ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
NO RECURSO DE REVISTA ´PER SALTUM’
INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DECLARATIVA
(aqui patrocinado por ..., adv.)
Autor / Recorrente
CONTRA
SPER – SOCIEDADE PORTUGUESA PARA A CONSTRUÇÃO E EXPLORAÇÃO RODOVIÁRIA, SA
(aqui patrocinada por ..., adv.)
Ré / Recorrida
I – Relatório
O Autor intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra a Ré peticionando seja:
a) Declarado e reconhecido que o Autor é proprietário do prédio identificado nos nºs 1 a 4 da p.i.;
b) A ré condenada a reconhecer o direito de propriedade do autor e abster-se de praticar qualquer ato de ocupação ou intervenção no prédio do autor, sem consentimento prévio e expresso deste;
c) A ré condenada a pagar ao autor as seguintes quantias:
i. todas as despesas que o autor suportar com a remoção das estruturas descritas nos nºs 11a 13 da p.i., recolocação de vedações, reposição dos solos e do coberto vegetal, que ora se estimam em 85.000,00 € e em 6.199,50 €, a que acresce IVA à taxa aplicável a cada trabalho, a liquidar;
ii. todos os encargos financeiros do empréstimo bancário que o autor contrair para custear as despesas referidas na alínea anterior, incluindo taxas de juros, comissões, impostos, despesas contratuais e de gestão e outras que lhe sejam conexas, a liquidar;
iii. indemnização pela perda de rendimentos agrícolas e prediais, calculada em função da renda anual média de um arrendamento de 50 ha de terra da qualidade da do prédio do autor, para culturas de regadio, durante 11 anos, como supra alegado nos nºs 63 a 66, montante que ora se estima provisoriamente em 100.000,00 €, a liquidar por arbitramento;
iv. A ré condenada a indemnizar o autor pela perda da capacidade de crédito decorrente da contração do empréstimo referido na alínea ii), a liquidar;
v. indemnização pela perda de rendimentos, benefícios e prejuízos, incluindo danos morais e tempo despendido, que o autor suportar pela falta de remoção das estruturas e reposição dos solos, de Janeiro de 2021 até integral ressarcimento, em montante que ora se estima em 8.000,00 € por ano;
vi. reembolso das despesas com a presente ação, taxas, preparos, custas, honorários de advogado, a liquidar; e
vii. juros à taxa legal sobre todas as quantias em que for condenada, até integral pagamento.
Para fundamentar tal pedido alega, em síntese, que:
• É proprietário do prédio denominado Herdade dos ..., sita na União das Freguesias ... e ..., concelho ..., inscrito no cadastro predial sob o art. 8 da secção O1, com a área global de 50,375000, descrito na CRP ... sob as fichas nº 14 (área de 30,5750 ha) e nº 1097 (área de 19,8200 ha) da freguesia ...;
• Prédio esse que, desde pelo menos 1985, é por si destinado a fins agrícolas, designadamente cultura de regadio e está inserido no Perímetro de Rega do ..., albufeira abastecida pelo Empreendimento do Alqueva e pelo Circuito Hidráulico de Évora e Respetivo Bloco de Rega;
• O prédio está integralmente abrangido pela Reserva Agrícola Nacional e, na extrema Nascente, junto a um curso de água, está abrangido pela Reserva Ecológica Nacional e é formada por solos com capacidade de uso muito elevada, suscetíveis de utilização intensiva, com poucas ou nenhumas limitações e sem riscos de erosão;
• Por despacho de 22/10/2010 do Secretário de Estado Adjunto das Obras Públicas e Comunicações, com o nº 16667/10, publicado a 3/11/2010 na 2ª série do Diário da República, foi declarada a utilidade pública da expropriação de uma parcela de terra, denominada E-028, com 6,8515 hectares, pertencente ao prédio supra identificado;
• A parcela E-028, com 6,8515 hectares, percorre todo o prédio do autor no sentido Nascente – Poente, deixando isolada a Norte (do lado da EN 18) uma faixa de terreno com 6,4300 ha e a Sul a restante área do prédio, com 35,0600 ha;
• A expropriação destinava-se à construção do lanço E, Évora - S. Manços, da autoestrada do Baixo Alentejo e foi concessionada à ré que, nos termos do referido despacho, ficou incumbida de tomar posse administrativa da parcela a expropriar, “com vista ao rápido início dos trabalhos”.
