Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8340/18.6T9PRT.P1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: TERESA DE ALMEIDA
Descritores: RECURSO PENAL
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
INADMISSIBILIDADE
SUCUMBÊNCIA
ALÇADA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANO MORTE
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 11/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I -   Sendo a decisão recorrida desfavorável quanto ao quantum indemnizatório destinado a ressarcir o dano não patrimonial próprio da vítima e os danos não patrimoniais próprios de cada um dos filhos menores da vítima, é-o em valor, respetivamente, inferior e igual a metade da alçada da Relação.

II -   Nesta parte, o recurso é legalmente inadmissível, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 2 do CPP.

III - A equidade é um critério para a correção do direito, um princípio moderador do direito positivo, em ordem a que se tenham em consideração, fundamentalmente, as circunstâncias do caso concreto.

IV - O recurso à equidade não afasta a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. Por sentença proferida pelo Juízo Local Criminal ... do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, em 17.09.2021, foi a demandada civil condenada a pagar aos demandantes as seguintes quantias indemnizatórias:

“i. aos três demandantes civis, e a repartir em partes iguais, Eur 150.000,00, dos quais Eur 120.000,00 correspondem à perda do direito à vida da vítima, e Eur 30.000,00, correspondentes ao sofrimento da vítima, provocado pelo acidente e suportado nos momentos que antecederam a sua morte.

ii. à demandante AA, a quantia de Eur 50.000,00, pelos danos não patrimoniais próprios, por ela sofridos,

iii. a cada um dos demandantes BB e CC, a quantia de Eur 40.000,00, respeitantes à indemnização pelos danos não patrimoniais próprios, por eles sofridos.”

Inconformada, recorreu a demandada, AGEAS PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., para o Tribunal da Relação ... que, por acórdão de 27.04.2022, decidiu reduzir:

a) a indemnização destinada a ressarcir o dano morte, a 85.000,00€,

b) a indemnização destinada a ressarcir o dano não patrimonial próprio da vítima, a 20.000,00€,

c) as indemnizações destinadas a ressarcir os danos não patrimoniais próprios da demandante e dos seus dois filhos, a 30.000,00€, quanto à demandante, e a 25.000,00€, quanto a cada um dos menores.


É do Acórdão do Tribunal da Relação ... que, inconformada, a demandante civil AA, veio interpor recurso para este Tribunal.

2. A recorrente formulou as seguintes conclusões: (transcrição)

“A) A indemnização relativa ao dano morte, do marido e pais dos demandantes, deverá ser fixada nos Eur 120.000,00, anteriormente ajuizados na sentença.

B) a indemnização destinada a ressarcir o sofrimento moral da vítima, nos momentos subsequentes ao acidente e, que precederam a sua morte, deverá ser fixada em 30.000,00,

C) enquanto as indemnizações destinadas a ressarcir os danos não patrimoniais próprios da demandante e de cada um dos seus filhos menores, deverão ser respectivamente fixadas em Eur 50.000,00 e Eur 40.000,00.”


3. A Demandada, AGEAS PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., apresentou resposta ao recurso, concluindo, em síntese, do seguinte modo: (transcrição)

“20. Considerando os parâmetros acabados de traçar e tendo presente a matéria de facto dada como provada, a Recorrente considera, como já salientou anteriormente, que a decisão do Tribunal da Relação ..., pese embora esteja, até, desajustada (para cima) de outras decisões tomadas pelos Tribunais Superiores, não merece qualquer censura, quando fixou a indemnização pela supressão do direito à vida em €85.000,00! (…)

22.   O mesmo se diga relativamente ao dano moral atribuído ao próprio sinistrado e à Mãe e filhos Demandantes: €20.000,00, €30.000,00 e €25.000,00, respectivamente. (…)

26.   A Portaria n.º 377/2008 constitui um instrumento legislativo de enorme utilidade para, juntamente com outros critérios, avaliar do quantum indemnizatório a ser atribuído em sede de indemnizações, quer por danos patrimoniais quer por danos não patrimoniais. (…)

46.   Os valores arbitrados pelo Tribunal da Relação ... são, pois, justos e adequados àquelas que são as concretas circunstâncias (factos) dos autos.

47.  O douto Acórdão do Tribunal da Relação ... não merece, pois, qualquer censura devendo manter-se in totum.”


4. O Ministério Publico, nas Instâncias, versando o recurso, apenas, matéria atinente ao pedido de indemnização civil, expressou a carência de interesse em agir e de legitimidade.


Foi cumprido o disposto no art.º 417º n. 2 do CPP.

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.

O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP).

Este Tribunal é, assim, chamado a apreciar e decidir sobre o montante da indemnização relativa ao dano morte, da indemnização destinada a ressarcir o sofrimento moral da vítima, nos momentos subsequentes ao acidente e que precederam a sua morte e da indemnização destinada a ressarcir os danos não patrimoniais próprios da demandante e de cada um dos seus dois filhos menores.


Cumpre decidir.


