Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6 ª SECÇÃO | ||
Relator: | SILVA SALAZAR | ||
Descritores: | PROCEDIMENTOS CAUTELARES ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA COMPETÊNCIA INTERNACIONAL CONFLITO DE JURISDIÇÃO TRIBUNAIS PORTUGUESES TRIBUNAL ECLESIÁSTICO CONCORDATA DIREITO CANÓNICO IGREJA CATÓLICA ASSOCIAÇÃO RELIGIOSA | ||
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Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 02/22/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
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Sumário : | I - Os tribunais portugueses são competentes para apreciar os pedidos e, logo, as providências cautelares deles dependentes, de reivindicação de bens patrimoniais, propostos por uma pessoa jurídica ligada à Igreja Católica contra outra pessoa jurídica também ligada à Igreja Católica, nos termos do disposto no art. 65.°-A, al. c), do CPC, na redacção actual. II - Compete aos tribunais judiciais resolver conflitos que possam surgir entre pessoas jurídicas canónicas erectas pela Igreja e com personalidade jurídica civil, no que concerne à organização e regime de funcionamento, designadamente quanto à sua autonomia no campo da administração e da disposição dos seus bens temporais. III - O actual Código de Direito Canónico, promulgado pelo Papa João Paulo II, faz uma distinção, que não constava do anterior Código de Direito Canónico (de 1917), das associações de fiéis ligadas à Igreja Católica, entre as associações públicas e privadas, sendo que as primeiras adquirem a personalidade jurídica, quer pelo próprio direito, quer por decreto da autoridade competente, e as segundas adquirem essa personalidade apenas por decreto especial da autoridade competente que expressamente a conceda, correspondendo essa distinção aos dois modos de actuação de tais associações: as primeiras fazem-no em nome da igreja e comprometendo-a como instituição social, e as segundas actuam em nome próprio, ainda que visando uma e outra o bem da Igreja. IV - Esta distinção tem relevância na autonomia de umas e outras. Enquanto as associações públicas estão sob a efectiva direcção da autoridade eclesiástica e se consideram os respectivos bens como bens eclesiásticos, as associações privadas apenas estão sujeitas a vigilância da autoridade eclesiástica, pertencendo-lhes a livre administração dos bens próprios. V - A Concordata em vigor, de 2004, ao mesmo tempo que declara as pessoas jurídicas mencionadas nos arts. 1.°, 8.°, 9.º e 10.° regidas pelo direito canónico e pelo direito português, determina no art. 11.°, n.º 1, que as questões canónicas e civis são decididas por cada uma das respectivas autoridades e que tais pessoas têm a mesma capacidade civil que o direito português atribui às pessoas colectivas da mesma natureza, estabelecendo o n.º 2 que as limitações canónicas ou estatutárias à capacidade das pessoas jurídicas só são oponíveis a terceiros de boa fé desde que constem do Código de Direito Canónico ou de outras normas publicadas nos termos do direito canónico. VI - O princípio da separação entre o Estado e a Igreja Católica e outras, consagrado no art. 41.°, n.° 4, da CRP, envolve, como um dos seus corolários, o da não ingerência daquele na organização das Igrejas e no exercício das suas funções de culto, não podendo os poderes públicos intervir nessas áreas, a não ser na medida em que por via normativa regulam a liberdade de organização e associação privada, o que justamente está no cerne do entendimento da reserva de competência dos tribunais comuns para dirimir conflitos que envolvam matéria atinente a um direito fundamental como é o de associação, envolvendo pessoa jurídica canónica privada na administração de bens temporais próprios. VII - Não foi excedida a competência do tribunal recorrido, ao ajuizar sobre a invalidade do acto de confissão judicial por feito à revelia dos órgãos de associação privada, ainda que tivesse, então, a respectiva Superiora o seu mandato caducado e em circunstâncias que, para além do mais, implicariam uma antecipada decisão, por via administrativa, da autoridade eclesiástica em favor de um instituto canónico público num conflito quanto à propriedade de bens que o opunha a uma pessoa jurídica canónica privada. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
O Seminário Pio XII requereu providência cautelar contra AA, BB(em religião Irmã M... M... de J...), e CC, no Tribunal Judicial de P... D... – 2º Juízo, pedindo, a final, que os requeridos se abstenham da prática de actos de administração, oneração, ou quaisquer outros, nomeadamente obras, relativamente ao imóvel sito à R... das L..., n.º ..., na freguesia de S. P..., concelho de P... D..., e que procedam à entrega das respectivas chaves ao requerente (a), e que seja feita a notificação à Associação DD-“N... D...”, sita à R...de S... J..., n.º ... - ..., ....º, em P... D..., para que se abstenha da prática de actos de ocupação do imóvel, bem como para que não aceite a prática de actos, por parte dos requeridos, relacionados com qualquer tipo de ocupação do imóvel. Invocou, para tanto, em síntese: O Requerente é um Instituto Religioso, pessoa jurídica canónico-concordatária, com sede na Rua B... das L..., n.º ...-..., em S P... - P... D.... Os seus religiosos conviveram durante muitos anos, em apostolado comum, com as irmãs que integram a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, pessoa jurídica canónico-concordatária com sede em Fátima, dona de um imóvel sito no n.º ...-... da mesma R... B... das L.... Após o falecimento do último irmão do Seminário Pio XII, surgiram vários conflitos que culminaram em acções judiciais, respeitantes à reivindicação de imóveis de que ambas as congregações se arrogam proprietárias, nomeadamente a acção ordinária n.º 635/07.0TBPDL, do 2.º Juízo do Tribunal de Ponta Delgada, com procedimento cautelar apenso, e a acção ordinária n.º 2153/06.5TBCBR, do 2.º Juízo das Varas de Competência Mista e Juízos Criminais de Coimbra. A requerida BB, na qualidade de Irmã Superiora da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, ré na acção ordinária n.º 635/07.0TBPDL, do dito 2.