• A ré não tomou posse administrativa da parcela, não realizou a vistoria ad perpetuam rei memoriam, nem formalizou o auto de posse, instrumentos previstos no art. 20, nº 1, c), e no art. 22 do Código das Expropriações, obrigatórios por força do art. 15 do mesmo diploma, como não remeteu os autos a Tribunal, para efeitos de arbitramento e pagamento, que nunca chegou a ser liquidado;
• No entanto, a ré vedou a parcela supra identificada com estacas e arame, destruiu a vegetação, fez escavações e veio a implantar diversas estruturas que, ao que se supõe, se destinavam à construção de um viaduto rodoviário, designadamente:
a) 6 pilares enterrados e levantados do solo, em betão e ferro, incompletos, que têm fundações no subsolo;
b) 32 manilhas prefabricadas em betão, de 1,5 m de diâmetro por 2,1 m de comprimento, aplicadas em 2 passagens hidráulicas, semienterradas, revestidas por paredes de betão, com cerca de 36 m de comprimento cada;
c) Vedações de estacas e arames no perímetro da parcela e
d) Diversas deposições de entulho e terra de grandes dimensões;
• No âmbito daqueles trabalhos, a ré ocupou parcialmente a faixa de terreno junto à EN 18, que não fora objeto de declaração de utilidade pública, onde arrancou vedações, atravessou-a repetidamente em diversos locais com máquinas pesadas, deixando-a ocupada com as obras e sem possibilidade de exploração agrícola.
• A parte do prédio do autor situada a Sul da parcela ocupada pela ré, com 37 ha, ficou sem acesso às bocas de rega ou hidrantes, o que impediu o regadio;
• Em setembro de 2012, a ré suspendeu os trabalhos de construção da autoestrada e
• Em fevereiro de 2018, a ré informou o autor de que desistia da pretensão de expropriação da mencionada parcela;
• Todavia, continuou a ocupar e não entregou a parcela ocupada ao autor, mantendo-a vedada e inacessível, nem retirou das mesmas as estruturas acima descritas;
• Tais estruturas, que ocupam mais de 0,3100 ha dispersos, modificaram e desfiguraram o prédio do autor, diminuem o aproveitamento agrícola e prejudicam o desempenho de veículos e máquinas agrícolas;
• O autor carece de repor a terra no estado em que se encontrava antes da intervenção da ré, para rentabilizar o seu prédio e desfrutar das suas virtualidades, seja agricultando, dando de arrendamento, onerando ou alienando – sem o grave prejuízo e a diminuição de valor que as estruturas causam;
• A ré ofereceu-se para iniciar, em janeiro de 2021, a remoção das estruturas e recolocar vedações de delimitação do prédio com a EN 18, desde que o autor aceitasse limitar o seu direito a indemnização ao montante global de 12.400,00€;
• Todavia, entende o autor que tal quantia não chega para custear a reposição dos solos e muito menos os prejuízos por si sofridos que contabiliza da seguinte forma:
a. Transtornos, tempo gasto, despesas de funcionamento e encargos, em montante que estima em 8.000,00€ anuais, até integral reposição dos solos e remoção das estruturas;
b. Custos de remoção das vedações e levantamento de novas, ato por si iniciado em fevereiro de 2021, data em que começou também a realizar trabalhos de agricultura em todo o prédio, com exceção das áreas ocupadas pelas estruturas e detritos deixados pela ré, supra identificadas, a quantia de 6.199,50 €,
c. Por ocupação da terra, perda de rendimento agrícola e predial, o montante de 100.000,00 €;
d. indemnização pela perda de rendimentos, benefícios e prejuízos, incluindo danos morais e tempo despendido, que o autor suporte pela falta de remoção das estruturas e reposição dos solos, de janeiro de 2021 até integral ressarcimento, a quantia de 8.000,00 € por ano;
• Como o autor não aceitou a proposta, a ré recusa-se a remover as estruturas e a repor as vedações;
• O autor não dispõe de meios próprios para remover as estruturas e repor o solo, e que
terá de contratar empresas especializadas para os realizar, sujeitando-se a custos elevados, decorrentes de preços de mercado;
• Já a autora, dispõe de meios próprios para o efeito;
• A remoção dos detritos e a reposição dos solos pelo autor importa o dispêndio de cerca de 85.000,00 €, a que acresce IVA.
A Ré apresentou contestação:
- Impugnando parcialmente o alegado;
- Arguindo as exceções de incompetência absoluta em razão da matéria, ilegitimidade passiva
e falta de interesse em agir;
- Alegando a irregularidade do mandato do autor;
- Arguindo a exceção de prescrição;
- Peticionando a condenação do autor como litigante de má fé e
- Requerendo a intervenção acessória provocada de terceiro.
Foi proferido despacho saneador-sentença em que, considerando não ser o objecto do litígio o direito de propriedade mas antes o direito de indemnização por danos causados pela Ré, enquanto entidade expropriante, pelos danos causados por expropriação que não veio a concluir-se, ou seja, relação jurídica administrativa, ainda que por situação de vias de facto, julgou os tribunais comuns incompetentes em razão da matéria, por o serem os tribunais administrativos, absolvendo a Ré da instância.
Inconformado veio o Autor interpor recurso ‘per saltum’ para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:
«a) Como bem nota a douta sentença recorrida, a competência do Tribunal afere-se pela petição. O pedido formulado nos autos consiste, de modo sucinto, no reconhecimento do direito de propriedade do autor, na condenação da ré a reconhecer tal direito e a abster-se de o ofender e na indemnização pelas obras efetuadas pela ré, que subsistem no prédio do autor.
b) Os autos tratam de um conflito real, de acessão imobiliária, nos termos do disposto nos arts. 1339 e ss. do Código Civil, na medida em que numa parcela de terra pertencente ao autor, a ré levantou e aí mantém diversas estruturas de betão, inicialmente a coberto de um auto de posse administrativa, mas depois, a descoberto de qualquer proteção legal.
c) Considerou a douta sentença recorrida que “a norma constante do n.º 3 do artigo 88.º do Código das Expropriações pressupõe, por razões de economia processual, que a desistência da entidade expropriante ocorre na fase litigiosa do processo, para a qual os tribunais comuns são competentes”. Como a ré não promoveu a fase litigiosa, isto é, como incumpriu os deveres e as obrigações de concessionária, a competência também deve pertencer ao foro cível, ao contrário do pretendido pela douta sentença recorrida.
d) A al. i) do n.º 1 do art. 4.º do E.T.A.F. não é aplicável ao presente caso, por estarmos em presença de situações constituídas sob a aparência de um processo expropriativo e não em “via de facto”, sem título que as legitime.
e) O processo de expropriação pertence ao foro cível, não obstante a sua ostensiva natureza pública, para proteger os particulares de atuações abusivas da administração e garantir a justa indemnização – E tal proteção dos particulares faz-se em vista da defesa do direito de propriedade, pedra basilar do nosso sistema jurídico.
f) Atuando a administração a coberto do direito, está obrigada a discutir a indemnização no foro cível. Atuando contra o direito, também assim deve ser.
g) Nos presentes autos, não se discute a expropriação e a ré, antiga concessionária, atua já despida de qualquer autoridade conferida pela administração pública.
h) Como decidiu o Tribunal de Conflitos, nos acórdãos de 02/03/2021 e de 14/05/2021, de que foi relatora a Veneranda Conselheira Teresa de Sousa, em casos que se prendem com direitos reais e em que não existe administração pública no exercício das suas vestes de autoridade, a competência é do tribunal cível.
i) A declaração de utilidade pública caducou a 4/05/2011, por não ter sido promovida a constituição da arbitragem no prazo de um ano sobre a declaração de utilidade pública e pelo facto de o processo de expropriação não ter sido remetido ao tribunal no prazo de 18 meses, sobre a publicação da declaração, nos termos do disposto no art. 13, 3 do Código das Expropriações.
