Acordam em conferência na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,
I -
1. AA, declarado insolvente por sentença proferida em 16-03-2015, Recorrente nos autos, apresenta reclamação com pedido de reforma do despacho da relatora que por considerar inadmissível o recurso de revista, decidiu não conhecer do respectivo objecto.
O Reclamante reafirma o seu entendimento quanto à admissibilidade da revista reiterando que no caso ocorre uma situação de efectiva oposição de acórdãos (por o acórdão fundamento que indica ter por objecto a mesma questão fundamental de direito – reportada aos motivos que determinem a cessão antecipada do exoneração do passivo restante), defendendo que a decisão reclamada cometeu erro na determinação da normal aplicável, nos termos do artigo 616.º, n.º2, do Código de Processo Civil (doravante CPC)
2. A decisão reclamada tem o seguinte teor:
“1. O Recorrente interpôs revista excepcional (invocando ainda a verificação dos requisitos previstos no artigo 14.º, do CIRE – oposição de acórdãos) defendendo encontrarem-se verificados todos os pressupostos para a sua admissibilidade (refere estar em causa uma questão de fulcral importância jurídica e social - aferir se deve recusar-se antecipadamente a exoneração do passivo restante, por se verificar a circunstância prevista na al. c) do n.º 1, do art.º 243º do CIRE - para fornecer segurança e certeza a todos os operadores judiciários e, especialmente, aos cidadãos) . Alega ainda para o efeito que o acórdão recorrido está em contradição com o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03-06-2014, proferido no Processo n.º 747/11.6TBTNV-J.C1.
Em causa está recurso interposto do acórdão que confirmou a decisão de 1ª instância que decidiu recusar antecipadamente a exoneração do passivo restante ao insolvente AA.
Trata-se pois de recurso de decisão proferida no âmbito de processo de insolvência (incidente do mesmo) sendo-lhe aplicável não o regime geral de recursos (não tendo por isso cabimento a revista excepcional prevista no artigo 672.º, do CPC), mas o especial previsto no artigo 14.º, n.º 1, do CIRE, como constitui entendimento pacífico neste tribunal e como o Recorrente parece admitir no requerimento de 05-06-2020.
Nessa medida, a admissibilidade do recurso de revista depende da demonstração, pelo recorrente, de que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do CPC.
Nestes casos, como tem sido reiteradamente entendido por este Tribunal, a oposição de acórdãos relativamente à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação.
Acresce que igualmente pressupõe a existência de oposição de acórdãos o trânsito em julgado do acórdão-fundamento, constituindo ónus do recorrente a identificação e junção do mesmo.
Na invocação dos fundamentos para a “revista excepcional” e posteriormente para efeitos do artigo 14.º, do CIRE, o Recorrente faz alusão à existência de oposição de acórdãos, indicando como acórdão-fundamento o proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 03 de Junho de 2014, no processo 747/11.6TBTNV-J.C1, tendo para o efeito procedido à junção de cópia deste aresto.
2. Defende o Recorrente que a contradição dos julgados assenta no facto do acórdão-fundamento ter apreciado a mesma questão - cessação antecipada da exoneração do passivo restante - decidindo, porém, em sentido diverso ao do acórdão recorrido.
Vejamos.
3. Não há dúvida de que quer o acórdão recorrido, quer o acórdão-fundamento emitiram pronúncia quanto à cessação antecipada da exoneração do passivo restante tendo o acórdão recorrido, ao invés do acórdão indicado em oposição àquele, confirmado a decisão de 1ª instância que recusou antecipadamente a exoneração do passivo restante ao insolvente.
Todavia, conforme passaremos a justificar, o juízo formulado no acórdão-fundamento quanto à questão da cessação antecipada do procedimento de exoneração não pode ser entendido como confrontando relativamente à mesma questão (fundamental) de direito com o consignado no acórdão recorrido a tal respeito.
4. Na sequência do já referido, para que ocorra oposição de acórdãos impõe-se que determinada situação concreta (constituída por um núcleo factual similar) seja decidida, com base na mesma disposição legal, em sentidos diametralmente opostos.
Acresce que a divergência frontal na questão (fundamental) de direito terá de assumir necessariamente natureza essencial para a solução do caso, isto é, tem de integrar a ratio decidendi no âmbito dos acórdãos em confronto, carecendo de relevância para tal efeito as contradições relativamente a questões conexas, bem como reportadas à argumentação enquanto obiter dictum; nessa medida, inexistirá contradição relevante de julgados se confinada entre a decisão de uma e fundamentação de outra
5. Na situação dos autos o Tribunal da Relação manteve a decisão da 1.ª instância que julgou procedente incidente de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante ao abrigo da alínea c) do n.º1 do artigo 243.º do CIRE, em virtude do trânsito em julgado da decisão que qualificou como culposa a insolvência do Recorrente.
No acórdão-fundamento a questão da cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante reportava-se à violação pelo insolvente da obrigação da entrega ao fiduciário do rendimento disponível. Ou seja, a cessação antecipada tinha subjacente uma realidade fáctica diversa e com diferente enquadramento jurídico (incumprimento do dever prescrito no artigo 239.º, n.º4, alínea c) e 243.º, n.º1, alínea a), ambos do CIRE).
