Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
43/20.8T9MTR.G1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: TERESA DE ALMEIDA
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
DECISÃO ABSOLUTÓRIA
CONDENAÇÃO
INJÚRIA AGRAVADA
PENA DE MULTA
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
CONSTITUCIONALIDADE
REJEIÇÃO PARCIAL
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Data do Acordão: 04/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :
I. O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018, de 11/12, na fundamentação da declaração de inconstitucionalidade da norma da al. e), do n.º 1, do art. 400.º do CPP, salientou a ideia de que é a aplicação de pena - a sua determinação e escolha, que surge como elemento verdadeiramente novo porque não sujeito a 2.ª apreciação.

II. É esse concreto processo decisório novo que impõe a recorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente, condena o arguido.

III. Considerando a cláusula geral relativa aos poderes de cognição do Supremo, contida no art. 434.º do CPP, também na sua nova redação, conclui-se que o recurso, neste caso para um segundo tribunal superior, é restrito à matéria de direito.

IV. A modificabilidade da decisão de facto, em recurso apenas em matéria de direito, é permitida, nos termos da al. a), do art. 431.º, do CPP, ou seja, se “do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base”.

V. No caso, o requisito legal de modificabilidade mostra-se no limite do cumprimento, sem que, contudo, tenha ocorrido, de modo claro, uma expressão do juízo prévio sobre a suficiência das provas necessárias para essa finalidade – as provas existentes no processo, a apreciar criticamente.

VI. Na interpretação do TEDH sobre a extensão da proteção do direito à liberdade de expressão (consagrado no art. 10 da CEDH), mostra-se estabilizada uma acentuada orientação restritiva, definindo-se um conjunto de critérios de apreciação da conformidade das normas e da jurisprudência dos Estados signatários com o referido texto convencional, nomeadamente: o critério da necessidade de interferência numa sociedade democrática; na definição dos elementos constitutivos da difamação, a existência de uma ligação objetiva entre a declaração em causa e a pessoa do ofendido; o grau de gravidade do ataque à reputação, suscetível de prejudicar o gozo do direito ao respeito pela vida privada e a proporcionalidade.

VII. O TEDH e a jurisprudência recente deste Tribunal têm considerado que uma interferência no direito à liberdade de expressão é proporcional e necessária, numa sociedade democrática, quando não existam outros meios menos gravosos para obter o mesmo fim.

VIII. As expressões dirigidas, embora e de forma clara, à ofendida, no contexto descrito de reação indignada, não afetam as condições essenciais para que a assistente, como dizia Beleza dos Santos, “possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale”, nem o “conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal forma que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa ao desprezo público”.

IX. A declaração crítica do arguido sobre a qualidade do desempenho de dirigente da assistente, bem como os impropérios proferidos, terão, eventualmente, relevo em outros espaços sancionatórios, mas não assumem nem gravidade, nem mesmo, qualidade com aptidão para desencadear reação penal, mostrando-se excluídas da tipicidade do crime de injúria, p. e p. pelo n.º 1, do art. 181.º, do Código Penal.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I.     Relatório

1. AA, arguido identificado nos autos, não se conformando com o Acórdão proferido, em 05.12.2022, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, que procedeu ao suprimento de nulidade e a correção de acórdão anterior, veio ao abrigo dos arts. 399.º e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, dele recorrer.

O recorrente fora, inovadoramente, condenado por Acórdão de 24.10.2022 , do Tribunal da Relação de Guimarães, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181.º, n.º 1, 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), o que perfaz a multa de € 560,00 (quinhentos e sessenta euros) e no pagamento de uma indemnização a título de danos não patrimoniais, no montante de 1.000,00 € (mil euros).

A sentença absolutória havia sido proferida, em 21.02.2022, pelo Juízo de Competência Genérica ....

2. Formulou as seguintes conclusões (transcrição):

“a) Do Acórdão recorrido

1º.   O Acórdão recorrido enferma de diversos erros notórios na apreciação da prova, nos termos do art. 410,º, n.º 2, al. c), do CPP;

2º.    Tais erros encobrem a existência de dúvidas objectivas, razoáveis e inultrapassáveis acerca da prova, mormente tocante aos factos descritos sob as als. Q., W., X., e HH., do elenco de factos não provados, que, mercê da sua apreciação notoriamente errada, foram resolvidas contra o Arguido, em violação do princípio in dubio pro reo, corolário do principio da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, da Constituição da Republica Portuguesa).

3º.   O Tribunal “a quo”, no Acórdão impetrado, interpretou e aplicou incorrectamente o disposto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, ignorando por completo – como se lhe impunha – o texto da sentença primeiramente recorrida na aferição do erro notório na apreciação da prova que a esta imputou.

4º.   Ao invés, como se mostrará, pronunciou-se sobre o mérito da apreciação da prova e da decisão que essa apreciação orientou, proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.

5º.    Ao abrigo dessa incorrecta interpretação e aplicação do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, seguindo o disposto no art. 431.º n.º1, al. a) o Tribunal “a quo” modificou a matéria de facto fixada pelo Tribunal de 1.ª instância, dando como provados sob os n.ºs 13-A a 13-C os factos que antes constavam das als E. a G., dos factos não provados, o que permitiu a condenação do Arguido, dado que aqueles factos são absolutamente instrumentais para a integração factual dos elementos subjectivos do crime em pauta.

6º.   Porquanto a Assistente, no âmbito do recurso interposto da sentença de 1.ª instância, não impugnou esta decisão no que tange à matéria de facto, defende-se que o Tribunal “a quo” não se podia pronunciar quanto ao mérito da apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal de 1.ª instância, tendo sucessivamente modificado a decisão de 1.ª instância quanto à matéria de facto e revertido a absolvição, nos termos atrás concretizados.

7º.    O Tribunal “a quo”, assim, conheceu de questões que não podia conhecer, padecendo o Acórdão recorrido, por isso, da nulidade prevista no art. 379,º n.º 1, al. c), aplicável por força do art. 425.º, n.º 4, ambos do CPP.

8º.   Fê-lo, ademais, em violação do princípio in dubio pro reo, resolvendo contra o Arguido um non liquet da prova, susceptível de influir no exame da causa, cuja existência está expressamente declarada no texto do Acórdão recorrido.

9º.   Por outro lado, o Tribunal “a quo” interpretou e aplicou erroneamente a norma incriminadora constante do art. 181.º, do CP, no preenchimento dos elementos objectivos tipificados na referida norma.

10º. A dimensão normativa assumida pelo Tribunal “a quo” na interpretação da referida norma incriminadora está inquinada de inconstitucionalidade material, por violar os arts. 18.º, n.º 2 e 37.º, n.ºs 1, 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa.

11º. A decisão condenatória proferida pelo Tribunal “a quo” está ainda ferida de inconstitucionalidade material por violar o disposto no art. 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (violando, também, o disposto no art. 1.º, n.º 1, do CP), por ter aplicado uma sanção penal ao Arguido sem existir previamente uma lei a determinar a punibilidade da acção pela qual condenado.

12º. Por fim, o Tribunal “a quo”, na individualização da pena de multa aplicada ao Arguido – 80 dias de multa, à taxa diária de €7,00 – violou o disposto nos arts. 40.º, 71.º, n.ºs 1 e 2 do CP.

13º. Preliminarmente, arvora-se a seguinte questão quanto à inconstitucionalidade da norma resultante da conjugação do art. 400.º, n.º1, al. e) e art. 434.º, do CPP na interpretação segunda a qual o recurso interposto pelo Arguido para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdãos proferidos pelas Relações em sede de recurso, que, inovadoramente em face de uma decisão absolutória de 1.ª instância, modifiquem esta decisão quanto à matéria de facto e, consequentemente, apliquem ao Arguido uma pena não privativa da liberdade ou de prisão não superior a cinco anos, não pode sindicar a decisão recorrida quanto à matéria de facto.

14º. Decorre do art. art. 401.º, n.º 1, al. b), do CPP, que o Arguido apenas tem legitimidade para recorrer das decisões contra ele proferidas. O Arguido não pode, portanto, recorrer de decisões absolutórias, concorde ou não com os respectivos fundamentos de facto e de direito;

15º. Sucede no caso dos presentes autos que, no seguimento do recurso interposto pela Assistente da decisão absolutória de 1.ª instância, legitimada para recorrer nos termos do art. 401.º, n.º 1, al. b), do CPP, o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, inovadoramente, modificou a decisão de 1.ª instância quanto à matéria de facto, e, no seguimento dessa modificação, condenou o Arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria agravada, aplicando-lhe uma pena multa de 180 dias, à taxa diária de 7 euros.

16º. Nos presentes autos, acresce ainda a agravante de que o Tribunal “a quo” modificou a decisão de 1.ª instância quanto à matéria de facto com fundamento num erro notório na apreciação da prova, e não com base na impugnação da mesma pela Assistente, no âmbito do recurso interposto daquela decisão.

17º. Os recursos dos Acórdãos proferidos pelas Relações são interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 432.º, n.º 1, al. b) do CPP.

Todavia, decorre do art. 434.º, do CPP, que, sem prejuízo das excepções nele previstas, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito.

18º. Pelo que, salvo as excepções previstas na lei, em sede de recurso, o Supremo Tribunal de Justiça não sindica a matéria de facto fixada pelas instâncias.

19º. Um tal regime recursório veda ao Arguido, no exercício do seu direito ao recurso constitucionalmente garantido (art. 32.º, n.º 1, da CRP) o acesso a um duplo grau de jurisdição no que concerne a reapreciação da decisão quanto à matéria de facto, nas hipóteses em que é absolvido em 1.º instância e sucessivamente condenado, mercê de uma reapreciação da matéria de facto levada a cabo pela Relação, no âmbito do recurso interposto pelo Ministério Público ou pelo Assistente.

20º. Tal solução legal reputa-se de manifestamente atentadora das garantias de defesa do Arguido constitucionalmente consagradas, maxime do seu direito ao recurso. É aqui que se localiza a questão de inconstitucionalidade.

21º. A liberdade conformadora agraciada ao legislador ordinário pela Constituição na concretização do regime processual penal de recurso e da recorribilidade das decisões encontra no direito ao recurso, justaposto às garantias de defesa do Arguido, o seu limite implícito.

22º. O direito ao recurso é uma aresta essencial das garantias de defesa do Arguido, assegurando-lhe o direito obter de um Tribunal distinto, hierarquicamente superior, a reapreciação de decisões condenatórias e de actos judiciais que tenham como efeito a privação ou a restrição da sua liberdade ou de outros direitos fundamentais.

23º. A actividade legiferante, na conformação do regime processual penal de recurso e da recorribilidade das decisões não pode nunca aventurar de forma desrazoável, arbitrária e desproporcionada as garantias de defesa do Arguido.

24º. Além disso, uma compressão ao direito ao recurso tem que ser justificada pela realização de outros valores ou interesses de assento constitucional, igualmente com reflexo na arquitectura estrutural do processo penal, tendo sempre como limite o núcleo imprescindível das garantias de defesa.

25º. Nesta fórmula é condensado o parâmetro de controlo em contraposição com o qual é aferida a constitucionalidade de uma determinada norma ou dimensão normativa, no que à conformação legal do regime de recurso em processo penal respeita.

26º. O direito ao recurso é normalmente concretizado na existência de um duplo grau de jurisdição: a possibilidade da causa ser reapreciada por um segundo tribunal, hierarquicamente superior do primeiro.

27º. Sem prejuízo da confluência entre as duas figuras – o duplo grau de jurisdição é pressuposto do direito ao recurso – o direito ao recurso não se esgota, necessariamente, na existência de um duplo grau de jurisdição;

28º. Assim será sempre que as exigências da garantia constitucional de defesa do Arguido o demandem.

29º. Ora, a solução legal consagrada pela conjugação da norma do art. 400.º, n.º 1, al. e) com a norma do art. 434.º, ambos do CPP, na interpretação segundo a qual os recursos interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça dos Acórdãos proferidos pela Relações em recurso que, inovadoramente em face de uma decisão absolutória de 1.ª instância, modificam a decisão quanto à matéria de facto e, consequentemente, condenam o Arguido em pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a cinco anos, não assegura o núcleo imprescindível das garantias de defesa do Arguido, constitucionalmente reconhecidas.

30º. Não quedam dúvidas que, na sequência das alterações efectuadas à norma constante do art. 400.º, n.º1, al. e), do CPP, na redacção dada pela Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro, o actual regime processual penal permite ao Arguido o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dos Acórdãos proferidos pelas Relações que, inovadoramente em face da decisão de 1.ª instância absolutória, lhe apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a cinco anos, permitindo-lhe, em relação à decisão condenatória, que se apresenta, por definição, como uma novidade, o acesso a um (primeiro) duplo grau de jurisdição.

31º. Malgrado, como se viu, a sindicância da decisão proferida em 2.ª instância pelo Supremo Tribunal de Justiça, apenas pode incidir sobre questões de direito (salvo as excepções do art. 410.º, n.º 2, do CPP).

32º. Derivado deste regime recursório, resulta que, nos casos em que a Relação, fruto de uma modificação à decisão absolutória de 1.ª instância quanto à matéria de facto e da (nova) integração desses factos, consequentemente condena o Arguido e lhe aplica uma pena não privativa da liberdade ou de prisão não superior a cinco anos, este fica furtado de qualquer hipótese de defesa, por não poder obter a reapreciação da matéria de facto por parte um tribunal hierarquicamente superior – sendo certo que já a não tinha tido em relação à decisão absolutória de 1.ª instancia –, não obstante tal decisão constituir uma decisão ex novo não só em relação ao juízo de culpabilidade, à sua fundamentação e ao processo decisório de escolha e determinação do tipo de pena e da sua medida, mas também, na medida em que foi alterada, em relação à matéria de facto, cujo alcance tem o potencial de informar todos aqueles aspectos enumerados.

33º. De nada serve ao Arguido condenado inovadoramente em 2.ª instância em face de uma decisão de 1.ª instância absolutória, suscitar a apreciação de questões de direito pelo Supremo Tribunal de Justiça se, no seu âmago, o juízo de culpabilidade (e as suas consequências jurídicas) resultam de uma nova apreciação da matéria de facto, colocando em crise o acesso a uma tutela jurisdicional efectiva (cfr. art. 20.º, da Constituição da República Portuguesa)

34º. Nesses casos, o Arguido não pode recorrer eficazmente. Nesses casos, o direito ao recurso – onde se aposta toda a defesa – que ficou assegurado com a alteração efectuada ao art. 400.º n.º 1, al. e), do CPP, tem uma valência meramente formal. Nesses casos, as garantias de defesa continuam a sair prejudicadas.

35º. Comparativamente, o Ministério Público ou o Assistente são colocados numa posição mais vantajosa, já que o âmbito do recurso primeiramente interposto para o Tribunal da Relação da decisão de 1.ª instância absolutória não estaria limitado pelos poderes de cognição do tribunal de recurso (cfr. arts. 427.º e 428.º, do CPP).

36º. Esta assimetria é temperada pela possibilidade de resposta (cfr. art. 413.º, do CPP), porém, no âmbito da mesma, o Arguido não pode suscitar, de forma auto-suficiente, a reapreciação pelo tribunal de recurso de outras questões (com excepção das questões de conhecimento    oficioso),  em claro prejuízo das suas  garantias constitucionais de defesa, ficando esta subordinada aos fundamentos e objecto do recurso interposto.

37º. Ademais, nas situações em que o Tribunal da Relação, em sede de recurso, condena e aplica ao Arguido uma determinada pena, inovadoramente em face de uma decisão de 1.ª instância absolutória, existe uma contradição explícita entre duas decisões sobre a mesma causa. Esta circunstância maximiza a hipótese de uma delas estar errada.

38º. Neste tipo de situações, como se disse, as garantias de defesa do Arguido ficam totalmente apostadas no direito ao recurso, que, ante a referida contradição, deve ser considerado com especial deferência, mercê das exigências garantísticas de segurança jurídica convocadas pela existência de duas decisões opostas que recaem sob a mesma causa.

39º. Ora, se esta relação de contrariedade ganha expressão no domínio da matéria de facto, também quanto a ela deve o direito ao recurso ser ponderado com especial recrudescimento, na perspectiva das garantias de defesa do Arguido.

40º. Assim, nos termos supra expostos, não existem dúvidas que o direito ao recurso sofre uma compressão que perturba o núcleo das garantias de defesa do Arguido.

41º. A necessidade de uma disposição eficiente do sistema judiciário que legitima a racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, acentuando as funções de orientação e uniformização da jurisprudência – neste passo considerada na limitação dos seus poderes de cognição a questões de direito –, aquele que há muito é dado como o fundamento da restrição do acesso ao triplo grau de jurisdição, deve perder para a especial necessidade de assegurar ao Arguido o pleno direito ao recurso, cujo âmbito deve ser tanto maior quanto maior for o conteúdo inovatório da decisão condenatória do Tribunal de recurso.

42º. Se a decisão inovadora e condenatória de 2.ª instância assentar sobre a modificação da matéria de facto, também o recurso dela interposto deve poder versar sobre essa matéria, o mais elementar sentido de justiça a tanto injunge.

43º. Ainda que a Constituição não atribua ao direito ao recurso uma protecção absoluta, negar ao Arguido a possibilidade de se defender – ex post facto – desta nova decisão em toda a sua dimensão, constitui uma afectação de tal modo gravosa da posição da defesa que sempre exigiria, como contrapeso valorativo, a justificação num interesse público de relevo equivalente, o que manifestamente não é o caso.

44º. Os Tribunais administram a justiça em nome do povo (art. 203.º, n.º 1, da Constituição), não em nome da sua própria eficiência. Quando os Tribunais, por mais eficiente que seja o sistema judiciário que compõem, se isentam de cumprir a sua função jurisdicional de administrar a justiça em nome do povo, deixam de estar legitimados para o exercício dessa função.

45º. Aliás, é do total interesse para a eficiência do sistema judiciário que os recursos interpostos para a derradeira instância sejam úteis. Permitir, em abstracto, o recurso para o Supremo de Tribunal de decisões inovadoras proferidas em recurso pela Relação cuja inovação procede de uma modificação à matéria de facto e vedar àquele Tribunal o reexame dessa mesma matéria com o desígnio de assegurar a eficiência do sistema judiciário é um contra-passo lógico.

46º. Tal afectação, portanto, é arbitrária, desrazoável e desproporcionada, violando o disposto no art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

47º. Assim, é forçoso concluir que a norma resultante da conjunção do art. 400.º, n.º 1, al. e) com o art. 434.º, do CPP, na interpretação segunda a qual o recurso interposto pelo Arguido para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão do Tribunal da Relação que, inovadoramente em face de uma decisão absolutória de 1.ª instância, modifica esta decisão quanto à matéria de facto e, consequentemente, condena e aplica ao Arguido uma pena não privativa da liberdade ou de prisão não superior a cinco anos, não pode sindicar a decisão recorrida no que tange à matéria de facto é inconstitucional, por violar o art. 32.º, n.º 1 e o art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

48º. A evolução que marca o pensamento legislativo permite inferir que era a vontade do legislador permitir ao Arguido recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça dos Acórdãos proferidos em recurso pelas Relações que, inovadoramente em face de uma decisão absolutória de 1.ª instância, lhe tenham aplicado pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a cinco anos, possibilitando a reapreciação do caso por uma instância hierarquicamente superior.

49º. Não há razão para crer que o legislador pretendia limitar o âmbito desse recurso a questões de direito, porquanto a racionalidade subjacente à alteração à lei mostra que o verdadeiro intuito do legislador era assegurar as garantias de defesa com matrícula constitucional, permitindo ao Arguido o recurso de uma decisão inovadoramente condenatória – e tudo que essa inovação abrange.

50º. Posto o que, das duas uma: ou legislador disse menos do que queria dizer quando alterou o art. 400.º, n.º 1, al. e) do CPP ou, correspondentemente, não reformulou o regime processual penal de recurso, nessas condições, para o Supremo Tribunal de Justiça, de modo a dar total efeito ao seu objectivo: permitir ao Arguido – em concretização do direito ao recurso e das garantias de defesa – recorrer das decisões das Relações que, inovadoramente em face da decisão de 1ª instância, apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão até cinco anos.

51º. Portanto, nos termos do art. 9.º, n.º 1, do CC, é metodologicamente legítimo, e possível, operar uma interpretação extensiva da norma resultante da flexão do art. 400.º, n.º 1, al. e) com o art. 434.º, do CPP.

52º. Caso a dimensão normativa em questão não seja interpretada sem o devido enquadramento histórico e teleológico, acolher-se-ia uma solução que é contrária à vontade do legislador, ademais produzindo uma contradição intra-sistémica manifestamente insuportável: permitir um recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que pode revelar-se ser absolutamente inútil, e todas as condicionantes que dai decorrem para a celeridade e a eficiência do sistema judiciário. Nestes casos, deverá o intérprete empreender uma “ampliação histórico-teleológica” proporcional da norma em questão, em benefício das garantias de defesa do Arguido, de modo a que o Supremo Tribunal de Justiça possa conhecer da matéria de facto.

53º. Alternativamente, na condição de V. Exas. acolherem a argumentação atrás desenvolvida, nos termos do art. 204.º da Constituição da República Portuguesa, pede-se que desapliquem ao caso concreto a norma resultante da conjugação do art. 400.º, n.º 1, al. e) com o art. 434.º, do CPP, segundo a qual o recurso interposto pelo Arguido para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão proferido pela Relação em recurso que, inovadoramente face à decisão de 1.ª instância, modifica este decisão quanto à matéria de facto e, consequentemente, o condena em pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a cinco anos, apenas pode versar sobre questões de direito.

54º. Sem prejuízo da invocada inconstitucionalidade, na esteira do entendimento perfilhado pela mais aplaudida doutrina e igualmente sufragado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, têm-se que o princípio in dubio pro reo, apesar de manter com a matéria de facto uma relação estreita, “constitui um limite normativo da livre convicção probatória, assumindo uma vertente de direito, passível de controlo pelo Supremo Tribunal de Justiça.” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/01/2014, proc. n.º 331/05).

55º. O Supremo Tribunal de Justiça pode, então, controlar a violação do princípio in dubio pro reo sempre que se possa prescindir da declaração da dúvida evidente, “já porque esta resultava de uma valoração emergente do simples texto da decisão recorrida por si ou de acordo com as regras da experiência comum, de acordo com aquilo que é usual acontecer, já por incurso em erro notório na apreciação da prova.” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/01/2014, proc. n.º 331/05).

56º. No caso, a decisão recorrida, revista à luz das regras da experiência comum, exterioriza textualmente diversos erros notórios na apreciação da prova.

57º. Estes erros notórios na apreciação da prova revelam situações de dúvida relativamente à prova que o Tribunal “a quo”, na decisão recorrida, resolve em prejuízo do Arguido, violando o princípio in dubio pro reo.

58º. Em qualquer caso, a existência dessa dúvida, quanto ao facto não provado inscrito sob a al. HH., está expressamente declarada no Acórdão recorrido (“certo é que não fica demonstrado que o arguido, efetivamente, seja vítima de uma atuação persecutória encetada pelo ex-diretor BB, continuada pela atual Diretor CC (cônjuge daquele), nem que a assistente pactue com essa conduta ou mesmo que, da sua lavra, crie um ambiente hostil em relação ao arguido – embora muitos sejam os indícios que apontem nesse sentido.” (cfr. último paragrafo da p. 22 do Acórdão recorrido, negrito e sublinhado do signatário).

59º. Quanto à motivação do facto não provado descrito sob a al. HH., além do supra transcrito, pode ler-se no Acórdão recorrido que o seu não convencimento “resulta de ou não se ter produzido qualquer prova a tal respeito ou a de esta se mostrar insuficiente para sufragar entendimento diferente.

60º. Quanto à motivação dos factos redigidos sob as als. Q., W. e X., a “convicção negativa quanto à matéria descrita de A) a JJ) exprime ou a insuficiência da prova produzida, para lá de qualquer dúvida, ou a circunstância de esses factos terem sido infirmados pela mesma prova,ou a circunstância de tal factualidade se mostrar em contradição com a julgada assente” (cfr. primeiro parágrafo da p. 20 do Acórdão recorrido).

61º. Nada mais se deslinda da leitura Acórdão recorrido (ou da sentença de 1.ªinstância) a propósito destes factos, mormente quanto à racionalidade que justifica a decisão de terem sido mantidos como não provados em face de terem sido dados como provados os factos ínsitos nos n.ºs 22) a 44).

62º. No entanto, como se adivinha, dimana do texto do Acórdão ora recorrido que nos autos ficaram provados um conjunto de factos que, diante da omissão de qualquer outra explicação, no trilho das regras da experiência comum, se apresentam como uma consequência lógico-conclusiva daqueles.

63º. Pode ler-se o seguinte no Acórdão recorrido: “Face ao que se expôs quanto à matéria refletida nos n.ºs 27) e 36) e em face do que antecede, e embora se tenha procurado escamotear tal evidência, não se vive um bom ambiente na secretaria da escola sede do agrupamento. Coisa diferente, é imputar esse mau ou «tenso» ambiente a alguém em particular – seja a direção (atual, anterior, ambas), seja à assistente (por sua vontade, ou por seguidismo da direção). Neste passo, nada se logrou demonstrar com segurança, embora o descrito nos pontos 22) a 35), conjugadamente, o indiciem.” (cfr. p. 21 do Acórdão recorrido, sublinhado do subscritor).

64º. Mostrar-se-á, contudo, que mais do que indiciar o facto HH., a factualidade descrita sob os n.ºs 22) – que aqui, por dever de síntese, se considera integralmente reproduzida – organizada cronologicamente e emoldurada na sua motivação (conforme está registada no Acórdão recorrido), conta uma história que exterioriza bem o desiderato das diferentes personagens que a actuaram, apresentando-se os factos Q. W., X. e HH., dos factos não provados, à luz das regras da experiência comum, como uma consequência discursivamente necessária daqueles.

65º. Feito este enquadramento, facilmente se capta que nos autos não só se fez prova da existência de um mau ambiente de trabalho nos serviços administrativos do Agrupamento de Escolas ..., em ..., como também se fez prova de um conjunto de factos que permite adjectivar esse mau ambiente, designadamente quanto à sua origem, aos responsáveis pela sua criação e manutenção, às situações em que se materializa e às consequências dele advindas para os trabalhadores dos serviços administrativos, maxime para o Arguido.

66º. Vejam-se os factos provados catalogados sob os n.ºs 25), 26), 27), 35) e

36) em contraposição com os factos não provados elencados sob as als. Q., W., e X.

67º. Da comparação entre estes e aqueles – ao dar uns como provados e outros como não provados – é patente a existência de uma incompatibilidade semântico-linguística e, por defeito de qualquer outra explicação, uma desconformidade às regras da experiência comum, sendo os últimos uma implicação lógica dos primeiros.

68º. É nessa incompatibilidade e desconformidade que se descortinam os erros notórios na apreciação da prova em que incorreu o Tribunal “ a quo”, no Acórdão recorrido, os quais encapotam uma apreciação da prova feita sempre in malam parte:

69º. Quanto ao facto Q. dos factos não provados, o mesmo, no caminho das regras da experiência comum, estabelece com o complexo de factos provados n.ºs 25) a 27) e 36) um nexo lógico-conclusivo: se o Arguido, em 2015, foi afastado das funções de ... (que exercia desde 1998) e progressivamente lhe foram sendo retiradas funções e tarefas, tanto que hoje em dia não dispõe sequer das senhas de acesso aos diversos programas dos serviços da secretaria e passa grande parte do seu tempo sentado à secretária – passe-se a expressão – “sem fazer nenhum”, com excepção das tarefas que lhe vão sendo atribuídas ad hoc ou daqueles outras que lhe estão atribuídas mas não revestem qualquer relevância funcional ou se esgotam num curto espaço de tempo, e por isso se sente desvalorizado profissionalmente, é evidente que o Arguido, desde meados de 2015, assiste a uma dissipação gradual das suas funções.

70º. Como se disse, a realidade reflectida neste facto é a consequência logicamente conclusiva – semanticamente confirmada – daqueles outros factos, conforme decorre das regras da experiência comum.

71º. Dissipar significa perder, desvanecer. Ora, se foi dado como provado que dantes o Arguido exercia as funções de ... e que, desde 2015, foi deixando de ter funções e tarefas atribuídas, sendo a sua situação actual aquela atrás descrita, o facto Q. (não provado) apresenta-se como uma conclusão logicamente necessária dos factos provados n.ºs 25), 26), 27) e 36).

72º. É ostensivo que o Acórdão recorrido incorreu num erro notório na apreciação da prova, por existir uma incompatibilidade semântico-linguística e uma desconformidade lógica, na senda das regras da experiência comum, expresso na decisão de como provados os factos n.ºs 25) a 27) e 36) e como não provado o facto Q.

73º. O pedaço da realidade espelhado no facto n.º 35), tal como resulta da sua própria formulação e da respectiva motivação, mostra que a Assistente advertiu uma ex-trabalhadora dos serviços administrativos por se dirigir ao Arguido durante o exercício das respectivas funções, dizendo-lhe que falar com ele dá “mau aspecto”.

74º. Como dá conta o próprio Acórdão recorrido (“DD (ex-funcionária) começou o seu depoimento a afirmar que na secretaria se vivia um ambiente de desconfiança, em que não se podia olhar para o lado ou falar com alguém, que já era por algum motivo e terminou o seu depoimento dizendo que não se adaptou àquele serviço e pediu para sair (pela 1.ª vez em mais de 20 anos de serviço), porque não tinha estômago para aquilo (além de ter tido uma oportunidade de trabalho na sua área); também disse que o arguido era posto de parte pela assistente, que não mantinha com aquele o trato que mantinha com os demais funcionários”, cfr. terceiro parágrafo da p. 21 do Acórdão recorrido, negrito e sublinhado do signatário), a trabalhadora dos serviços administrativos que atestou este facto (a único testemunha ouvida a propósito que ao tempo do seu depoimento já não trabalhava nos serviços administrativos do Agrupamento de Escolas ...), também afirmou que o Arguido era posto de parte pela Assistente, que esta não mantinha com aquele o trato que mantinha com os demais funcionários.

75º. Tudo considerado, forçoso se torna concluir que a Assistente marginaliza, discrimina, provoca e humilha o Arguido. “Por de parte” e “tratar de forma diferente” são expressões sinónimas de marginalizar e/ou descriminar – é nisso que marginalizar e discriminar consiste.

76º. Afirmar que falar com uma determinada pessoa dá “mau aspecto” é uma forma inegável de provocação e de humilhação.

77º. O facto descrito sob o n.º 35) é literalmente subsumível no facto não provado descrito sob a al. X., embora este seja dado como não provado.

78º. A factualidade descrita sob as als. W. e X., ambos não provados, são derivações semântico-linguísticas do facto n.º 35).

79º. Tendo em conta o significado dado àquelas palavras e atenta a formulação de uns e outro, existe uma incompatibilidade lógica patente na apreciação da prova que permite dar este como provado e aqueles como não provado.

80º. Clamando às regras da experiência comum – e mais uma vez perante a inexistência de qualquer outra explicação –, se a Assistente põe de parte e trata de maneira diferente o Arguido, chegando a advertir uma ex-trabalhadora dos serviços administrativos para não falar com o Arguido no âmbito do exercício das respectivas funções, dizendo-lhe que falar com o mesmo dá “mau aspecto”, então a Assistente marginaliza, discrimina, provoca e humilha o Arguido;

81º. Se uma ex-trabalhadora dos serviços administrativos foi advertida pela Assistente para não falar com o Arguido no âmbito do exercício das respectivas funções porque falar com ele dá “mau aspecto” então tenta isolá-lo dos demais trabalhadores da secretaria, proibindo estes de se dirigirem à secretária daquele ou de com ele conversarem, ainda que no contexto do exercício das respectivas funções.

82º. É totalmente desconforme às regras da experiência comum dar como provado o facto n.º 35, considerada a respectiva motivação, e dar como não provado os factos descritos sob as als. W. e X.. De acordo com as regras da experiencia comum, estes são implicações logicamente necessárias daquele.

83º. Se uma ex-trabalhadora dos serviços administrativos foi advertida pela Assistente para não falar com o Arguido no âmbito do exercício das respectivas funções porque falar com ele dá “mau aspecto” então tenta isolá-lo dos demais trabalhadores da secretaria, proibindo estes de se dirigirem à secretária daquele ou de com ele conversarem, ainda que no contexto do exercício das respectivas funções.

84º. É totalmente desconforme às regras da experiência comum dar como provado o facto n.º 35, considerada a respectiva motivação, e dar como não provado os factos descritos sob as als. W. e X.. De acordo com as regras da experiencia comum, estes são implicações logicamente necessárias daquele.

85º. Tendo dado por provados o facto n.º 35) e como não provado os factos W. e X., o Acórdão recorrido evidencia ter incorrido num erro notório na apreciação da prova, por existir uma relação de incompatibilidade semântico-linguística e de desconformidade lógica, por via do senso comum, entre essa disparidade decisória.

86º. No que respeita ao facto não provado HH., em abstracto, de antemão, urge enfatizar que os responsáveis legais pela direcção, gestão e organização dos serviços administrativos do Agrupamento de Escolas ..., incluindo dos recursos humanos subordinados, são o Director, na pessoa da directora CC (cfr. art. 20.º, n.º 4, al. l e art. 46.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 75/2008), e o Coordenador Técnico dos serviços administrativos, pelo Director indicado (cfr. art. 46.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 75/2008) – no caso, a aqui Assistente. Este tanto resulta, além do mais, das regras da experiência comum.

87º. Este facto – notório – não é despiciendo: se nos serviços administrativos do Agrupamento de Escolas ... existe um ambiente de trabalho não salutar, violador de inúmeras disposições legais, que leva os trabalhadores que lá prestam o seu trabalho a sair ou desejar sair, os primeiros responsáveis pela sua criação e/ou conservação, ainda que por omissão, são o respectivo Director e o Coordenador Técnico dos serviços administrativos, responsáveis legais pela sua direcção, gestão e organização.

88º. Importa denotar que este facto não se circunscreve a uma mera ideação do Arguido ou a uma interpretação mais ou menos rigorosa das regras da experiência comum, ancorada na restante matéria de facto assente nos autos: decorre, pois, da lei.

89º. Neste facto, e sem mais, se poderia aportar a verificação de um erro notório na apreciação da prova em relação ao facto HH., dos factos não provados.

90º. Tendo ficado assente que existe um mau ambiente de trabalho nos serviços administrativos do Agrupamento de Escolas ..., é evidente que a sua criação (ou manutenção) procede, por acção ou omissão, do respectivo Director e do Coordenador Técnico dos serviços administrativos, por aquele indicado, porquanto são eles os responsáveis legais pela sua direcção, gestão e organização.

91º. Mais simplisticamente ainda, se nos autos é dado como provado que existe um mau ambiente nos serviços administrativos do Agrupamento de Escolas ... com derivado, nomeadamente, do facto de o Arguido não ter serviço distribuído e funções e tarefas atribuídas, levando a que o mesmo se sinta profissionalmente desvalorizado, e a distribuição do serviço e a atribuição de funções e tarefas são da competência do respectivo Director e do Coordenador Técnico dos serviços administrativos, então, logicamente, são estes responsáveis pela criação desse mau ambiente.

92º. Tal argumento pode ser resumido num breve silogismo, para tornar cristalino o raciocínio que encerra: a distribuição do serviço e a atribuição de funções e tarefas ao Arguido é da competência do Director do Agrupamento e do Coordenador Técnico dos serviços administrativos (A). O Arguido não tem serviço distribuído e as funções e tarefas que lhe são atribuídas são irrelevantes, passando grande parte da sua jornada de trabalho sentada à secretária (B), o que faz com que o mesmo se sinto profissionalmente desvalorizado e gera mau ambiente de trabalho nos serviços administrativos do Agrupamento (C). Ora, se A → B, e B → C, então, A → C.

93º. Mas em boa verdade, o alcance do facto descrito sob a al. HH. (não provado), é mais vasto: o facto, não provado, descrito sob a al. HH. é o culminar de boa parte da actividade probatória efectuada nos presentes autos.

94º. É nesse sentido que grande parte da prova produzida nos autos aponta;

95º. É sobre essa realidade que muitos dos factos provados nos autos deitam luz;

96º. E porque assim é, o próprio Acórdão abona que nos autos são muitos os factos que indiciam o facto HH.

97º. Ao dá-lo como não provado, em desfavor do Arguido, o Tribunal “a quo” fecha os olhos ao encadeamento lógico do complexo de factos descrito sob os n.ºs 22) a 44) que o mesmo reconhece existir.

98º. Ao desconsiderar os factos firmados sob os n.ºs 22) a 44) e a respectiva motivação, e concluir que o mau ambiente de trabalho vivenciado no Agrupamento de Escolas ... não foi criado pela respectivo Director e/ou pelo Coordenador Técnico dos Serviços Administrativos, o Tribunal “a quo” legitima uma administração que prima pela perseguição dos docentes e funcionários que actuaram judicialmente contra o Conselho Geral Transitório que, ilegalmente, veio a eleger o anterior director do Agrupamento, cônjuge da actual directora, e continuam a não compactuar com o actual regime.

99º. O Tribunal “a quo”, ao postergar aqueles factos, dá respaldo a uma administração do Agrupamento de Escolas ... e dos respectivos serviços administrativos responsável pela criação de um ambiente de trabalho tóxico, que leva quem lá presta o seu trabalho a sair ou desejar sair.

100º. Reitera-se que o Arguido não nega – nem nunca negou – ter proferido as expressões em causa nestes autos.

101º. O Arguido apenas quis dar a saber ao Tribunal a verdade daquilo que diariamente vive nos serviços administrativos do Agrupamento de Escolas ..., em ..., na prestação do seu trabalho.

102º. O Arguido logrou mostrar, concretizadamente, que o ambiente de trabalho nos serviços administrativos do Agrupamento de Escolas ... não é salutar, extravasando em larga medida a normalidade (e a legalidade).

103º. Apenas o Tribunal “a quo” quis ignorar essa realidade, a que o Tribunal de 1.ª instância foi sensível, em virtude da imediação da prova e a convicção que formou na decorrência da mesma.

104º. E este tanto, sob a égide da boa administração da justiça, o Arguido não pode abster-se de deixar escrito.

105º. Reputa-se de absolutamente incompatível com a ordem lógica estabelecida pela regras da experiência comum dar como não provado que o mau ambiente vivido nos serviços administrativos do Agrupamento de Escolas ... foi criado por alguém em particular quando decorre textualmente dos factos que permitem assumir a existência desse tal mau ambiente que o mesmo foi criado, ou pelo menos conservado, pelo Director do Agrupamento e/o pelo Coordenador Técnico dos serviços administrativos.

106º. Sob a lupa das regras da experiência comum, é essa única interpretação possível dos acontecimentos narrados pelo sequência factual inserta sob os n.ºs 22) a 44).

107º. Convocadas as regras da experiência comum, tendo em conta a normalidade da vida, em face do sumiço de qualquer outra explicação possível, conclui-se do exposto supra que os factos Q., X., W., e HH. são uma conclusão logicamente necessária do somatório factual inscrito sob os n.ºs 22) a 44); se estes foram dados como provados, também aquele teriam que o ser.

108º. O Acórdão recorrido padece de erros notórios na apreciação da prova, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, tendo quanto a ela decidido com base em juízos logicamente contraditórios.

109º. A apreciação da prova promovida pelo Acórdão recorrido é tão notoriamente errada que o mesmo facto é, simultaneamente, dado como provado e não provado: o facto descrito sob o n.º 44 dos factos provados figura também sob a al. CC., dos factos não provados, sendo certo que motivação do facto descrito sob o n.º 44 o Acórdão recorrido reconhece que a sua prova decorre linearmente do depoimento do anterior Presidente da Câmara ....

110º. O mesmo facto não pode, simultaneamente, ser verdadeiro e falso, carecendo de pouca explicitação a contrariedade lógica expressa nessa relação.

111º. Em paralelo, os erros notórios na apreciação da prova imputados ao Acórdão impugnado encobrem uma violação ao princípio in dubio pro reo.

112º. É por demais evidente que existem – ou deviam ter existido – dúvidas acerca da prova, objectivas e razoáveis, atinentes aos factos supra, as quais foram resolvidas através de sucessivos erros notórios na apreciação da prova e em prejuízo do Arguido.

113º. Quanto a eles, é palpável do texto do Acórdão que sempre a prova produzida deveria ter suscitado na convicção do julgador uma dúvida objectiva e razoável – como de facto sucedeu, tanto que se admite no Acórdão recorrido que os factos n.º 22) a 35) indiciam o facto não provado HH..

114º. Se indiciam a sua verificação, logicamente, é porque existe uma dúvida objectiva e razoável quanto a ele.

115º. Sempre a prova deveria ter suscitado na convicção do julgador uma dúvida objectiva e razoável – como de facto sucedeu, tanto que se admite no Acórdão recorrido que os factos n.º 22) a 35) indiciam o facto não provado HH.

116º. Se indiciam a sua verificação, logicamente, é porque existe uma dúvida objectiva e razoável quanto a ele.

117º. Ora, se existe um non liquet da prova relativamente a factos que, atento o crime pelo qual o Arguido vinha acusado, são determinantes para o apuramento da sua responsabilidade criminal, os mesmos, por força do princípio in dubio pro reo, enquanto corolário do princípio da presunção de inocência, teriam que ser resolvidos a favor daquele, o que aqui não sucedeu.

118º. Tanto a sentença de 1.ª instância como o Acórdão recorrido deram como não provados os factos descritos sob as als. Q. W., X. e HH., não obstante existirem dúvidas objectivas e razoáveis – porque os factos 22) a 44) o indiciam – quanto a essa a realidade.

119º. Logo, nestes termos, conclui-se que tanto a sentença de 1.ª instância, em relação à qual o Arguido não teve qualquer oportunidade de se pronunciar, como o Acórdão recorrido, que, neste conspecto, concorre integralmente no entendimento da sentença de 1.ª instância, violam o princípio in dubio pro reo, ao mesmo tempo que incorrem em diversos erros notórios na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP), que se deixaram assinalados nas conclusões que antecedem.

120º. A dúvida objectiva e razoável que pairava sobre os factos lapidados nas als. Q. W. X. e HH., dos factos não provados, entrevista através do texto do Acórdão recorrido e dos erros notórios na apreciação da prova que este ostenta, deveria ter sido resolvida a favor do Arguido.

121º. Aqueles factos, a título oficioso, por aplicação do art. 410º, n.º 2 e do art. 431.º, n.º 1, al. a), deviam ter sido dados como provados pelo Tribunal “a quo”.

122º. Na hipótese de o Supremo Tribunal de Justiça aderir à exposição supra firmada quanto à inconstitucionalidade da norma resultante do art. 400.º, n.º 1, al. e) e do art. 434.º, do CPP, no seguimento da interpretação histórico teleologicamente anexada do art. 434.º, do CPP que atrás se defendeu ou da desaplicação ao caso concreto da dimensão normativa cuja inconstitucionalidade supra se suscitou, constando dos autos todos os elementos de prova que serviram de base à decisão quanto a eles (art. 431.º, n.º 1, al. a), do CPP), de acordo com o disposto no art. 410.º, n.º 2, do CPP, deve o Tribunal “ad quem”, oficiosamente, sanar os referidos erros notórios na apreciação da prova, bastando, para tanto, dá-los por provados

123º. Já o facto descrito sob a al. CC., dos factos não provados, deve ser eliminado.

124º. Caso assim não se entenda, deve o processo ser enviado para novo julgamento, nos termos do art. 426.º, n.º 2, do CPP, relativamente às questões da matéria de facto que neste ponto em concreto se arrebatem, levando em conta, quanto aos mesmos, o sentido aqui defendido.

125º. O Tribunal “a quo”, na trajectória do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, “descobriu” na sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância um erro notório na apreciação da prova, o qual conduziu à modificação daquela decisão quanto à matéria de facto (e sucessivamente à condenação do Arguido), passando os factos não provados descritos sob as als. E) a G) a constar do rol de factos provados, agora inscritos sob os n.ºs 13-A a 13-C.

126º. Defende o Arguido que o

127º. A referida norma não dá cobertura a uma sindicância do mérito da apreciação da prova: o erro notório na apreciação da prova tem de ser, por definição, lógico.

128º. O vício do “erro notório” não se reconduz à discordância sobre a factualidade que o Tribunal, apreciando a prova com base nas “regras da experiência” e a sua “livre convicção”, nos termos do artigo 127.º do CPP, entendeu dar como provada: essa é matéria que pertence ao âmbito do princípio de livre apreciação da prova e só é sindicável caso seja suscitada a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto, o que não sucedeu no âmbito do recurso interposto pela Assistente da sentença absolutória proferida em 1.ª instância.

129º. Todas as considerações acerca do erro que extravasem o perímetro de uma análise do texto da decisão recorrida, em contraponto com a pura logicidade, orientada pelas regras da experiência comum, redundam já numa apreciação do mérito da valoração feito da prova e da decisão a que essa valoração deu azo, e não estão abrigadas pela referida norma.

130º. Em sintonia com o que se preveniu, detecta-se, todavia, que o Tribunal “a quo”, na análise que fez da existência de um erro notório na apreciação da prova na sentença proferida pelo Tribunal de 1.º instância, operou uma interpretação e aplicação do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, que não tem qualquer correspondência legal, porquanto quanto a ele se pronunciou com base numa valoração autónoma da prova produzida nos autos e do direito ao caso aplicável, e não com base na existência de um qualquer vício lógico, grosseiro e evidente, resultante do texto daquela.

131º. O mesmo é dizer que o Acórdão não encontrou no texto da sentença então recorrida qualquer erro notório na apreciação da prova que fosse logicamente, à luz (ou não) das regras da experiência comum, auto-evidente, aparente ao homem de formação média, pura e simplesmente discorda da apreciação da prova que Tribunal de 1.ª instância empreendeu e da decisão que proferiu.

132º. Note-se, na análise que edifica quanto à existência desse pretenso erro notório na apreciação da prova, o Tribunal “a quo” nem tão-pouco atende ao texto da decisão recorrida – o que se impunha, nos termos do art. 410.º, n.º 2, do CPP –, antes parte da sua própria integração factual – e de direito – dos elementos objectivos e subjectivos do crime sub judice, confundindo na apreciação de um erro que deve ser de índole lógica e resultante do texto da decisão recorrida uma apreciação do mérito dessa mesma decisão.

133º. Salvo o devido respeito, não é esse o alcance da norma do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP. Se a Assistente quisesse impugnar a apreciação da matéria de facto levada a cabo pelo Tribunal de 1.ª instância poderia tê-lo feito, mas não o fez.

134º. Nos termos do art. 410.º, n.º 2, do CPP, impunha-se que o Tribunal “a quo” localiza-se no texto da decisão de 1.ª instância, eventualmente com o auxílio das regras da experiência comum, o erro notório na apreciação da prova, patente no raciocínio nele expendido, que de facto mostra que ao dar como provada a factualidade descrita sob os n.ºs 8) a 11) e a o dar como não provada a factualidade descrita sob as als. E) a G), incorreu numa inconsistência lógica, porquanto, no seguimento desse raciocínio, no caminho das regra da experiência comum aqueles implicariam estes. Não foi assim que sucedeu.

135º. O Tribunal “a quo” chegou à conclusão que aqueles factos decorriam destes apoiando-se na sua própria interpretação dos factos e do direito ao caso aplicável, porquanto tem outro entendimento acerca daquilo que constitui as regras da experiência comum (“no caso, a declaração do vício decorre, como já mencionamos, unicamente duma diversa perceção do alcance das «regras da experiência comum».”, cfr. primeiro parágrafo, p. 36, do Acórdão recorrido, sublinhado do signatário).

136º. Posto o que, o Tribunal “a quo” concluiu que “o arguido ao dirigir as ditas palavras à assistente, na ausência de quaisquer factos provados no sentido da existência de uma qualquer coacção, agiu de forma livre e consciente”, apenas com fundamento na sua própria interpretação dos factos e do direito, e não com fundamento na existência de qualquer erro notório na apreciação da prova, provindo do texto da decisão de 1.ª instância.