j) Como ensinam o STJ nos Acórdãos d de 19-05-1992 [Proc.081973] – “A caducidade da declaração de utilidade pública ocorre automaticamente, sendo declarada em juízo ou pela própria Administração”, de 15-10-1991 [Proc. 081106] “Na caducidade os efeitos jurisdicionais desaparecem em consequência de um facto jurídico "stricto sensu", sem necessidade de qualquer manifestação de vontade. Dito de outro modo, é a extinção automática do direito.”, e de 22-10-1996 [Proc. 96A502], “O facto de não ter sido declarada a caducidade do prazo de subsistência temporal para as expropriações por zonas ou sistemáticas não faz renascer o direito da expropriante que se extinguira automaticamente pelo seu não exercício dentro do prazo cominado na lei, desaparecendo os efeitos da declaração de utilidade pública.” (consultáveis em dgsi.pt).
k) Como esclarece Osvaldo Gomes, a caducidade da D.U.P. constitui uma exigência do princípio do Estado de Direito que impõe, além do mais, a compensação integral dos sacrifícios e a adoção dos meios menos desvantajosos para os cidadãos, visando garantir o direito do expropriado contra a inércia da administração pública, procurando evitar que os particulares fiquem presos àquela declaração e sujeitos à indefinição da situação dos seus bens ad infinitum (In "Expropriações por Utilidade Pública", 1997, pág. 300).
l) A ré agiu como sujeito privado, em gestão privada. A sua responsabilidade é extracontratual e o ilícito que cometeu é civil. Note-se que não se discute na p.i. a declaração de utilidade pública, que é de todo irrelevante para a decisão da causa.
m) Os atos de gestão privada ainda que a coberto de alguma qualidade pública são dirimidos pelos tribunais civis, mormente os que se reportam à ocupação, modificação e destruição de propriedade privada – arts 64 e 70 do CPC.
n) Estando em causa exclusivamente matéria de direito e tendo a causa e a sucumbência valor superior ao da alçada da Relação, requer-se que o presente recurso seja julgado per saltum pelo STJ, ao abrigo do disposto no art. 678 do CPC.»
Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.
II – Da admissibilidade e objecto do recurso
A situação tributária mostra-se regularizada.
O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (artigo 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (artigo 40º do CPC).
Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (artigos 639º do CPC), bem como se mostra satisfeito o ónus específico estabelecido noartigo 678º, nº 1, do CPC).
A decisão impugnada é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º e 644 do CPC).
Bem como estão verificados os demais requisitos de recorribilidade ‘per saltum’ estabelecidos no artigo 678º, nº 1, do CPC.
Mostra-se, em função do disposto nos artigos 647º e 678º, n. 3, do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).
Destarte, o recurso merece conhecimento.
Vejamos se merece provimento.
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Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, única questão a resolver por este Tribunal é a de saber se os tribunais comuns são ou não os competentes para apreciar esta acção.
III – Os factos
A factualidade relevante é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.
IV – O direito
Como é consabido, a competência em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal como é apresentada pelo autor na petição inicial, isto é, no confronto entre o respetivo pedido e a causa de pedir.
Como se deixou escrito no acórdão deste STJ, de 30-06-2020 (Proc. 2831.17.3T8CSC.L1.S1), “A competência em razão da matéria afere-se pelos termos em que o autor propõe a acção (pedido e causa de pedir), ou seja, pela relação jurídica tal como ele a configura na petição, sendo que, para o efeito, deve relevar também a vertente subjectiva, respeitante às partes.”.
Ora, a causa de pedir, como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se na factualidade alegada pelo impetrante como fundamento do efeito prático-jurídico visado, com a significação resultante do quadro normativo a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, do CPC (Acórdão do STJ, de 18-09-2018, processo n.º 21852/15.4T8PRT.S1).
Assim, a factualidade alegada deve ter por referência um determinado enquadramento jurídico, já que a causa de pedir deve buscar-se nas normas jurídicas, potencialmente, aplicáveis ao litígio.
