como é sabido, a competência, em razão da matéria, determina-se pela análise do pedido formulado na acção pelo autor.

       Na presente acção, pedem as AA. que sejam “reconhecidas como legítimas proprietárias do prédio rústico, sito no lugar e freguesia de Salir do Porto, concelho de Caldas da Rainha, composto por mato, com a área de 14 032 m2, a confrontar, do Sul, com o próprio, do Norte, com EE, e, do Nascente e Poente, com estrada pública”.

       O que fundamentam na invocação dos factos mencionados em 1 supra e que, aqui, se têm por reproduzidos, dotados de aptidão para o preenchimento da respectiva aquisição, por usucapião, do direito de propriedade em causa.

       Confrontamo-nos, assim, com uma realidade processual que, na vigência do DL nº 284/84, de 22.08 – revogado pelo art. 8º, nº2, do DL nº 273/2001, de 13.10 –, era designada por “processo de justificação judicial”, tendente a obter a primeira inscrição no registo predial, ao abrigo do disposto no respectivo art. 116º. Ou seja, em causa está um processo de carácter eminentemente registal, em que, como – bem – se assinala na douta decisão da 1ª instância, “é patente que as partes não pretendem dirimir qualquer conflito existente, ou objectivamente prestes a desencadear, mas obter uma alteração do registo predial, permitindo, em consequência, a justificação relativa ao trato sucessivo para efeitos de registo, prevista no art. 116º do CRP (Justificação relativa ao trato sucessivo)…”

       Atente-se, aliás, em que o pedido formulado pelas AA. não foi objecto de qualquer contestação, colocando aquelas em situação processual de verdadeira falta de interesse em agir, se perspectivado no quadro duma acção de processo comum e não já do sobredito processo especial.

       Ora, como se fez constar, expressamente, do preâmbulo do mencionado DL nº 273/2001, de 13.10 – que operou a sobredita revogação –, “O presente diploma opera a transferência de competências em processos de carácter eminentemente registral dos tribunais judiciais para os próprios conservadores de registo, inserindo-se numa estratégia de desjudicialização de matérias que não consubstanciam verdadeiro litígio (…) Trata-se de uma iniciativa que se enquadra num plano de desburocratização e simplificação processual, de aproveitamento de actos e de proximidade da decisão, na medida em que os processos em causa eram já instruídos pelas entidades que ora adquirem competência para os decidir, garantindo-se, em todos os casos, a possibilidade de recurso (…) Passa assim a ser objecto de decisão por parte do conservador o processo de justificação judicial, aplicável à maioria das situações de suprimento de omissão de registo não oportunamente lavrado…”   

       Não restando, pois, dúvidas de que a suscitada questão da incompetência, em razão da matéria, foi bem apreciada e decidida, nas instâncias, com fundamentos a que, integralmente, se adere, já que, perante a operada qualificação processual da acção e os objectivos prosseguidos pelo legislador e claramente proclamados no preâmbulo do citado DL nº 273/2001, não podem, legitimamente, suscitar-se dúvidas de que a correspondente competência, em razão da matéria, radica – exclusivamente e não em alternativa com os tribunais judiciais – no conservador do registo predial.

       E contra tal não se objecte com a tardia prolação da decisão que assim o entendeu: a mesma mais não fez que respeitar o preceituado no art. 102º, nº1, já que confrontada com a inexistência de sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa, muito embora tenha de reconhecer-se que, em termos ideais, assim não deveria ter sucedido…

       Tendo, igualmente, de ser rejeitado o entendimento de que a posição que se deixa perfilhada traduz a violação do preceituado nos arts. 202º, nº/s 1 e 2, 205º, nº2 e – sobretudo – 20º, nº1, todos da CRP (Constituição da República Portuguesa): como sustentam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa”, Anotada, 4ª Ed., pags. 408/409), em anotação a este último preceito, o mesmo “carece de conformação através da lei” e o que dele se pode extrair é, além do mais, que “ninguém pode ser privado de levar a sua causa…à apreciação de um tribunal, pelo menos como último recurso”. O que o regime jurídico decorrente das alterações introduzidas pelo mencionado DL nº 273/2001, de 13.10, não deixa de salvaguardar, ao garantir, “em todos os casos, a possibilidade de recurso”, como consagrado, designadamente, nos aditados arts. 117º-F, nº3, 117º-I, nº1, 117º-L, nº1 e, bem assim, nos arts. 127º, nº2, 131º, nº1 e no aditado art. 132º-A, nº1, todos do CRPred.

       Improcedendo, assim, as conclusões formuladas pelas agravantes, na linha, aliás, do que vem sendo decidido, a propósito, neste Supremo (Cfr., designadamente, os Acs. de 25.11.04, de que foi relator o Ex. mo Cons. Moitinho de Almeida, e de 03.03.05, de que foi relator o Ex. mo Cons. Faria Antunes, ambos acessíveis em www.dgsi.pt).

                                                *

4Sumário:

                                                 /

 I – Na ausência de subjacente litígio, com a entrada em vigor, em 01.01.02, do DL nº 273/2001, de 13.10, a competência, em razão da matéria, para o conhecimento das acções a que, anteriormente, correspondia o denominado “processo de justificação judicial” passou a radicar, originariamente, nos conservadores do registo predial, que dela ficarão privados, em caso de ulterior dedução de oposição pelos interessados (art. 117º-H, nº2, do CRPred.).

II – Tal não acarreta violação do disposto no art. 20º, nº1, da CRP (Constituição da República Portuguesa), porquanto o correspondente direito carece de conformação através da lei, não sendo, por outro lado, o respectivo titular privado de submeter a sua causa à apreciação de um tribunal, a qual é garantida, em todos os casos, como possibilidade de recurso.

                                                   *

5 – Na decorrência do exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo.

                                                   /

      Custas pelas agravantes.

                                                   /

                                       Lx   11/07/13/  

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[1]  Processo distribuído, neste Tribunal, em 07.05.13.
[2] Relator: Fernandes do Vale (19/13)
  Ex. mos Adjuntos
  Cons. Marques Pereira
  Cons. Ana Paula Boularot
[3]  Como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados.