Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
545/14.5GBGMR.G1.S2
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: AGOSTINHO TORRES
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ACORDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
IRRECORRIBILIDADE
CONVOLAÇÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
REVISTA EXCECIONAL
ADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 06/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I-Narrativa histórica do caso

A. Nos autos houve condenação na 1.ª instância, pela prática de crimes de homicídio negligente, a par da condenação de seguradora no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais (caso respeitante a um acidente num rally, que resultou na morte, entre outras pessoas, de uma mulher e de uma criança – sendo demandantes cíveis marido/pai e os pais/avós, respectivamente, das referidas vítimas); No Tribunal da Relação houve alteração da qualificação jurídica na parte criminal condenando apenas por um crime de homicídio negligente, ao invés de três, julgando improcedentes os demais recursos; Foram de seguida interpostos recursos para o STJ o qual rejeitou os mesmos, determinado a sua convolação em requerimentos de arguição de nulidades do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães tendo ordenado a remessa dos autos, para apreciação dos mesmos, nos termos do artigo 615.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.

B. Neste âmbito, o TR apreciou as nulidades invocadas, julgando as mesmas improcedentes.; nessa sequência, o Tribunal da Relação proferiu dois acórdãos de aclaração sucessivos, a 09-01-2023 e 10-07-2023, em que decidiu pela improcedência dos pedidos de nulidade formulados.

C. Os demandantes cíveis recorreram, novamente, para o STJ, nos termos do art. 617.º, n.º 6 , 2ª parte, do CPC (que prevê a admissibilidade de recurso quando exista alteração do sentido decisório, na sequência da apreciação de uma nulidade), 629.º, n.º 2, al. c) (admissibilidade de recurso quando esteja em causa uma decisão proferida contra jurisprudência uniformizada do STJ) e, subsidiariamente, de revista excepcional, invocando (incorrectamente) que foi proferido novo acórdão pelo Tribunal da Relação, que teria alterado a decisão anterior.

II- A parte final do n.º 6 do artigo 617.º do Código de Processo Civil estabelece um regime excepcional de recorribilidade que tem como pressuposto necessário a modificação da decisão, concedendo a Lei à parte prejudicada pela alteração a possibilidade de recorrer da decisão final que conhece do objecto do processo.


III- Tendo os vícios invocados junto do Tribunal da Relação sido julgados totalmente improcedentes, foi mantida, assim, na íntegra, a decisão que havia sido proferida, pelo que a mesma é irrecorrível.


IV – O fundamento recursivo previsto no artigo 629.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil [Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça], deve ser invocado em sede de interposição de recurso do acórdão que aprecia a decisão final de mérito, sendo que a sua invocação em momento temporalmente posterior é manifestamente intempestiva.


V - Havendo dupla conforme entre duas decisões ( parte cível), e desde que verificados os demais requisitos legais de admissibilidade do recurso de revista, o recurso de revista excepcional poderá ser interposto se estiver em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; estiverem em causa interesses de particular relevância social; ou o acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.


VI – Tendo sido a decisão final nos autos proferida pelo Tribunal da Relação por acórdão que fora já objecto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo este emitido já pronúncia acerca da (ir)recorribilidade dessa decisão, por acórdão transitado em julgado, nessa medida não podem agora os recorrentes, aproveitando o ensejo de ter sido proferida decisão em sede de incidente de arguição de nulidades, vir reiterar os fundamentos de recurso anteriormente invocados, desta feita por via da revista excepcional, o que deveriam ter feito por ocasião do primeiro recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação.


VII - Não o tendo feito, ficou precludida essa possibilidade, não renascendo um novo prazo recursivo pela circunstância de ter sido proferido acórdão, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, a conhecer as nulidades invocadas.

Decisão Texto Integral:




Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. Por sentença de 21 de fevereiro de 2020, proferida pelo Juízo Local Criminal... (J.), decidiu-se, além do mais:

a. Absolver o arguido AA da prática de três crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1 e nº 2, em conjugação com o disposto nos artigos 10º, nº 1, 2 e 3, 15º, alínea a) e 77º, todos do Código Penal, por que vinha acusado.

b. Absolver o arguido BB de três crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1 e nº 2, em conjugação com o disposto nos artigos 10º, nº 1, 2 e 3, 15º, alínea b) e 77º, todos do Código Penal, em conjugação com o disposto no Código Desportivo Internacional (CDI) e com a regulamentação complementar estabelecida pela FPAK, por que vinha acusado.

c. Condenar o arguido CC, pela prática de três crimes de homicídio negligente, p. e p. pelos artigos 137º, nº 1 e nº 2, em conjugação com o disposto nos artigos 10º, nº 1, 2 e 3, 15º, alínea b), do Código Penal, na pena de 12 (doze) meses de prisão, por cada um dos citados crimes e, em cúmulo jurídico, na pena única de 26 (vinte e seis) meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período.

d. Condenar o arguido DD, pela prática de três crimes de homicídio negligente, p. e p. pelos artigos 137o, n° 1 e n° 2, em conjugação com o disposto nos artigos 10o, n° 1, 2 e 3, 15o, alínea b), do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, por cada um dos citados crimes e, em cúmulo jurídico, na pena única de 22 (vinte e dois) meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período.

e. Condenar o arguido EE, pela prática de três crimes de homicídio negligente, p. e p. pelos artigos 137o, n° 1 e n° 2, em conjugação com o disposto nos artigos 10o, n° 1, 2 e 3, 15o, alínea b), do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, por cada um dos citados crimes e, em cúmulo jurídico, na pena única de 22 (vinte e dois) meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período.

f. Condenar o arguido FF, pela prática de três crimes de homicídio negligente, p. e p. pelos artigos 137o, n° 1 e n° 2, em conjugação com o disposto nos artigos 10o, n° 1, 2 e 3, 15o, alínea b), do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, por cada um dos citados crimes e, em cúmulo jurídico, na pena única de 22 (vinte e dois) meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período.”

E, no que à parte cível respeitou:1


Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes GG, HH e II:

«i) Absolver a demandante Seguradoras Unidas, S.A., do pedido de indemnização formulado pelos demandantes HH e II.

j) Condenar a demandada Seguradoras Unidas, S.A. no pagamento ao demandante GG da quantia de € 38.500,00 (trinta e oito mil e quinhentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais (próprios), acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da presente sentença, até integral e efectivo pagamento.

k) Condenar a demandada Seguradoras Unidas, S.A. no pagamento ao demandante GG, da quantia de € 126.000,00 (cento e vinte e seis mil euros), a título de dano pela perda da vida de JJ e KK, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da presente sentença, até integral e efectivo pagamento.»

2. Interposto recurso da referida sentença, o Tribunal da Relação de Guimarães proferiu acórdão a 07-06-2021, decidindo:

«Pelo exposto, os juízes acordam em:

Negar provimento a todos os recursos interpostos, sendo ainda de rejeitar o pedido de alteração da medida de pena por parte do assistente e partes civis, em virtude de os mesmos não terem legitimidade para o efeito;

Revoga-se a decisão recorrida na parte da condenação dos arguidos e, em consequência, condena-se cada arguido como autor de um só crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 137º, nº 1 e nº 2, em conjugação com o disposto nos artigos 10º, nº 1, 2 e 3, 15º, alínea b), do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período.»

3. De novo inconformados, o Assistente/Demandante GG e os Demandantes HH e II, bem como a Demandada Generali Seguros, S.A., interpuseram recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, restrito à parte cível, tendo sido proferido acórdão, a 27 de outubro de 2022, após reclamação para a conferência de Decisão Sumária do relator, em que se decidiu:

“─ Rejeitar, por manifesta improcedência nos termos do art.º 420º n.º 1 al.ª a) do CPP, não tomando conhecimento do respectivo objecto, o recurso interposto pelo assistente/demandante GG e pelos demandantes HH e mulher II do segmento cível do Acórdão Recorrido na vertente da matéria de facto.

─ Indeferir a reclamação da Decisão Sumária, confirmando os termos respectivos e, em consequência:

─ Rejeitar os recursos independentes interpostos para este Supremo Tribunal de Justiça pelo assistente/demandante GG e pelos demandantes HH e mulher II do segmento cível do Acórdão Recorrido, por irrecorribilidade, nos termos das disposições conjugadas dos art.os 400º n.º 2, 417º n.º 6 al.ª b), 420º n.º 1 al.ª b) e 4º, todos do CPP, e 671º n.os 1 e 3 do CPC.

─ Rejeitar o recurso subordinado interposto para o mesmo Tribunal e do mesmo segmento pela demandada "Generali Seguros, SA ", nos termos das disposições conjugadas dos art.os 417º n.º 6 al.ª b), 414º n.os 1 e 3, 420º n.º 1 al.ª b) e 404º n.º 3, todos do CPP.

─ Convolar, ao abrigo dos art.os 193º n.os 1 e 3 do CPC e 4º do CPP, os expedientes recursórios do GG, HH e II em requerimentos de arguição de nulidades do Acórdão Recorrido, ordenando a remessa dos autos, para a devida apreciação, ao Tribunal da Relação de Guimarães, nos termos do art.º 615º n.º 4 do CPC.

─ Condenar, ao abrigo do art.º 420º n.º 3 do CPP, os recorrentes GG, HH e II na soma de 4 UC's, cada um.»

4. Em face do decidido no STJ, os autos foram devolvidos ao Tribunal da Relação de Guimarães que, nessa sequência, e em aclaração sucessiva, proferiu dois acórdãos, a 09-01-2023 e a 10-07-2023, no âmbito dos quais, respectivamente, se julgaram improcedentes os pedido de aclaração e as nulidades suscitadas.

5. Nesta sequência, vieram os Demandantes GG, HH e II apresentar o actual e novo recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça e, subsidiariamente, recurso de revista excepcional, apresentando as seguintes conclusões (aliás prolixas):

«A) Por Acórdão do Tribunal da Relação datado de 10.07.2023, foram finalmente conhecidas as nulidades invocadas pelo assistente e pelos demandantes, após a convolação pelo Supremo Tribunal de Justiça do recurso de revista por estes interposto em requerimento de arguição de nulidades.

B) Atendendo que foi proferido novo Acórdão pelo Tribunal da Relação que alterou a decisão anterior, atento o disposto no artigo 616º nº6 2ª parte do C.P.C., (aplicável por força do 666º do CPC e artigo 3º do CPP) a decisão tornou-se novamente recorrível.

C) O assistente e demandantes cíveis interpõem também o presente Recurso de Revista ao abrigo do disposto no artigo 629º nº2 alínea c) do C.P.C. na medida em que o Acórdão recorrido desrespeita Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do Supremo Tribunal de Justiça, mais concretamente o Assento.º 8/99, in DR n.º 185/1999, Série I-A, de 10 de Agosto, estabeleceu que: "O assistente não tem legitimidade para recorrer desacompanhado do MP relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir".

Subsidiariamente:

D)Na eventualidade do recurso de revista normal improceder, subsidiariamente é interposto recurso de revista excecional, indicando-se as razões adicionais previstas no artigo 672º nº1 do C.P.C.;

Quanto aos Pressupostos Da Revista Excecional:

E) Em causa estão questões de particular relevância jurídica atenta a aplicação e discussão do regime jurídico das provas desportivas de automobilismo (Rali), atividade considerada pela Doutrina e Jurisprudência como uma atividade perigosa.

F) Quer o Tribunal de Primeira Instância, quer, posteriormente, o Tribunal da Relação de Guimarães, entenderam que as provas de automobilismo são reguladas pelo Código Desportivo Internacional (CDI), e respetivos anexos, assim como pela regulamentação complementar estabelecida pela FPAK, em vigor em 2014, constituída pelas Prescrições Específicas de Ralis 2014 (PER), e respetivos anexos, pelo Regulamento Técnico de Ralis 2014 (campeonato de ralis Norte, Centro, Sul, Açores e Madeira), pelas prescrições estabelecidas no Regulamento Particular da Prova, aprovado a 14.07.2014, com o VISA FPAK n.º .........14, da FPAK, em conformidade como Código Desportivo Internacional (CDI) e mais regulamentação complementar.

G) Em causa estão vários tipos de responsabilidade que podem ser aplicáveis à atividade desportiva em causa: (1) responsabilidade dos praticantes de atividades desportivas face a outros praticantes; (2) responsabilidade dos praticantes desportivos face a espectadores; (3) responsabilidade dos organizadores de eventos desportivos. (4) responsabilidade da companhia de seguros, sendo o contrato de seguro obrigatório.

H) E a apreciação do pedido indemnização civil no âmbito do processo crime, não pode resultar a aplicação de um regime diferente e mais desfavorável ao lesado que resultaria no âmbito de julgamento de uma ação puramente civil – como aconteceu no presente caso concreto.

I) Nem pode ter um pressuposto de responsabilidade extracontratual mas sim contratual em relação á Companhia de Seguros até pelo teor da apólice que não admite exceções ou limitações.

J) Com o devido respeito, no que concerne à obrigação de indemnizar, o regime jurídico a aplicar deve ser o mesmo dentro e fora do processo penal sob pena de violação do princípio da igualdade dos lesados no cômputo de indemnização.

K) Exigindo-se a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para uma melhor harmonização dos vários institutos jurídicos em causa estando em causa regimes jurídicos complexos.

L) A questão também é de elevado relevo social justificando a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, na medida em que em causa está a interpretação dum regime jurídico aplicável a uma prova desportiva donde decorre a segurança dos cidadãos que assistem às provas e a responsabilidade civil e criminal dos seus organizadores, sendo que no caso em concreto que se discute nos presentes autos resultou a morte de dois cidadãos que se encontravam a assistir à prova.

M)Devendo assim, ser admitido o presente recurso de revista excecional atento o disposto no artigo 672º nº1 alíneas a) e b) do C.P.C. quer quanto ao seguimento penal quer quanto ao segmento civil.

MOTIVAÇÃO:

N) O assistente e partescivis norecurso de apelaçãoque interpuseramda Douta Sentença de Primeira Instância, além do mais, impugnaram a decisão sobre a matéria de facto que incidiu sobre os pontos 88., 104. e 107. do elenco dos factos dados como provados (conclusões A a HH da Apelação) bem como a medida da pena (Conclusões LLL a SSS).

O) O Acórdão do Tribunal da Relação julgou de imediato improcedente a pretensão dos recorrentes com fundamente na falta de interesse em agir, na medida em que o Ministério Publico não interpôs recurso da sentença, no que respeita à medida da pena aplicada aos arguidos.

P) O assistente no presente caso concreto tinha legitimidade para recorrer da Decisão Penal na medida em que resulta inequivocamente da própria decisão um interesse em agir.

Q) Para o assistente poder recorrer, atento o artigo 401º, 1, alínea b) do CPP exige-se: (1) que a decisão seja relativa a um crime pelo qual se constituiu assistente (legitimidade); (2) e que seja contra ele proferida, daqui resultando em abstrato o interesse em agir.

R) No que respeita ao ónus processual que lhe incumbia de demonstrar um concreto e próprio interesse em agir, salvo o devido respeito, este resulta da própria decisão em si, pois, em abstrato, estando em causa a morte da mulher e do filho, obviamente que o assistente tem um interesse próprio e concreto na resposta punitiva do Estado.

S) A Decisão final do Tribunal é contrária à pretensão manifestada pelo assistente no processo e ofende o seu concreto interesse na justeza da punição, resultando aqui a sua legitimidade para recorrer de recorrer de forma autónoma.

T) O interesseem agirdoassistente é manifesto, atentaa decisãoda matéria de facto (que lhe imputa certa responsabilidade) e da pena aplicada.

U) Atenta a Doutrina e jurisprudência fixada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº9/88, entendemos que o assistente tem legitimidade para recorrer da vertente penal do Acórdão e da Sentença na medida em os seus interesses foram gravemente afetados, exigindo uma resposta punitiva justa por parte do Estado.

V) Violou o Douto Acórdão a Doutrina de Acórdão que fixa jurisprudência, mais concretamente Assento.º 8/99, in DR n.º 185/1999, Série I-A, de 10 de Agosto, estabeleceuque: "O assistente não tem legitimidade para recorrer desacompanhado do MP relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir".

W) Em consequência deverão ser apreciados os fundamentos dos recursos de apelação invocados pelo assistente relativamente à medida da pena e impugnação da decisão da matéria de facto dada como provada.

X) O Tribunal da Relação na nova decisão proferida quanto à impugnação da matéria de facto, não formou uma convicção autónoma em relação á matéria de facto impugnada e volta a não pronunciar-se sobre todas as questões colocadas, mais concretamente não ponderou os argumentos dos recorrentes, apoiando-se exclusivamente na decisão da matéria de facto constante da Sentença da Primeira Instância.

Y) O Tribunal a quo podia e devia fundamentar, apresentando as razões concretas pelas quais improcedeu a impugnação da decisão sobre determinados pontos da matéria de facto e consequentemente manteve a decisão recorrida.

Z) A valoração da prova por parte do Tribunal da Relação é, assim, inexistente.

AA) Por conseguinte é NULA a decisão do Tribunal a quo acerca da impugnação da decisão sobre a matéria de facto por falta de fundamentação - art.º 379 nº 1 a) 1ª parte e art.º 374 nº 2 CPP e art.º 615 nº 1 c) CPC.

BB) O Tribunal da Relação também não se pronunciou sobre questões invocadas no recurso de Apelação, não cumprindo o ordenado no Acórdão do STJ, mais concretamente:

CC) A questão de saber se os demandantes HH e HH e mulher (pais e avós das vítimas) têm direito a serem indemnizados pela morte da filha e neto: aqui o Douto Acórdão volta a não apreciar os fundamentos invocados pelos recorrentes da não aplicação do artigo 496º nº2 do C.C., na medida em que os herdeiros das vítimas JJ são seu marido e seu Pais, dado que o filho faleceu no mesmo dia em hora indeterminada. (Cfr. certidão de habilitação de herdeiros): não está determinado se o filho morreu antes ou após sua mãe.

DD) A questão da aplicação da PRESUNÇÃO DE CULPA (nº2 do artigo 493º do C.P.C.) uma vez que em causa está uma atividade perigosa – prova desportiva de alta velocidade.

EE) Uma “prova desportiva de velocidade (um "rally") é mais do que um acidente de viação (que não deixa de ser) é um acidente desportivo”, (…) precisamente porque se trata de um "acidente desportivo" na obrigação de indemnizar são responsáveis civilmente por eventuais danos os organizadores de tais provas desportivas, e, por ser considerada uma atividade perigosa, aplica-se o disposto no número 2 do artigo 493º do CC.

FF) No presente caso concreto a presunção de culpa estabelecida prevista no nº2 do artigo 493º do C.P.C. não foi ilidida.

GG) Para que tal ocorresse era necessário mostrar que os organizadores empregaram todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos causados - o que não ocorreu.

HH) Está provado nos autos que os organizadores não empregaram todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos causados, veja-se a matéria de facto da como provada em 45º, 46º, 80º e 81º do elenco dos factos dados com provados.

II) Se a presunção de culpa não foi ilidida dado que não foi demonstrado que os arguidos empregaram todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos causado deverá haver lugar à fixação da indemnização no seu todo e nunca ao concurso de culpas.

JJ) Atento ospressupostosda responsabilidade civil dos organizadoresdesta prova desportiva, mesmo que um espectador estivesse no lugar errado sempre a companhia de seguros estava obrigada a indemnizar.

KK) Igualmente a questão da análise do conceito de seguro desportivo obrigatório que não pode conter cláusulas que provoquem um esvaziamento do próprio contrato desportivo: o artigo 6º do Decreto-Lei nº 10/2009, de 12/01, com as alterações introduzidas pela Lei nº 27/2011, de 16/06.

LL) A responsabilidade civil dos organizadores das provas de rali é, ilimitada e objetiva.

MM) Aliás, o contrato de seguro desportivo obrigatório “só pode desempenhar cabalmente a função social para que foram criados se ao lesado forem inoponíveis quaisquer exceções resultantes do contrato.”

NN) Os recorrentes discordam dos montantes atribuídos ao assistente na Decisão de 1ª Instância e alegaram nas suas conclusões que: que o valor “VIDA” não deve ser distinto entre a mãe e o filho; esse direito tem (deve ter) um valor igual, até porque razão alguma possibilita que sejam valorados de forma diferente. Uma vida não vale mais que a outra; e esse valor é de € 100.000,00 (cem mil euros) para cada vítima, ou seja, no caso em apreço duzentos mil euros (mãe e filho).

OO) E que, atenta a matéria dada como provada em 146, 147 e 148, dor sofrida pela morte da mulher e filho – nos olhos do Assistente - deve ser estimada em € 200.000,00 (duzentos mil euros), 100.000,00 (cem mil euros) pela dor da morte da esposa e 100.000,00 (cem mil euros) pela dor da morte do filho.

PP) Também aqui volta a ocorrer ocorre ausência total de pronuncia.

QQ) A factualidade dada como provados na vertente penal não obsta a que seja apreciado o pedido de indemnização cível á luz das regras da responsabilidade civil dos organizadores das atividades desportivas consideradas como perigosas.

RR) O plano de concurso de culpas poderá eventualmente aplicar-se no âmbito da responsabilidade civil do participante da prova com os espectadores e nunca à responsabilidade civil dos organizadores.

SS) Ao não apreciar as questões colocadas no recurso do assistente e partes civis o Tribunal da Relação não se pronuncia sobre questões fundamentais invocadas no recurso.

TT) Ocorreu assim uma OMISSÃO DE PRONUNCIA GERADORA DE NULIDADE DO DOUTO ACÓRDÃO. art.º 379 1 a) parte e art.º 374 2 do CPP e, ainda art.º 615 1 b) CPC.

UU) O Douto Acórdão recorrido continua a padecer ainda de contradição entre fundamentação e a decisão.

VV) No acórdão defende que o assistente colocou em causa a sua vida e a dos seus familiares, mas esquece (DE TODO) a restante matéria dada como provada (45., 46., 64., 68., 79., 81, 82., 83., 84. e 89) e ainda que o espaço percorrido era o aconselhado pela GNR e também era o único.

WW) A matéria dada como provada no ponto 107. e a sua fundamentação parece-nos que desvirtuam o sentido dos factos provados e das regras da experiência comum, é mera convicção do julgador sem invocar qualquer razão de ciência ou de facto - o que, desde logo, constitui nulidade nos termos do art.º 374º- 2 do C.P.P.

X) E está também em contradição com o facto 78. dado como prova, pois o demandante e seus familiares não se colocaram junto á berma, mas caminhavam pela mesma. – Cfr. matéria provada em 78. “78) Mercê do referido embate do veículo automóvel de matrícula ..-..-SM com os espectadores que se encontravam na berma esquerda resultaram: a) três vítimas mortais: (…) - As duas últimas vítimas caminhavam pela berma do lado esquerdo, juntamente com GG, marido e pai das mesmas, respetivamente, que seguia na frente, provindo todos da zona da linha de controlo STOP”;

YY) O único acesso do público para ver o Rali eram as bermas que vão desde o STOP até á linha de contagem do tempo - depoimento de LL. identificado na pág. 47 da sentença e prestado no dia 29.01.2020 – 1º Instância- este depoimento foi registado no sistema de gravação digital, disponível na aplicação informática rm uso no Tribunal, ficheiro.................................... .....01 ao minuto 00.43.27.

ZZ) Para um qualquer cidadão colocado no lugar das vítimas e do assistente, se um espaço não está interdito ao público, não tem qualquer sinal de perigo, nem sinais de proteção, acrescido do facto de o soldado da GNR, por esse espaço aconselhar a passar, nunca terá noção de risco ou perigo.

AAA) A sentença e o acórdão não nos dizem nem o sabemos que norma infringiam essas mesmas pessoas –oque seria necessário para definirmos que também tiveram culpa na produção do acidente.