Se assim é, importa interpretar e caraterizar a ação proposta pelo autor, definindo e delimitando o seu objeto, de forma a apurar o que se discute nos autos.
Perante o petitório e a causa de pedir que o sustenta, pretende o autor/recorrente que a presente ação seja configurada como uma ação de reivindicação da parcela E28, cumulada com o pedido de indemnização pela ocupação ilegítima do terreno, sendo esse um dos argumentos utilizados nas conclusões recursórias para sustentar a sua posição de que são os tribunais comuns os competentes para decidir a presente ação.
Sucede, porém, que, compulsados os articulados da ação e a causa de pedir tal como formulada pelo autor, o reconhecimento do direito de propriedade está longe de se constituir como o objeto do litígio dos autos, já que, conforme se depreende dos articulados, nenhum conflito existiu no que concerne à titularidade do imóvel em causa nos autos. Sublinhe-se que a ré, ora recorrida, já antes da propositura da ação, havia entregue a referida parcela de terreno ao autor. Assim, a única questão a discutir na ação sempre foi a determinação do montante da indemnização a atribuir ao autor e nunca uma verdadeira reivindicação, sendo certo que nenhum pedido de restituição do imóvel é sequer deduzido na ação.
É nesse contexto, de resto, que a sentença da primeira instância, delimitando, a nosso ver bem, o objeto do processo, conclui que “o litígio não abrange a questão da propriedade do imóvel” e conclui que o que está verdadeiramente em causa nos autos se circunscreve ao “pedido de indemnização por danos que o autor alega ter sofrido por a ré, na qualidade de entidade expropriante, ter desistido da expropriação após ter tomado posse administrativa das parcelas e de ter entrado em negociações com vista a chegar a acordo como o montante da indemnização devida pela expropriação (…).”.
Sufragando a posição assumida pela primeira instância, consideramos, pois, que, a melhor interpretação do litígio tal como configurado pelo próprio autor é a de que este pretende o ressarcimento de danos ocorridos por força da ocupação, por parte da ré, inicialmente empossada em poderes administrativos para o efeito, de parte do terreno do autor, tendo a ré aí continuado mesmo após a desistência da expropriação, i.e. já depois de ter cessado o título que a habilitasse ou legitimasse a tal.
Feita a análise e interpretação do pedido e da causa de pedir relevantes para a aferição da competência material para a apreciação do litígio dos autos, nos termos do qual se entende estar perante uma demanda por responsabilidade civil extracontratual, cumpre tomar posição quanto à questão decidenda.
A este propósito, importa começar por atentar no art. 211.º, n.º 1, da CRP, que dispõe que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, estabelecendo, igualmente, o art. 64.º do CPC que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Por seu turno, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (art. 212.º, n.º 3, da CRP).
Sobre o artigo 212.º da CRP, pronunciou-se o Tribunal Central Administrativo Norte, por acórdão de 05-02-2021 nos seguintes termos: “aquela norma incorpora, assim, uma cláusula geral positiva de atribuição de competência aos Tribunais Administrativos dos «litígios emergentes das relações jurídicas administrativas», e que assim constitui a regra básica sobre a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos com os demais tribunais: os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas são, em regra, julgados nos tribunais administrativos. Podendo afirmar-se, atualmente, que os Tribunais Administrativos são os tribunais comuns em matéria administrativa, detendo reserva de jurisdição nessas matérias, exceto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição” – realces nossos.
No plano infraconstitucional, com relevância para a temática em discussão, dispõe o art. 4.º. n.º 1, als. f) e i) do ETAF, esta na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, que
“1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;”.
Desta última alínea, decorre que passou a ser da competência aos tribunais administrativos os litígios que tenham por objeto pretensões de restituição de imóveis e restabelecimento de situações enquadradas no exercício do poder administrativo, ainda que ilegítimo.