° Juízo, outorgou procuração ao seu sobrinho, ora primeiro requerido, AA, o qual, no uso da mesma, mudou fechaduras de um anexo pertencente ao Seminário Pio XII, nos Açores, vedou-lhe acessos, colocou ferros nas janelas, em prédios e com blocos, para impedir o acesso a terceiros, e alterou os contratos de água e luz nessas propriedades. A mesma requerida outorgou escritura de doação de um imóvel da Pia União em favor do mesmo sobrinho, e formalizou uma escritura de constituição de uma fundação, a dirigir por ela e pelo mesmo sobrinho, para a qual transferiu quase todo o património da Pia União. Confrontada com a dissipação do património eclesiástico para fins pessoais, a Diocese de Leiria-Fátima nomeou, em 15-07-2008, uma comissão para representar a Pia União, integrada pelo Padre EE e pelo Dr. FF. Este último comissário, credenciado para o efeito, confessou os pedidos formulados no processo 635/07.0TBPDL, nomeadamente o reconhecimento do direito de propriedade do aqui requerente sobre o imóvel n.º ... da R... B... das L..., O termo de confissão do pedido foi judicialmente homologado, por sentença de 23 de Julho de 2007. No início do ano de 2009, o primeiro requerido forneceu a chave desse imóvel ao terceiro requerido, CC, e, arrogando-se procurador e representante da Pia União, a mando da 2ª requerida, contratou mestres e trabalhadores da construção civil para realização de obras no interior do imóvel, as quais têm vindo a decorrer, sendo o acesso facultado pelos requeridos, que dele têm a chave, a qual não facultaram, ainda, ao requerente. Por outro lado, foram vistas pessoas da Associação DD-“N... D...”, que se dedica a apoio social a pessoas em risco de exclusão social e “sem-abrigo”, a entrar no imóvel usando a chave do mesmo, do mesmo passo que foi já publicamente noticiado que esta Associação vai instalar aí um Centro de Acolhimento para aumentar a sua capacidade de resposta. A segunda requerida continua a arrogar-se a qualidade de representante da Pia União e a alienar património, tendo o terceiro requerido retirado, ao responsável pela guarda do Seminário, as chaves do anexo a que se refere a providência cautelar decretada por apenso ao processo 635/07.0TBPDL, afirmando serem pertença “das irmãs” (da Pia União). Há, por isso, justo receio de os requeridos fazerem uma ocupação ilegítima do n.º ... da R... B... das L..., com grave prejuízo para o requerente, e com o risco de convencerem terceiros de boa fé de que são os representantes da Pia União e de que podem ocupar legitimamente aquele prédio. *** *** *** Regularmente citados, os requeridos opuseram, em síntese: A providência não pode ser decretada sem estar identificada a acção de que é dependência. A casa sita no n.º ... da R... B... das L... pertence à Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, tendo a segunda requerida actuado legalmente como sua superiora nos actos de doação que praticou. A requerida BB foi reeleita como Superiora para um novo mandato. O Bispo da Diocese não pode sobrepor-se à vontade da Associação expressa nessa eleição, sendo nula a designação de comissários. É, consequentemente, nula a confissão do pedido formulada no processo 635/07.0TBPDL, porque efectuada por pessoa sem poderes. E, estando o prédio registado a favor do requerente com base na homologação daquela confissão, o requerente não corre o risco de o mesmo ser alienado ou onerado. Para além do que a entrega do prédio ao requerente fará cessar a sua utilização para o fim de natureza social a que o mesmo está afecto, causando maior dano do que o que pretende evitar. *** *** *** Produzidas as provas oferecidas, e tendo em sede de audiência o requerente desistido do pedido na parte relativa à abstenção, pela Associação DD-N... D..., da prática de actos de ocupação do imóvel, foi proferida a decisão sobre matéria de facto que consta de fls. 407 a 410. Seguiu-se a decisão, com o seguinte dispositivo: «Preenchidos que estão os requisitos gerais do procedimento cautelar comum, julgo procedente a providência requerida com o âmbito acima definido e, em consequência: a) Homologo, porque válida e relevante, a desistência do pedido de notificação à Associação DD-“N... D...”, sita à R... de S... J..., n.º ...-..., ....º, em P... D..., para que se abstenham da prática de actos de ocupação do imóvel, declarando extinto o direito que o requerente, a este nível, pretendia fazer valer; b) Determino que os requeridos se abstenham da prática de actos de administração, oneração ou quaisquer outros, nomeadamente obras, relativamente ao imóvel sito à R... das L..., n.º ..., na freguesia de S. P..., concelho de P... D..., e que procedam à entrega das respectivas chaves ao requerente; c) Determino seja feita a notificação à Associação DD-“N... D...”, sita à R... de S... J..., n.º ...-..., ....º, em P... D..., para que não aceite a prática de actos, por parte dos requeridos, relacionados com qualquer tipo de ocupação do imóvel.» Inconformados, os requeridos apelaram do assim decidido, para o Tribunal da Relação de Lisboa, com impugnação da matéria de facto. No despacho liminar foi rejeitado o recurso na parte relativa à matéria de facto, reclamando os requeridos para a conferência. E por acórdão foi decidido, para além de se admitir a reclamação ainda que parcialmente, julgar improcedente o procedimento, por constituir a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus uma associação privada de fiéis, logo não lhe sendo aplicável o cânone 318° do Código de Direito Canónico em que se fundou a nomeação - por decreto bispal - do comissário que confessara os pedidos e que assim se deveria considerar inválida, com as inerentes consequências quanto ao direito invocado de propriedade. Inconformado, o Requerente veio interpor revista, com fundamento em violação de caso julgado e incompetência do tribunal, em razão da matéria, tendo apresentado alegações em que conclui nos termos seguintes: 1° - A reclamação para a conferência apresentada pelos ora recorridos no TRL por força do disposto no art.º 700°, n.º 3, do CPCivil, só poderia ter por destino ver reapreciada em douto acórdão a decisão do Venerando Relator que rejeitou o recurso no que concerne à reapreciação da matéria de facto. 2º - Porém, os ora recorridos, naquela sua reclamação, não requereram que recaísse acórdão sobre a matéria da decisão singular que rejeitou o recurso mas antes que recaísse acórdão sobre a própria matéria de facto, o que correspondia verdadeiramente ao objecto do seu recurso de apelação. 3º - Consequentemente, não sendo pedido que sobre a matéria do despacho reclamado recaísse douto acórdão que admitisse o recurso sobre a matéria de facto, deverá entender-se que tal despacho de rejeição transitou em julgado e que sobre essa matéria se formou caso julgado formal. 