137º. Existiria, de facto, um erro notório na apreciação da prova se do texto da sentença de 1.ª instância resultasse à evidência que, atenta a apreciação da prova que fez e a racionalização da mesma, os factos descritos E) a G) teriam que se apresentar como um corolário lógico dos factos 8) a 11).

138º. Porém, o que resulta do texto da sentença de 1.ª instância é que esta, no seu percurso judicativo, presta especial cuidado na fundamentação da sua decisão quanto aos factos insculpidos sob os n.ºs 8) e 11), dos factos dados como provados, em clara oposição com as als. E) a G), dos factos dados como não provados.

139º. Relida a sentença, sem prejuízo de ter considerado provados os factos n.º 8), 10) e 11) depreende-se que a prova produzida nos autos inundou de dúvida razoável a convicção do Tribunal de 1.ª instância acerca da consciência da ilicitude, por parte do Arguido, das expressões que este dirigiu à Assistente, da mesma forma que inundou de dúvida razoável a sua convicção acerca da existência de uma vontade, apurada livre e conscientemente, de o Arguido as emitir, designadamente com o propósito de ofender a honra e/ou a consideração daquela.

140º. Conforme dá conta a sentença, o remanescente da prova produzida nos autos não permitiu ao Tribunal de 1.ª instância ultrapassar com segurança suficiente essa dúvida, a qual jogou em benefício do Arguido, como obriga o princípio in dubio pro reo – princípio que tem sido particularmente defraudado nestes autos.

141º. Com efeito, sob o mandato do princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º, do CPP), a respeito da apreciação que fez da prova produzida nos autos, o Tribunal de 1.ª instância concluiu o seguinte: “valorada a prova produzida, resultam dúvidas razoáveis e insuperáveis sobre a realidade dos acontecimentos, equacionando-se que estes tiveram lugar em circunstância particulares, por tudo quanto se expôs supra, dúvidas que subsistem, não se podendo afirmar pela verificação dos factos referidos, o que determina, à luz do princípio de in dubio pro reo – que se apresenta como o corolário primeiro do valor constitucionalmente consagrado da presunção de inocência do arguido até trânsito em julgado de uma sentença condenatória (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa) –, que se julguem não provados os factos desfavoráveis [E) a G)] ao arguido.” (cf. p. 25 da sentença recorrida).

142º. Resumindo: nos autos ficaram provadas um conjunto de circunstâncias (maxime os n.ºs 25) 26), 27), 35), 36) e 44) dos factos dados como provados) com base nas quais o Tribunal explicita as razões – e eram estas razões e respectiva explicitação que deveriam ter sido postas em causa pelo Acórdão recorrido na apreciação do erro notório na apreciação da prova – pelas quais deu como não provados os factos que antes estavam descritos sob as als. E) a G), dos factos não provados.

143º. Decorre literalmente da sentença de 1.ª instância que os factos E) a G) foram dados como não provados mercê das circunstâncias particulares do caso concreto, apesar de se ter efectivamente ocorrido a factualidade descrita sob os n.ºs 8) a 11), dos factos provados.

144º. É manifesto que, nestes termos, a apreciação da prova efectuada pelo Tribunal de 1.ª instância, conforme está racionalizada na sentença por si proferida, não padece de qualquer erro lógico, evidente aos olhos do homem médio.

145º. Quanto àqueles factos, conforme está explicitada na sentença de 1.ª instância, a apreciação da prova que o Tribunal de 1.ª instância efectuou reflecte é logicamente válida e está bem enquadrada nas regras da experiência comum.

146º. Como já se defendeu, é uma hipocrisia sustentar o entendimento que apenas sob coacção pode alguém proferir determinadas palavras, tidas por grosseiras e rudes, sem vontade e consciência de com elas ofender, uma vez que, em momentos de frustração, qualquer pessoa pode emitir – e certamente já emitiu, um autêntico “rei vai nu” – expressões de tal jaez sem as mesmas tenham subjacente qualquer imputação valorativa do carácter do seu destinatário.

147º. São precisamente as regras de experiência comum que corroboram o entendimento contrário.

148º. Em remate, dir-se-á que, na aferição do erro notório na apreciação da prova, o Triubnal “a quo” fez tábua rasa do texto da sentença de 1.ª instância e decidiu como bem entendeu, tecendo, a propósito do caso sub judice, as considerações que lhe parecem as mais acertadas mas, como concluído antes, sem qualquer cobertura legal.

149º. Do exposto, salvaguardada melhor opinião, concluí-se estar errada a interpretação e aplicação que o Tribunal “a quo” fez do art. 410.º, n.º 2, do CPP.

150º. Não podia o Tribunal “a quo”, nos termos em que o fez, ter modificado a matéria de facto e ter dado como provados os factos descritos sob os n.ºs 13-A a 13-C.

151º. A decisão de 1.ª instância não foi impugnada quanto à matéria de facto no âmbito do recurso interposto pela Assistente.

152º. Ao Tribunal “a quo” estava vedado apreciar o mérito da decisão do Tribunal de 1.ª instância quanto a ela, que foi o que efectivamente fez sob o subterfúgio da análise de um erro notório na apreciação da prova.

153º. Apreciou, assim, uma questão da qual não podia tomar conhecimento. Tal constitui uma nulidade, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP (aplicável ex vi art. 425.º, n.º 4)., a qual se invoca com as legais consequências.

154º. Como tem sido dito e repetido ao longo destes autos – para o bem e a para o mal – a natureza típica do crime de injúria obriga a uma interpretação dos factos em pauta indexada no condicionalismo que os contextualiza.

155º. Como resulta do texto do Acórdão recorrido e dos factos dados como provados, mormente da factualidade descrita sob o n.º 22) ao n.º 44), o caso sub judice está envolto em circunstâncias que o particularizam e que são do conhecimento da comunidade educativa.

156º. Estas circunstâncias são relevantes para a justa determinação da responsabilidade criminal do Arguido;

157º. Foi a título dessas circunstâncias que o Tribunal de 1.ª instância deu como não provados os factos descritos sob as als. E. a G., precisamente porque essas circunstâncias afloraram no espírito do julgador uma dúvida objectiva, razoável e inultrapassável quanto à sua verificação.

158º. Essa dúvida da prova, não tendo sido superada pelo sobrante da prova produzida nos autos, foi resolvida a favor do Arguido.

159º. Este tanto está textualmente reflectido no Acórdão recorrido (cfr. quarto parágrafo da p. 22 do Acórdão recorrido).

160º. Assim, o Tribunal “a quo”, quando, nos termos melhor descritos supra, dá como provados os factos 13-A a 13-C (provenientes dos factos E) a G), antes não provados), ignora as circunstâncias do caso em concreto – que estão provadas - e decide a dúvida da prova por si plenamente assumida contra o Arguido, viola o princípio in dubio pro reo.

161º. Os bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora constante do art.

181.º, n.º 1, do CP, são a integridade moral e direito ao bom-nome e à reputação (cfr. art. 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).

162º. Pode ler-se no artigo 181.º, n.º 1, do CP, que “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.”

163º. Portanto, a norma incriminadora resultante do art. 181.º, n.º 1, do CP, concorre para abrigar a integridade moral e o direito ao bom nome e à reputação, obstando a que honra e/ou consideração de um determinado individuo seja comprometida por imputações ou palavras a si dirigidas pelos demais. São estes os elementos objectivos do crime de injúria: (1) a imputação de factos ou a direcção de palavras a outra pessoa, (2) ofensivos da sua honra e/ou consideração.

164º. É entendimento consensualizado que o crime de injúria compele a uma análise circunstanciada das concretas imputações ou palavras dirigidas ao ofendido, pois só desse modo é concebível determinar o seu carácter ilícito.

165º. Porém, sob pena de o impregnar de uma relatividade intolerável para o princípio da legalidade penal (art. 29.º, n.º 1, da Constituição e art. 1.º, n.º1, do CP) – em que qualquer imputação ou palavra é uma fonte potencial de injúria, tudo dependendo do grau de sensibilidade de cada um e das circunstâncias em que tal imputação ou palavra é proferida – é indispensável conservar um lastro de pura objectividade nessa análise.

166º. Entende-se, por isso, que o crime de injúria consista num crime de perigo, opostamente a um crime de dano.

167º. Ponderada a necessidade de garantir uma certa margem de objectividade na análise dos factos integrantes dos elementos objectivos do crime de injúria, o limiar do carácter ofensivo de uma determinada imputação ou palavra deve ser idealizado em função da adequação dessa mesma imputação ou palavra a ofender a honra e/ou consideração do seu interlocutor, e assim atacar a sua integridade moral, e já não em função deste, pessoalmente, se ter sentido, ou não, ofendido na sua honra e/ou consideração, dado que tal validaria considerações acerca do seu grau de sensibilidade.

168º. Logo, para o preenchimento dos elementos objectivos do crime de injúria, é essencial que a imputação do facto ou palavra dirigida ao ofendido, pela sua significação habitual, seja objectivamente qualificada a ofender a honra e/ou consideração de uma qualquer pessoa na mesma situação

169º. A Constituição da República Portuguesa, ao passo que reconhece a inviolabilidade da integridade moral e o direito ao bom-nome e à reputação (cfr. arts. 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1), reconhece igualmente o direito à liberdade de expressão (cfr. art. 37.º, n.º 1).

170º. O direito à liberdade de expressão não se desenvolve em termos absolutos, sofrendo das limitações que a lei penal lhe impõe (cfr. art. 37.º, n.º 3), em proveito da inviolabilidade à integridade moral e do direito ao bom-nome e à reputação.

171º. O legislador ordinário, no espaço de conformação que lhe é conferido pela Constituição para a concretização dos valores e interesses nela consignados, optou por sintetizar legalmente na norma incriminadora do art. 181.º, n.º1, do CP (e outras do mesmo capítulo) o equilíbrio que deve existir na relação implicitamente tensa entre a inviolabilidade da integridade moral e o direito ao bom nome e à reputação de uma determinada pessoa e o direito à liberdade de expressão e informação que acresce a todas as outras.

172º. A supra referida matriz constitucional – que em lado algum faz alusão à honra e/ou à consideração – apoia o entendimento de que a honra e/ou a consideração, noções avançadas pelo legislador ordinário, servem para murar a fronteira onde a liberdade de expressão de todos contrasta com a integridade moral e do direito ao bom nome e à reputação de um.

173º. É isso que a honra e a consideração consubstanciam, não podendo ser reduzidas nem alargadas às definições acima expostas.

174º. A honra e a consideração não são um espaço, mas antes um limite.

175º. Assim, nunca é demais relembrar que a liberdade de expressão constitui a regra e o crime de injúria a excepção, e não o reverso

176º. Com efeito, no que interessa ao caso dos autos, resulta da conjugação do art. 37.º, n.ºs 1, 2 e 3, da CRP, que apenas se se verificarem os pressupostos que aquela norma incriminadora legalmente tipifica está legitimada a compressão que o direito à liberdade de expressão e informação sofre da sua aplicação, implicitamente justificada pela lei para a realização daqueles outros valores com assento constitucional (art. 18.º, n.º 2, da CRP).

177º. Este equilíbrio, já por si ténue, é posto em causa sempre que a dimensão normativa assumida na interpretação do art. 181.º, n.º 1, do CP lhe aumenta injustificadamente o raio de acção, ultrapassando a compressão que o legislador ordinário, em respeito da Constituição, perenizou no âmbar da lei e, assim, encurtando arbitrária, desrazoável e desproporcionadamente o perímetro constitucionalmente atribuído ao direito à liberdade de expressão e informação.

178º. Ao permitir-se a um Tribunal, personificado na pessoa do julgador – em toda a sua subjectividade – decidir aquilo que constitui a imputação de um facto ou a direcção de uma palavra ofensivos da honra sem atender ao significado objectivo dessa mesma imputação ou palavra, dá-se ensejo a uma forma de censura que arrepia o disposto no art. 37.º, da CRP.

179º. Abre-se, também, mão do princípio da legalidade penal (art. 29.º, n.º 1, da CRP e art. 1.º, n.º 1, do CP), porquanto é o intérprete que passa a tipificar, numa frequência casuística, aquilo que constitui – ou não – um crime de injúria, porquanto é o intérprete que passa a tipificar, numa frequência casuística, aquilo que constitui – ou não – um crime de injúria.

180º. É suficiente, para se verificar que assim é, atentar na antibiose de decisões proferidas pelas instâncias superiores que debruçaram sobre a integração das mesmas expressões à luz dos elementos objectivos do crime de injúria e tiraram sentido contrário ao do Acórdão recorrido.

181º. Por fim, ao atribuir a um Tribunal o poder de definir, sem estar adstrito pelas rédeas da lei, aquilo que constitui um crime, abrimos mão do princípio da interdependência entre poderes, e tudo o que isso acarreta.

182º. Duas das expressões aqui em crise (“vai-te foder” e “vai para o caralho”) representam, para a gramática, locuções interjectivas.

183º. As locuções interjectivas – e assim as interjeições – são actos ilocutórios expressivos, que servem para exprimir, de forma condensada, sem exercerem qualquer função sintáctica, sentimentos e emoções.

184º. No caso, como bem identificou a sentença de 1.ª instância, no entorno das circunstâncias do caso em concreto, as locuções “vai-te foder!” e “vai para o caralho!” foram usadas por parte do Arguido para expressar um sentimento de frustração, sem qualquer representação por parte do mesmo da possibilidade de ofenderem a Assistente na sua honra e/ou consideração.

185º. É sem reservas que se afirma que aquelas expressões, pelo sua significação habitual, não são susceptíveis de ofender a honra e/ou consideração do seu interlocutor, uma vez que são absolutamente incapazes de se relacionar com as suas características, qualidades, valores morais e/ou pessoais e/ou afrontar a sua imagem social – que é aquilo que a honra e a consideração englobam;

186º. Aquelas expressões não simbolizam a imputação de factos ou a direcção de palavras susceptíveis de atentar contra a integridade moral e o direito ao bom-nome e à reputação do seu destinatário, os bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora em causa.

187º. Para perceber que assim é suficiente perguntar o que ficamos a saber sobre a Assistente pelo facto de o Arguido lhe ter dirigido aquelas expressões? Rigorosamente nada. De que modo implicam um juízo de valor acerca da pessoa e personalidade da Assistente? De modo nenhum.

188º. São, com certeza, vocábulos rudes e reveladores duma parca educação – comprometedores apenas da honra e/ou consideração de quem os profere, aumentando o perigo daquilo que ficam obrigados a tolerar – contudo, como é consabido, fazem parte do vernáculo, são usados com muita frequência, e não são usualmente aplicados com a vontade – ou sequer com a consciência – de ofender a honra e/ou a consideração da pessoa a quem são dirigidas.

189º. As expressões sob escrutínio são sinónimas de expressões como “não me chateies”, “vai dar banho ao cão”, “vai ver se chove” (etc.), embora assumidamente mais grosseiras.

190º. Em condições normais – o que aqui não acontece – não devem ser empregues num qualquer local de trabalho, e quem as profere deve, eventualmente e quando muito, ser punido disciplinarmente.

191º. Coisa radicalmente diferente é pugnar pela sua dignidade penal.

192º. Convém alvitrar que o Código Penal se assume deliberadamente como ordenamento jurídico-penal de uma sociedade aberta e de um Estado democraticamente legitimado, optando o legislador, conscientemente, pela maximização das áreas de tolerância em relação a condutas ou formas de vida que não apresentam suficiente potencialidade ofensiva para, perante o princípio da intervenção mínima, conduzirem a aplicação de penas.

193º. Ao concluir que as expressões “vai-te foder” e “vai para o caralho”, porque ofensivas da honra e/ou consideração do seu interlocutor, integram os elementos objectivos do crime de injúria, o Tribunal “a quo” assume uma interpretação da norma incriminadora constante do art. 181.º, n.º 1, do CP, cujo alcance não se compagina nem com o texto da lei nem com o texto constitucional, comprimindo de forma arbitrária, desrazoável e desproporcionada direito à liberdade de expressão e informação que assiste ao Arguido, aqui parâmetro de controlo aferidor da sua constitucionalidade.

194º. Desde logo, outorga um carácter ilícito a expressões que, pelo seu significado corrente, objectivamente, não são susceptíveis de ofender a honra e/u a consideração da pessoa a quem são dirigidas.