II.     Fundamentação

1. os factos:

O Acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos: (transcrição)

“1.º No dia 17 de maio de 2018, cerca das 23h30m, o arguido DD conduzia o veículo de marca SEAT, modelo ..., cor branco e Matrícula ..-QA-.., propriedade de DD, na Estrada ..., em ..., ..., no sentido .../..., a velocidade concretamente não apurada.

2.º Como passageira, a seu lado, transportava EE.

3.º Também àquela hora, naquela mesma estrada e no mesmo sentido de marcha, conduzia o ofendido FF, à velocidade aproximada de 65 km/h, o motociclo de marca YAMAHA, modelo ..., matrícula LM-..-.., da propriedade de GG.

4.º Na hora do acidente era de noite, não chovia e ambos os veículos circulavam com os faróis acesos, sendo que o arguido circulava com os vidros fechados e o rádio ligado e o ofendido fazia uso do capacete. (…)”.

5.º O local do acidente é uma estrada municipal marginada no lado direito por edificações, configurada em reta, onde o limite máximo de velocidade é de 90 km/h para veículos ligeiros de passageiros e a faixa de rodagem, com cerca de 5,60 m, é constituída por duas vias de trânsito, uma em cada sentido de circulação, separadas por duas linhas longitudinais descontínuas e ladeadas do lado esquerdo por berma em terra e do lado direito por uma berma de 2,5m.

6.º Atento o sentido de marcha dos veículos conduzidos pelo arguido e pelo ofendido, o traçado da via de trânsito desenha-se em reta, com boa visibilidade e com inclinação ascendente e a linha que separa as duas hemi-faixas é descontínua (marcas M2 e M19).

7.º O piso, em asfalto betuminoso, encontrava-se em regular estado de conservação.

8.º O arguido, conduzia nas circunstâncias espácio-temporais supra descritas com uma taxa de álcool no sangue (TAS) de 0,00 g/l e sem estar influenciada por substâncias psicotrópicas.

9.º O ofendido FF às 03:00h da manhã do dia seguinte ao do acidente apresentava uma taxa de álcool no sangue (TAS) entre 0,44 e 0,56 g/l e sem estar influenciado por substâncias psicotrópicas

10.º As viaturas em referência encontravam-se em bom estado geral de conservação e não apresentavam avarias nem deficiências mecânicas, apresentando-se os órgãos de direção, travagem, iluminação, suspensão, sinalização e de limpeza da visão em bom estado de funcionamento.

11.º A dada altura, após a passagem superior aí existente, o ofendido pretendeu iniciar a manobra de ultrapassagem do veículo conduzido pelo arguido, pela esquerda.

12.º Assim, para o efeito, após certificar-se que não circulava ninguém em sentido contrário e a faixa de rodagem se encontra livre na extensão e largura necessárias à realização da manobra com segurança, o ofendido transpôs a linha longitudinal descontínua para a hemifaixa contrária, ocupando o lado da faixa de rodagem destinado à circulação em sentido contrário e circulou.

13.º Sucede que, junto ao nº de polícia ..., porque pretendia inverter a marcha do veículo que tripulava com o auxílio da berma em terra, situada à esquerda, atento o seu sentido de marcha, o arguido, sem se certificar se circulava mais alguém na estrada, reduziu a velocidade em que seguia até aos 35 km/h e, sem imobilizar o veículo, mudou inopinadamente de direção para a esquerda.

14.º Nessa altura, o ofendido FF, ao aperceber-se da mudança abrupta de direção do veículo do arguido e não obstante circular a cerca de 65km/h, velocidade permitida no local, não conseguiu travar ou efetuar nenhuma manobra de recurso, vindo a embater com a parte frontal do motociclo junto ao rodado traseiro do lado esquerdo do veículo conduzido pelo arguido, quando este já se encontrava na oblíqua por referência à linha longitudinal descontínua, na via de sentido .../..., causando-lhe danos na porta lateral esquerda traseira, guarda-lamas, ótica e para-choques.

15.º Como consequência do embate, o arguido efetuou uma travagem, o veículo perfez uma rotação em sentido contrário ao sentido dos ponteiros do relógio e ficou imobilizado na oblíqua, junto à berma em terra e o ofendido embateu com a cabeça no tejadilho do veículo automóvel vindo a ser projetado cerca de 11,6 metros.

16.º Em consequência do embate acabado de descrever o ofendido FF sofreu, direta e necessariamente:

- numerosas equimoses dispersas na cabeça, na região nadegueira, escoriação no membro superior direito, múltiplas escoriações nos membros inferiores;

- hematoma na face interna do couro cabeludo ao nível da metade esquerda da região frontal, região parietal e temporal esquerdas e região occipital;

- múltiplas fraturas nos ossos da cabeça, designadamente na abóboda e na base;

- hemorragia e vestígios de hematoma subdural nas meninges, ao nível do hemisfério cerebral esquerdo, hemorragia subaracnoideia difusa do hemisfério cerebral esquerdo.

- edema moderado do encéfalo, contusão ao nível dos lobos frontais;

17.º As lesões em referência foram causa direta, necessária e adequada, da morte do ofendido FF, ocorrida no dia 19.05.2018, pelas 11h25m, no Hospital ..., no ..., para onde tinha, entretanto, sido transportado.