4° - Pelo exposto, deverá julgar-se que o douto acórdão ora recorrido, ao reapreciar e alterar a matéria de facto, ofendeu esse caso julgado formal, pelo que deverá ser proferido douto acórdão que, assim julgando, absolva o ora recorrente daquela pretensão, tudo nos termos dos art.ºs 493°, n.º 2, 494°, al. i), 497º, n.º 2, 498° e 672°, todos do C. Proc. Civil. 5° - Também em consequência dessa ofensa de caso julgado, deverá ser anulado o acórdão recorrido, confirmando-se a decisão da 1ª instância e mantendo-se a providência cautelar, porquanto a decisão de procedência da apelação foi proferida na sequência e em consequência da alteração da decisão sobre a matéria de facto. 6º - O que está em causa no presente recurso é um acórdão que decidiu sobre a validade substancial de um acto (Decreto Eclesiástico) relativo à organização de uma pessoa jurídica canónica praticado com fundamento no Direito Canónico. 7º -- Estando em causa um acto relativo à organização de uma pessoa jurídica canónica com fundamento no Direito Canónico, a apreciação da sua validade compete em exclusivo ao ordenamento jurídico canónico, estando vedado aos tribunais comuns o conhecimento dessas matérias, por força do disposto na Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa de 18 de Maio de 2004 e também por força dos dispositivos constitucionais aplicáveis, art.ºs 41°, n.º 4, e 8º, n.º 2, ambos da Constituição, secundado aliás pela mais abalizada jurisprudência. 8° - Note-se que não está em causa nessa decisão a determinação de quem detém os poderes de representação legal da Pia União para os efeitos do art.º 21° do CPCivil, pois que a Pia União não é parte nos autos. 9º - Trata-se aqui da emanação dos princípios da separação entre as Igrejas e o Estado, como da liberdade da organização daquelas. 10º - As Concordatas que o Estado assinou com a Santa Sé estão compreendidas no conceito da Convenção Internacional e que vigoram na Ordem Interna com primazia sobre o direito interno, mais concretamente, a Concordata supra, formalizada entre a Santa Sé e a República Portuguesa. 11° - Pelo que, por força do disposto no art.º 10º, n.º 1, bem como do art.º 11°, n.º 1, ambos da mesma Concordata, as pessoas jurídicas canónicas regem-se na sua organização pelo Direito Canónico, sendo que, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art.º 2° da Concordata, a República Portuguesa reconhece à Igreja Católica “a jurisdição em matéria eclesiástica (…) bem como o direito de” (...) aprovar e publicar livremente qualquer norma, disposição relativa à actividade da Igreja (…). 12° - O que significa que o Estado reconhece também à Igreja Católica o direito de aplicar o direito canónico, quanto à organização das entidades com personalidade jurídica canónica, através da jurisdição ou Órgãos Jurisdicionais próprios. 13° - Ora, da já referida primazia da aplicação do ordenamento jurídico canónico resulta que - quer a Pia União seja uma associação pública quer seja uma associação privada de fiéis - é na sua jurisdição específica, ou seja, no Tribunal Eclesiástico, que a questão em causa no d. Acórdão recorrido deverá ser julgada, porquanto é o próprio Estado Português que reconhece e aceita essa mesma jurisdição específica. 14° - Reconhecimento esse que é salvaguardado pelo disposto no art.º 66° do CPC e reforçado pelo disposto no art.º 18°, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13/01 (LOFTJ). 15° - Daí que, ao contrário do implicitamente aceite pelos Venerandos Desembargadores, não se possa aplicar ao caso dos autos o disposto no art.º 65°-A do CPC, porquanto esse mesmo preceito afasta a respectiva atribuição de competência aos tribunais comuns quando a mesma seja contrariada pelo disposto em Convenções Internacionais, como é o caso da citada Concordata. 16° - Não poderá, assim, deixar de se reconhecer que o d. Acórdão recorrido, ao colocar em crise a validade de um acto do Bispo de Leiria-Fátima que interveio na vida interna da Pia União e que aplicou normas de direito canónico, errou na interpretação e aplicação do regime concordatário em vigor, cometendo assim uma violação da norma de atribuição de competência em razão da matéria, pelo que deverá revogar-se o doutamente decidido. 17° -- O regime da Concordata de 2004 entre a Santa Sé e a República portuguesa, por meio de cuja aplicação deverá concluir-se pela falta de competência dos Tribunais Comuns em razão da matéria para decidir sobre a matéria objecto da douta decisão recorrida, resulta do exercício de um direito soberano do Estado Português ao abrigo do disposto no art.º 8º da Constituição e foi celebrada no reconhecimento e efectivação do princípio fundamental de separação entre o Estado e a Igreja e da liberdade de esta se organizar livremente, nos termos do disposto no art.º 41º, n.º 4, da Constituição. 18° - A intervenção do Bispo de Leiria - Fátima na organização e vida interna da Pia União tem de ser interpretada no sentido de não beliscar a competência atribuída ao Ordinário pela Concordata, devendo ser entendida como reforçadora do princípio ínsito no art.º 4° da Concordata de 2004, traduzindo-se num acto de intervenção da Autoridade Eclesiástica na vida de uma pessoa jurídica canónico-concordatária e, como tal, sujeita à sua autoridade, pelo que nem poderá considerar-se que a mesma constituiria violação do princípio da liberdade de associação previsto no art.º 46° da Constituição. 19º - Ao decidirem, no d. Acórdão recorrido, sobre a validade do sobredito Decreto em que a autoridade eclesiástica interveio na vida de uma pessoa jurídica canónico-concordatária, julgando-o inválido, os Venerandos Desembargadores violaram as regras de competência em razão da matéria ínsita nas supra referidas normas da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa de 18 de Maio de 2004, bem como o disposto nos art.ºs 66°, 101° e 105°, n.º 1, todos do CPC, e também o disposto no art.º 18°, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13/01 (LOFTJ), as quais atribuem em exclusivo à Igreja Católica a competência para decidir sobre essa matéria, com exclusão dos tribunais comuns. 20º - Deverá, por isso, ser declarado que ao TRL falecia, em absoluto, competência em razão da matéria para proferir o acórdão que julgou inválido o Decreto do Bispo de Leiria-Fátima de 15/07/2008 e os actos praticados ao abrigo do mesmo e que, em consequência, revogou a decisão da 1ª instância que havia decretado a providência cautelar, devendo esse acórdão ser revogado e substituído por outro que confirme a decisão da 1.