Assim, uma vez que a questão submetida à apreciação de cada um dos arestos é distinta, assume pleno cabimento a prolação de decisões diferentes em função da situação sobre a qual cada um deles incidiu.
6. Por conseguinte, verificando-se que o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento não se pronunciaram sobre a mesma questão fundamental de direito (na medida em que o abordado e decidido no acórdão recorrido foi algo distinto da apreciação e conhecimento da questão jurídica objecto de decisão no acórdão-fundamento) não ocorre a oposição de acórdãos como condição específica da admissibilidade da revista (normal) à luz do regime recursório especial a aplicar no caso - o do artigo 14.º, do CIRE.”
II – Apreciando
1. O entendimento da decisão proferida não pode deixar de ser reiterado.
1.1 Na situação sob apreciação (recurso do acórdão proferido pelo tribunal da Relação de Guimarães confirmativo da decisão que julgou procedente o incidente de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo com fundamento no proferimento da sentença que qualificou a insolvência como culposa), por força do disposto no artigo 14.º, do CIRE, a admissibilidade do recurso dependeria da existência de oposição dos julgados: entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento, quanto à mesma questão fundamental de direito.
Como salientado na decisão reclamada, para efeitos do citado preceito, a questão fundamental de direito apresenta-se decidida de forma contraditória quando ocorre interpretação divergente relativamente a um mesmo regime normativo, em aplicação de um mesmo instituto ou figura jurídica fundamental, o que impõe a verificação de uma identidade da situação factual subjacente a essa aplicação normativa.
Mostra-se pois indispensável à oposição relevante de acórdãos que situações concretas com similitude do respectivo núcleo factual tenham sido decididas, por aplicação da mesma base legal nos dois acórdãos, em sentido contrário.
Contrariamente ao defendido pelo Recorrente/Reclamante e na sequência do concluído no despacho que não tomou conhecimento do recurso, não ocorre qualquer interpretação divergente quanto à aplicação da mesma questão de direito porquanto, ao invés do pugnado pelo Reclamante, a questão fundamental objecto a apreciar no recurso não pode ser delimitada nos termos pretendidos: saber se existem (ou não) motivos que determinam a cessação antecipada.
Embora o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento tenham emitido pronúncia em sentido diverso no âmbito de um incidente de cessação antecipada da exoneração do passivo restante, a individualidade da questão apreciada por cada um dos arestos assenta na subsunção fáctico-jurídico que se impunha fazer em cada um deles.
Com efeito, no caso dos autos, o tribunal da Relação julgou procedente incidente de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante ao abrigo da alínea c) do n.º1 do artigo 243.º do CIRE, levando em conta a decisão que qualificou como culposa a insolvência do Recorrente (que transitou em julgado).
No acórdão-fundamento, a questão da cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante reportava-se à violação, pelo insolvente, de uma obrigação legal que lhe estava adstrita: a entrega ao fiduciário do rendimento disponível.
Verifica-se pois que as referidas decisões em confronto mostram-se alicerçadas em distintas realidades fácticas integrando, por isso, enquadramento jurídico diferente no que toca às causas passíveis de fundamentar a respectiva cessação antecipada (incumprimento do dever prescrito no artigo 239.º, n.º4, alínea c) e 243.º, n.º1, alínea a), ambos do CIRE e 243.º, alínea c), do mesmo Código).
Assim sendo, tal como considerado no despacho reclamado, não ocorre falta de consonância entre as duas decisões quanto ao entendimento referente aos motivos da cessação antecipada pois que, sublinhe-se, a conclusão diferente a que cada um dos arestos chegou decorre, unicamente, da realidade fáctica que se impunha apreciar em cada um deles (a ausência de identidade da situação fáctica a valorar conduziu a uma diferente subsunção jurídica).
Há que concluir que, no caso dos autos, o proferimento de decisão diversa daquela por que o acórdão-fundamento enveredou tem origem e mostra-se justificada pelo contexto factual díspar inerente a cada uma das decisões.
1.2. Por conseguinte, ao invés do defendido pelo Reclamante, a decisão de não conhecimento do objecto do recurso proferida encontra-se plenamente explicitada não padecendo de erro manifesto na aplicação da norma aplicável.
Tendo presente que os fundamentos que determinam a possibilidade de reforma da decisão se esgotam nas situações estritamente contempladas nas alínea a) e b) do n.º2 do citado artigo 616.º, do CPC, não pode deixar de se concluir que não ocorre motivo para a pretendida reforma.
Improcede, pois, a reclamação e o pedido de reforma de decisão.
II - Decisão
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente a presente reclamação e o pedido de reforma do despacho que não conheceu do objecto do recurso.
Custas pelo Recorrente, fixando-se em 2 Uc´s a taxa de justiça.
Lisboa, 7 de Setembro de 2020
Graça Amaral (Relatora)
Henrique Araújo
Maria Olinda Garcia
Tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos (artigo 15ºA, aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).