18.º O arguido não se certificou que ao realizar a manobra de mudança de direção nomeadamente a de inversão de marcha o fazia em segurança e sem perigo para os demais utentes da via.

19.º Com efeito, o arguido, antes de iniciar a manobra, não efetuou uma prospeção visual a 360º usando todos os retrovisores a fim de identificar outros utentes na via.

20.º Acresce que, antes do início da manobra, o arguido não imobilizou ou posicionou o veículo de molde a alertar os demais utentes da via para a realização da manobra que pretendia fazer.

21.º Desse acidente resultou como consequência direta a morte do FF.

22.º Ao atuar da forma descrita, o arguido representou e previu como possível que poderia dar origem a um acidente e, por via disso, causar lesões ou até a morte a outros utentes da via, embora tenha atuado sem se conformar com essa possibilidade, confiante que tal resultado não ocorreria.

23.º O arguido efectuou a manobra sem se certificar que o fazia em segurança para os demais utentes da via.

24.º O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punível por lei criminal. (…)

28.º A reta onde ocorreu o sinistro tem, pelo menos, 300 metros de comprimento.

29.º A EM ... é uma estrada municipal marginada também pelo lado esquerdo por edificações.

Quanto ao pedido cível

30.º À data do acidente referida em 1.º a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação relativo ao veículo ..-QA-.. estava transferida para a demandada por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...07.

31.FF, nasceu em .../.../1987 e está registado em nome de HH e de II. 32.FF faleceu no dia 19 de maio de 2018, pelas 11h25, no estado de solteiro.

33.º BB, nasceu em .../.../2016 e está registado em nome de FF e de AA.

34.º CC nasceu em .../.../2017 e está registado em nome de FF e de AA.

35.º AA nasceu em .../.../1987.

36.º Aquando do falecimento de FF este vivia em união de facto com AA, em condições análogas às dos cônjuges, desde dezembro de 2014, nessa altura na cidade ..., e, a partir de 10 de janeiro de 2016, na cidade ....

37.º Os menores BB e CC desde o nascimento sempre viveram com FF e com AA, a cuja guarda e cuidados se encontravam exclusivamente confiados, e agora a esta.

38.FF faleceu sem ter deixado testamento ou qualquer outra disposição de última vontade.

39.FF após o acidente supra foi transportado imediatamente para o Hospital ..., onde deu entrada pelas 01:23 do dia 19 de maio de 2018.

40.FF sofreu dores no momento do embate causadas pelo traumatismo e em consequência deste.

41.FF à data da sua morte gozava de boa saúde, era uma pessoa feliz, que dedicava toda sua vida e afeto à demandante AA e aos seus dois filhos, BB e CC.

42.FF tinha licenciatura em ..., pela Universidade ..., a que acrescentou, mais tarde, uma pós-graduação em ....

43.FF exercia a profissão de professor de ..., mais precisamente ministrando, à data do seu falecimento, aulas de ..., bem como aulas de ..., em ... e prestava ainda serviços de ... a clientes individuais.

44.FF, na sua atividade de ... auferia mensalmente quantia não concretamente apurada, com uma média de cinco clientes por mês, a quem ministrada, no mínimo 2 horas por semana, ao preço de vinte euros cada aula, o que fazia à exceção de um mês de férias.

45.FF nas horas livres desempenhava, nas ... de ..., as funções de ....

46.º Excluindo a atividade de ... todos os serviços de FF eram remunerados pela sociedade “L... UNIPESSOAL, LDA”, com sede na Avenida ..., ....

47.º A sociedade referida em 46.º pagou ao FF, a título de prestação de serviços, no ano de 2017, o valor anual de €8.831,42 ilíquidos.

48.º A demandante AA auferia à data do acidente a quantia líquida de cerca de €750,00 mensais e atualmente cerca de €850,00 mensais.

49.º Os rendimentos auferidos pelo falecido FF eram despendidos com as despesas do casal formado por si, pela demandante AA e pelos dois filhos de ambos, com a creche, saúde, educação, alimentação, vestuário e transportes de todos eles. 50.º O FF participava e ajudava de forma intensa na vida familiar, seja transportando diariamente os filhos de e para a creche e escola, seja ajudando nas refeições diárias dos seus filhos, acompanhando-os e ajudando-os a alimentar-se.

51.º Diariamente estava ainda o FF presente na vida dos seus filhos e companheira, seja acompanhando-os na preparação do dia seguinte, seja acompanhando-os no momento de se deitarem.

52.º Cuidava também o FF da casa onde vivia com a família, seja providenciando por qualquer reparação que fosse necessária, seja cuidando do jardim e dos animais domésticos.

53.º Para a AA o FF era um marido extremoso e dedicado, ambos nutrindo um pelo outro um profundo amor e respeito, cooperando intensamente na sua vida diária, assistindo-se ainda recíproca e intensamente.

54.º ... ainda o FF um grande amor e carinho pelos seus dois filhos, a quem dispensava todo o seu tempo livre.