BBB) Ainda, a prova produzida encaminha-nos para a legitima convicção de que o único acesso aos morros apenas se podia fazer percorrendo espaço que o Assistente, seus familiares e demais pessoas faziam e só quando atingissem a denominada célula de tomada de tempo podiam aceder aos referidos morros. – vide depoimentos de MM citados no Douto Acórdão na pág. 108, NN, pág. 111 e OO, pág. 106

CCC) Parece-nos, que o Tribunal estava obrigado a tal definir para concluirmos que norma ou princípio foi violado e para podermos aceitar a concorrência de culpas.

DDD) Ocorre assim ovício de contradição insanável da fundamentação-art.º 410 nº 2 c) CPP.

EEE) A apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil dos organizadores da prova desportiva não pode ficar refém da factualidade dada como provada na vertente penal uma vez que obedece a pressupostos diferentes.

FFF) A apreciação do pedido indemnização civil no âmbito do processo crime, não pode resultar a aplicação de um regime diferente e mais desfavorável ao lesado que resultaria no âmbito da ação civil, como acontece no presente caso concreto.

GGG) Salvo o devido respeito tal não poderá acontecer sob pena de existir uma grave violação dos princípios subjacentes á obrigação de indemnizar os danos resultante de uma atividade perigosa como é o caso de uma competição desportiva de automobilismo de alta velocidade (rali) e dos pressupostos da obrigação de indemnizar os organizadores das provas desportivas e do princípio da igualdade das partes cíveis.

HHH) A responsabilidade civil dos organizadores é ilimitada e objetiva e não pode ser confundia com a responsabilidade civil dos participantes da prova, ambas as responsabilidades têm pressupostos diferentes.

III) Estabelece o artº 7º do C.P.P a suficiência do mesmo “e nele se resolvem todas as questões que interessam á decisão da causa”

JJJ) Ora, o pedido cível tem como fundamento, entre outros, a celebração de contrato de seguro, com alguém que nem sequer é autor do crime praticado

KKK) Compete ao tribunal analisar o pedido indemnização cível com base neste contrato e no qual não cabem quaisquer atenuantes ou diminuição da culpa, pois o próprio contrato tal não o admite.

LLL) EM CONCLUSÃO: atenta a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil dos organizadores deve o Tribunal condenar a Companhia na indemnização, no seu todo, sem qualquer redução por eventual concurso de culpas – que de resto não existe.

MMM)As vítimas deste evento tão infortúnio não podem continuar sem perceber as reais razões pelas quais as suas pretensões não foram atendidas frustrando-se, assim, a legítima expectativa que os mesmos detinham de tutela jurídica., bem como a exigência de um processo equitativo que a lei faz depender no art.º 20.º, n.º 4, da CRP

NNN) A interpretação que o Tribunal da Relação faz das normas que estipulam um duplo grau de jurisdição previstas nos artigos 428º a 431º do C.P.P. violam de forma clara preceitos constitucionais, inconstitucionalidade que expressamente seinvocae que se traduz em: violação ao princípio da igualdade (13º CRP) e violação do acesso ao Direito e aos Tribunais (art.º 20 nº 1 CRP).»

6. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Guimarães contra-alegou, invocando que:

«porque a decisão proferida por Tribunal da Relação que apreciou as invocadas nulidades (referencia CITIUS 8592953) e que constituem o objeto do recurso em nada alterou o anterior decidido, no que toca à parte criminal do acórdão, e sendo certo que na motivação de recurso não são abordadas questões de especial relevância jurídica nem estão em causa interesses de particular relevância social, entendemos que deve o recurso ser rejeitado no que toca a apreciação da meteria criminal».

7. A Demandada Generali Seguros, S.A. apresentou, também, contra-alegações, tendo concluído nos seguintes termos:

«A - Da análise atenta e rigorosa dos recursos ora contraditados, resulta evidente que, pretendem os Demandantes, aqui Recorrentes, ver analisadas as seguintes questões:

a. A possibilidade de recurso relativamente à matéria de facto e de direito já julgada pelo Tribunal da Relação de Guimarães (Acórdão datado de 08.06.2021) sustentada no facto de ter sido proferido em 10.07.2023 pelo mesmo tribunal o Acórdão objecto do presente recurso ( atento o disposto da 2ª parte, do nº 6, do art. 617º do CPC.)

b. A alegada violação perpetuada pelo Acórdão recorrido ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça ( Assento 8/99 in DR nº 185/1999. Série I-A de 10 de Agosto), por deste decorrer que “ O assistente não tem legitimidade para recorrer desacompanhado do MP relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir” ( através de Recurso de Revista, nos termos da alínea c), do nº 2 do art. 629 do CPC).

c. A improcedência das nulidades arguidas pelos Recorrentes, em sede de recurso da decisão de primeira instância pelo Acórdão recorrido.

d. A contradição insanável da fundamentação arguida, novamente, pelos recorrentes.

e. A reapreciação dos factos dados como provados para verificação dos pressupostos da responsabilidade civil dos organizadores e da responsabilidade contratual.

f. A alegada inconstitucionalidade da interpretação que o tribunal recorrido faz das normas que permitem um duplo grau de jurisdição em matéria de facto.

B) Relativamente à primeira questão, refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 01.10.2019, proc. nº 620/14.6T8LSB.B.L1-A.S1, relatado por José Rainho e disponível em www.dgsi.pt que. “Quando uma nulidade da sentença da 1ª instância é apreciada e julgada improcedente em recurso de apelação perante a Relação tal equivale para todos os efeitos a uma reapreciação sucessiva da mesma questão, estando assim formada uma dupla conformidade decisória que sempre seria impeditiva do recurso de revista.”

C) O Acórdão objecto do presente recurso decidiu as nulidades arguidas pelos Recorrentes, julgando-as improcedentes, pelo que, e gerando dupla conforme, não é susceptível de recurso.

D) E, ao contrário do alegado pelos Recorrentes, o referido Acórdão não alterou a decisão anterior, concluindo que: “ Resulta de todo o exposto que improcede, tal como anteriormente, o pedido formulado pelos requerentes”

E) Devem assim, as presentes alegações de recurso, ser rejeitadas por se ter formado dupla conforme relativamente às nulidades arguidas.

F) Relativamente à segunda questão suscitada, alegam os Recorrentes que o Acórdão recorrido viola o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (Assento 8/99 in DR nº 185/1999, Série I-A de 10 de Agosto), na parte em que este considera que “ o Assistente não tem legitimidade para recorrer desacompanhado do MP relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.”

G) O Assistente sustenta o seu interesse em agir por estar em causa, na presente decisão, a morte da sua mulher e do seu filho e por isso ter interesse próprio e concreto na resposta punitiva do Estado – vide pág. 9 das alegações de recurso apresentadas.

H) No caso sub judice, os Recorrentes apresentam uma discordância na qualificação jurídico-penal dos factos e pretendem um agravamento da pena alcançado através da alteração da qualificação jurídica.

I) Tal motivação não pode ser considerada juridicamente como “interesse em agir” do Assistente, de acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 09.01.2023, supra explicitado.

J) Deve, por isso, a pretensão dos Recorrentes improceder, mantendo-se o decidido na decisão recorrida sobre a falta de legitimidade dos Assistentes para a interposição de recurso.

K) Relativamente à terceira questão e à “nulidade por omissão de pronúncia do Acórdão Recorrido” aplica o referido Acórdão a correcta aplicação do “ Princípio da Livre Apreciação da Prova “, tendo em consideração a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, que se encontra consagrado no art. 127º do Código de Processo Penal.

L) Analisando a sentença que põe fim ao litígio em sede de primeira instância, verifica-se que a mesma não padece da nulidade arguida.

M) Sendo certo que a questão inultrapassável para os aqui Recorrentes parece ser o facto do tribunal não ter valorizado a prova no sentido e com o alcance que estes pretendem.

N) No que concerne à não atribuição de indemnização a HH e II, importa sublinhar que da análise do disposto no n.º 2 do artigo 496.º do CC resulta claro que “(…) não se atribui qualquer direito de indemnização por via sucessória aos herdeiros da vítima como sucessores mortis causa pelos danos morais correspondentes à perda da vida”, pelo que “no caso da morte toda a indemnização por danos morais, sejam sofridos pela vítima, sejam sofridos pelos familiares, cabe não a herdeiros por via sucessória mas aos familiares escolhidos, por direito próprio.”