A propósito desta alteração, Mário Aroso de Almeida (in Manual do Processo Administrativo, Almedina, 2016, 2ª Edição, página 171) pronuncia-se no sentido de que o ETAF “passou a atribuir à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios decorrentes de situações de vias de facto, em que a Administração atue sem título que a legitime, designadamente ocupando imóveis de propriedade privada sem proceder à respetiva expropriação. No passado, como a competência para as ações de defesa da propriedade e de delimitação da propriedade pública em relação à propriedade privada era reservada aos tribunais judiciais, também estas situações eram atribuídas à competência destes tribunais. Diferentemente, a nova alínea i) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF atribui a competência aos tribunais administrativos, atenta a natureza claramente administrativa dos litígios em causa, que têm por objecto pretensões de restituição e restabelecimento de situações enquadradas no exercício, ainda que ilegítimo, do poder administrativo” (sublinhado nosso).
Sobre a alínea acabada de citar, o Acórdão do Tribunal dos Conflitos proferido no processo n.º 048/18 desenvolve ainda a seguinte análise, que, por relevante para a apreensão dos contornos da alteração legislativa sob escrutínio, se deixa aqui reproduzida:
“Com a Reforma de 2015, a al. i), do nº 1, do art. 4º do ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar litígios que tenham por objeto questões relativas a "condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime".
Sem entrar agora na análise das origens e da evolução do instituto (Cf., por todos, Carla Amado Gomes, Contributo para o Estudo das Operações Materiais da Administração Pública e do seu Controlo Jurisdicional, Coimbra Editora, 1999, páqs. 298-345. Na jurisprudência, cf. o ac. do STJ de 5.2.2015, proferido no proc. nº742/10.2TBSJM.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt), pode, no essencial, afirmar-se que a "via de facto" corresponde a uma atuação material da Administração que, sem base legal (Designadamente por ausência de atos jurídicos anteriores que legitimem essas operações materiais ou em que esses atos jurídicos são juridicamente inexistentes - v. Jorge Pação, ob.cit., pág. 194-195.),ofenda, de forma grave e manifesta, uma liberdade fundamental ou um direito de propriedade.
Com a referida previsão normativa procurou-se dar resposta às dúvidas que então se suscitavam quanto a saber se o julgamento das situações de «via de facto» competia aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais, ficando com a revisão de 2015, assegurado que "o pedido de restabelecimento de direitos ou interesses violados a que se refere a al. i), do nº 1, do art. 37º, do ETAF pode ser deduzido, não apenas para obter a remoção de efeitos produzidos por atos administrativos ilegais, mas também para reconstituir a situação jurídica que deveria existir, na sequência de operações materiais praticadas pela Administração sem título que o legitime.” (V. Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, pág. 259.)
Defendendo a solução legal, agora consagrada no CPTA e no ETAF, explicava Vieira de Almeida (ln «"A Via de Facto", perante o juiz administrativo» comentário ao ac. do TCAS, de 22.11.2012, processo 5515/09, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 104, março/ abril de 2014, pág. 44. ) que a «via de facto», enquanto atuação material manifestamente ilegal de um órgão da Administração, não deixa de ser uma atuação no âmbito do direito público, tal como o é uma atuação jurídica portadora de uma ilegalidade tão grave que implique a inexistência do ato ou a sua nulidade. Por isso, dizia aquele autor, não se pode afirmar que a «via de facto» coloca a Administração numa posição idêntica à do simples particular por ficar desprovida da posição de supremacia em que se encontra na atuação ilícita.”.
Também no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, pode ler-se que, no que “respeita ao ETAF, clarificam-se, desde logo, os termos da relação que se estabelece entre o artigo 1.º e o artigo 4.º, no que respeita à determinação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, e, por outro lado, dá-se mais um passo no sentido, encetado pelo actual ETAF, de fazer corresponder o âmbito da jurisdição aos litígios de natureza administrativa e fiscal que por ela devem ser abrangidos. Neste sentido, estende-se o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal às acções de condenação à remoção de situações constituídas pela Administração em via de facto, sem título que as legitime (…)”.