195º. Por outro lado, ao concluir que tais expressões ofendem a honra e/ou consideração da pessoa a quem são dirigidas, dado que as mesmas, objectivamente, em medida alguma comprometem a sua integridade moral e o seu direito ao bom-nome e à reputação, está a proteger penalmente um bem jurídico que não existe na Constituição (por ventura a indecência), e o qual não está protegido pela norma incriminadora resultante do art. 181.º, n.º 1, do CP.

196º. Em relação àquelas expressões em concreto, por conseguinte, a dimensão normativa assumida pela Tribunal “a quo” na interpretação e aplicação da norma incriminadora do art. 181.º, n.º 1, do CP, está ferida de inconstitucionalidade material, por violação do art. 37.º, n.ºs 1, 2 e 3, da CRP e do art. 18.º, n.º 2.

197º. Por outro lado, a mesma dimensão normativa assumida pelo Tribunal “a quo” na interpretação da mencionada norma incriminadora está ferida de inconstitucionalidade material por violar o disposto no art. 29.º, n.º 1, da CRP, porquanto, decorrente dessa interpretação, é aplicada ao Arguido uma sanção penal sem que exista uma lei anterior que declare punível a sua acção.

198º. Sem conceder, na esteira do entendimento perfilhadas por vozes destacadas da doutrina, não pode deixar-se de se apelar aqui ao princípio in dubio pro reo;

199º. Sendo certo que tem usualmente aplicação no domínio da matéria de facto, entre duas interpretações antagónicas, com o mesmo valor, de uma mesma norma, em que uma delas leva à liberdade e a outra leva à sua condenação, deve ser dada prioridade à primeira.

200º. De facto, ainda que não se subscreva a alegação atrás aduzida, é muito duvidosa – rectius, inconstitucional – a interpretação da norma incriminadora resultante do art. 181.º, n.º 1, do CP, segundo a qual as expressões “vai-te foder” e “vai para o caralho” são integradoras dos elementos objectivos do crime de injúria.

201º. Quanto ao facto de o Arguido ter declarado acerca da Assistente e diante dela “não tens perfil para estar aqui”, se é verdade que esta expressão agora se trata da imputação de um facto que traduz um juízo valorativo depreciativo da competência profissional daquela, susceptível de ofender a sua honra e/ou consideração porque capaz de atentar contra as suas características, qualidades e valores morais e/ou pessoais e a contra a sua imagem, e, portanto, integrador dos elementos objectivos da norma incriminadora do crime de injúria, também é verdade que tal juízo foi emitido no âmbito de uma crítica objectiva, relacionada com a execução de uma concreta tarefa no âmbito laboral.

202º. Segundo o entendimento hoje dominante, na medida em que não se ultrapasse o âmbito da crítica objectiva, enquanto emissão de um juízo valorativo que se atêm às obras, realizações e/ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, aquele tipo de juízos cai fora da tipicidade de incriminações como a injúria.

203º. Nestes casos, a atipicidade afasta, sem mais e em definitivo, a responsabilidade criminal do emissor da crítica.

204º. Continuará a ser assim mesmo que da crítica, residualmente, resvalem apreciações depreciativas para a pessoa autora/criadora da prestação/realização/actuação à qual o juízo é apontado.

205º. In casu, é manifesto e carece de míngua argumentação que a crítica emitida pelo Arguido em respeito da competência profissional da Assistente está enquadrada objectivamente, por referência a um desentendimento na execução de uma concreta tarefa no âmbito laboral;

206º. Foi desse contexto, e com referência a ele, que emergiu a critica, dirigida à actuação da Assistente na concreta execução da tarefa.

207º. Ademais, não obstante traduzir um juízo depreciativo das suas qualidades profissionais, a crítica circunscreve-se àquilo que é razoável e proporcionado, na perspectiva uma convivência democrática entre a inviolabilidade da integridade moral e do direito ao bom-nome e à reputação e o direito à liberdade de expressão e de informação.

208º. Salvo o devido respeito por opinião contrária, é transparente que o teor da crítica tecida pelo Arguido não atinge o patamar mínimo de censura penal que pudesse justificar a compressão do seu direito à liberdade de expressão, em benefício da integridade moral, e do direito ao bom-nome e à reputação da Assistente.

209º. Enfim, não se trata mais do que a verbalização de uma opinião pessoal do Arguido, residualmente ofensiva da honra e/ou consideração da Assistente.

210º. Mais uma vez, o Tribunal “a quo”, ao considerar que tal crítica emitida pelo Arguido integra os elementos objectivos do crime de injúria, assume uma interpretação da norma incriminadora art. 181.º, n.º 1, do CP cuja dimensão normativa choca frontalmente com os arts. 18.º, n.º 2 e 37.º, n.ºs 1, 2 e 3 da Constituição, visto que homizia uma compressão arbitrária, desrazoável e desproporcionada do direito à liberdade de expressão, estabelecendo aquilo que no vernáculo se designa pela “lei da rolha”.

211º. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decidiu sistematicamente que a liberdade de expressão, baluarte de uma sociedade democrática, apenas em caso de necessidade imperiosa pode ceder perante considerações atinentes à honra, em particular no que tange à crítica (cfr. Amorim Giestas e Jesus Costa Bordalo c. Portugal, 3 de Abril de 2014).

212º. Como tem sufragado a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, “nos casos em que haja necessidade de ponderar se a liberdade de expressão ofende o direito ao bom nome de uma pessoa, legitimando a reprovação da ordem jurídica, importa um balanceamento concreto dos valores antagónicos em questão. Neste sentido, a mais recente orientação jurisprudencial do STJ tem entendido ser de exigir um juízo de prognose sobre a hipotética decisão que o TEDH adotaria se o caso lhe tivesse sido submetido, no sentido de se verificar se é de admitir como muito provável que, se a questão viesse a ser colocada ao TEDH, tal órgão jurisdicional entenderia que os artigos em causa extravasariam os limites toleráveis do exercício da liberdade de expressão e informação.” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/09/2021, proc. n.º 8777/21.3T8LSB-7).

213º. No caso em concreto, sopesadas as suas circunstâncias em particular, é notório que a necessidade de restrição ao direito à liberdade da expressão do Arguido não está convincentemente demonstrada, designadamente porque o facto que imputou e as palavras que dirigiu à Assistente não integrarem os elementos objectivos da norma incriminadora do art. 181.º, n.º 1, do CP.

214º. Sem prescindir do que deixa alegado, no caso de improcedência dos fundamentos de recurso atrás motivados, que aqui se consideram reproduzidos, no que apenas se concede por dever de patrocínio, o Arguido vem ainda pedir que seja dispensado de pena, nos termos dos arts. 186.º, n.º 2 e 74.º, n.º 1 (ex vi art. 74.º, n.º 3), do CP.

215º. No seguimento dos factos provados insertos sob os n.ºs 25), 26), 27), 35) e 36), ainda que não se acolha a alegação atrás aduzida, é apodíctico que o Arguido agiu sob um contexto específico, revelador de uma conduta repreensível por parte da Assistente, a qual contribuiu para a ocorrência do crime pelo qual o Arguido foi condenado.

216º. Pode não se atender a essa conduta na justa determinação da responsabilidade criminal do Arguido, o que apenas por dever de patrocínio se admite, porém, deve a mesma ser tomada em conta para efeito de dispensa de pena.

217º. No caso, é evidente que a culpa do arguido e a ilicitude do facto são diminutas.

218º. Ademais, o Arguido já dirigiu um pedido de desculpas à Assistente e, a ser confirmada  a sua condenação, terá que pagar-lhe uma indemnização no valor de €1.000,00, pelo que o dano está ou será reparado.

219º. Não há razões de prevenção especial que se possam opor à dispensa da pena, visto que o Arguido é uma pessoa sem antecedentes criminais e bem inserido no meio familiar e social.

220º. Subsidiariamente, caso assim não se entenda, o que apenas por dever de ofício se pondera, na determinação da concreta medida de pena de multa em que o Arguido foi condenado, salvo o devido respeito, o Tribunal “a quo” revela, mais uma vez, uma leitura desatenta dos factos provados.

221º. O Tribunal “a quo” considerou que culpa está muito próxima do limite máximo (cfr. p 38 do Acórdão recorrido). Em boa verdade, porém, o que está provado nos autos permite estear o entendimento contrário: a culpa do Arguido – a existir – é residual.

222º. No caso dos autos, ficou demonstrado que a actuação do Arguido não foi inopinada, mas antes se insere no contexto de um mau ambiente de trabalho, onde o mesmo não tem funções e tarefas relevantes atribuídas, passando grande parte da sua jornada de trabalho sentado à secretária, e se sente profissionalmente desvalorizado, em face de um desentendimento com a Assistente ocorrido no âmbito da execução de uma tarefa para a qual esta tinha solicitado o seu auxílio, apenas para questionar constantemente as suas instruções.

223º. Arguido agiu à luz de todas essas circunstâncias, as quais foram totalmente desconsideradas pela Tribunal “a quo”. Estes factos contendem com o disposto no art. 71.º, n.º 2, porquanto mostram que a reprobabilidade da conduta do Arguido é diminuta, advogando a seu favor.

224º. A pena de multa, no caso, foi fixada em 80 dias, o que corresponde, sensivelmente, ao meio termo do limite máximo da moldura penal abstracta para o crime pelo qual foi condenado (180 dias, cfr. art. 184.º e art. 181.º, n.º 1 do CP). Tal pressupõe que a culpa do Arguido não é diminuta, mas sim mediana.

225º. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, o que significa que não pode haver pena sem culpa nem pena acima da culpa (art. 40.º, do CP). Em virtude de a sua culpa ser diminuta, o limite máximo da pena em que o Arguido foi condenado deveria ter sido situado, no máximo, no quarto da pena máxima legalmente prevista (45 dias).

226º. Complementarmente, no caso em concreto, os factos supra considerados mostram bem que o grau de ilicitude da conduta do Arguido é reduzido, existindo até jurisprudência sufragada pelos Tribunais superiores que entende que algumas das expressões que o mesmo dirigiu à Assistente, conduta pela qual foi condenado, não consubstanciam a prática de qualquer crime.

227º. O ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos em causa estaria muito próximo, por isso, do conteúdo das exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.

228º. Da mesma forma, os factos provados mostram que as exigências de prevenção especial são, no caso, irrelevantes, sendo o Arguido uma pessoa sem antecedentes criminais e bem entrosada no meio familiar e social que o rodeia, por todos rotulado como especialmente competente no seu trabalho em serviço público, ao qual se dedica a 32 anos.

229º. Tudo considerado, defende-se que a pena de multa concretamente aplicada ao Arguido não poderia ter ultrapassado os 20 dias.

230º. Não tendo sido assim, o Tribunal “a quo” violou o disposto nos arts. 40.º e 71.º, n.ºs 1 e 2, do CP.

Termos em que, contando com o douto suprimento de V. Exas., pede-se a V. Exas. se dignem apreciar as questões colocadas nas conclusões que antecedem e determinar a procedência do presente recurso, com as legais consequências.”


Respondeu o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Guimarães, defendendo a improcedência do recurso e alegando, em síntese: (transcrição)

“Vistas as 230 conclusões apresentadas pelo recorrente – longas, manifestamente excessivas, completamente arredias ao que deveriam ser por imposição do estabelecido no art.º 412, n.º1 do CPPenal, isto é, um resumo das razões do pedido, conclusões que, como é consabido, delimitam o objecto do recurso, são quatro as questões que aliás bem evidencia e que efectivamente demarca no corpo da motivação:

“1) Num primeiro vector de análise, o Arguido assaca ao Acórdão revidendo numerosos erros notórios na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP), incursa nos quais está uma violação ao princípio in dubio pro reo;

2) Num segundo momento, o Arguido imputa ao Acórdão a errada interpretação e aplicação do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, mediante a qual modificou a decisão do Tribunal de 1.º instância quanto à matéria de facto e deu como provados os factos agora inscritos sob os n.ºs 13-A, 13-B e 13-C. A aludida modificação da matéria de facto pelo Tribunal “a quo”, nos moldes em que foi feita, é nula nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP. Sucessivamente, imputa-se ao Acórdão recorrido a violação do princípio in dubio pro reo.

3) Em terceiro lugar, o Arguido atribui ao Acórdão recorrido a incorrecta interpretação e aplicação, ao caso concreto, do art. 181.º, n.º 1, do CP, ao mesmo tempo que suscita a inconstitucionalidade da dimensão normativa assumida pela Tribunal “a quo” nessa sua interpretação da referida norma incriminadora, por violar os arts. 18.º, n.º 2 e 37.º, n.º 1, 2 e 3 da Constituição;

4) Sem prejuízo dos pontos antecedentes, o Arguido reclama, ainda, a dispensa de pena, nos termos do art. 186.º, n.º 2, do CP e, subsidiariamente, consideradas as circunstâncias particulares do caso em concreto, impugna a concreta medida da pena de multa que lhe foi aplicada, por ter o Tribunal “a quo” violado o disposto no art. 40.º e 71.º, n.ºs 1 e2, ambos do CP.”.

(…)

“1. Os artigos 400, n.º1, al. e) e 410, n.º2, ambos do CPPenal, quando na sua conjugação operam uma restrição ao recurso confinando-o à verificação dos vícios previstos neste último, não são inconstitucionais como repetidamente tem decidido o Tribunal Constitucional, como se pode ver do seu acórdão n.º 473/2005, de 21/09, destacando-se desde já a circunstância de o teor do actual art.º 434 do CPPenal que assenta os poderes de cognição do STJ, anteriormente constituir o art.º 433, normativo alterado por via artigo n.º 1 da Lei n.º 59/98, de 25/08 e que entrou em vigor a 1999-01-01;

2. O acórdão recorrido não é nulo pois que, ao invés do asseverado pelo arguido conheceu de todas as questões de que deveria conhecer, não se mostrando preenchida a hipótese da al. c) do n.º1 do art.º 379 do CPPenal;

3. O acórdão recorrido não possui o vício do erro notório na apreciação da prova, não se retirando do seu texto uma qualquer patente desarmonia, falta de lógica ou racionalidade, não se mostrando por isso verificada a situação prevista na al. c) do n.º2 do art.º 410 do CPPenal, o que conduz à intangibilidade da matéria de facto naquele estabelecida, até porque o tribunal recorrido chegou a uma certeza jurídica sobre os factos, fora de uma qualquer dúvida inultrapassável, séria e razoável, mostrando-se vedada a aplicação do princípio in dubio pro reo;

4. O art.º 181.º, n.º 1, do CPenal ao prever e punir o crime de injúria não está ferido de inconstitucionalidade, como assevera o arguido, pois que, e como decorre do acórdão n.º128/2012 do Tribunal Constitucional, de 07/03/2012, o mesmo se apresenta totalmente conforme coma Constituição da República;

5. Não possui suporte da factualidade provada a pretensão do arguido em ver decretada uma dispensa de pena nos termos do art.º 186.º, n.º 2, do CPenal, pois que aquela, em momento algum, revela a existência de uma qualquer conduta provocadora da assistente como razão da sua provada conduta injuriosa.

6. A pena de multa encontrada apresenta-se proporcional, necessária e justa, respeitando o previsto nos artigos 40, n.ºs 1 e 2 e 71 do CPenal.”


O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, bem como o recorrente, em sede de contraditório, pronunciaram-se sobre a extensão inusitada das conclusões do recurso.


Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.

O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), visando, no caso, o reexame de matéria de facto e de direito.

O manifesto incumprimento, pelo recorrente, do disposto no n.º 1, do art. 412.º, do CPP, não inibe a identificação das questões a decidir.