º instância. *** *** *** Os requeridos contra alegaram, sustentando inexistir violação de caso julgado e igualmente qualquer infracção às regras de competência em razão da matéria. Por despacho do Relator foi desatendido o fundamento do recurso com base na violação de caso julgado, e mandado, após o trânsito, o processo aos vistos. Cumpre, agora decidir apenas a questão da incompetência do tribunal em razão da matéria, mais rigorosamente da incompetência internacional por envolver um conflito de jurisdições entre o ordenamento interno e o da Igreja, enquanto fundamento excepcional para o recurso de revista, no âmbito dos procedimentos cautelares, ex vi dos art.ºs 387°-A e 678º, n.º 2, al. a), do C. Proc. Civil, por motivo de a Relação ter decidido, no entender do recorrente contra o disposto na Concordata, que padecia de nulidade a confissão judicial do pedido feita em nome da Pia União e numa acção de impugnação judicial de uma escritura de justificação notarial do direito de propriedade de um prédio contra esta proposta pelo requerente, confissão essa homologada por sentença ainda não transitada em julgado, através de um comissário designado pelo Bispo de Leiria - Fátima fora dos poderes concedidos pelas normas canónicas para exercício da tutela das associações privadas de fieis, no que respeita à livre disposição de bens próprios. Ocorre dizer a este propósito que a presente providência precedeu uma outra acção ordinária movida pelo requerente contra os requeridos e contra a Pia União e uma fundação civil ainda não reconhecida denominada Fundação do Divino Coração de Jesus, de que são membros da respectiva Direcção os requeridos e entre eles a requerida BB, a qual dispusera na qualidade de Superiora da referida Pia União de bens imóveis a esta pertencentes e entre eles os que motivaram os pleitos judiciais com o Seminário Pio XII. Na dita acção e conforme certidões juntas aos autos, foi decretada a suspensão da instância por entender o M.mo Juiz dever aguardar-se a decisão final em sede de recurso sobre a validade do termo de confissão que, feita em nome da Pia União por um dos comissários designados por Decreto do Bispo de Leiria – Fátima, determinou a procedência do pedido na acção ordinária n.º 635/07, servindo este reconhecimento de fundamento de aquisição do direito de propriedade a que o requerente, integrado na Diocese de Angra, por falecimento do último membro de tal irmandade, se arroga, direito esse perturbado por parte dos requeridos nos termos que constam da petição inicial. Os tribunais portugueses são competentes para apreciar os pedidos e, logo, as providências cautelares deles dependentes, de reivindicação de bens patrimoniais, propostos por uma pessoa jurídica ligada à Igreja Católica contra outra pessoa jurídica também ligada à Igreja Católica, nos termos do disposto no art.º 65°-A, al. c), do C.Proc. Civil, na redacção actual e como tal já decidido pelo Tribunal Constitucional pelo Ac. n.º 68/2004 de 20/04/2004, ainda que reportada a redacção diferente, correspondendo aquela al. c) à anterior al. a). Sucede que, no caso vertente, a apreciação dessa competência pressuporia, igualmente, a da questão prévia da validade do Decreto Bispal que, nomeando comissários para acudir a uma alegada dissipação de bens patrimoniais da Pia União, pessoa jurídica canónica nos termos do cânone 318°, igualmente lhe conferiu poderes para, em nome desta, confessar o pedido no pleito em causa e que a opunha, numa disputa sobre imóveis, a outra pessoa jurídico-canónica. Questão essa que, suscitada pelos requeridos na sua defesa e sobre a qual, suprindo a arguida nulidade por omissão de pronúncia da sentença da 1ª instância, a Relação julgou procedente, e de modo a afastar como adquirida a propriedade, por entender não caber ao Bispo da Diocese de Leiria - Fátima nomear representantes da PU em pleitos sobre bens temporais, enquanto, tratando-se a mesma de uma associação privada de fieis, a cujo órgão próprio, de acordo com os estatutos, ou seja, a Superiora, a requerida BB, competiria, em exclusivo, administrar o respectivo património. Os factos indiciariamente provados pelas instâncias e a atender para a decisão são os seguintes: 1- O Seminário Pio XII, aqui requerente, é um instituto religioso, pessoa jurídica canónico-concordatária, que tem a sua sede na R. B... das L..., n.º ...-..., em S. P..., P... D.... 2 - A Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus é uma pessoa jurídica canónico-concordatária com sede em Aljustrel, Fátima. 3 - A Pia União é dona de um imóvel sito na R. B... das L..., n.º ...-..., em S. P..., P... D.... 4 - Os religiosos que pertenciam ao Seminário Pio XII durante muitos anos conviveram em comum com as irmãs que integram a P. U. 5 - Após o falecimento do último Irmão do Seminário surgiram vários conflitos que culminaram em acções judiciais respeitantes, no essencial, à reivindicação de imóveis de que ambas as congregações se arrogam donas. 6 - Corre termos neste Juízo a acção ordinária n.º 635/07, intentada pelo Seminário contra a P. U, na qual FF, invocando a qualidade de representante da R., confessou o pedido, declarando - para o que aqui nos prende - que aceita a declaração de nulidade da escritura de justificação outorgada em 19/01/2007 junto do Cartório Notarial de M... de F... F... R... de S..., exarada a fls. ... e segs. do Livro ... de Notas desse cartório, em que havia justificado que era, com exclusão de outrem, dona e legítima possuidora do prédio urbano sito à R. B... das L..., n.º ..., em P... D..., não descrito na Conservatória e inscrito sob o art.º P ..., com as confrontações (..) e composto por casa de habitação de rés do chão, 1º andar e sótão, com a área coberta de 452,98 m2, mantendo um logradouro afecto a essa construção com a área de 737,00 m2 (...) a ré reconhece o autor como dono e legítimo proprietário do prédio identificado (.,,) e compromete-se a entregá-lo nesta data ao autor, bem como proceder ao cancelamento da sua inscrição no Serviço da Finanças de P... D..., por ter averbado injustificadamente o mencionado imóvel que ficou inscrito ao tempo sob o art.º P .... 7 - O termo de confissão do pedido foi judicialmente homologado por sentença proferida em 23/07/2008, de que ainda pende de recurso. 