55.º Por todas estas razões, a morte do FF causou aos menores, seus filhos, um enormíssimo desgosto, e uma falta irreparável para o resto das suas vidas, sob o ponto de vista afetivo e emocional, constituindo ainda a perda irreparável de uma importante referência, cuja falta se há-de repercutir de forma indelével, durante a infância, adolescência e início da vida adulta, moldando as respetivas personalidades.

56.º Para a AA a perda do companheiro e pai dos seus filhos representou, representa e representará, uma perda irreparável, porquanto era com ele e na sua companhia que projetava toda a sua vida futura, uma vez que o casal tinha um bom relacionamento e nutriam um grande carinho, afeto e respeito, um pelo outro. Por essa razão, a perda do companheiro, significou para aquela um incontornável desgosto e um vazio na sua vida.

57.º O FF despendia consigo próprio não mais do que um quarto dos seus rendimentos, pois era poupado nos seus gastos pessoais.

58.º A demandante AA e o seu companheiro projetavam providenciar por que os seus filhos viessem a concluir cursos superiores, do que resulta que projetavam sustentá-los até cerca dos 25 anos de idade, posto o que ainda projetavam ajudá-los no lançamento das suas vidas familiares.

59.º Depois da conclusão dos estudos dos filhos de ambos, assim que estes se tornassem independentes, o FF e a AA planeavam igualmente continuar a viver juntos.

Mais se provou que:

60.º No local identificado em 1.º não existia sinalização a identificar início de localidade.

61.º FF aquando do acidente foi assistido no local pela VMER.

62.º FF após o embate esteve em coma não reativo e foi submetido a entubação e ventilação e iniciado suporte de animas para assegurar perfusão de órgãos”.


2. O Acórdão recorrido fundamentou a decisão quanto ao quantum indemnizatório, nos seguintes termos:

“a) Começando pela indemnização pela perda do direito à vida:

Recorde-se que no pedido de indemnização formulado havia a demandante peticionado, neste particular, o montante de € 120.000,00 que o tribunal recorrido atribuiu aos demandantes em igual medida.

Por sua vez a demandada pede a redução do montante indemnizatório pela perda do direito à vida do falecido FF para o valor de € 60.000,00.

Quanto à indemnização pela perda do direito à vida ou dano morte, importa começar por dizer que a admissibilidade do seu ressarcimento é hoje relativamente pacífica e aceite - cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, 4.ª edição, Almedina, 1982, pág. 541 “é incontestável que a perda do direito à vida por parte da vítima da lesão constitui, nos termos do n.º 2 do artigo 496º, um dano autónomo, susceptível de reparação pecuniária”-mormente depois do Acórdão do STJ de 17.03.1971 (BMJ/205, pág. 150), ao afirmar que a perda do direito à vida “é, em si mesma, passível de reparação pecuniária, sendo a obrigação gerada pela ação ou omissão de que a morte é consequência” - vide Rui Manuel de Freitas Rangel, A Reparação Judicial dos Danos na Responsabilidade Civil, 3.ª edição, Almedina, 2006, pág. 39.

A doutrina maioritária defende, pois, a reparabilidade autónoma do dano morte, nos termos do art. 496º, nº 2 do Código Civil, mas, se é pacifico o reconhecimento da indemnização pela perda da vida, o problema tem residido mais no cálculo do concreto valor que a deve reparar. Como se lê no Ac. de 26.11.2012 desta Relação proferido no Proc. nº 8/09.0TBMCD.P1 relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador José Eusébio Almeida “Em síntese, cruzam-se dois entendimentos, ambos fundados: um, partindo do valor absoluto do bem em causa, tenta alcançar uma compensação de sentido mais abstrato e uniforme, pois se cada vida é um bem supremo, todas valerão o mesmo; outro, não deixando de aceitar o valor do bem em causa, joga com outros fatores, necessariamente circunstanciais a cada caso, que vêm a distinguir a compensação. E, neste último contexto, não descuram a idade, a robustez, a saúde ou mesmo a vida profissional do falecido - STJ, 25.03.2004, acessível in www.dgsi.pt.

Tal como no citado aresto se preconiza também, em nosso entendimento, o valor indemnizatório em causa deve ser encontrado numa perspetiva abstrata, já que, inequivocamente, está em causa o direito absoluto da vida e não qualquer dos seus reflexos; direito, acrescente-se, que é do – foi adquirido pelo – falecido. Pelo que, a ponderação de factores como a saúde e até mesmo a idade conduzem a uma distinção aleatória e que se revela perniciosa num direito absoluto como este. Será aceitável distinguir, por exemplo, a vida de quem é saudável ou a de quem, mesmo com dificuldade continua vivo? Os ensinamentos da psicologia mais recente tendem a considerar que, por exemplo, a “alegria de viver” não tem direta ligação a fatores objetivos, como a riqueza, a idade ou a saúde, e a taxas de suicídio nos Países Nórdicos foram sucessivamente apontadas como índices dessa falta de correspondência. – extrai-se ainda do aresto citado desta Relação. Donde, muito embora a nossa posição tenda para uma perspetiva abstrata como se disse, não conduzirá a resultado diverso de um entendimento mais ligado à relevância das circunstâncias pessoais do falecido, mormente no caso presente, em que os factos revelam que era jovem, tinha 31 anos e que constituía uma família feliz juntamente com os dois filhos de tenra idade e a companheira, sendo saudável feliz e activo.