Este Tribunal é, assim, chamado a apreciar e decidir sobre:

- “a norma resultante da conjunção do art. 400.º, n.º 1, al. e) com o art. 434.º, do CPP, na interpretação segunda a qual o recurso interposto pelo Arguido para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão do Tribunal da Relação que, inovadoramente em face de uma decisão absolutória de 1.ª instância, modifica esta decisão quanto à matéria de facto e, consequentemente, condena e aplica ao Arguido uma pena não privativa da liberdade ou de prisão não superior a cinco anos, não pode sindicar a decisão recorrida no que tange à matéria de facto é inconstitucional, por violar o art. 32.º, n.º 1 e o art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa”;

- “erros notórios na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP), incursa nos quais está uma violação ao princípio in dubio pro reo”;

- “a errada interpretação e aplicação do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, mediante a qual modificou a decisão do Tribunal de 1.º instância quanto à matéria de facto e deu como provados os factos agora inscritos sob os n.ºs 13-A, 13-B e 13-C. A aludida modificação da matéria de facto pelo Tribunal “a quo”, nos moldes em que foi feita, é nula nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP. Sucessivamente, imputa-se ao Acórdão recorrido a violação do princípio in dubio pro reo”;

- “a incorrecta interpretação e aplicação, ao caso concreto, do art. 181.º, n.º 1, do CP, ao mesmo tempo que suscita a inconstitucionalidade da dimensão normativa assumida pela Tribunal “a quo” nessa sua interpretação da referida norma incriminadora, por violar os arts. 18.º, n.º 2 e 37.º, n.º 1, 2 e 3 da Constituição”;

- “reclama, ainda, a dispensa de pena, nos termos do art. 186.º, n.º 2, do CP e, subsidiariamente, consideradas as circunstâncias particulares do caso em concreto, impugna a concreta medida da pena de multa que lhe foi aplicada, por ter o Tribunal “a quo” violado o disposto no art. 40.º e 71.º, n.ºs 1 e2, ambos do CP”.


Cumpre decidir.


II.    Fundamentação


1. Os factos


1. a. A sentença absolutória da 1.ª Instância deu como provado que:

1) O arguido exerce funções de assistente técnico nos serviços administrativos do Agrupamento de Escolas ..., em ....

2) Por seu turno, a ofendida EE exerce funções de Coordenadora Técnica da carreira de Assistente Técnico do Município ..., cabendo-lhe, por via disso, as funções de chefia técnica e administrativa dos serviços administrativos do Agrupamento de Escolas ..., em ..., subunidade orgânica ou equipa de suporte, por cujos resultados é responsável, bem como a realização de atividades de programação e organização do trabalho do pessoal que coordena, entre os quais se integra o aqui arguido.

3) No dia 24 de junho de 2020, pelas 15h45m, a dita EE, bem como as funcionárias FF e GG, encontravam-se nas instalações dos serviços administrativos do referido Agrupamento de Escolas ..., em ..., no exercício das suas funções.

4) Nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, apareceu um utente solicitando uma certidão de habilitações, pelo que aquela EE e a funcionária FF encetaram esforços no sentido de localizar o respetivo processo escolar.

5) Contudo, como não logravam encontrar o dito processo no sistema informático, aquela EE tentou contactar, sem sucesso, o Professor de Informática, HH, a fim de que este as ajudasse nessa tarefa.

6) Como não logrou estabelecer contacto telefónico com aquele Professor, a dita EE contactou telefonicamente o arguido, seu subordinado hierárquico, pedindo-lhe ajuda naquela concreta tarefa de encontrar o processo escolar daquele utente, tendo o arguido comparecido pouco tempo depois na secretaria onde todos se encontravam.

7) O arguido dirigiu-se ao cofre, onde ficou a procurar o aludido processo, enquanto a ofendida EE continuou a tentar contactar telefonicamente o Professor HH.

8) A dada altura o arguido saiu do cofre trazendo um livro de termos nos braços e, ao aperceber-se que aquela sua superior hierárquica falava ao telefone com o Professor HH, dirigiu-se àquela vociferando, com foros de seriedade e na presença de todos os funcionários ali presentes: não tinhas nada que lhe pedir! Eu já te tinha dito que o tinha encontrado! Vai-te foder, não te faço mais nada! Vai para o caralho! Não tens perfil para estar aqui!, ao mesmo tempo que bateu com o dito livro em cima da mesa com força.

9) Imediatamente após ter proferido tais palavras, do modo supra relatado, o arguido dirigiu-se para a porta de saída daquela secretaria, no intuito de abandonar o local.

10) Ao ver que o arguido se ausentava do local, a ofendida EE pediu ao arguido, em tom de voz baixo e calmo, para que tivesse calma, mais o alertando para o facto de o mesmo ter ali deixado a sua carteira e o seu telemóvel em cima de uma das secretárias existentes naquela secretaria.

11) Ato contínuo, o arguido retrocedeu na sua marcha, pegou nos seus pertences e, voltando-se para aquela EE, disse em voz alta, com foros de seriedade e na presença de todos os que ali se encontravam: vai para o caralho!

12) A dita EE encontrava-se no exercício das suas funções, e ao agir como supra descrito, praticava um ato próprio das suas funções, como o arguido se apercebeu e de tudo bem sabia.

13) Não ignorava o arguido que se dirigia à Coordenadora Técnica dos serviços administrativos do Agrupamento de Escolas ..., de ..., sua superior hierárquica, e que a mesma se encontrava no desempenho das suas funções.

14) A assistente é casada e mãe, reputada como pessoa respeitadora, educada e cortês e respeitada, no seu local de trabalho e em ....

15) As condutas do arguido supra referidas chegaram ao conhecimento de funcionários do agrupamento de escolas em que ambos trabalham, sendo ali comentados.

16) A assistente sentiu-se envergonhada com as expressões que o arguido lhe dirigiu.

17) A assistente sentiu-se triste e preocupada nos dias seguintes.

18) Como consequência da atuação do arguido, passou a andar triste e preocupada nos 15 dias que se seguiram.

19) O arguido foi admitido como funcionário público, através de concurso público, em 19/10/1988.

20) Exerceu também, entre 1998 e 2015, as funções de ....

21) Em 2011, o Arguido foi eleito pelos seus pares representante do pessoal não docente, integrando na qualidade de ... o Conselho Geral Transitório do Agrupamento de Escolas de ..., o órgão colegial constituído nos termos e com as competências atribuídas pelo Despacho nº 12955/2010, de 10 de agosto.

22) No contexto da atividade do referido Conselho Geral Transitório, com fundamento em ilegalidades várias, o Arguido, em conjunto com outros Conselheiros que integravam aquele órgão, instaurou processo especial de contencioso eleitoral, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal ..., com o n.º 184/11...., cuja sentença, proferida em 19-05-2012, após acórdão do Tribunal Central Administrativo ... que, transitado a 03.12.2012, manteve a decisão proferida em primeira instância, julgou (…) a presente acção procedente, por provada e, em consequência:

I) Anulo a eleição do Presidente do Conselho Geral Transitório (CGT) do Agrupamento de Escolas ..., realizada a 29.04.2011;

II) Anulo a eleição e cooptação dos membros da comunidade local para integraram o Conselho Geral Transitório (CGT) do Agrupamento de Escolas ..., realizada no dia 25 de Novembro de 2010;

III) Condeno a Entidade Demandada a retomar o procedimento, emitindo no prazo máximo de 30 dias, convocatória dirigida aos membros do Conselho Geral Transitório, com antecedência de, pelo menos, 47 horas, destinada à indicação/cooptação dos membros da comunidade local, para a plena constituição aquele órgão, não podendo os Contra-Interessados II, JJ e KK integrarem o colégio eleitoral. (…).

23) Não obstante, naquela altura, foi eleito diretor do BB, mais tarde sucedido pela sua cônjuge e atual diretora do Agrupamento, CC.

24) O antigo Diretor do Agrupamento de Escolas ... está pronunciado por um crime de abuso de poder, no âmbito do processo comum n.º 73/15..., cujos termos correm no Juízo de Competência Genérica ..., sendo-lhe imputados factos que terá praticado, em violação dos deveres que sobre si impediam, no uso dos direitos e deveres funcionais inerentes ao cargo por si ocupado, com o propósito concretizado de lesar, prejudicar e ultrajar as ali ofendidas, docentes daquele Agrupamento.

25) Pela ordem de serviço n.º 01/2015, datada de 25 de fevereiro de 2015, assinada pelo anterior diretor do Agrupamento Escolar, o arguido foi dispensado das funções de ..., que exercia desde 1998.

26) Atualmente, o arguido não dispõe das senhas de acesso aos diversos programas do serviço da secretaria do Agrupamento.

27) À presente data, o arguido passa a grande parte do seu tempo útil de trabalho sentado à sua secretária, sendo-lhe atribuídas tarefas que não revestem relevância funcional ou que se esgotam num curto lapso de tempo.

28) O arguido protestou a nomeação do cônjuge do anterior diretor para o cargo de subdiretora do Agrupamento e, sucessivamente, apresentou várias queixas à Inspeção Geral de Educação e Ciência, tendo o Agrupamento sido sujeito a inúmeras inspeções.

29) O antigo diretor foi sancionado disciplinarmente, com a sanção de suspensão graduada em 240 dias, nos termos dos artigos 180.º, n.º 1, al. c), 181.º, n.ºs 3 e 4, 182.º, n.ºs 2 e 186.º e 189.º da LTFP.

30) Após o antigo diretor do Agrupamento ter sido suspenso, o seu cônjuge, atual diretora, em regime de substituição, assumiu de imediato as referidas funções, até ao termo do mandato/comissão daquele e, posteriormente, foi eleita diretora do Agrupamento.

31) Quando a assistente assumiu funções na secretaria da Escola ..., o arguido ajudou-a na sua integração, mantendo uma boa relação profissional.

32) Entretanto a assistente foi indicada pela atual direção do Agrupamento para assumir as funções de Coordenadora Técnica dos Serviços Administrativos.

33) Depois de o antigo Coordenador dos Serviços Administrativos se reformar, a assistente assumiu, em regime de substituição, as funções de Coordenadora Técnica dos Serviços Administrativos e, posteriormente, apresentou um requerimento de consolidação para o lugar de Coordenadora dos Serviços Administrativos.

34) A Câmara Municipal ..., por recomendação da atual diretora do Agrupamento, e apesar de, na secretaria do mesmo existirem funcionários mais antigos do que a assistente, aceitou a consolidação, atribuindo-lhe ao lugar de Coordenadora.

35) Numa ocasião, não concretamente apurada, mas próxima da data referida em 3), a assistente disse a DD, que, àquela data, era trabalhadora da secretaria, subordinada daquela, que não devia falar com o arguido e que falar com aquele dava mau aspeto.

36) Profissionalmente, o arguido sente-se desconsiderado, desvalorizado e desrespeitado, depois de mais de 32 anos de serviço público.

37) Nas circunstâncias descritas em 3), o arguido prontamente se disponibilizou a deslocar-se à secretaria da escola, a fim de emitir a certidão requerida pelo utente.

38) Quando o arguido chegou à escola, reconhecendo de imediato o utente como um antigo aluno, logo informou a assistente que o processo referente ao mesmo não iria constar das bases de dados informatizadas, tratando-se de um aluno que frequentara a escola num tempo muito anterior à sua existência.

39) Foi o arguido que procedeu à inscrição dos dados dos vários alunos na base de dados informatizada.

40) O arguido explicou, várias vezes, à assistente que contactar o Professor HH, como insistia fazer, nada lograria alcançar, pelas razões expostas supra nos n.ºs 38) e 39).

41) O arguido solicitou à assistente, então, a abertura do cofre onde estão arquivados os registos biográficos dos alunos mais antigos, com a finalidade de, com essas informações, emitir o certificado requerido pelo utente, acabando a mesma por aceder ao seu pedido.

42) O arguido imediatamente diligenciou procurar o livro de termos com a ficha biográfica do utente e, assim que o encontrou, dirigiu-se de volta à secretaria, enquanto dizia percetivelmente «Já encontrei!».

43) Nesse momento, o arguido constatou que a assistente falava ao telemóvel com o referido professor e, sentindo-se mais uma vez profundamente frustrado desprezado pela conduta adotada por aquela.

44) É do conhecimento do Município ... que o desejo da Direção do Agrupamento é que o Arguido seja retirado de funções no Agrupamento e mobilizado para outro serviço.

45) O arguido desempenha a atividade profissional de assistente técnico no Agrupamento de Escolas ..., na escola sede, em ..., auferindo uma remuneração mensal no valor de € 820,00.

46) É casado, sendo que a esposa exerce funções de assistente operacional e aufere a quantia mensal de € 715,00 (SMN), e tem dois filhos, de 25 e 30 anos de idade, que ainda se encontram a estudar no Ensino Superior e a seu cargo, despendendo com a educação dos mesmos a quantia de cerca de € 10.000,00 anuais.

47) O agregado familiar do arguido, constituído por si próprio, pelo cônjuge e pelos dois filhos, reside em casa própria.

48) Tem o 12.º ano de escolaridade.

49) O arguido goza de boa reputação social.

50) O arguido não tem antecedentes criminais averbados ao seu registo criminal.


1. b.

O acórdão recorrido alterou a matéria de facto dada como provada, aditando os seguintes:

“13 A- O arguido quis ainda proferir as aludidas expressões, na presença de todos os que ali se encontravam, bem sabendo serem as mesmas aptas a atentar contra a honra e consideração daquela EE, ciente ainda das funções por esta desempenhadas.

13 B -O arguido agiu, nas circunstâncias atrás descritas, com o propósito, concretizado, de ofender a honra, dignidade, bom nome e consideração pessoal e profissional daquela EE, o que conseguiu.

13 C -O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.”.


II. O Direito

a. Julgamento em matéria de facto, em recurso interposto de decisão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos – “inconstitucionalidade dos artigos 432.º e 434.º “


Dispõe o artigo 432.º do CPP, sob a epígrafe Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nas alíneas a) e b) do n.º 1:

“1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º.”

E estipula o art. 434.º do mesmo diploma:

“O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º”.

O Acórdão recorrido foi proferido em recurso, razão pela qual se lhe não aplica a 2.ª parte do art. 434.º, no que se refere à al. a) do n.º 1, do art. 432.º.

A redação atual da al. e) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21.12., que prevê um dos casos de irrecorribilidade, é a seguinte: “Não é admissível recurso) “De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância”

A alteração à norma proporcionou a sua conformidade com a Constituição, face à declaração com força obrigatória geral da “inconstitucionalidade da norma que estabelecia a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, por violação do artigo 32.º, n.º 1, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018, de 11/12).

E, indo mais longe, alargou o âmbito de recorribilidade, aos acórdãos proferidos pelas Relações que, em recurso e inovatoriamente face à absolvição em 1.ª instância, decidiram a condenação, em pena de qualquer natureza, mesmo que se trate de pena não privativa da liberdade.

Regressando ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018, de 11/12, enfatiza-se, na fundamentação da declaração de inconstitucionalidade, que é a aplicação de pena - a sua determinação e escolha, que surge como elemento verdadeiramente novo porque não sujeito a 2.ª apreciação:

“Ora, o apuramento da proporcionalidade de uma qualquer restrição ao direito ao recurso não pode alhear-se, desde logo, do tipo de intervenção do tribunal superior que assegura o duplo grau de jurisdição. Do ponto de vista das garantias de defesa do arguido, quanto maior for o conteúdo inovatório da decisão condenatória do tribunal de 2.ª instância, tanto mais insustentável será a sua irrecorribilidade.

No caso da norma em apreciação, o tribunal de 2.ª instância não procede a uma reapreciação de matéria já apreciada pelo tribunal de 1.ª instância, mas sim a uma apreciação ex novo: pronunciando-se o tribunal a quo pela absolvição do arguido, não chega, naturalmente, a apreciar a matéria da sanção, que pressupõe uma decisão positiva quanto à questão da culpabilidade (cfr. artigos 368.º e 369.º do CPP). Essa parte da decisão da 2.ª instância é, por definição, inovatória. Desta forma, não é assegurada no julgamento do recurso uma reapreciação das consequências jurídicas do crime.

Sendo de há muito dado adquirido na dogmática das consequências jurídicas do crime que a determinação judicial da pena concreta constitui «estruturalmente aplicação do direito», deixando «por toda a parte de ser considerado como uma questão relevando exclusiva ou predominantemente da subjetividade do julgador, da sua arte de julgar» (cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas - Editorial Notícias, 1993, pp. 40-41, no mesmo sentido, v. Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995, p. 13), não se afigura sustentável uma ausência absoluta de controlo do processo decisório de escolha e determinação da medida da pena de prisão, como se concluiu no Acórdão n.º 429/16, ponto 19.” (itálico nosso)

É esse concreto processo decisório novo que impõe a recorribilidade do acórdão da Relação.

