Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
232/20.5T8SPS.C1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AGUIAR PEREIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
LEI PROCESSUAL
VIOLAÇÃO DE LEI
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
REVISTA EXCECIONAL
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 09/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA GERAL E REMESSA À FORMAÇÃO
Sumário :
I) Não incorre em nulidade por omissão de pronúncia sobre a modificação da matéria de facto o acórdão em que se analisam detalhadamente os meios de prova produzidos sobre os factos articulados pelas partes, ainda que não tenha considerado provado determinado facto concretamente alegado;

II) Actua em conformidade com o artigo 662.º n.º 1 do Código de Processo Civil o Tribunal da Relação que, depois de passar em revista a forma como a decisão da matéria de facto foi fundamentada e fixada em primeira instância e de ouvir toda a prova gravada produzida em audiência, faz a análise exaustiva, fundamentada e coerente da prova sem alterar, por não haver fundamento para tal a decisão proferida em primeira instância.

Decisão Texto Integral:


EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I - RELATÓRIO

Parte I – Introdução

1) AA, BB¸ CC e DD, demandaram:

EE, (falecida na pendência da acção) e FF e GG, pedindo a sua condenação nos seguintes termos:

a) a reconhecer que não existe qualquer declaração expressa ou tácita, nomeadamente nos termos do disposto no artigo 2.049º do Código Civil, de aceitação por parte de HH do legado em substituição da legítima constante do testamento lavrado pelo seu falecido marido, II, em ... de junho de 1997 no Livro ...4-B a fls. 81 do Cartório Notarial de ...;

b) a reconhecer que é falsa a declaração prestada por EE na escritura de Habilitação de Herdeiros outorgada no dia 31 de maio de 2019, Livro ...42-N a fls. 16 do Cartório Notarial de ... na parte em que se declara “… tendo esta aceitado o legado, (…)” pretendendo a declarante atribuir a HH a aceitação do legado em substituição da legitima constante do testamento de II;

c) a reconhecer que, seja porque o legado em substituição da legitima não retira a posição de herdeiro legítimo ao seu beneficiário e aceitante, seja porque não existe aceitação expressa ou tácita do referido legado em substituição da legítima nem nunca a HH foi chamada, no momento da morte de seu falecido marido ou em vida e notificada para aceitar ou repudiar o legado, esse legado não tem validade nem eficácia e os réus não são herdeiros legais ou testamentários ou por qualquer outra forma, do falecido II;

d) a reconhecer que HH foi a única e universal herdeira de seu falecido marido II;

e) a reconhecer que são nulos quaisquer registos de propriedade efetuados ou que se venham a efetuar tendo por suporte documental a escritura de Habilitação de Herdeiros exarada e outorgada por EE no dia 31 de maio de 2019 no Cartório Notarial de..., Livro ...42-N a fls. 16 e testamento a ela junto, seja porque contém falsas declarações seja porque, não constando dessa escritura qualquer prova documental da aceitação expressa ou da notificação judicial nos termos do disposto no artigo 2.049º n.º 1 do Código Civil, a mesma é insuficiente para a prova da qualidade de herdeiros dos réus e da aquisição de propriedade de quaisquer prédios do acervo hereditário da herança de II;

f) a reconhecer que é nulo e como tal deve ser rejeitado ou, se, entretanto, efetuado, ordenado o cancelamento de qualquer registo de propriedade e inscrição a favor dos réus no que respeita aos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de ..., freguesia de ..., sob os números ...35 e ...37, efectuados com base na escritura de Habilitação de Herdeiros referido em e);

g) a reconhecer que os autores são proprietários, em partes iguais, dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de ..., freguesia de ..., sob os números ...35 e ...37, atuais artigos matriciais 27, urbano e ...25, rústico, da União das freguesias de ... e ... e de todo o recheio do mesmo, móveis e utensílios diversos e;

h) Mais devem os réus ser condenados a reconhecer o direito de propriedade dos autores referido no pedido anterior, a retirar o cadeado referido no artigo 85º da P.I. e a absterem-se de qualquer outro acto perturbador desse direito de propriedade.

2) Alegaram para tanto, e em síntese, que HH não aceitou o legado que, em substituição da legítima, lhe foi instituído no testamento outorgado pelo seu falecido marido, II, pelo que os réus dele não são herdeiros, antes o é, e unicamente, aquela sua viúva, e assim pedem a nulidade de todos os registos que tiveram por base a escritura de habilitação de herdeiros onde, falsamente, foi declarado que a ré EE era herdeira daquele seu falecido tio, que antes devem ser os autores declarados proprietários dos bens em apreço.