De todo o modo, é manifesta a impossibilidade de reparação natural de tais danos em virtude da incompatibilidade de correspondência económica entre o dano e a sua expressão monetária, por se estar em planos valorativos diferentes - por um lado, o plano dos valores, o qual se revela na sua expressão máxima no direito à vida, e por outro, o plano material de expressão monetária, por natureza, quantificável.

Porém, podem e devem tais danos ser de alguma maneira compensados, o que se pretende que seja efectuado por via do estabelecimento de uma indemnização que, ainda que seja uma via simbólica e ficcionada, atribua um valor expresso em dinheiro, à vida perdida.

Entende-se ainda, porque a morte absorve todos os outros prejuízos não patrimoniais, que o montante da sua indemnização deve ser superior à soma dos montantes de todos os outros danos, devendo a indemnização ser fixada a um nível superior, pois a morte é um dano acrescido.

O critério legal da determinação do valor da perda do direito à vida está, como é consabido, sujeito à regra da equidade, estabelecida no art. 496.º do Código Civil. O que quer dizer que, com vista à determinação da indemnização devida, a lei aponta para um critério que se há-de ter por elástico, inspirado em razões objectivas e sobre o qual há-de assentar o juízo de equidade.

Assim, se a indemnização pelo dano moral visa simultaneamente compensar o lesado e sancionar o lesante, o recurso à equidade não pode significar o uso de arbitrariedade, mas tão-somente o uso de um critério para a compensação de um direito em ordem a que se tenham em consideração, fundamentalmente, as circunstâncias do caso concreto, atendendo sobretudo aos danos causados, ao grau de culpa do agente, à sua situação económica, bem como à do lesado e às demais circunstâncias do caso.

Nesta decorrência e como já se deixou dito, tal indemnização não pode ser de montante irrisório, e tal como apontam, quer a demandante/assistente, quer a demandada, nos últimos anos, os valores da indemnização fixados pelo Supremo Tribunal de Justiça, pela perda do direito à vida, têm oscilado, procurando cada uma delas convocar arestos com um intervalo de valores mais favorável à respectiva pretensão, a demandante a “puxar” para cima e a demandada agarrando-se a valores mais comedidos.

No entanto, no que tange aos parâmetros da jurisprudência em geral, podemos situar com segurança esse intervalo de valores entre os € 60.000,00 e € 85.000,00, veja-se entre outros o Ac. do STJ de 05.07.2020 proferido no processo nº 952/06.7TBMTA.L1.S1 acessível em www.dgsi.pt., chegando mesmo nalguns arestos a ultrapassar este último valor, nessa medida citando a demandante um acórdão da Relação de Lisboa de 16/01/2021 em que se atribui € 120.000,00 pelo aludido dano pela perda da vida de um jovem de 17 anos, numa tendência progressiva e consistente de valorização da vida humana, concebida como bem supremo. Noutro Ac. do STJ de 25.2.2021 considerou-se essencialmente a idade de 53 anos da vítima e o facto de não ter contribuído para a produção do acidente, para fixar em € 80.000,00 a compensação pela perda do direito à vida (o acidente ocorreu em 2016 e consistiu no atropelamento de um peão). Aí se justificou a posição assumida, nos seguintes termos: “E a verdade é que, em sede de avaliação do dano morte, a mais recente jurisprudência do STJ tem vindo a progredir, consoante os casos, para níveis mais próximos dos € 80.000,00, a rondar mesmo, nos casos mais graves, os € 100.000,00.

Ainda um outro Ac. do STJ, de 04.06.2020 proferido no processo nº 2732/17.5T8VCT,G1.S1, teve-se por razoável arbitrar a indemnização de € 80.000,00 num caso em que o lesado tinha 53 anos, quando foi vitimado por um acidente de viação da exclusiva responsabilidade do condutor do veículo objeto do seguro firmado na ré.

Nesta conformidade, tendo presente a evolução jurisprudencial da matéria, e os parâmetros seguidos pela jurisprudência mais atualista daquele Superior Tribunal e atentando nas singularidades do caso que nos ocupa, isto é, tendo em atenção a forma inesperada e abrupta como a vida é retirada a esta vítima, pois, morre, devido a acidente de viação aos 31 anos, o facto de não ter dado causa ao acidente, e a correspondente expectativa de vida, e que constituía uma família feliz juntamente com os dois filhos de tenra idade e a companheira, sendo saudável feliz e activo, seja de considerar, por um lado, excessivo o montante de € 120.000,00 atribuído pela 1ª instância, tendo-se, antes, por mais razoável e equitativa a compensação de valor de € 85.000,00 (oitenta e cinco mil euros) pelo dano morte .

Atentas estas circunstâncias e aquela que temos como sendo a mais razoável da jurisprudência mais recente, dentro das regras da equidade, corrigimos para € 85.000,00 o valor do dano morte e correspondente perda do direito à vida da vítima;

b) Já no que se refere às indemnizações relativas aos danos não patrimoniais da recorrente e dos seus dois filhos menores, fixadas, respectivamente, em € 50.000,00, e € 40.000,00, para cada um dos menores, defende a recorrente que não deveriam ir além dos € 20.000,00 para cada um, se tivermos por base aquele que tem sido o padrão utilizado pelos Tribunais Superiores para casos similares.