Considerando a cláusula geral relativa aos poderes de cognição do Supremo, contida no art. 434.º do CPP, também na sua nova redação, conclui-se que o recurso, neste caso para um segundo tribunal superior, é restrito à matéria de direito.

A única diferença relativamente ao regime dos recursos das decisões, em 1.ª instância, das Relações (al. a), do n.º 1 do art. 432.º do CPP) e dos interpostos per saltum, nos termos da al. c) do n.º 1 do mesmo artigo, casos em que o Supremo constitui a única 2.ª instância, é a ausência de faculdade de o recurso poder ser interposto com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.

Como se explicita, quanto ao direito constitucional ao recurso em matéria penal, no Acórdão do TC nº 365/2022, de 12.05.22, “O que se entende é que o estatuto constitucional do direito ao recurso previsto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa não é inelástico, antes admite maior amplitude de restrição (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa) quando a pena aplicada (que corporiza a intrusão na esfera pessoal do condenado) possua menor grau de ingerência. Nesse pressuposto, concluiu-se que, desde que esteja assegurada a dupla jurisdição em processo criminal como forma de controlo quanto a erros de julgamento, nos casos em que a medida penal aplicada não importe privação da liberdade, não é constitucionalmente imposto que exista dupla conforme, o que preserva a compaginação para com a Lei Fundamental do disposto nos artigos 400.º, alínea e) e 432.º, n.º 1, alínea b), ambos do CPP. (…) Das duas uma: ou se asseguraria um número infinito de instâncias, ou a Lei teria que prever um instrumento de recurso a que apenas o arguido tivesse acesso, destinado exclusivamente à revisão de decisões condenatórias proferidas por Tribunais superiores de forma inovatória. Mesmo a ser assim, caberia então saber se qualquer uma destas soluções seria constitucionalmente viável, quando se leve em conta a necessidade de eficácia da ação penal e, em particular, o princípio da igualdade de armas, que se compreende também dimanação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (v. acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 124/92, 133/99, 413/2010, 442/2015 e 159/2019).”

A nova formulação dos arts. al. e) do n.º 1 do art. 400.º e 434.º, ambos do CPP, garante, efetiva e plenamente, a garantia do duplo grau de jurisdição consagrada no art. 32.º, n.º 1, da Constituição, enquanto componente do direito de defesa em processo penal.

Razão pela qual entendemos não se verificar a aludida inconstitucionalidade.

Pelas mesmas razões, não é admissível o recurso em matéria de facto, bem como na parte em que tem como objeto os vícios cominados no art. 410.º, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP, nos temos das disposições conjugadas dos arts. 400.º, n.º 1, al. e) e 434.º, ambos do CPP.

Devendo ser, em consequência, rejeitado, nessa parte, o presente recurso.


b. Sobre a modificação da matéria de facto dada como provada e a decisão em sentido oposto, com condenação em multa


b.1. O Acórdão recorrido fundamentou a sua decisão, em síntese, do seguinte modo:

“Os factos psicológicos que traduzem o elemento subjetivo da infracção são, em regra, no caso de não haver confissão, como sucede no caso concreto, objecto de prova indirecta, isto é, só são susceptíveis de serem provados com base em deduções a partir dos factos materiais e objectivos, analisados à luz das regras da experiência comum, como aliás é reconhecido na motivação da decisão de facto da sentença recorrida.

(…)

Importa também realçar que os direitos ao bom-nome, reputação e à livre expressão, não têm, em princípio, igual valor, não podem ser entendidos em termos absolutos e abstractos.

Dai decorre que apenas no caso concreto é possível discernir quais as palavras ou afirmações que, efectivamente, comportam uma carga ofensiva da honra de um indivíduo. Para este efeito, cumpre considerar, não só as expressões em si mesmas ou o seu significado, mas todas as circunstâncias envolventes, como sejam, o meio social e cultural a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto em que as palavras são produzidas e a forma como o são.

(…)

Revertendo ao caso concreto e como se referiu no parecer que antecede, com o qual concordamos, é evidente que o arguido ao dirigir as ditas palavras à assistente, na ausência de quaisquer factos provados no sentido da existência de uma qualquer coacção, agiu de forma livre e consciente. A normalidade do agir e das regras da experiência comum assim o determina.

Por outro lado, e como resulta de jurisprudência desta Relação, que perfilhamos, “existem expressões, comunitariamente tidas como obscenas ou soezes, que, objectivamente, atingem a honra do visado, a não ser que se demonstre que este as emprega usualmente e aceita sempre receber a carga de ofensividade que é inerente a elas”.

No caso resulta à saciedade da apreciação crítica e conjugadas da matéria de facto inserta sob os nºs 14 a 18 que a assistente, tendo em conta as características da sua personalidade, reputada como pessoa respeitadora, educada e cortês e respeitada, no seu local de trabalho e em ..., que eram certamente do conhecimento do arguido, pois com ela trabalhava e reconheceu que a tratava inclusive com deferência, bem como os efeitos que as referidas expressões proferidas pelo arguido lhe provocaram- tristeza, vergonha e preocupação- utilize na sua linguagem esse tipo de expressões e que aceite receber a carga de ofensividade que a elas é inerente.

Acresce que, as referidas expressões não podem ser analisadas isoladamente, como ocorre na maioria da jurisprudência citada pela Mmª Juiz a quo, que de todo o modo não é uniforme, designadamente quanto a proferida expressão “ vai para o caralho”, como resulta desde logo do Ac. do STJ de 12-01-2017, mas no seu conjunto, pois só assim, se pode analisar a sua verdadeira natureza ofensiva.

Por sua vez, o contexto em que o arguido actuou – de que a sentença recorrida nos dá conta – não pode deixar de se concluir que ele quis, efectivamente, fazendo apelo às regras da experiência comum, da lógica e aos critérios da normalidade da vida, denegrir a imagem e o bom nome da ofendida, conclusão que resulta como consequência lógica e necessária do modo como se lhe dirigiu.

De notar, que as mesmas expressões foram proferidas num contexto de trabalho, sem qualquer justificação aparente, dirigidas à superiora hierárquica, na presença de outros trabalhadores, e que, não obstante a assistente ter mantido a calma após terem sido proferidas as 1ªs expressões pelo arguido –“não tinhas nada que lhe pedir! Eu já te tinha dito que o tinha encontrado! Vai-te foder, não te faço mais nada! Vai para o caralho! Não tens perfil para estar aqui!” e de lhe ter solicitado que mantivesse a calma também, ele novamente, sem qualquer justificação “disse em voz alta, com foros de seriedade e na presença de todos os que ali se encontravam: vai para o caralho! “

Por seu turno, afigura-se-nos indiscutível que o contexto em que a expressão «Não tens perfil para estar aqui» foi proferida, quanto ao modo de actuar perante um problema profissional que lhes foi suscitado, bem como as circunstâncias em que foi atribuído à assistente aquele cargo de coordenadora e os sentimentos que o arguido na ocasião vivenciava, que este pretendia afirmar que aquela não reúne as qualidades pessoais ou profissionais que a tornariam apta para o cargo que ocupa.

(…)

Com efeito, tal expressão associada as restantes, mais do que um sentido meramente negativo, depreciativo ou socialmente inadequado, destinada a exprimir um juízo de valor para exercer o direito de crítica relativamente ao comportamento da assistente, atingiu o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezado pelos outros, assumindo um significado inequivocamente ofensivo da honra e consideração à luz dos padrões médios de valoração social.

Assim, tendo em consideração as citadas regras, a lógica e o normal acontecer também se deverá considerar assente que o arguido agiu com consciência de que o seu agir era proibido por lei, pois que ofensivo da honra da assistente.

Deste modo, à luz dos padrões médios de valoração social, as expressões em apreço, no contexto e circunstâncias em que foram dirigidas pelo arguido à assistente, são susceptíveis de ofender, de modo jurídico-penalmente relevante, a honra e consideração da visada, por atingir a esfera da sua dignidade pessoal e que afectará a sua reputação e a confiança que os outros lhe atribuirão.

Concluímos, pois que a sentença recorrida incorreu em erro notório na apreciação da prova, vício previsto na citada al. c) do nº 2 do art.º 410º do C. P. Penal.

No, entanto, como resulta do disposto no nº 1 do art.º 426º do C. P. Penal a ocorrência dos vícios do art.º 410 nº 2 do CPP apenas importam o reenvio do processo para novo julgamento, se não for possível decidir a causa, isto é, se o tribunal de recurso não estiver em poder de todos os elementos necessários para corrigir o vício.

No caso, a declaração do vício decorre, como já mencionamos, unicamente duma diversa perceção do alcance das «regras da experiência comum».

Assim, esse erro notório é passível de sanação neste tribunal, bastando para tal alterar a matéria de não provada e provada, retirando da primeira os factos supra indicados, que ocuparão na sentença a posição dos factos provados (cfr. art.º 431º nº 1 al. a) do C.P. Penal).

Deste modo passam a constar dos factos provados os seguintes factos:

“13 A - O arguido quis ainda proferir as aludidas expressões, na presença de todos os que ali se encontravam, bem sabendo serem as mesmas aptas a atentar contra a honra e consideração daquela EE, ciente ainda das funções por esta desempenhadas.

13 B - O arguido agiu, nas circunstâncias atrás descritas, com o propósito, concretizado, de ofender a honra, dignidade, bom nome e consideração pessoal e profissional daquela EE, o que conseguiu.

13 C - O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.”.

Em face da decidida alteração da matéria de facto, mostram-se preenchidos todos os elementos constitutivos do crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181.º, n.º 1, 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal, uma vez que a vítima das referidas injúrias era Coordenadora Técnica dos serviços administrativos do Agrupamento de Escolas ..., de ..., ou seja, uma das pessoas referidas na alínea l) do nº 2 do art.º 132º e foram proferidas no exercício daquelas funções.”


b. 2. O acórdão recorrido teve, como vimos, intervenção essencial na matéria de facto, dando como provados factos que haviam sido declarados não provados e, em consequência, condenando o recorrente.

Fê-lo em recurso em matéria de direito, dado não se encontrarem preenchidos os requisitos do n.º 2, do art. 412.º do CPP.

A modificabilidade da decisão de facto é permitida, no caso, apenas nos termos da al. a) do art. 431.º do CPP, ou seja, se “do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base”.

Em causa, encontrava-se o vício decisório de erro notório na apreciação da prova (al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP).

Como, de modo claro, tem explicitado por este Tribunal, [1]“O erro notório na apreciação da prova é um conceito jurídico processual, técnico legal, que ao subsumir-se ao disposto na alínea c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, apenas tem a ver com o texto da decisão recorrida, perspectivado na matéria de facto provada e não provada e respectiva fundamentação, sendo o erro detectável por qualquer pessoa que entenda a decisão, ao lê-la, ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, não se confundido com a valoração prévia das provas que convenceram o tribunal e que gerou esse texto descritivo e expositivo, exclusivamente factual.

O erro notório na apreciação da prova supõe factualidade contrária à lógica e às regras da experiência comum, detectável por qualquer cidadão de mediana formação cultural.”

Constituindo um erro da decisão (e não de julgamento), a declaração do vício emana da apreciação, com convocação, se necessário, das regras de experiência comum, do texto da decisão, em particular da matéria de facto (provada e não provada) e dos respetivos fundamentos.

Mas a expurgação do vício, pela modificação da matéria de facto, quando não houver lugar a decisão em matéria de facto, exige a presença no processo de toda a prova que sustentou a decisão recorrida.

O Acórdão identifica e reconhece o vício e declara que:

No, entanto, como resulta do disposto no nº 1 do art.º 426º do C. P. Penal a ocorrência dos vícios do art.º 410 nº 2 do CPP apenas importam o reenvio do processo para novo julgamento, se não for possível decidir a causa, isto é, se o tribunal de recurso não estiver em poder de todos os elementos necessários para corrigir o vício.”

Afirmou este Tribunal, recentemente[2]:

“Não tendo havido recurso em matéria de facto da decisão da 1.ª instância, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, do CPP, nem renovação da prova, que depende sempre do recurso em matéria de facto e de pedido (artigos 411.º, n.º, 5, 412.º, n.º 3, al. c), 423.º, n.º 2 e 430.º do CPP), o Tribunal da Relação apenas pode modificar a matéria de facto “se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base” (al. a) do artigo 431.º do CPP) (neste sentido, designadamente, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 30.1.2002 (Armando Leandro), Proc. 3264/01-3.ª, apud Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 3.ª ed.,  Quid Juris, 2020, p. 1067-1068, de 23.3.2006 (Santos Carvalho), Proc. 06)547, em www.dgsi.pt, e de 24.5.2018 (Carlos Almeida), Proc. 632/13.7PARGR.L2.S1, apud Henriques Gaspar et alii, cit., 3.ª ed., p. 1384) .

Havendo arguição de vício do artigo 410.º, n.º 2, do CPP – o que parece ter sido aceite – o Tribunal da Relação deve verificar se “é possível decidir da causa” (artigo 426.º, n.º 1, do CPP) com os elementos de prova que constam do processo, excluindo a documentação (gravação) da prova em audiência. Não sendo tais elementos de prova suficientes para o efeito, não pode o Tribunal da Relação proceder à sanação do vício; neste caso deve o Tribunal da Relação ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º, n.º 1, do CPP (assim, Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, p. 1184-1185, e Pereira Madeira, CPP Comentado, p. 1363, e os acórdãos de 21.3.2018, Proc. 1188/15.1PHLRS.L1.S1, e de 24.2.2016, Proc. 502/08.0GEALR.E1.S1).

Dois momentos de decisão aqui se identificam (id., ibid.): o da deteção e aferição do vício – que, embora em termos imperfeitos, se mostra efetuada – e o de sanação do vício, com base num juízo prévio sobre a suficiência das provas necessárias para essa finalidade – as provas existentes no processo, a apreciar criticamente.”

No caso, o requisito legal de modificabilidade, da al. a) do art. 431.º do CPP, mostra-se no limite do cumprimento, sem que, contudo, tenha ocorrido, de modo claro, uma expressão do primeiro momento decisório.

No entanto, são identificados os elementos de prova indispensáveis à decisão de alteração da matéria de facto, revelando-se, assim, a base da decisão.

Em razão do exposto, consideramos não se extrair, do texto da decisão recorrida, a verificação da nulidade prevista na al. c) do n.º 2 do artigo 379.º, em razão da violação do disposto na al. c), do n.º 2, do artigo 410.º, ambos do CPP.

Igualmente se não mostra violado, em consequência do alegado excesso de pronúncia, o princípio in dúbio pro reo.

A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.

Como este Tribunal tem afirmado: [3]

“Na verdade, o princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, mas é antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio.”

Podendo as instâncias tirar conclusões ou ilações da matéria de facto diretamente provada que constituem, em si mesmas, matéria de facto que escapa à censura deste tribunal, não é possível alcançar, face ao texto da decisão, qualquer estado de dúvida do julgador.

Quanto a esta dimensão, o recurso é, pois, de improceder.


c. Sobre a “incorreta interpretação e aplicação, ao caso concreto, do art. 181.º, n.º 1, do CP” e a “a inconstitucionalidade da dimensão normativa assumida pela Tribunal “a quo” nessa sua interpretação da referida norma incriminadora, por violar os arts. 18.º, n.º 2 e 37.º, n.º 1, 2 e 3 da Constituição”.


c. 1. A jurisprudência do TEDH [4]

A evolução da interpretação do TEDH sobre a extensão da proteção do direito à liberdade de expressão (consagrado no art. 10 da CEDH) estabilizou uma acentuada orientação restritiva, definindo um conjunto de critérios de apreciação da conformidade das normas e da jurisprudência dos Estados signatários com o referido texto convencional, a saber:

- O critério da legalidade (lei prévia e determinabilidade da norma penal)[5]

- O critério da legitimidade do fim perseguido pela intervenção estatal[6].

- O critério da necessidade de interferência numa sociedade democrática, determinado face a todas as circunstâncias do caso.[7]

No que se refere, em particular, ao conflito entre a liberdade de expressão e o direito à proteção da reputação (protegido pelo art. 8 da Convenção), o Tribunal tem observado, no que ora interessa à decisão do caso, os seguintes princípios e elementos:

1. Na definição dos elementos constitutivos da difamação, a existência de uma ligação objetiva entre a declaração em causa e a pessoa do ofendido[8]

2. O grau de gravidade do ataque à reputação, suscetível de prejudicar o gozo do direito ao respeito pela vida privada[9].