3) Contestaram os réus EE e FF, argumentando que a legatária aceitou aquele testamento, e assim os familiares do falecido II são os seus universais herdeiros, pois que a consorte viu os seus direitos enquanto herdeira legitimária serem substituídos pelo legado que aceitou, na medida em que tomou conta dos bens e deles usufruiu em conformidade.

Pedem a sua absolvição dos pedidos.

4) Teve lugar uma audiência prévia.

Oportunamente realizou-se a audiência final e foi proferida sentença em primeira instância que julgou a acção procedente e declarou que “contrariamente ao afirmado por EE, aquando da outorga da escritura de habilitação de herdeiros lavrada a 31 de Maio de 2019 no Cartório Notarial de ..., HH, foi a única e universal herdeira do seu falecido marido, II, pelo que são nulos os registos lavrados com referência aos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de ..., freguesia de ..., sob os números ...35 e ...37, suportados pela referida escritura de habilitação de herdeiros e pelo testamento lavrado pela mesma EE, e determino o cancelamento das referidas inscrições. Custas pelos réus.”

5) Os réus EE e FF, inconformados, interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por seu acórdão de 12 de abril de 2023, ora recorrido, decidiu, por unanimidade:

Julgar parcialmente procedente a apelação e declarar “improcedentes os pedidos formulados pelos autores nas alíneas g) e h), do seu petitório, deles absolvendo os réus”;

Manter quanto ao tudo o mais a sentença recorrida, condenando os apelantes e os apelados no pagamento das custas da apelação, na proporção de 80% pelos apelantes e de 20% pelos apelados.


◊ ◊



Parte II – A Revista

6) Ainda inconformados os réus EE e FF interpuseram recurso de revista, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

“A) O acórdão recorrido merece reparo e deve ser revogado, uma vez que, invocando estar em causa uma conclusão a extrair do teor dos testamentos, e um tema de direito, decidiu não apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, ao não dar como provado o facto constante do artigo 40 da contestação, abstendo-se de fazer qualquer juízo sobre a realidade do facto de EE conhecer ou não conhecer o ato de disposição da quota disponível em favor da sua Irmã e Sobrinho.

B) Com tal atitude, o Tribunal coartou o direito de os Recorrentes impugnarem a sentença de primeira instância, violando a regra que permite o duplo grau de jurisdição em matéria de facto e deixando de conhecer questão que devia conhecer e proferiu uma decisão ferida de nulidade, nos termos previstos no artigo 615º, nº1, alínea d) do Código de Processo Civil, aplicável ex-vi o artigo 666º, nº 1 do mesmo código, nulidade que para os devidos e legais efeitos se argui.

C) A não se entender assim, o que apenas por dever de patrocínio se considera estar-se-á perante uma violação das regras processuais de apreciação da prova, isto é, um uso deficiente dos poderes e deveres do Tribunal da Relação quanto à apreciação da matéria de facto, isto é dos artigos 629º, 640º e 662º, em articulação com o artigo 607º, nº 4 e 5 do Código de Processo Civil, fundamento do recurso de revista que subsidiariamente se invoca.

D) Como resulta das conclusões LLL) a PPP) do recurso de apelação, os Recorrentes pretendiam a revogação da decisão de primeira instância, por considerarem que, de acordo com o disposto no artigo 2187º, nº 1 do Código Civil e a vontade real do testador, este tinha determinado que, por sua morte, os bens que compunham a sua herança não passassem para a titularidade do seu cônjuge, mas para a dos seus herdeiros legítimos da classe sucessível seguinte, excluindo o seu cônjuge da sua herança legítima e da quota disponível, independentemente da aceitação do legado.

E) Considerando as consequências do testamento relativamente à titularidade da quota disponível, não apenas para definição do direito dos Recorrentes, mas também para definição do direito dos Recorridos já que, não tendo existido qualquer partilha da herança de II, o cônjuge não se poderia arrogar a propriedade de quaisquer específicos bens daquele património, o Tribunal não se pronunciou sobre questão que devia ter conhecido, violando o disposto no artigo 608º, nº 2 aplicável ex-vi do art. 663º, nº2, ambos do Código de Processo Civil, omissão de pronúncia essa que, conforme o disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d), aplicável ex-vi do art. 666º, nº1, sempre do mesmo Código, gera a nulidade da decisão em questão, o que, para os devidos efeitos e nos termos previstos no nº 4 daquele artigo 615º, se alega.