O) Por ser assim, como muito bem sintetiza a sentença recorrida, “os demandantes HH e II, não têm legitimidade substantiva para peticionar indemnização pelo dano da perda da vida por morte da sua filha e neto, nem para peticionar indemnização por danos não patrimoniais próprios pelo falecimento dos referidos familiares, uma vez que o assistente GG é cônjuge e pai dos falecidos.”

P) No que diz respeito ao montante da indemnização, os Demandantes não sustentam o seu pedido com base num único aresto de um Tribunal Superior, limitando-se a requerer, sem mais, a majoração daquela indemnização em 200.000,00 €.

Q) Ora, sem prejuízo de se entender, como atrás se sinalizou, que sobre a Demandada não impende qualquer obrigação de indemnizar os Demandantes, é por demais evidente a quantia fixada pelo Tribunal a quo, tendo em conta o decidido pelo STJ em casos análogos, se revela proporcional, justa e adequada.

R) No que concerne à quarta questão, e à contradição insanável da fundamentação arguida, novamente, pelos Recorrentes a questão suscitada (factos provados n.ºs 88 e 104), reconduz-se, na verdade, à questão fundamental de saber sobre quem impendia a responsabilidade de garantir a segurança, em particular do público, no rali em apreço, entendendo os Recorrentes que essa obrigação cabia ao MCG e que esta entidade terá incumprido esse seu (alegado) dever de garante, encentrando-se relacionada com a quista questão relativa à reapreciação dos factos dados como provados para verificação dos pressupostos da responsabilidade civil dos organizadores e da responsabilidade contratual.

S) Verifica-se, efectivamente, a contradição apontada entre os factos provados n.os 88 e 45, 46 e 81 e, bem assim, entre os factos provados n.ºs 104 e 45, 46, 79, 80 e 81, razão pela qual a Demandante, no seu recurso, e em coerência, requereu, para além do mais, o seguinte:

- Que os factos provados n.os 45, 46, 79, 80, 81, 82, 83 e 84 passassem a constar, isso sim, do elenco de factos não provados, o inverso sucedendo em relação à alínea r) dos factos não provados.

- Que fosse eliminada a alínea p) dos factos não provados, atenta sua flagrante contradição com o disposto no facto provado n.º 104.

T) Assim, à luz da prova produzida e, bem assim, das regras da lógica e da experiência comum, a contradição assinalada entre aqueles factos provados deverá ter como consequência, não a alteração da matéria de facto nos termos requeridos pelos Demandantes, mas sim a sua mudança de acordo com o peticionado pela Demandada.

U) Uma última palavra para sublinhar que, ao contrário do que é falsamente referido no recurso dos Demandantes, a Demandada, no artigo 46.º da Contestação, alegou expressamente, na senda do disposto no documento n.º 4 junto com aquele articulado, que “(…) o Rali apenas se poderia realizar, entre outros condicionalismos, após parecer positivo das autoridades policiais competentes, quanto ao percurso da prova, seu plano de segurança e respectiva implementação no local”

V) No que diz respeito à segunda questão suscitada no recurso ora contraditado (facto provado n.º 107), impor sublinhar que, como a Demandada fez notar no seu recurso, quer em sede de impugnação da decisão de facto quer a propósito da impugnação da decisão de direito, impendendo, em exclusivo, sobre as autoridades policiais (GNR, PSP e Polícia Municipal) a obrigação de garantir a segurança, em especial do público, no rali em apreço, nenhuma obrigação indemnizatória lhe deverá ser exigida em resultado do acidente sub judice, o que deverá conduzir, como ali requerido, à revogação da sentença recorrida e à sua absolvição integral do pedido de indemnização civil formulado.

W) Caso assim não se entenda, o que não se concebe e que apenas se considera por cautela e dever de patrocínio, sempre cumprirá sinalizar que, atenta a prova produzida, se verifica, in casu, um situação de concorrência de culpas entre o lesado e a(s) entidade(s) a quem competia cumprir e salvaguardar o supra mencionado dever de garante.

X) De facto, e no que diz respeito à consciência das vítimas em relação aos riscos e aos perigos do seu comportamento, impõe-se ressalvar que, no que concerne à vítima menor, atenta disciplina jurídica consagrada no artigo 491.º do CC, era sobre os respectivos progenitores, entre eles o Demandante GG, que impendia o dever de vigilância, nenhuma responsabilidade podendo ser imputada ao MCG e, nessa medida, à Demandada.

Y) Por outro lado, importa sinalizar que o Recorrente GG não poderá considerar-se como um simples espectador do rali em apreço, porquanto, como o próprio confirmou em Julgamento, previamente ao acidente sub judice já tinha participado em “meia dúzia” de ralis tendo, inclusive, “licença desportiva nacional”, quer dizer, dispunha de conhecimentos e de um grau de experiência sobre os riscos e perigos do seu comportamento bastante superior à do “homem médio”

Z) Acresce que, ao contrário do que sugerem os Recorrentes, a sentença não tinha de identificar as normas infringidas por estes, porquanto “[a] expressão “culpa” do lesado inserida no artigo 570.º, do Código Civil, assume um sentido impróprio, querendo abarcar as situações em que o acto do lesado tenha sido concausa do dano (segundo os princípios da causalidade adequada), mas que traduza um comportamento censurável, ainda que não tenha natureza ilícita ou corresponda à violação de um dever”– Cfr. Acórdão do STJ de 2018.05.22, processo n.º1646/11.7TBTNV.E1.S1, Relatora: Graça Amaral, disponível em www.dgsi.pt.

AA) Noutra ordem de considerações, importa ressalvar que do elenco de factos provados não consta um único facto do qual resulte que as vítimas se colocaram “(…) junto à berma da estrada” no decurso do rali em apreço, porque foram aconselhados a fazê-lo pela GNR, nem tão-pouco é requerido pelos Recorrentes o aditamento de tal factualidade ao elenco de factos provados, razão pela qual, logo por esta via, a sua argumentação não deverá merecer acolhimento.

BB) Mas, mesmo que assim não fosse, do referido “aconselhamento” prestado pela GNR jamais poderia resultar a responsabilidade do MCG e, nessa medida, da Demandada.

CC) Pelo contrário, esse “aconselhamento” é sintomático daquilo que a Recorrente alegou no seu recurso: o dever de garantir a segurança do público, desde logo através do policiamento, cabia às forças de segurança para o efeito mobilizadas (GNR, PSP e Polícia Municipal).

DD) Finalmente, cumpre sinalizar que, ao contrário do que é alegado pelos Recorrentes, é falso que o local onde circulavam as vítimas “era o único local pelo qual os espectadores poderiam circular para ver a prova”, isso mesmo se percebendo não apenas do disposto nos factos provados n.ºs 56, 59 e 60, mas também, e sobretudo, do depoimento do Recorrente “GG”

EE) Pelo exposto, deve, confirmar-se, em consequência, a sentença recorrida no que se refere ao facto provado n.º 107.

FF) Relativamente à sexta e última questão, respeitante à inconstitucionalidade da interpretação que o tribunal recorrido faz das normas que permitem um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, a Demandada reproduz aqui para os devidos e legais efeitos os artigos 1º a 7º da presente resposta, justificando, assim, o seu entendimento que a interpretação que o Acórdão recorrido faz das referidas normas ( art. 428º, 430º e 431º do CPP), não é inconstitucional.»

8. O recurso foi admitido, por despacho proferido em 19 de Setembro de 2023 [referência 8977076].

9. Os Arguidos, notificados da interposição de recurso, pronunciaram-se no sentido de que o mesmo é legalmente inadmissível [referência 234435].

10. Por sua vez o MP, entendendo ser apenas recurso em matéria cível, não emitiu parecer.

11. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.


II. Da admissibilidade do recurso

12. Como já vimos, no âmbito dos presentes autos, foram deduzidos pedidos indemnizatórios pelo Assistente/Demandante GG e pelos Demandantes HH e II, ora recorrentes, tendo a sentença proferida pelo Juízo Local Criminal..., decidido, quanto a essa parte, absolver a demandante Seguradoras Unidas, S.A. (actualmente, Generali Seguros, S.A) do pedido de indemnização formulado pelos Demandantes HH e II e condená-la no pagamento ao Demandante GG da quantia de € 38.500,00 (trinta e oito mil e quinhentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais (próprios), e no montante de € 126.000,0 (cento e vinte e seis mil euros), a título de dano pela perda da vida de JJ e KK, valores esses acrescidos de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da presente sentença, até integral e efectivo pagamento.

