Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3848/23.4T8PTM.E1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: NULIDADE
EXCESSO DE PRONÚNCIA
SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
Data do Acordão: 10/03/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário :
I. Não existem atualmente pedidos de aclaração.

II. O princípio do realismo – ou seja, que para a qualificação da relação não é decisiva a designação que as partes atribuíram ao contrato, mas sim o modo como este foi concretamente executado – não é disponível para as partes.

III. No processo de trabalho a lei – mais concretamente o artigo 72.º n.º 1 do CPT – permite ao juiz a ampliação dos temas da prova.

Decisão Texto Integral:
Processo n.º 3848/23.4T8PTM.E1.SI

Acordam em Conferência na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

UBER EATS PORTUGAL, UNIPESSOAL, LDA., veio, invocando o disposto nos artigos 613.º, n.º 2, e artigo 614.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi dos artigos 666.º e 685.º do mesmo diploma, e nos termos do artigo 1.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho, requerer a aclaração de parte do acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça a 18 de junho de 2025, “bem como, a título subsidiário e caso se entenda que o acórdão proferido implica o apuramento obrigatório de factualidade não alegada pelas partes e não constante da causa de pedir ou da defesa, a arguição da respetiva nulidade, nos termos e para os efeitos dos artigos 609.º, n.º 1, 615.º, n.º 1, alínea d), 615.º, n.º 4, 617.º, n.º 6, do CPC, aplicável ex vi dos artigos 666.º e 685.º do mesmo diploma, e nos termos do artigo 1.º, n.º 2, do CPT” (negrito no original).

Na sua Reclamação a Reclamante invoca que o Acórdão, por um lado, afirma que “tendo em conta a necessidade de apuramento da mencionada matéria, poderá também mostrar-se relevanteapurar o montante que cada um dos cinco referidos estafetas auferiu mensalmente durante os períodos em que estiveram ‘vinculados’ à e/ou com a conta ativa (elementos de que a certamente dispõe), o que poderá contribuir para se ter uma ideia mais nítida da expressão/relevância dos fenómenos descritos nos pontos 37. e 38. da matéria de facto e do demais referidos nos pontos 3.2.1., 3.2.2. e 3.2.3. do presente acórdão” (ponto 3.2.4), mas, por outro, afirma igualmente que “Mais devendo ser apurado: (…) v) O montante que cada um dos estafetas em causa no recurso auferiu mensalmente durante os períodos emque estiveram vinculados àRé e/ou com a conta ativa (cfr. ponto 3.2.4.)”. Para a Reclamante existiria aqui “uma ambiguidade quanto ao carácter vinculativo da determinação do apuramento dos montantes auferidos mensalmente pelos estafetas, na medida em que o primeiro parágrafo se refere a essa diligência como uma mera possibilidade, enquanto o segundo parágrafo, ao utilizar a expressão "deve ser apurado", sugere uma imposição” (negrito no original).

Como é sabido já não existem pedidos de aclaração e a Reclamante não invoca uma nulidade do Acórdão por ininteligibilidade (artigo 615.ª n.º 1, alínea c)). Mas sempre se dirá que não existe qualquer ambiguidade: no seu Acórdão este Supremo Tribunal de Justiça considerou que pode importar para a qualificação jurídica da relação contratual de cada um dos estafetas o montante da retribuição que cada um aufere, bem como a regularidade com que esta é paga e determinou às instâncias que procedessem ao seu apuramento. A Reclamante pode divergir quanto à importância do apuramento deste facto, mas tal não é um objeto possível de uma reclamação (a qual não se confunde com um recurso).

A Reclamante invoca, depois, uma nulidade por excesso de pronúncia (artigo 615.º n.º 1 alínea d)). Considera, com efeito, que o apuramento do montante da contrapartida paga a cada um dos estafetas “excede os limites do objeto do litígio, consubstanciando uma questão nova não alegada pelas partes, nem de conhecimento oficioso, conduzindo a nulidade por excesso de pronúncia” (Conclusão n.º 30 da Reclamação) e que “a determinação de matéria de facto não alegada pelas partes consubstancia uma violação dos limites da atuação jurisdicional, viciando a decisão proferida – com efeito, nos termos dos artigos 3.º, n.º 1, e 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, o tribunal está vinculado ao princípio do dispositivo e não pode conhecer questões de que não podia tomar conhecimento”

Em resposta há que ter em conta que já o próprio Código de Processo Civil no seu artigo 683.º n.º 3 prevê a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça entender que a decisão de facto pode e deve ser ampliada. Por outro lado, e para além de as remunerações auferidas poderem constar de documentos constantes dos autos, importará ter também presentes as normas do Código do Processo de Trabalho, mormente os seus artigos 27.º n.º1 e 72.º n.º1. Com efeito, o que está em jogo nos presentes autos é a qualificação de relações contratuais no âmbito de uma ARECT. O princípio do realismo – ou seja, que para a qualificação da relação não é decisiva a designação que as partes atribuíram ao contrato, mas sim o modo como este foi concretamente executado – não é disponível para as partes. E o próprio Acórdão ao mandar baixar às instâncias admite como possível a necessária intervenção da 1.ª instância no uso dos seus poderes quanto a factos essenciais, ainda que não articulados (artigo 72.º n.º 2 do CPT) – veja-se o que nele se afirmou: ”Importa assim - antes de mais e prejudicando o conhecimento, pelo menos por ora, das demais questões - que, nos termos do art. 683°, n° 2, do CPC, seja esclarecido pelo Tribunal da Relação (sem prejuízo de, se este assim o entender, o poder determinar à Ia instância) se os mencionados estafetas, em causa no presente recurso (…)”.

Decisão: Indeferida a Reclamação

Custas pelo Reclamante

Lisboa, 3 de outubro de 2025

Júlio Gomes (Relator)

Domingos José de Morais

Mário Belo Morgado