Também neste concreto tema, pensamos que assiste razão, em parte, à recorrente.

Com efeito, o art. 496º, nº 1 do Código Civil, dispõe que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, preceituando o nº 4 desse mesmo normativo que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, que o mesmo é dizer, de acordo com “regras da boa prudência, do bom sendo prático, da justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.” – cfr. Prof. Antunes Varela - Direito das Obrigações 9.ª ed., I, p. 627 - mas tendo sempre como ponto de partida os factos que tiverem sido provados.

A indemnização por danos não patrimoniais não se destina pois a “eliminar” o dano, atenta a natureza deste, mas tão só proporcionar ao lesado um meio de compensar a lesão através de uma quantia monetária que lhe permita aceder a satisfações que minorem o sofrimento, e que podem ser de natureza espiritual (reparação indirecta - cfr. Galvão Teles, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 7.ª edição, pg. 379-80).

Tem assim vindo a ser reiteradamente afirmado pela doutrina e pela jurisprudência, que a indemnização prevista na assinalada norma que rege os danos não patrimoniais, é mais propriamente uma verdadeira compensação. A finalidade que lhe preside é a de atenuar, minorar e de algum modo compensar os desgostos e sofrimentos suportados e a suportar pelo lesado através de uma quantia em dinheiro que seja capaz de lhe proporcionar um acréscimo de bem estar que contrabalance os males sofridos, as dores e angústias sofridas e perdurarão no tempo.

Ora no caso que nos ocupa, revisitada a factualidade provada, de resto valorada pelo tribunal recorrido, sem olvidar a jurisprudência dos tribunais superiores nesta matéria, não podemos deixar de considerar que é, na verdade, excessiva a indemnização atribuída aos três demandantes a título de danos morais, mostrando-se mais equilibrada e consentânea com os padrões jurisprudencialmente concedidos, a fixação dessa indemnização no montante de € 30.000,00 para a demandante AA e € 25.000,00 para cada um dos demandantes filhos BB e CC do falecido, valores mais próximos daqueles que vêm sendo atribuídos pelo STJ para ressarcir os danos não patrimoniais em questão. Veja-se numa situação muito similar à dos presentes autos o Ac. desta Relação de 17.06.2021 proferido no Proc. nº 137/19.2T8VFR.P1 relatado pelo Ex. Sr. Desembargador Filipe Caroço acessível in www.dgsi.pt. : “Num quadro de uma família jovem, em que os dois filhos tinham 3 anos e 5 anos de idade na data do acidente que vitimou o pai, afetuoso para com eles e cônjuge, é de fixar o dano psicológico causado a cada um dos filhos na quantia de € 25.000,00, e o dano da mesma natureza causado à viúva na quantia de € 30.000,00”.

Comungamos outrossim do entendimento do tribunal recorrido no que toca à diferenciação dos valores a atribuir aos demandantes, porquanto, dada a tenra idade dos demandantes BB e CC (que não lhes permite ainda terem integral perceção do que é não ter a presença do pai), já o sofrimento atual da demandante AA (viviam em união de facto em condições análogas às dos cônjuges, desde dezembro de 2014) é mais avassalador e profundo, pelo que a indemnização a lhe atribuir deve ser superior à dos demandantes BB e CC. Deve, pois, fixar-se a indemnização como modo compensatório da angústia, tristeza e sofrimento e, também, falta de apoio, proteção, companhia e carinho efetivamente sofrido por cada um dos demandantes, os seus filhos, por um lado e a companheira por outro, levando-se em consideração o relacionamento da vítima com esses familiares e a dor por eles sentida com a sua perda.

Por conseguinte, entendemos, ser de reduzir para € 25.000,00 para cada filho e € 30.000,00 para a companheira o valor da compensação arbitrada pelos danos não patrimoniais sofridos com a morte da vítima, pai e companheira respectivamente.

c) a indemnização pelo dano moral atribuído ao próprio sinistrado, em € 30.000,00, que deveriam ser reduzidos a € 15.000,00.

No que diz respeito aos danos não patrimoniais sofridos pela vítima antes da sua morte, pelo tribunal recorrido foi sopesado o circunstancialismo fáctico apurado, do qual resulta que FF aquando do acidente foi assistido no local pela VMER e de seguida foi transportado para o hospital e esteve em coma não reativo e foi submetido a entubação e ventilação e iniciado suporte de animas para assegurar perfusão de órgãos, tendo o óbito sido verificado no dia 19 de maio de 2018, pelas 11h25.

Conforme já acima se deu nota só por lapso consta da sentença – motivação – que “o embate do veículo conduzido pelo arguido na vítima ocorreu depois das 22,45 horas e que o óbito foi verificado pelo médico do INEM às 23,25 horas”, pois nem o óbito foi verificado no local do embate nem à hora ali referida, sequer resultando tais factos do doc. de fls. 194)

Não resultou, porém, provado que o ofendido esteve consciente depois do embate e, portanto, que tivesse sofrido dores físicas para além das que terá sentido com aquele embate, nem que tivesse sentido angústia com o aproximar da morte.