13. Os Recorrentes e a Demandada Generali Seguros, S.A, recorreram dessa decisão, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão datado de 7 de junho de 2021, negado provimento aos recursos apresentados.


Dessa decisão, os Recorrentes interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, restrito à parte cível, tendo, nessa sequência, a Demandada interposto recurso subordinado de revista excecional.


Nesse recurso apresentado, os Demandantes suscitaram, em suma, as seguintes questões:

a. Nulidade da decisão do Tribunal da Relação, relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, por falta de fundamentação [artigo 379.º, nº 1, al. a), 1ª parte e artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil];

b. Omissão de pronúncia, relativamente a várias das questões suscitadas:

i. ao recurso sobre a matéria de facto;

ii. comoriência e inaplicabilidade do artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil;

iii. existência de presunção de culpa dos lesantes (artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil);

iv. operatividade da norma do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 10/2009;

v. montantes indemnizatórios peticionados; e

vi. relatório pericial relativo ao veículo desportivo interveniente no sinistro.

c. Contradição insanável na fundamentação [artigo 410.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal];

d. Interpretação inconstitucional das normas do artigo 428.º e 431.º do Código de Processo Penal, por violação dos princípios da igualdade – artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa – e do acesso ao direito e aos tribunais – artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa –, e violação do direito ao processo equitativo – artigo 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa,

Terminaram peticionando que, na procedência dos recursos, lhes fossem arbitradas as prestações indemnizatórias de € 100 000,00, pela perda do direito à vida de cada uma das vítimas, e de € 200 000,00, pelo dano não patrimonial do desgosto e sofrimento pela perda do cônjuge e filho – Assistente/Demandante – e de € 103 000,00 pelo dano não patrimonial do desgosto e sofrimento pela perda da filha e neto – Demandantes.


O referido recurso foi apreciado e decidido, tendo sido, primeiramente, proferida decisão sumária, a 03-03-2022, no sentido de rejeitar os recursos interpostos, a qual foi objecto de reclamação.


Então, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão, a 27-10-2022, no âmbito do qual rejeitou, por manifesta improcedência, nos termos do artigo 420.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, não tomando conhecimento do respectivo objecto, o recurso interposto pelo Assistente/Demandante GG e pelos Demandantes HH e II do segmento cível do Acórdão Recorrido, na vertente da matéria de facto.


Ademais, o referido acórdão indeferiu a reclamação da Decisão Sumária, confirmando os seus termos respectivos e, em consequência, rejeitou os recursos independentes interpostos para este Supremo Tribunal de Justiça pelo Assistente/Demandante GG e pelos Demandantes HH e II, por irrecorribilidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 400.º, n.º 2, 417.º, n.º 6, alínea b), 420.º, n.º 1, alínea b) e 4.º, todos do Código de Processo Penal, e artigo 671.º, n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil.


Em consequência, rejeitou o recurso subordinado interposto do mesmo segmento pela Demandada Generali Seguros, S.A., nos termos das disposições conjugadas dos artigos 417.º, n.º 6, alínea b), 414.º, n.os 1 e 3, 420.º, n.º 1, alínea b) e 404.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal.


Finalmente, o referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça determinou, ainda, a convolação, ao abrigo dos artigos 193.º, n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil e 4.º do Código de Processo Penal, dos expedientes recursórios de GG, HH e II, em requerimentos de arguição de nulidades do Acórdão Recorrido, ordenando a remessa dos autos, para a devida apreciação, ao Tribunal da Relação de Guimarães, nos termos do artigo 615.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.


Na sequência da referida decisão de convolação, o Tribunal da Relação de Guimarães proferiu dois acórdãos de aclaração sucessivos, a 09-01-2023 e 10-07-2023, em que decidiu, de todo o modo, pela improcedência dos pedidos de nulidade formulados.


Vejamos então.

14. O n.º 3 do artigo 400.º do Código de Processo Penal estabelece autonomia das regras respeitantes à admissibilidade dos recursos civis face às dos penais, pelo que aqueles poderão ser admitidos, independentemente da irrecorribilidade em termos criminais.


Como tal, e não dispondo expressamente o Código de Processo Penal os termos relativamente aos quais os recursos cíveis são admissíveis, necessariamente se terá de recorrer às regras constantes do Código de Processo Civil, em conformidade com o disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal.


Os Demandantes interpõem agora recurso de revista, para este Supremo Tribunal de Justiça, argumentando a sua admissibilidade, desde logo, com base na circunstância de ter sido proferido novo acórdão pelo Tribunal da Relação, que alegam ter alterado a decisão anterior (o que não é de todo verdadeiro, como adiante se verá), sustentando-se no disposto no artigo 617º, n.º 6, 2.ª parte do Código de Processo Civil, alegando, assim, que a decisão se tornou, novamente, recorrível.


Vejamos.


Dispõe o artigo 613.º do Código de Processo Civil, no seu n.º 1, que:

«[proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa», sendo certo que é «lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes» (cfr. n.º 2).

Ora, o artigo 615.º do Código de Processo Civil (causas de nulidade de sentença) estabelece, no seu n.º 1, de modo taxativo, quais os fundamentos e situações que conduzem à nulidade da sentença2.


Conforme prevê o n.º 4 desse normativo, caso a decisão seja recorrível, o recurso poderá ter como fundamento qualquer uma das nulidades especificadas no n.º 1. Diferentemente, caso a decisão seja irrecorrível, as nulidades só poderão ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença.


Decorre, assim, do referido regime legal, que o diferente modo de arguição das nulidades da sentença dependerá da recorribilidade, ou não, da decisão que está em causa.


Do mesmo modo, o artigo 616.º do CPC (reforma de sentença) prevê que:

«1 - A parte pode requerer, no tribunal que proferiu a sentença, a sua reforma quanto a custas e multa, sem prejuízo do disposto no n.º 3.

2 - Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:

a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;

b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.

3 - Cabendo recurso da decisão que condene em custas ou multa, o requerimento previsto no n.º 1 é feito na alegação.»

Assim, e a par das nulidades da sentença, na eventualidade de a decisão ser irrecorrível, qualquer uma das partes poderá, ainda, peticionar perante o Tribunal que a proferiu, a reforma da sentença, por manifesto lapso do juiz.


In casu, os Demandantes recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, a 07-06-2021, tendo, nessa peça, invocado, para além do mais, a existência de nulidades.


Sucede que esse recurso foi rejeitado, pelo já mencionado acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça a 27-10-2022, pelo que as nulidades arguidas não foram apreciadas.


Porém, sem prejuízo da rejeição decidida, convolou-se a peça recursiva dos Demandantes em incidente de arguição de nulidades para que, deste modo, o Tribunal da Relação de Guimarães pudesse pronunciar-se sobre o seu teor, em conformidade, assim, com o disposto no artigo 615.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, o que aquele Tribunal fez.


Tal convolação, não obstante judicialmente determinada, convalidou formalmente, para todos os efeitos, uma arguição de nulidades, pelos recorrentes, apenas a decidir perante o Tribunal que proferiu a sentença.


O artigo 617.º do CPC regula, no seu n.º 6, precisamente o caso de serem invocadas nulidades ou requerida a reforma da sentença, perante o Tribunal que a proferiu, por não haver lugar à interposição de recurso ordinário.


Assim, «[arguida perante o juiz que proferiu a sentença alguma nulidade, nos termos da primeira parte do n.º 4 do artigo 615.º, ou deduzido pedido de reforma da sentença, por dela não caber recurso ordinário, o juiz profere decisão definitiva sobre a questão suscitada; porém, no caso a que se refere o n.º 2 do artigo anterior, a parte prejudicada com a alteração da decisão pode recorrer, mesmo que a causa esteja compreendida na alçada do tribunal, não suspendendo o recurso a exequibilidade da sentença».( sublinhado nosso)


Nesta medida, nos casos em que, por a sentença (já) não admitir recurso, como foi o caso, é apreciada pelo juiz alguma nulidade ou pedido de reforma da sentença, a decisão que vier a ser proferida por este é definitiva.