Face à configuração normativa acabada de analisar e aplicando-a à problemática sob escrutínio, parece-nos, pois, que a atual alínea i) do art. 4.º do ETAF tem plena aplicação ao caso concreto, que tem por objeto uma situação em que a Ré (entidade expropriante do terreno em causa, que não obstante tratar-se de uma sociedade é concessionária de infra-estrutura rodoviária e, por conseguinte, equiparada a pessoa colectiva de direito público, nos termos do nº 5 do artigo 1º do Regime da Responsabilidade Civil do Estado e demais Entidades Públicas), tomou posse administrativa do terreno do autor sem que, depois, prosseguisse com os atos próprios da expropriação, tendo desistido da mesma e continuando a ocupar aquela parcela, a partir daí sem qualquer título legítimo que a habilitasse a tal.
A situação acabada de descrever enquadra-se, ainda, a nosso ver, no exercício do poder administrativo decorrente da abertura de um processo de expropriação, mas em que este acaba por não ser exercido, por ter ocorrido desistência da expropriação ainda antes da fase litigiosa (direito que assiste à entidade expropriante nos termos do art. 88.º, n.º 1 do Código das Expropriações).
Parece-nos, pois, evidente que a ação judicial do autor tem por objeto essencial a atuação material da ré, enquanto entidade expropriante que, por via da desistência da expropriação, deixou de o ser, procurando obter uma condenação desta entidade à adoção das condutas necessárias ao restabelecimento do direito violado. Ora, em função do exposto, tal ação só poderá ser intentada, ao abrigo das alíneas f) e i) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, nos tribunais administrativos.
É esta também a conclusão alcançada por Jorge Pação (in Carla Amado Gomes, Ana F. Neves e Tiago Serrão, Comentários à Legislação Processual Administrativa, Vol. I., 2020, pág. 394), que escreve, a este propósito, que “ainda que a alegação pelo autor da titularidade do direito de propriedade seja parte integrante da causa de pedir, este aspeto não tem o “condão” de alterar o efeito jurídico por ele pretendido.” (in ob. cit., pág. 395).
Por sua vez, indo mais longe na aplicação do referido normativo acabado de citar, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22-02-2018 (Processo n.º 2476/17.8TBBCL.G1) conclui que a atual alínea i) do artigo 4.º do ETAF (e do n.º 2 do artigo 2.º do CPTA), “veio consagrar a atribuição de jurisdição aos tribunais administrativos para as ações de reivindicação que têm por objeto situações em que entidades como a Requerida (empresa pública, concessionária, em regime de exclusividade, da exploração e gestão do Sistema Municipal de Abastecimento de Água e de Saneamento para Captação, Tratamento e Distribuição de água para consumo público e para recolha, tratamento e rejeição de efluentes de vários municípios) ocupam terrenos de particulares sem para o efeito estarem munidas de título que as habilite ou legitime; trata-se de situações enquadráveis ainda no exercício do poder administrativo, mas em que este é exercido de forma ilegítima.”
Mesmo não acompanhando a alavancagem interpretativa do acórdão acabado de citar (pois que se entende que se estiver em causa uma verdadeira ação de reivindicação, a competência terá de ser dos tribunais comuns), ao abrigo dos citados preceitos legais, entendemos, que estando em causa nos autos, como está, a apreciação da responsabilidade extracontratual (conforme a acima citada al. f) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF) que envolve a atuação da ré, entidade expropriante que tomou posse administrativa de uma parcela de terreno do autor e que, por via da desistência da expropriação, deixou de ter legitimidade para aí permanecer (o que fez, cristalizando uma situação de facto sem título válido para o efeito – aplicando-se, por isso, também a al. i) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF), a presente ação cabe no âmbito da competência dos tribunais administrativos.
A este propósito, mediante aplicação da al. f) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-05-2011 (Proc. 568/05.5TBENT.E1.S1), onde se firmou o entendimento de que “os tribunais comuns são materialmente incompetentes para conhecerem da acção na qual foi formulado um pedido de indemnização fundado na responsabilidade civil extracontratual derivada da conduta de um Município e do respectivo presidente da Câmara no exercício de um poder de soberania de apropriação de um bem de particulares, decretada por decisão governamental, mas que nada tem a ver com a fixação do valor de uma indemnização em processo expropriativo.”.