Em face do condicionalismo fáctico exposto, não se pode concluir, como o faz a demandante que o ofendido agonizou até falecer, já que permaneceu inconsciente, em coma, durante as horas que mediaram o acidente e a sua morte (cerca de 36 e não 12 como se diz na sentença recorrida, posto que o acidente ocorreu no dia 17 e o ofendido faleceu no Hospital ... no dia 19 da parte da manhã, às 11.25h).

Porém, ter-se-á apercebido e pressentido com consciência (no mínimo até ficar em coma induzido) a gravidade do seu estado.

Desta feita, podemos concluir, é certo, que a morte não ocorreu nos momentos em que o acidente se desenrolou, isto é, que não foi instantânea; e que a vítima sofreu dores e angústia perante a iminência da morte ou, o que é o mesmo, por sentir que a vida estava prestes a extinguir-se pelo menos naquele momento do embate.

Por conseguinte esses danos não patrimoniais pela sua gravidade devem merecer a tutela do direito, a qual, no caso presente, se verifica, porquanto se traduz num profundo sofrimento e em acentuada angústia, ainda que de duração temporalmente escassa.

Posto isto, ponderando a gravidade do dano a compensar e os critérios jurisprudenciais de valorização de tal concreto dano, entendemos ser de reduzir tal montante, fixando-se em € 20.000,00 o valor da indemnização para o ressarcimento do dano em causa.

d) as indemnizações pelos danos patrimoniais futuros, que o tribunal fixou em € 68.000,00, para a demandante AA, em € 63.750,00, para o demandante BB, e em € 67.150,00, para a demandante CC, as quais, relativamente a cada um deles, não deveriam ir além de € 40.000,00.

Finalmente discorda a recorrente dos valores atribuídos aos demandantes a título de danos patrimoniais futuros.(…)”.

b. De direito

1. Da admissibilidade do recurso

Estatui o n.º 2, do art. 400.º do CPP que:

“Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.”

O art. 24.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais define, no n.º 1, que, em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de €30000.

Para que o Acórdão seja, nesta parte, recorrível, é ainda necessário que se verifique o 2.º requisito, ou seja, que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada (valor da sucumbência).

Solução idêntica[1] à do artigo 629.º, n.º 1, do CPC, sobre cuja interpretação se decidiu no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2015 do Supremo Tribunal de Justiça (Proc. n.º 687/10.6TVLSB.L1.S1-A, DR 1.ª série, n.º 123, de 26.6.2015): ): “Conformando-se uma parte com o valor da condenação na 1.ª instância e procedendo parcial ou totalmente a apelação interposta pela outra parte, a medida da sucumbência da apelada, para efeitos de ulterior interposição do recurso de revista, corresponde à diferença entre os valores arbitrados na sentença de 1.ª instância e no acórdão da Relação”.

Ora, no caso, o valor da sucumbência quanto:

- à indemnização destinada a ressarcir o dano não patrimonial próprio da vítima, é de 10.000,00€,

- às indemnizações destinadas a ressarcir os danos não patrimoniais próprios de cada um dos filhos menores da vítima, demandantes BB e CC, é de 15000,00€.

O valor a apurar para a verificação do requisito de admissibilidade da 2.ª parte do n.º 2 do art. 400.º, do CPP, é a diferença entre os valores fixados na 1.ª Instância e na Relação. E este valor tem de ser superior a metade da alçada da Relação.

Ora, sendo a decisão recorrida desfavorável quanto ao quantum indemnizatório destinada a ressarcir o dano não patrimonial próprio da vítima e a ressarcir os danos não patrimoniais próprios de cada um dos filhos menores da vítima, é-o em valor, respetivamente, inferior e igual a metade da alçada da Relação.

Pelo exposto, nesta parte, é de rejeitar o recurso, por inadmissibilidade legal, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 2 do CPP.


2. Estipula o n.º 1, do artigo 496º, do Código Civil que: “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.

Na determinação do quantitativo indemnizatório dever-se-á ter em conta os critérios estabelecidos no artigo 494.º do Código Civil, aplicado ex vi do n.º 3 do artigo 496º. A indemnização fixar-se-á equitativamente, atendendo-se aos seguintes fatores: “O grau de culpa do agente, a situação económica deste e as demais circunstâncias do caso”.

A equidade é um critério para a correção do direito, um princípio moderador do direito positivo, em ordem a que se tenham em consideração, fundamentalmente, as circunstâncias do caso concreto.

Na atribuição dessa indemnização, devem ser respeitadas “todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida”.[2]

Sendo que o recurso à equidade “não afasta a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso”[3].

Essa demanda há-de ter uma perspetiva, necessariamente, atualista.