3. A proporcionalidade.

O Tribunal tem considerado que uma interferência no direito à liberdade de expressão é proporcional e necessária, numa sociedade democrática, quando não existam outros meios menos gravosos para obter o mesmo fim[10].

No caso Amorim Giestas e Jesus Costa Bordalo v. Portugal, o Tribunal considerou que a condenação dos requerentes, no pagamento de multa e indemnização, era manifestamente desproporcional, salientando que o Código Civil prevê um remédio específico para a proteção da honra e consideração.

Do mesmo modo, no caso Kanellopoulou v. Greece, o Tribunal considerou que uma condenação em pena de prisão aplicada ao requerente, perante o ataque à reputação de um cirurgião, era desproporcional, revelando-se os meios cíveis suficientes para proteger a aludida reputação (§ 38).


c.2. A jurisprudência do STJ

Este Tribunal tem tido oportunidade, especialmente nas Secções Cíveis, de se pronunciar sobre o conflito dos direitos fundamentais à liberdade de expressão (art. 37.º da CRP) e ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (n.º 1, do art. 26.º da CRP), aproximando-se da interpretação restritiva do TEDH.

No Acórdão de 30.6.2011, no proc. n.º 1272/04TBBCL.G1.S1, afirmou-se:

“A Convenção Europeia dos Direitos do Homem não tutela, no plano geral, o direito à honra.

Não o ignora no artigo 10.º, n. º2, mas a propósito das restrições à liberdade de expressão.

Esta construção levou aquele Tribunal a seguir um caminho inverso ao que vinham seguindo, habitualmente, os Tribunais Portugueses. Não partia já da tutela da honra, situando-se, depois, nas suas ressalvas, mas partia antes da liberdade de expressão, situando-se, depois, na apreciação das suas restrições, constantes daquele artigo 10.º, n. º2.

E vem proferindo múltiplas decisões cujo entendimento, mantido de forma constante, vem assentando, essencialmente, no seguinte:

A liberdade de expressão constitui um dos pilares fundamentais do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e, bem assim, do desenvolvimento de cada pessoa;

As exceções constantes deste n. º2 devem ser interpretadas de modo restrito;

Tal liberdade abrange, com alguns limites, expressões ou outras manifestações que criticam, chocam, ofendem, exageram ou distorcem a realidade.”

Também no Acórdão de 6.9.2016, no proc. n.º 60/09.9TCFUN.L1.S1, se destacou, neste particular, o papel da jurisprudência do TEDH:

“I.- A Constituição da República Portuguesa não estabelece qualquer hierarquia entre o direito ao bom nome e reputação, e o direito à liberdade de expressão e informação, nomeadamente através da imprensa. Quando em colisão, devem tais direitos considerar-se como princípios suscetíveis de ponderação ou balanceamento nos casos concretos, afastando-se qualquer ideia de supra ou infravaloração abstrata.

II.- De acordo com a orientação estabelecida pelo TEDH e que os tribunais nacionais terão que seguir, as condicionantes à liberdade de expressão e de imprensa devem ser objeto de uma interpretação restritiva e a sua necessidade deve ser estabelecida de forma convincente.”

Na mesma linha, o Acórdão de 13.7.2017, Proc. n.º 1405/07. 1TCSNT.L1.S1, relatado por Lopes do Rego:

«Ocorrendo conflito entre os direitos fundamentais individuais – à honra, ao bom nome e reputação - e a liberdade de imprensa, não deve conferir-se aprioristicamente e em abstrato precedência a qualquer deles, impondo-se a formulação de um juízo de concordância prática que valore adequadamente as circunstâncias do caso e pondere a interpretação feita, de modo qualificado, acerca da norma do art. 10º da CEDH pelo TEDH - órgão que, nos termos da CEDH, está especificamente vocacionado para uma interpretação qualificada e controlo da aplicação dos preceitos de Direito Internacional convencional que a integram e que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português - e tendo ainda necessariamente em conta a dimensão objetiva e institucional subjacente à liberdade de imprensa, em que o bem ou valor jurídico que, aqui, é constitucionalmente protegido se reporta, em última análise, à formação de uma opinião pública robusta, sem a qual se não concebe o correto funcionamento da democracia.”

Igualmente, no Acórdão de 9.12.2020, no Proc. n.º 24555/17:

“II.- Nos casos em que haja necessidade de ponderar se a liberdade de expressão ofende o direito ao bom nome de uma pessoa, legitimando a reprovação da ordem jurídica, importa um balanceamento concreto (não podendo aferir-se em abstrato).

III.- Neste sentido, a mais recente orientação jurisprudencial do STJ tem entendido ser de exigir um juízo de prognose sobre a hipotética decisão que o TEDH adotaria se o caso lhe tivesse sido submetido, no sentido de se verificar se é de admitir como muito provável que, se a questão viesse a ser colocada ao TEDH, tal órgão jurisdicional entenderia que os artigos em causa extravasariam os limites toleráveis do exercício da liberdade de expressão e informação.”


Nas Secções Criminais deste Tribunal, a jurisprudência é mais rara e menos atual, em razão do sistema de recursos.

Mesmo assim, extraem-se elementos importantes de interpretação, ligados à relevância do “grau do caráter ofensivo a partir do qual se passa da obscenidade e má criação para o crime” (Ac. de 12.01.2017, no Pro. 427/13.8GAARC.P1-A.S1, Rel. Souto Moura) e à atipicidade de certas condutas.

Com especial destaque para o Acórdão de 17.11.2010, no Proc. n.º 51/10.7YFLSB.S1, Rel. Isabel Pais Martins, que se pronuncia no sentido do afastamento do âmbito da tipicidade da norma de todas as expressões da liberdade de crítica objetiva:

“V - A tutela penal do direito constitucional “ao bom-nome e reputação” – art. 26.º, n.º 1, da CRP –, é assegurada, em primeira linha, pelos arts. 180.º e 181.º do CP que, na descrição típica, utilizam a expressão “ofensivos da honra e consideração”, não se podendo prescindir de definir o conceito de “honra”.   VI - A doutrina dominante adopta uma concepção dual da honra: esta é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior. O que o bem jurídico protege é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua reputação no seio da comunidade.   VII - Esta é a doutrina compatível com a nossa própria lei, já que o nosso ordenamento jurídico-penal, em consonância com a ordem constitucional, alarga o conceito da honra também à consideração ou reputação exteriores. VIII - A jurisprudência e a doutrina jurídico-penais portuguesas têm correctamente recusado sempre qualquer tendência para uma interpretação restritiva do bem jurídico “honra”, que o faça contrastar como o conceito de “consideração” ou com os conceitos jurídicoconstitucionais de “bom-nome” e de “reputação”, nunca tendo tido entre nós aceitação a restrição da “honra” ao conjunto de qualidades relativas à personalidade moral, ficando de fora a valoração social dessa mesma personalidade; ou a distinção entre opinião subjectiva e opinião objectiva sobre o conjunto das qualidades morais e sociais da pessoa; ou a defesa de um conceito puramente fáctico, quer – no outro extremo – estritamente normativo da honra. Por isso se pode concluir seguramente pela total congruência entre a tutela jurídico-penal e a protecção jurídico-constitucional dos valores da honra das pessoas – cf. Figueiredo Dias, RLJ, Ano 115.º, pág. 105.   IX - Segundo o entendimento hoje dominante, os juízos de apreciação e valoração vertidos sobre realizações ou prestações, na medida em que não seja ultrapassado o âmbito da crítica objectiva, caem já fora da tipicidade de incriminações como a difamação – cf. Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, págs. 232 a 240.  

X - E no sentido da atipicidade da crítica objectiva afastam-se, hoje, as exigências de proporcionalidade e da necessidade objectiva, do bem-fundado ou da “verdade”, bem como o pressuposto do meio menos gravoso.   XI - Ou seja, a tese da atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas. Por outro lado, o direito de crítica com este sentido não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas.   XII - É hoje igualmente pacífico o entendimento que submete a actuação das instâncias públicas ao escrutínio do direito de crítica objectiva.   XIII - São ainda de levar à conta da atipicidade os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do autor da obra ou prestação em exame: nesta linha, o crítico que estigmatizar uma acusação como “persecutória” ou “iníqua” pode igualmente assumir que o seu agente teve, naquele processo, uma conduta “persecutória” ou “iníqua” ou que ele foi, em concreto, “persecutório” ou “iníquo”. Aqui, está já presente uma irredutível afronta à exigência de consideração e respeito da pessoa, mas trata-se de sacrifício ainda coberto pela liberdade de crítica objectiva, não devendo ser levado à conta de lesão típica.   XIV - Já o mesmo não se poderá sustentar para os juízos que atingem a honra e consideração pessoal perdendo todo e qualquer ponto de conexão com a prestação ou obra que, em princípio, legitimaria a crítica objectiva.”

Em Acórdão de 24.04.2019, Proc. n.º 3659/09.0TDLSB.E1.S1, Rel. Nuno Gonçalves, a propósito da colisão entre o direito à honra e o direito à liberdade de expressão, esta na sua forma mais protegida, a liberdade de informar, afirmou-se, invocando expressão de João Tornada[11]: “A liberdade de expressão não protege apenas a veiculação de factos verídicos e opiniões sensatas. Ao invés, confere uma ampla margem para ofender e chocar em certa medida é uma verdadeira liberdade de ofender

E, citando Maria Paula Andrade[12], “a honra é um bem de personalidade que se traduz numa pretensão ou direito do indivíduo a não ser vilipendiado no seu valor aos olhos da sociedade e que constitui modalidade do livre desenvolvimento da dignidade humana”.

E, mais adiante: “Por isso, a aplicação de penas de prisão por crime de difamação ou crime de injúria, e outro tanto é válido dizer se para a condenação na obrigação de indemnizar pela prática dos mesmos factos, só é justificada em circunstâncias excecionais, designadamente, se outros direitos fundamentais foram gravemente atingidos, como nos casos de discursos de ódio ou incitamento à violência, pois o ordenamento jurídico português já prevê um remédio específico para a proteção do honra e da reputação, no art. 70.º do Código Civil, pelo que a penalização por difamação se deve entender, hoje, como residual[13]”.


c.3. A norma penal em causa (art. 181.º do Código Penal), deve, pois, ser lida num sentido conforme ao art. 10.º da CEDH, com os limites à restrição do direito à liberdade de expressão que a jurisprudência deste Tribunal e, especialmente, a extensa e consolidada orientação do TEDH têm afirmado: mostrar-se a declaração dirigida à honra e consideração de outrem, suscetível de produzir impacto relevante na esfera da vida privada do ofendido, revestir-se de gravidade que justifique a intervenção penal e consubstanciar coisa diversa da avaliação crítica

Tem-se afirmado na doutrina e jurisprudência nacionais a mesma linha de interpretação: apenas uma ofensa grave, desproporcionada e ilegítima à honra justifica o sacrifício do direito à liberdade de expressão

Manuel da Costa Andrade[14] considera que: "Uma expressão degradante só assume o carácter de «difamação» quando nela não avulta em primeiro plano a discussão objectiva das questões mas antes o enxovalho das pessoas. Para além da crítica polémica e extremada tem de se visar o rebaixamento das pessoas (...)”.

Ensinava, já, o Professor Beleza dos Santos que a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale, e que a consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal forma que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa ao desprezo público[15].

O bem jurídico sob proteção é identificado por Faria Costa, “como um bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicando na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior[16].

O elemento objetivo do crime de injúria, no caso, consistirá na ação de dirigir a outrem palavras, ofensivas do valor interior do indivíduo, com fundamento na sua dignidade, e o seu menosprezo, rebaixamento aos olhos da sociedade.

As expressões “Vai-te foder, não te faço mais nada!” e “Vai para o caralho!” dirigidas, embora e de forma clara, à ofendida, no contexto descrito de reação indignada (agastamento cuja justificação não se mostra aqui em causa) a certo comportamento daquela e no quadro geral descrito nos factos provados n.º 1 a n.º 44, não se nos afiguram ser ou pretender ser um ataque ao caráter, à dignidade ou à reputação da assistente.

Não afetam as condições essenciais para que a assistente, como dizia Beleza dos Santos, “possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale”, nem o “conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal forma que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa ao desprezo público”.

Constituem, no caso, a expressão de um sentimento de indignação, realizada de modo obsceno e reprovável socialmente, mas que se não relacionam com a dignidade e reputação, nem nestas produzem impacto.

Mostrando-se, no caso, excluídas do âmbito de tipicidade da norma.

Por sua vez, a expressão “Não tens perfil para estar aqui….” traduz-se em declaração crítica, embora agreste e deslocada, sobre o desempenho profissional da ofendida, superiora hierárquica do arguido, que deve ser avaliada, no local próprio – os processos de avaliação das instituições (incluindo-se, aqui, a avaliação dos superiores hierárquicos) e, se for o caso, o foro disciplinar.

Com efeito, a declaração do arguido sobre a qualidade do desempenho de dirigente da ofendida, associada aos impropérios proferidos, terá, eventualmente, relevo disciplinar, mas não assume nem gravidade, nem mesmo, qualidade com aptidão para desencadear reação penal.

Acompanha-se a doutrina e a jurisprudência que defende a atipicidade da crítica objetiva ao modo de exercício de cargo, no âmbito de relação profissional.

Entende-se, assim, que outra interpretação afetaria a tipicidade, elemento do princípio da legalidade consagrado no art. 29º, n.º1 da CRP e no art 1º do Código Penal, e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido, com prejuízo do conhecimento das demais questões suscitadas.


III. DECISÃO

Nestes termos, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal, decide:

1. Rejeitar o recurso em matéria de facto, bem como na parte em que tem como objeto os vícios cominados no art. 410.º, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP, nos temos das disposições conjugadas dos arts. 400.º, n.º 1, al. e) e 434.º, ambos do CPP;

2. Negar provimento ao recurso quanto à nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP;

3. Conceder provimento ao recurso e revogar o Acórdão recorrido.


Sem custas.


Lisboa, 13 de abril de 2023


Teresa de Almeida (Relatora)

Ernesto Vaz Pereira (1.º Adjunto)

Lopes da Mota (2.º Adjunto)

_____

[1] Por todos, Acórdão de 25.03.2010, proc. 427/08.OTBSTB.E1.S1, Rel. Raúl Borges.
[2] Acórdão de 22.06.2022, no proc. 215/18.5JAFAR.E1.S1, Rel. Lopes da Mota.
[3] Acórdão deste tribunal, de 5.7.2007, no proc. 07P2279.
[4] Segue-se a publicação, atualizada a 31 de agosto de 2022, “Guide on Article 10 of the European Convention on Human Rights (Freedom of expression)”, preparado pela Secretaria do TEDH, disponível no site respetivo, https://www.echr.coe.int/documents/guide_art_10_eng.pdf.
[5] Lindon, Otchakovsky-Laurens and July v. France [GC], § 41, Perinçek v. Switzerland [GC], § 135, Pinto Pinheiro Marques v. Portugal, th, §§ 37-39.
[6] (Morice v. France [GC], § 170; Perinçek v. Switzerland [GC], §§ 146-154; Stoll v. Switzerland [GC], § 54
[7] Morice v. France [GC] (§ 124) e Pentikäinen v. Finland [GC] (§ 87).
[8] Reznik v. Russia, § 45.
[9] Bédat v. Switzerland [GC], § 72; Axel Springer AG v. Germany [GC], § 83; A. v. Norway, § 64.
[10] Glor v. Switzerland, § 94.
[11] “Liberdade de expressão ou “liberdade de ofender”? -  o conflito entre liberdade de expressão, de informação e o direito à honra e ao bom nome”, Revista O Direito, 150, 2018, págs. 126/127.
[12] “Da Ofensa do Crédito e do Bom Nome: Contributo para o Estudo do artigo 484.º do Código Civil”, pág. 97.
[13] Citação no Acórdão, de João Tornada, ob. cit., pág. 140.
[14] “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal. Uma perspectiva jurídico-criminal”, Coimbra Editora, 1996, pág. 293.
[15] R.L.J., ano 92º, pág.164.
[16]Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 607.