Assim, não só se verifica a irrecorribilidade da decisão final, que conduziu a que fosse o juiz que a proferiu a apreciar os vícios posteriormente invocados, como a decisão que se debruça sobre a verificação, ou não, da nulidade, ou do lapso conducente ao pedido de reforma da sentença, é, também ela, insusceptível de impugnação.


Como tal, «a arguição das nulidades perante o tribunal que proferiu a decisão bem como a dedução do incidente de reforma da decisão pressupõem, necessariamente a irrecorribilidade da decisão reclamada, estando absolutamente vedado à parte, numa primeira fase e mediante requerimento autónomo, arguir as nulidades previstas mencionadas nas alíneas b) a e) do nº 1 do citado art. 615º ou deduzir o pedido previsto no nº 2 do citado art. 616º e, após rejeição dessas nulidades ou do pedido de reforma, optar por interpor recurso da decisão que os indeferiu»3.


Todavia, na última parte do referido normativo, a Lei estabelece uma excepção à referida irrecorribilidade: quando a decisão sobre o objecto do litígio é alterada, a parte prejudicada com a alteração pode recorrer.


Deste modo, tendo sido suscitada a existência de uma nulidade ou de um lapso manifesto, em decisão irrecorrível, caso a mesma seja alterada pelo juiz que a proferiu, a Lei concede à parte prejudicada pela modificação a possibilidade de recorrer da decisão final que conhece do objecto do processo.


Assim, e «[embora o pedido de reforma e a decisão sobre ele proferida pressuponham a irrecorribilidade da decisão reformanda, esta, uma vez alterada, torna-se recorrível e o tribunal superior passa a poder apreciar o mérito da decisão final da causa (…). O mesmo quanto à decisão proferida após o deferimento de nulidade arguida na 1.ª instância em processo cujo valor em princípio não consentia o recurso ordinário. Este regime aplica-se, após a baixa do processo, quando a questão da reforma é levantada em recurso cujo objeto não possa ser apreciado»4.


O recurso recai, assim, sobre a decisão final que havia sido proferida, e não sobre a decisão relativamente às nulidades ou lapsos invocados, a qual se torna, para todos os efeitos, definitiva e se incorpora na decisão final.


Nesta senda, «[considerando o contexto temático em que se insere a norma, onde a sentença se assume como referência, e não tendo o legislador sido mais claro na identificação da decisão recorrida, há que concluir que a decisão objeto de recurso é a decisão final da causa. Esta solução encontra maior apoio na letra da lei, desde logo pelos termos da primeira parte do nº 6, onde se estabelece que a questão da reforma da sentença fica definitivamente decidida, de onde se extrai que o recurso já não tem esta questão por objeto - mas sim a decisão final da causa. Daqui também se conclui que o tribunal superior não pode reapreciar a admissibilidade da decisão de reforma. Se esta for inadmissível, não poderá, com esse fundamento, simplesmente recuperar a sentença reformada. Abstraindo-se destas vicissitudes processuais, deve apreciar o mérito da decisão final da causa.»5


Todavia, o presente regime excepcional de recorribilidade tem como pressuposto necessário a modificação da decisão.


Nesta medida, é pela alteração do sentido decisório que se justifica o regime especial de recorribilidade legalmente previsto na parte final do n.º 6 do artigo 617.º do Código de Processo Civil.


Contudo, descendo ao caso concreto, compulsados os acórdãos do Tribunal da Relação, que se debruçaram sobre os vícios invocados pelos Demandantes, verifica-se que estes foram julgados totalmente improcedentes, tendo sido mantida, assim, na íntegra a decisão que havia sido proferida.


Sem qualquer alteração decisória, não tem aplicabilidade a referida parte final do n.º 6 do artigo 617.º do Código de Processo Civil, ao contrário do que é alegado pelos Recorrentes.


Assim, a decisão final – a qual era, já, irrecorrível, circunstância que conduziu à convolação dos expedientes recursórios dos Demandantes em incidente de arguição de nulidades – mantém-se na íntegra nos seus segmentos decisórios e, em consequência, na sua insusceptibilidade de recurso. Ademais, conforme decorre da primeira parte deste normativo, a decisão que apreciou os vícios e nulidades invocados é, também ela, definitiva, não sendo, também, passível de impugnação6.


Consequentemente «[resulta claro do disposto nos nº 2 e 6, primeira parte, do artigo 617º, aplicável à 2ª instância por força do artigo 666º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, que nos casos em que não é admissível recurso, a decisão que indefere a arguição das nulidades e o pedido de reforma é uma decisão definitiva»7.


Inexistindo qualquer alteração decisória, não podem os Demandantes fazer uso da prerrogativa prevista no artigo 617.º, n.º 6, 2.ª parte, do Código de Processo Civil, pelo que o recurso interposto, com base no referido normativo, não é legalmente admissível.

15. A par deste normativo, os Demandantes invocam, ainda, como fundamento recursivo, o disposto no artigo 629.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil, por considerarem que o Acórdão recorrido desrespeita o Assento n.º 8/99, que estabelece que: «O assistente não tem legitimidade para recorrer desacompanhado do MP relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir».


Ora, o artigo 671.º do Código de Processo Civil define quais as decisões que comportam recurso de revista. Assim, e nos termos do n.º 1 desse normativo,

«[cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos».

Ademais, estabelece o referido artigo 629.º do Código de Processo Civil que:

«1 - O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.
2 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:
(…)

c) Das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça; (…)»

Segundo os Demandantes, o Tribunal da Relação de Guimarães andou mal ao rejeitar, com base na falta do pressuposto processual de interesse em agir, a pretensão dos recorrentes, no segmento em que interpuseram recurso relativo à medida da pena aplicada, por entenderem que esse interesse em agir se encontrava processualmente demonstrado. Como tal, consideram os Recorrentes que o Tribunal da Relação violou a doutrina constante no Assento n.º 8/99, circunstância que configura ser fundamento de recurso para este Supremo Tribunal de Justiça.


Sucede, contudo, que se encontra já ultrapassado o momento processual para interpor recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, com base em tal normativo.


De facto, do acórdão do Tribunal da Relação, que apreciou a decisão final de mérito proferida pela 1.ª instância, foi interposto recurso atempado para o Supremo Tribunal de Justiça, recurso esse que veio a ser apreciado e julgado manifestamente improcedente, em parte, e rejeitado, no demais, por não ser legalmente admissível, conforme se descreveu supra.


Foi, aliás, na sequência dessa decisão, que se convolou o expediente recursivo dos Demandantes em incidente de arguição de nulidades, o que originou a prolação de nova decisão por parte do Tribunal da Relação de Guimarães, decisão essa que não concede aos recorrentes a possibilidade de recorrer, novamente, do teor da decisão final datada de 07-06-2021.


Assim, não poderão vir agora, nesta fase processual, os Demandantes insistir na interposição de um recurso que já foi apreciado pelo Supremo Tribunal de Justiça, como se esse aresto não tivesse tido lugar.


Como tal, e independentemente de se verificar, ou não, a circunstância prevista no artigo 629.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil, o momento temporalmente adequado para tal invocação encontra-se totalmente ultrapassado, sendo o presente recurso absolutamente extemporâneo, pelo que, em consequência, deverá o mesmo ser rejeitado.


Ademais, e mesmo que assim não fosse, sempre se diga que a referida alegação não tem fundamento, uma vez que a decisão do Tribunal da Relação de Guimarães não foi proferida contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.


De facto, aquele Tribunal considerou que, perscrutadas as alegações dos recorrentes, não se encontrava verificado um dos pressupostos processuais – interesse em agir – precisamente em conformidade com a doutrina decorrente do Assento n.º 8/99, invocado pelos Recorrentes. A discordância, da sua parte, relativamente a essa conclusão, considerando que esse interesse em agir, in casu, se encontrava verificado, não poderá corresponder à violação da doutrina uniformizadora do Assento em causa. Trata-se meramente de uma divergência, de uma diferente percepção factual e conclusão, por parte do Tribunal, daquela que é pretendida pelos Recorrentes, e não de uma decisão contra jurisprudência uniformizada, pelo que, de qualquer modo, não estaria verificado o circunstancialismo previsto no artigo 629.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil.