8 - Correu termos também no 2° Juízo das Varas Cíveis e Criminais de Coimbra uma outra acção ordinária com o n.º 21253/06, intentada pelo Seminário Pio XII contra a Pia União, para reivindicação de um prédio na área daquela Comarca. 9 - Pela Apresentação n.º ..., de 24/02/2009, foi inscrita no Registo Predial a favor do Seminário a aquisição da propriedade de um imóvel sito no n.º ... da R. B... das L..... 10 - E pela Apresentação n.º ..., de 17/02/2009, a P. U. solicitou a inscrição no registo da aquisição do mesmo imóvel, inscrição que foi havida como provisória por dúvidas. 11 - A Irmã M... M... de J... (ou seja, a requerida BB), na qualidade de Superiora da Pia União, conferiu procuração ao seu sobrinho, o requerido AA, o qual no uso da mesma mudou fechaduras de um anexo, vedou-lhe acessos, colocou ferros em janelas, em prédios e com blocos de molde a não permitir acessos e também alterou contratos de água e luz. 12 - Correu termos neste Juízo e por apenso à dita acção ordinária n.º 635/07 procedimento cautelar que incidiu sobre a utilização daquele anexo e acesso à chave do mesmo, deferido a ambas as partes. 13 - O Seminário sabe que em Junho de 2008 terminou o mandato da requerida BB como Superiora da P. U. 14 - O Bispo da Diocese de Leiria-Fátima emitiu um Decreto em 15 de Julho de 2008, nomeando como representante da Pia União o comissário adjunto FF e com intervenção nos factos acima referidos. 15 - O requerido AA e a requerida BB nunca entregaram ao requerente a chave do prédio urbano sito no n.º .... da freguesia de S. P..., concelho de P...D.... 16 - Em data não apurada anterior a 14/02/2009, o requerido AA deslocou-se a P... D... e forneceu as chaves do n.º ... da rua citada ao requerido CC. 17 a 21- Não se reproduzem por apenas se reportarem a actos materiais praticados no anexo em questão. Há que analisar agora a concreta questão posta sobre a competência material no tocante à questão prévia sobre a legitimidade da intervenção de um representante da P. U. para confessar o pedido na acção relativa ao aludido imóvel, confissão cuja sentença de homologação ainda não transitou em julgado. Como é sabido, não são concordes as posições na jurisprudência e na doutrina no que respeita a saber se compete aos tribunais judiciais ou aos tribunais da jurisdição canónica resolver conflitos que possam surgir entre pessoas jurídicas canónicas erectas pela Igreja e com personalidade jurídica civil e no que concerne à organização e regime de funcionamento, designadamente quanto à sua autonomia no campo da administração e da disposição dos seus bens temporais. Algumas decisões vão no sentido de que se trata de questões que devem ser resolvidas no foro eclesiástico, estando certificadas nos autos e respeitando a outros diferendos envolvendo a Pia União, sentenças e acórdãos nesse sentido, e outras dizendo serem os tribunais comuns competentes quando estejam em causa atribuições e direitos de associações privadas de fieis, surgidas na esfera eclesial, mas com intervenção relevante no campo social, como é o caso das Misericórdias, podendo a este respeito citar-se entre outras, os Acs. da R. Porto de 05/06/2006, publicado na CJ, ano XXXI , T.° III, 181, e de 12/02/2002, em wwwdgsi.pt e n.º convencional 00043700, e deste Supremo de 07/10/2003, em CJ, Ano XI, T.° III, 80 e ss. E isto tem que ver com a distinção fundamental que o actual Código de Direito Canónico promulgado pelo Papa João Paulo II faz das associações de fieis ligadas à Igreja Católica, entre as associações públicas e privadas. Com efeito, além das pessoas físicas existem também pessoas jurídicas públicas, enquanto universalidades de coisas e pessoas constituídas pela autoridade eclesiástica competente para os fins a que as mesmas se propuserem segundo as prescrições do direito, e desempenharem em nome da Igreja o munus próprio que lhes foi confiado, tal como se prescreve no cânone 116°, acrescentando-se que além dessas pessoas públicas existem as privadas. As primeiras adquirem a personalidade jurídica, quer pelo próprio direito, quer por decreto da autoridade competente, e as segundas adquirem essa personalidade apenas por decreto especial da autoridade competente que expressamente a conceda. Essa distinção não constava do anterior Código de Direito Canónico (de 1917) e corresponde, conforme o entendimento dos ilustres anotadores do Codex na versão portuguesa que consta dos autos e dos subsídios doutrinários constantes do Acórdão da R. Porto de 5 de Junho de 2006, aos dois modos de actuação de tais associações: as primeiras fazem-no em nome da igreja e comprometendo-a como instituição social, e as segundas actuam em nome próprio, ainda que visando uma e outra o bem da Igreja. Por isso, vêm umas e outras reguladas em diferentes capítulos do título V da Livro II, que se ocupa das associações de fieis. Nos termos do dito Código, uma associação pública de fieis tem uma classificação de duplo sentido, o primeiro deles refere-se ao carácter secular da instituição (não é, pois, uma congregação religiosa) e o segundo é a sua abertura para acolher todos os fieis, independentemente do estado de vida e que se sintam atraídos pelo carisma da associação. Ora, as ditas associações públicas são, de acordo com o Codex, as erectas pela autoridade eclesiástica (Santa Sé, Conferência Episcopal ou bispo, conforme o respectivo âmbito da acção), tanto as constituídas por iniciativa dos fieis como pela autoridade eclesiástica, e os respectivos moderadores, conforme os seus estatutos necessariamente católicos, devem, além de ser confirmados após eleição, prestar anualmente contas. E é no seu estrito âmbito, no âmbito do capítulo II, que o Código confere no cânone 318° à autoridade eclesiástica quando existam “razões graves”, nomear um comissário que em seu nome passa a dirigir a associação. Já as associações ou irmandades privadas são as que resultam da livre iniciativa dos fieis, como se prescreve no cânone 299°, e que para terem personalidade jurídica precisam de ter os estatutos aprovados pela autoridade eclesiástica, sem embargo de poderem obter, também, um decreto formal de erecção. Mas a distinção tem também relevância na autonomia de uma e outras. Enquanto as públicas estão sob a efectiva direcção da autoridade eclesiástica e se consideram os respectivos bens como bens eclesiásticos, as privadas apenas estão sujeitas a vigilância da autoridade