Perante o que se deixa dito, consideramos que não há como negar o acerto da decisão recorrida, sendo que os acórdãos do Tribunal de Conflitos que são invocados pelo autor/recorrente na conclusão recursória da alínea h) não são aplicáveis aos autos porquanto se reportam a ações caraterizadas como verdadeiras ações de reivindicação, estando em causa o reconhecimento de um direito real, o que, como vimos, entendemos não suceder no caso sob análise.
Veja-se, ainda sobre esta temática, o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 21/04/2016 (proc. n.º 042/15), que, pronunciando-se sobre uma situação similar à dos autos no que concerne à delimitação do pedido e causa de pedir, defendeu: “o facto de se pedir o reconhecimento da propriedade do terreno e das árvores cortadas, não faz, só por si, com que se esteja perante uma acção real de reconhecimento da propriedade e consequente restituição da coisa, nos termos do art. 1311.º do Código Civil.
Na verdade, no caso dos autos, os autores não pedem a restituição do terreno, mas apenas que se reconheça que ocorreu a violação do seu direito de propriedade sobre o terreno e as árvores, de tal forma que se dê como verificada a ilicitude da conduta do réu e, consequentemente, lhes seja concedida uma indeminização em dinheiro. Trata-se, assim, de uma acção de responsabilidade civil extracontratual.”.
Importa acrescentar que a circunstância de ter existido desistência da expropriação não só não obstaculiza a conclusão a que se chegou quanto à competência material para apreciar e decidir a presente ação, como conduz à situação de “via de facto” que faz, como vimos, subsumir o caso vertente à al. i) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF.
Sobre esta problemática, seguimos o entendimento já vertido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/02/2016 (processo n.º 1641/11.6TBPNF.P2), por se reportar a situação similar à dos presentes autos e onde se conclui que “é da competência dos tribunais administrativos – nos termos da al. g), do n.º 1, do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19 de Fevereiro) – o conhecimento de um pedido de indemnização por danos que o expropriado haja sofrido, por a entidade expropriante ter desistido da expropriação, após ter tomado posse administrativa das parcelas e de ter entrado em negociações com vista a chegar a acordo sobre o montante da indemnização devida pela expropriação, mas antes do processo ter entrado na fase litigiosa prevista no artigo 38.º e seguintes do Código das Expropriações (aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro).”.
Quanto ao mais alegado pelo autor/recorrente nas suas conclusões a propósito da caducidade da declaração de utilidade pública (DUP), importa referir que, conforme resulta expressamente do art. 13.º do Código das Expropriações, a caducidade deveria ter ser requerida pelo expropriado ou pelo interessado ao tribunal que esteja a conhecer da expropriação ou diretamente à entidade expropriante, donde resulta que tal matéria não é de conhecimento oficioso (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-06-2008, processo n.º 1748/2008, relatado por Moreira Camilo, em cujo sumário se escreve: “a caducidade da declaração de utilidade pública a que alude o art. 13.º, n.º 3, do CExp não é do conhecimento oficioso do tribunal, por se tratar de matéria não excluída da disponibilidade das partes (art. 333.º do CC).”. A arguição, neste momento, i.e. em sede de conclusões de recurso, da caducidade da DUP surge, assim, como manifestamente intempestiva (constituindo-se até como uma causa de pedir diversa da delineada no seu articulado inicial), sendo certo que a posse administrativa do terreno por parte da ré se manteve até à desistência da expropriação, i.e. até 2 de fevereiro de 2018, sem que nunca o autor tenha suscitado a aludida caducidade (que, agora, tanto quanto se apreende do texto das conclusões, entende ter ocorrido em 4/05/2011).
Concluímos assim, como a 1ª instância, pela incompetência em razão da matéria dos tribunais comuns para conhecer da acção.
V – Decisão
Termos em que se nega a revista, confirmando o saneador sentença recorrido.
Custas pelo Recorrente.
Lisboa, 06JUL2023
Rijo Ferreira (relator)
Cura Mariano
Fernando Baptista