16. Finalmente, os Recorrentes, na eventualidade do recurso de revista normal improceder, pretendem interpor recurso de revista excecional, relativamente ao acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de 07-06-2021, por considerarem estarem verificados os pressupostos constantes do artigo 672.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil.


Ora, a revista excepcional encontra-se prevista no artigo 672.º do Código de Processo Civil, o qual dispõe que:

«1 - Excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:

a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b) Estejam em causa interesses de particular relevância social;

c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.»

Por sua vez, o referido n.º 3 do artigo 671.º estabelece que: «Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte».


Nesta medida, a revista excepcional é possível desde que o recurso de revista, em termos gerais, seja, também ele, admissível, nos precisos termos definidos pelo n.º 1 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, recurso que apenas não é permitido por efeito da dupla conformidade de julgados (cfr. artigo 671.º, n.º 3 do Código de Processo Civil)8.


Assim, havendo dupla conforme entre duas decisões, e desde que verificados os demais requisitos legais de admissibilidade do recurso de revista, o recurso de revista excepcional poderá ser interposto se estiver em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; estiverem em causa interesses de particular relevância social; ou o acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.


Ora, in casu, conforme já se referiu supra, a decisão final dos presentes autos foi proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 07-06-2021, acórdão que foi já objecto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Tendo este Tribunal emitido já pronúncia acerca da (ir)recorribilidade dessa decisão, por acórdão transitado em julgado, não podem agora os recorrentes, aproveitando o ensejo de ter sido proferida decisão em sede de incidente de arguição de nulidades, vir reiterar nos fundamentos de recurso anteriormente invocados, desta feita por via da revista excepcional.


É certo que se verifica uma situação de dupla conformidade (a par, aliás, do que foi expendido no âmbito do acórdão proferido pelo STJ nestes autos a 27-10-2022), pelo que mesmo que pudesse defender-se, teoricamente, estar-se eventualmente perante uma situação passível de ser integrada nos pressupostos da revista excepcional, (e vimos já não ser o caso por falta de preenchimento dos pressupostos do artº 672 nº1, alíneas a), b) ou c) do CPC), tal recurso de revista excepcional, apenas poderia ser interposto no prazo de 30 dias após a prolação do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07-06-2021, em cumprimento do prazo previsto no artigo 638.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.


Decorrido tal prazo, e após ser rejeitado o recurso pelo Supremo Tribunal de Justiça, não se vislumbra qual o fundamento legal para, nesta fase, ser intentado novo recurso.


Nesta medida, seria por ocasião do primeiro recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, que os recorrentes deveriam ter interposto, se admissível fosse, o recurso de revista excepcional, previsto no artigo 672.º do Código de Processo Civil, no prazo de 30 dias a contar da notificação do acórdão referido, caso assim o pretendessem, porquanto se trata de um recurso ordinário , conforme consta do artigo 627.º, n.º 2 do Código de Processo Civil 9 (norma esta que o qualifica como tal, apesar de ser de revista, ainda que excepcional, sendo apenas extraordinários o recurso para fixação de jurisprudência e o de revisão).


Não o tendo feito, ficaria sempre, naturalmente, precludida essa possibilidade, não renascendo um novo prazo recursivo pela circunstância de ter sido proferido acórdão, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, a conhecer as nulidades invocadas.


Nesta medida, em face do exposto, o recurso de revista excepcional interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, no dia 11-09-2023, é extemporâneo e, consequentemente, inadmissível, nos termos dos artigos 414.º, n.º 2 e 420.º, n.º 1, alínea b), do CPP.


III. DECISÃO


Pelo exposto, e com estes fundamentos, acordam os juízes da 5.ª Secção Criminal em rejeitar, por legalmente inadmissível, o recurso interposto pelos Demandantes e assistente GG, HH e II.


Vai o Recorrente assistente condenado na importância de 6 UC, nos termos do n.º 3 do artigo 420.º do Código de Processo Penal e todos os recorrentes demandantes cíveis nessa qualidade em custas na proporção do decaimento (ex vi do artº523º do CPP) e 527º do CPC.

Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Junho de 2024

(texto elaborado em suporte informático , revisto e rubricado pelo relator – (artº 94º do CPP)

Agostinho Torres (Relator)

Jorge Bravo (1º adjunto)

Jorge Gonçalves (2º adjunto)




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1. GG, HH e II haviam deduzido pedido de indemnização civil contra: os arguidos, a Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting (FPAK) ,a Associação Motor Clube... e a Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A., pedindo a sua condenação, na sequência dos danos não patrimoniais sofridos e provocados pelo acidente em causa nos autos, nos seguintes termos:

-A favor de GG, marido e pai das vítimas PP e KK, respectivamente: € 200.000,00 pelos danos não patrimoniais decorrentes da dor sofrida pela perda da mulher e filho; dois terços do montante de € 100.000,00, pela perda do direito à vida da esposa; dois terços € 150.000,00, pela perda do direito à vida do filho;

A favor de HH e II, pais e avós das vítimas PP e KK, respectivamente: € 70.000,00, pelos danos não patrimoniais decorrentes da dor sofrida pela perda da filha e neto; dois terços do montante de € 100.000,00, pela perda do direito à vida da filha; dois terços do montante de € 150.000,00, pela perda do direito à vida do neto (fls. 1511/1528).

Foi proferido despacho a receber a pronúncia e o pedido de indemnização civil de fls. 1511/1528, no qual ainda foi rejeitado o pedido de indemnização civil formulado por QQ e Centro Distrital ... - Instituto da Segurança Social, IP (cfr. fls. 1999/2003).

A demandada Seguradoras Unidas, S.A. (que incorporou a Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A.) requereu intervenção acessória de RR e incidente de intervenção acessória do Ministério da Administração Interna. Foi julgada verificada ilegitimidade passiva dos arguidos/demandados, da Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting (FPAK) e da Associação Motor Clube... e extinta a instância cível quanto aos mesmos. Mais foram indeferidos os incidentes de intervenção acessória suscitados pela demandada Seguradoras Unidas, S.A. (fls. 2306/2322).↩︎

2. Assim, a sentença será nula quando:

«a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.»↩︎

3. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de julho de 2021, processo n.º 3791/19.1T8STS.P1-A.S1, relatado pela Conselheira Rosa Tching, disponível em

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9a3f6a75264e2cf780258714004e83e4?OpenDocument.↩︎

4. Freitas, José Lebre de, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, Almedina, 2017, 4.ª ed., anotação ao art. 617.º, pág. 747↩︎

5. Faria, Paulo Ramos de, e Loureiro, Ana Luísa, “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2013, Vol. I, pág. 559.↩︎

6. Neste sentido, entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de setembro de 2021, processo n.º 449/20.2T8VRL-D.G1.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge Dias, disponível em

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/87cc24c35620a7678025874b0036ac75?OpenDocument, bem como o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de maio de 2023, processo n.º 375/05.5TCSNT-E.L1.S1, relatado pelo Conselheiro Manuel Aguiar Pereira, disponível em

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/627f410647d2f6fb802589b1002d44d3?OpenDocument↩︎

7. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de julho de 2021, processo n.º 3791/19.1T8STS.P1-A.S1, relatado pela Conselheira Rosa Tching, disponível em

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9a3f6a75264e2cf780258714004e83e4?OpenDocument.↩︎

8. Neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de janeiro de 2023, processo n.º 40939/21.8YIPRT-A.P1.S1, relatado pelo Conselheiro Oliveira Abreu, disponível em

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4167d8e95353a5eb80258940005a5ce9?OpenDocument.↩︎

9. Neste sentido, em situação similar , vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de julho de 2020, processo n.º 1093/14.9TASTR.E1.S1, relatado pelo Conselheiro Manuel Augusto de Matos, disponível em

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/42471a888adbb3f880258630003ca4dd?OpenDocument↩︎