eclesiástica, pertencendo-lhes a livre administração dos bens próprios. Os fiéis dirigem e governam as associações privadas segundo as prescrições dos estatutos (cânone 321°), administrando os bens que possuam livremente e de acordo com as mesmas, tendo a autoridade eclesiástica competência para vigiar a sua utilização (cânone 325°, § 1°, 2ª parte), e estão sujeitas à autoridade do Ordinário no concernente, em exclusivo, à administração e aplicação dos bens doados para causas pias (cânone 325°, § 2°). Releva ainda o que determina o cânone 1257° no que se refere ao regime de aquisição de bens, prescrevendo o § 1° que todos os bens temporais que pertencem à Igreja Universal, à Sé Apostólica e a outras pessoas jurídicas públicas da Igreja, são bens eclesiásticos e regem-se pelos cânones seguintes e pelos estatutos próprios, e o §2° que os bens temporais das pessoas jurídicas privadas regem-se pelos estatutos próprios e não pelos ditos cânones a não ser que outra coisa se determine expressamente. Por isso, sustenta-se no Ac. deste Supremo de 25/02/2010 (in CJ/ STJ, T° 1, 74), com citação de um parecer do Prof. Júlio Gomes, que “quanto à disposição de bens (...) importa distinguir entre os bens das pessoas colectivas públicas e as privadas. Aqueles são bens eclesiásticos e a sua alienação exige muitas vezes, para a validade da alienação, a autorização da competente autoridade eclesiástica.” No caso vertente e analisando o que consta dos estatutos juntos aos autos que foram aprovados pela autoridade eclesiástica por decreto formal de erecção emitido pelo Bispo de Leiria, de 02/03/1959, e comunicado nos termos do art.º III da Concordata de 1940 ao Governo Civil de Santarém em 6 do mesmo mês, sobressai que a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus tem, efectivamente, a natureza de uma associação privada de fieis, enquanto fundada por convénio privado entre as senhoras que a constituíram e vocacionada para a santificação individual de acordo com os preceitos da Igreja, pela penitência, oração e prática de obras de misericórdia. Foi neste sentido que se pronunciaram os doutos pareceres juntos, dos Profs. Jorge Miranda e Vieira de Andrade, aquele com algumas reservas, razão que levou o Ac. da Relação a entender carecer de suporte no plano canónico e, também, civil, a intervenção do Bispo de Leiria - Fátima com a designação de comissários para intervirem, em nome da Pia União, nos pleitos que a opunham ao requerente, nos termos quer se passam a transcrever: “Começando a questão pelo fim, julga-se que deve ser dado por adquirido que a questão deve ser apreciada em face do Código de Direito Canónico (CDC) em vigor, que se aplica, naturalmente, a todas as associações de fiéis constituídas em data anterior. Essa solução também parece não suscitar quaisquer dúvidas, ao menos no plano dos princípios, e mostra-se adequadamente justificada nos pareceres jurídicos juntos aos autos. Assim sendo, visto o teor dos cânones 298 a 326, que tratam especificamente das associações de fiéis, e toda a discussão suscitada sobre a questão em apreço nos pareceres juntos aos autos, julga-se que o que efectivamente distingue uma associação de fiéis pública de uma privada são os fins por elas prosseguidos, sendo que a natureza pública dos fins prosseguidos pelas associações públicas começa logo a manifestar-se no acto da sua constituição, reservada, nos termos do primeiro parágrafo do cân. 301, às autoridades eclesiásticas. Deste modo, as associações privadas de fiéis prosseguem fins que não estejam reservados às autoridades eclesiásticas, e são constituídas por convénio privado, apenas sujeito a revisão da autoridade eclesiástica, de quem depende ainda a aquisição de personalidade jurídica. Assim, a questão de saber se a Pia União é uma associação de natureza pública ou privada depende, fundamentalmente dos fins pela mesma prosseguidos, estabelecidos nos respectivos estatutos. Também relevará, ainda que mais em termos indiciários, a forma da sua constituição que, estando em causa uma associação constituída no ano de 1959, numa altura em que o Código de Direito Canónico não fazia a distinção entre associações públicas e privadas, acaba por significar muito pouco. Deste modo, para a resolução da questão em apreço, que se mostra decisiva quanto ao sentido da decisão a proferir, importa ter em conta os termos em que foi constituída a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, e os fins por ela prosseguidos. Ora, quanto ao primeiro ponto, está assente nos autos que a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus foi erecta canonicamente por decreto do Bispo de Leiria de 02-03-1959, cujo texto está reproduzido a fls. 128 destes autos. E quanto ao segundo, temos, a fls. 336/337, uma cópia dos estatutos da Pia União, de onde se destacam os três primeiros artigos, do seguinte teor: Do nome Art.º 1.º - «Escravas do Divino Coração de Jesus» é o nome de família das Senhoras que, por livre vontade, quiseram viver em comunidade e dar-se totalmente a Nosso Senhor Jesus Cristo, na pessoa dos pobres, em todas as Obras de caridade. Dos fins Art.º 2.° - O fim desta Pia União é, em primeiro lugar, a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e normas da Igreja; em segundo lugar, a evangelização dos Pobres pelo exemplo e prática das Obras de Misericórdia. Da dedicação Art.º 3.° - Esta Pia União será consagrada aos Sagrados Corações de Jesus e Maria e propõe-se desagravá-Los pela oração, penitência e caridade. Sendo estes os elementos relevantes, julga-se que deve ser reconhecida razão aos apelantes quando defendem a natureza privada da Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus. Pois que a mesma prossegue fins que não estão reservados à autoridade eclesiástica e, tendo sido erigida numa data em que o Código de Direito Canónico não fazia distinção entre associações públicas e privadas, a sua constituição resultou de uma iniciativa dos seus membros. Ou seja, se fosse constituída na vigência do Código de 1983, sê-lo-ia nos termos dos respectivos cânones 298° e 322°. É essa a conclusão formulada, em termos muito claros e convincentes, nos pareceres juntos aos autos, subscritos pelos Profs. Jorge Miranda e Vieira de Andrade. Não vai no mesmo sentido o parecer, também junto aos autos, subscrito pelo Prof. Saturnino Gomes, mas, com todo o respeito, a argumentação desenvolvida não convence. Vem invocado o facto de a Pia União ter sido