3. A este Tribunal cabe proceder ao controlo dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais se deve conter o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade dos valores encontrados.[4]

“No caso, caberá, tão-somente, verificar se o referido juízo equitativo formulado pela Relação (tendo em pano de fundo o previamente arbitrado pela I.ª Instância), dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida, se revela ou não colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspetiva atualista, generalizadamente vêm sendo adotados, e se tal choque ocorreu de forma grosseira ou gritante. Ou seja, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade, devendo, para tanto, ter-se em consideração «todos os casos que mereçam tratamento análogo», como o exige o art. 8.º, n.º 3 do CC.”[5]


4. O recurso incide sobre o dispositivo do Acórdão recorrido, no que respeita à redução:

- para 85.000,00€, do montante da indemnização destinada a ressarcir o dano morte,

- para 30.000,00€, do montante da indemnização destinada a ressarcir os danos não patrimoniais próprios da demandante.

Na fundamentação do Acórdão da Relação ..., é patente a ponderação cuidada de todos os elementos de facto do caso concreto, a par da análise da evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça quanto a casos paralelos, distinguindo o que é diverso e atentando nas semelhanças.

Foram avaliadas adequadamente a exclusividade da culpa do agente, a idade da vítima, a sua expectativa de vida e a alegria de viver demonstrada.

De igual modo, foram valorados o ambiente familiar, o apoio que a vítima prestava no desenvolvimento da vida quotidiana do casal, o modo abrupto como a sua companhia foi retirada à demandante e o sofrimento por esta sofrido.

A consideração do princípio da igualdade, na avaliação a que este Tribunal tem procedido em casos semelhantes, designadamente, de morte causada por acidente de viação, na mesma faixa etária e sem concorrência de culpa da vítima, conduz à mesma conclusão do Acórdão recorrido, na fixação dos montantes indemnizatórios relativos ao dano morte e aos danos não patrimoniais próprios sofridos pela companheira da vítima.

O Acórdão recorrido referencia, já, Jurisprudência recente deste Tribunal que aponta para valores pelo dano morte que se situam entre 60000€ e 85000€, tendo em conta as especificidades do caso concreto.

É possível apreciar, igualmente, uma aproximação consistente ao valor de 80000€, no que respeita à indemnização pela perda do direito à vida, e na medida dos fixados no Acórdão recorrido quanto a danos não patrimoniais próprios do cônjuge e filhos menores, nos seguintes Acórdãos deste Tribunal:

- de 22.06.2021, no Proc. n.º 151/19.8T8AVR.P1.S1, Rel. Jorge Arcanjo - indemnização por danos não patrimoniais de 40 000,00€ e 35 000.00€ para os filhos menores;

- de 03.03.2021, no Proc. n.º 3710/18.2T8FAR.E1.S1, Rel. Maria do Rosário Morgado - falecido em acidente de viação com 45 anos de idade, indemnização pelo dano morte de 80 000,00€;

- de 11.02.2021, no Proc. n.º 625/18.8T8AGH.L1.S1, Rel. Abrantes Geraldes - vítima de acidente de viação com 53 anos, compensação pela perda do direito à vida fixada em 80 000,00€ e da compensação pelos sofrimentos próprios do filho da vítima e da pessoa com quem esta vivia em união de facto desde há 6 anos, em € 35 000,00.

Boa parte da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça anterior, encontra-se recenseada, de modo exaustivo, no acórdão de 20.02.2013, proferido no Proc. n.º 269/09.5GBPNF.P1.S1, Rel. Raúl Borges.

Em qualquer dos casos, os valores fixados mostram-se, no quadro da insusceptibilidade de quantificação pecuniária de perda do direito à vida e do inerente sofrimento para os mais próximos, adequados e reveladores da correta aplicação da equidade, bem como consentâneos com a consistente orientação recente da jurisprudência deste Tribunal.


Termos em que se entende não ser de efetuar intervenção corretiva nos montantes fixados.


III. Decisão

Nos termos expostos, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, acorda em:

1. Rejeitar o recurso, por inadmissibilidade legal, quanto à matéria da indemnização civil por dano não patrimonial próprio da vítima e pelos danos não patrimoniais próprios de cada um dos seus filhos, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 2 do CPP;

2. No mais, julgar improcedente o recurso, mantendo-se o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.


Supremo Tribunal de Justiça, 23 de novembro de 2022

Teresa de Almeida (Relatora)

Ernesto Vaz Pereira (1.º Adjunto)

Lopes da Mota (2.º Adjunto)

_____

[1] Acórdão deste Tribunal, 3.ª Secção, Proc. n.º 68/17.0JDLSB.L1.S1, de 13.7.2022, Relator Lopes da Mota.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. 1.º, 4.ª edição, pág. 501 e, entre outros, Ac. deste Supremo de 05-11-2008, in Proc. n.º 3266/08 desta 3ª Secção, Rel. Pires da Graça.
[3] Entre outros, o Ac. de 23 de maio de 2019, Proc. n.º 2476/16.5T8BRG.G1.S2, Rel. Maria dos Prazeres Beleza.
[4] Ac. de 14.07.2016, no Proc. n.º 2069/13.9TBFLG.P1.S1, Rel. Oliveira Vasconcelos.
[5] Ac. deste Tribunal e Secção, de 30.06.2020, Rel. Paulo Ferreira da Cunha.