canonicamente erecta, mas já acima se desvalorizou o argumento. No ano de 1959 o Código não fazia distinção entre associações de fiéis públicas e privadas e aquela era a única forma de conferir personalidade moral, ou jurídica, a uma associação de fiéis. Como se referiu, se a situação tivesse ocorrido na vigência do Código de 1983, estariam reunidos os pressupostos do reconhecimento de uma associação privada de fiéis. Também vem invocada vivência das irmãs, que se comportariam como uma comunidade religiosa e pretenderiam tornar-se um Instituto religioso, mas, para além de se tratar de factos não adquiridos nos autos, não é esse o critério do Código para distinguir entre associações públicas e privadas. A Pia União não se tornou um Instituto religioso, e viver em comunidade não é um elemento diferenciador de uma associação pública de fiéis. É também invocado o relacionamento da Pia União com a autoridade eclesiástica, traduzido no reconhecimento da sua autoridade e dependência, bem como no cumprimento das normas de direito canónico aplicáveis às associações públicas de fiéis. Mas, voltando a não ser este o critério diferenciador, e não se duvidando que as servas da Pia União sempre cumpriram os preceitos que lhes eram aplicáveis, não se vê que os autos evidenciem o cumprimento de qualquer preceito que fosse exclusivo das associações públicas de fiéis. Conclui-se, assim, que a Pia União deve ser considerada uma associação privada de fiéis. Consequentemente, não lhe era aplicável o cânone 318° do Código de Direito Canónico, onde se fundou a nomeação do comissário que formalizou a confissão dos pedidos. E, não se vendo que pudesse ser fundada em qualquer outro cânone, que também não foi invocado, aquela nomeação deverá ser considerada inválida, tal como a confissão dos pedidos feita com intervenção do comissário nomeado, e o subsequente registo do prédio fundado nessa confissão. Deixando assim de subsistir a presunção de propriedade em favor do requerente Seminário Pio XII, fundada no registo, que serviu de base ao reconhecimento provisório daquele direito na decisão recorrida e que, em associação com os demais factos indiciariamente provados, justificou o deferimento da providência. Que, em conformidade com o ora exposto, não deve ser mantida. Julga-se, aliás, que a presente providência não poderia ser considerada justificada, mesmo que no caso fosse admissível a nomeação de comissário nos termos do cânone 318, §1°. Vejamos: O referido cânone é do seguinte teor: § 1. Em circunstâncias especiais, quando razões graves o exigirem, a autoridade eclesiástica referida no cân. 312, §1, pode designar um comissário que em seu nome dirija temporariamente a associação. Ajustando-se a essa previsão normativa, a nomeação dos comissários operada pelo decreto bispal de 15-07-2008, de que está cópia a fls. 670/1 destes autos, foi justificada com fundamento no prejuízo sério que teria sido causado à Pia União com a transferência do seu património para uma Fundação, cujos Estatutos não assegurariam os fins religiosos da mesma Pia União. Ainda em consonância com o fim da nomeação, foi, no referido decreto, conferido mandato ao comissário adjunto nomeado, Dr. FF, para promover em tribunal a declaração de nulidade da escritura de constituição da Fundação, e a declaração de nulidade, ou a anulação, da escritura de doação de um prédio. Com efeito, dos referidos procedimentos judiciais resultaria, tendo sucesso, a reintegração dos bens alienados através das referidas escrituras no património da alienante, a Pia União. Mas esse propósito, de protecção do património da Pia União, já não está presente nos seguintes actos, para os quais também foi conferido mandato naquele decreto: - Desistir do pedido e confessar o pedido reconvencional na Acção Ordinária n.º 2153/06.5TBCBR, que corre termos na 2ª Secção das Varas de Competência Mistas e Juízos Criminais de Coimbra, em que é Autora a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus e Réu o Seminário Pio XII. - Confessar, desistir e transigir na Acção Ordinária n.º 635/07.0TBPDL, que corre termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca Ponta Delgada, em que é Autor o Seminário Pio XII e Ré a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus. Esta última é a acção onde foi formulada a confissão cuja validade ora está em causa. E a anterior será a acção intentada entre as mesmas partes, ainda que em posições contrárias, no Tribunal Judicial de Coimbra, onde estará a ser discutida a desistência do pedido que ali foi formulada através do mesmo comissário, depois de ter sido obtido ganho de causa em primeira instância. Ora, considerando apenas a acção respeitante ao prédio que é objecto da presente providência cautelar, parece incontornável a conclusão de que a confissão dos pedidos feita em cumprimento do mandato assim conferido, não só não salvaguardou o património da Pia União, como, diversamente, realizou a apropriação do prédio em causa pelo Autor da acção, que, na falta de qualquer membro vivo, é, nos termos referidos pelos apelantes, uma personalização da respectiva autoridade eclesiástica, a Diocese de Angra. Ou seja, com o procedimento assim aprovado e executado, a Igreja Católica, através da Diocese de Leiria-Fátima, fez integrar no seu património, através do Seminário Pio XII e da Diocese de Angra, o prédio em relação ao qual a Pia União havia justificado notarialmente a sua aquisição fundada em usucapião. No fundo, resolveu em seu próprio favor a acção que intentou no competente tribunal do Estado, antecipando-se à apreciação da causa pelo tribunal, pretendendo ainda que o tribunal aprove esse seu procedimento. Com todo o respeito, julga-se que nenhum ordenamento jurídico pode consentir num tal procedimento e que, designadamente, o Código de Direito Canónico não o consente. Pelo que sempre teria de ser considerada inválida a confissão dos pedidos feita na acção ordinária n.º 635/070TBPDL, com as consequências já assinaladas, que culminam no não reconhecimento do direito de propriedade do requerente sobre o prédio dos autos, direito que as providências requeridas visavam acautelar e que, por isso, não poderão ser mantidas”. Ora, é contra esta apreciação que o requerente investe invocando a violação manifesta dos limites impostos pela Concordata, que reserva à jurisdição canónica as questões a resolver pelo direito canónico a à jurisdição dos tribunais portugueses as questões civis. A questão não é líquida no respeitante a saber se os tribunais comuns poderiam indagar no âmbito da sobredita questão prévia sobre a validade da confissão produzida que serve, sem dúvida, de fundamento ao direito de propriedade a que o recorrente se arroga, enquanto afectando a capacidade civil de uma pessoa jurídica canónica privada e também civil na medida exacta em que o próprio Código de Direito Canónico relega para os estatutos o regime dos bens temporais pertencentes às associações privadas, apenas se ocupando do modo de administração dos bens eclesiásticos, sem com isso se sobreporem à competência da jurisdição eclesiástica de acordo com art.º 11º, n.º 1, da Concordata, e com isso violando os limites por ela impostos e ainda o principio constitucional da separação da Igreja e do Estado consagrado no art.º 41°, n°4. Com efeito, a Concordata em vigor, de 2004, ao mesmo tempo que declara as pessoas jurídicas mencionadas nos art.ºs 1°, 8°, 9 e 10° regidas pelo direito canónico e pelo direito português, determina no art.º 11°, n.º 1, que as questões canónicas e civis são decididas por cada uma dos respectivas autoridades e que tais pessoas têm a mesma capacidade civil que o direito português atribui às pessoas colectivas da mesma natureza, estabelecendo o n.º 2 que as limitações canónicas ou estatutárias à capacidade das pessoas jurídicas só são oponíveis a terceiros de boa fé desde que constem do Código de Direito Canónico ou de outras normas publicadas nos termos do direito canónico. Em contrapartida, desenvolvem a sua actividade de acordo com o regime jurídico introduzido pelo direito português as pessoas jurídicas que, além dos fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade (art.º 12°). Neste ponto divergem os dois pareceres, referindo o Prof. Jorge Miranda que mesmo considerando, como julga dever ser considerada, a Pia União, uma associação privada de fieis, o Código colocava-a sob a direcção e vigilância da autoridade eclesiástica e sempre seria o direito canónico o competente para definir os parâmetros para validade da nomeação de comissário para a mesma, não relevando o estarem em causa bens temporais e respectivo regime no tocante à sua capacidade civil, enquanto considerando-se tais bens como instrumentais em relação aos fins espirituais, em face da primazia destes. Óptica oposta é a do Prof. Vieira de Andrade, que, em análise de elevada densidade argumentativa, adverte que, partindo, como se terá de partir, do pressuposto de constituir a Pia União, à luz do actual CDC, uma pessoa jurídico canónica privada, porque votada a piedade, oração e prática de actos de caridade, sempre seria defensável a extensão da competência do tribunal comum para dirimir uma questão que tem sobretudo que ver com matéria de liberdade da associação e da disposição de bens não qualificáveis como bens eclesiásticos, para garantia do princípio constitucional proclamado no art.º 46º e do direito fundamental a uma tutela jurisdicional efectiva, não passível de obter na jurisdição eclesiástica, enquanto, e sem embargo da isenção de tais tribunais, ser parte interessada a Igreja no pleito que a opunha à dita irmandade e à fundação civil por ela constituída mas ainda não reconhecida e de que faziam parte os requeridos, entre eles a Superiora, de nome civil BB, aliás demandada na acção de que a providência cautelar era dependente. Ou seja, constituiria uma posição que sustentasse estar também em jogo o princípio constitucional da liberdade de associação no plano da disposição de bens temporais por parte da referida associação privada, uma afirmação de delimitação das esferas próprias de aplicação de cada um dos ordenamentos, sendo aplicável o ordenamento civil para a regulação da capacidade civil de uma pessoa jurídica canónica privada e logo justificando-se que os tribunais se pronunciassem sobre tal matéria e, com tal, se optimizando a ponderação entre os dois princípios, o da liberdade religiosa e o da liberdade de associação, sem com isso se ferirem os princípios da Concordata que vincula o Estado Português ao separar os aspectos ligados à finalidade espiritual de tais associações no respeito da máxima «salus animarum suprema Iex esto» dos aspectos atinentes ao regime dos bens temporais, não sendo evidente que tais bens no caso vertente assumissem carácter meramente instrumental na prática de obras de caridade e assistencial a que a Pia União se propunha e, conforme o constante no preâmbulo dos Estatutos da Fundação do Divino Coração de Jesus, juntos a fls. 206 e ss, vinha desempenhando, desde a sua erecção canónica e antes dela. Será de anotar a este propósito que o princípio da separação entre o Estado e a Igreja Católica e outras consagrado no art.º 41°, n°4, da Constituição, envolve como um dos seus corolários o da não ingerência daquele na organização das Igrejas e no exercício das suas funções de culto, não podendo os poderes públicos intervir nessas áreas, a não ser na medida em que por via normativa regulam a liberdade de organização e associação privada (cf. Vital Moreira e outro, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, ed. de 2007), o que justamente está no cerne do entendimento da reserva de competência dos tribunais comuns para dirimir conflitos que envolvam matéria atinente a um direito fundamental como é o de associação, envolvendo pessoa jurídica canónica privada na administração de bens temporais próprios, sendo neste sentido que se pronunciou o Ac. deste Supremo de 07/10/2003, in CJ, Ano Xl, T° III, 80 e ss, e justamente num pleito que opunha uma associação privada de fieis a uma pessoa jurídica canónica pública. Nesta conformidade, julgamos não merecer, portanto, censura o decidido, logo não foi excedida a competência do tribunal ao ajuizar sobre a invalidade do acto de confissão judicial por feito à revelia dos órgãos da sobredita associação privada, ainda que tivesse, então, a respectiva Superiora o seu mandato caducado e em circunstâncias que para além do mais implicariam uma antecipada decisão, por via administrativa, da autoridade eclesiástica em favor de um instituto canónico público num conflito quanto à propriedade de bens que o opunha a uma pessoa jurídica canónica privada. *** *** *** Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido. Custas a cargo do recorrente. *** *** *** Lisboa, 22 de Fevereiro de 2011. Silva Salazar (Relator) Salazar Casanova Azevedo Ramos |