F) A não se considerar assim, o que apenas por dever de patrocínio se considera, ter-se-á de concluir que, ao fazer a interpretação do testamento e fixando – e bem – que a intenção do testador, com a elaboração do testamento em análise, era a de assegurar que os seus bens passariam para a sua família e não para a sua viúva, o Tribunal concluiu que a intenção de transmitir a quota disponível para os demais herdeiros legítimos, a Irmã e o Sobrinho, não tinha a mínima expressão formal, ainda que imperfeitamente expressa, a que se refere o nº 2 do artigo 2187º do Código Civil, o que se traduz num erro na aplicação do direito, o qual, nos termos do artigo 674º, nº1 alínea a) do Código de Processo Civil, subsidiariamente se invoca.

Sem prescindir,

G) Não estando apenas em causa, nos presente autos, o destino da legítima, mas também o da quota disponível e a intenção do testador de, independentemente da aceitação do legado em substituição da legítima, excluir o seu cônjuge da sua herança legítima, saber se EE herda de seu marido enquanto herdeira legitimária ou herdeira legítima é uma fundamentação essencialmente divergente que afasta a aplicação do nº 3 do artigo 671º do Código de Processo Civil, devendo o presente recurso ser admitido nos termos do artigo 671º, nº 1 do mesmo Código.

Sem prescindir

H) Nem na jurisprudência, nem na doutrina se encontra expressamente debatida a situação em apreciação nos autos, ou seja, quais possam ser as consequências, relativamente à quota disponível, do estabelecimento de um legado em substituição da legítima em favor do cônjuge, quando não concorrem à herança descendentes ou ascendentes, sendo o cônjuge legatário o único herdeiro legitimário do testador.

I) Saber se, na ausência de ascendentes e descendentes, a estipulação, pelo testador, de um legado em substituição da legitima em favor do cônjuge, significa, ou não, a sua automática exclusão da herança legítima, independentemente da aceitação daquele legado é uma questão complexa, pois envolve a necessidade de conciliar a vontade presumida do testador, limitada quanto à disposição da legítima, mas livre quanto à quota disponível, com a liberdade de aceitação do legatário, pelo que, considerando a complexidade, a novidade e a relevância doutrinal do tema, se justifica que, através do mecanismo previsto no artigo 672º, nº1, alínea a) do Código de Processo Civil, se recorra a uma intervenção esclarecedora do Supremo Tribunal, através da admissão do presente recurso de revista.

J) Importa, por isso, que sejam claramente esclarecidos os contornos e as consequências jurídicas do recurso ao instituto do legado em substituição da legítima, em particular no que diz respeito à sua relação com o direito à disposição da quota disponível, objetivo que pode ser alcançado pelo recurso à ponderação, clarividência e particular elevação doutrinal que a jurisprudência do Supremo Tribunal pode assegurar.

K) Assim, também com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 672º do Código de Processo Civil e para que se esclareça se o estabelecimento de um legado em substituição da legítima, nos casos em que exista um único herdeiro legitimário significa o afastamento deste da sucessão legítima ou se a não aceitação do legado em substituição da legítima determina a atribuição ao não aceitante, ainda que único herdeiro legitimário, da qualidade de herdeiro universal, sem necessidade de averiguar e fazer cumprir a vontade do testador em relação à quota disponível, justifica-se que seja admitido o recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, o que se requer.

L) Considerando a evolução da pirâmide etária, as alterações nas estruturas familiares tradicionais e o crescente recurso a lares e outras instituições de apoio à terceira idade, importa que sejam claramente esclarecidos os contornos e as consequências jurídicas do recurso ao instituto do legado em substituição da legítima, em particular no que diz respeito à sua relação com o direito à disposição da quota disponível, objetivo que pode ser alcançado pelo recurso à ponderação, clarividência e particular elevação doutrinal que a jurisprudência do Supremo Tribunal pode assegurar, o que, também com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 672º do Código de Processo Civil justifica que seja admitido o recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, o que se requer.

M) O acórdão recorrido errou e deve ser revogado porque, tendo a reivindicação dos prédios sido julgada improcedente, esta decisão precede logicamente a decisão sobre os pedidos de falsidade de declarações e nulidade e cancelamento de registos, o quais ficam prejudicados, devendo o Tribunal de se abster de se pronunciar sobre os mesmos, uma vez que os Autores deixam de ter interesse nos mesmos.

N) O acórdão recorrido merece reparo e deve ser revogado e substituído por decisão que, assumindo, na sequência da nulidade invocada, a alteração da decisão de facto, reconheça que, ao assumir o usufruto da totalidade da herança, HH aceitou o legado em substituição da legítima, e reconheça que a totalidade dos bens que compunham a herança do testador se transmitiram para os demais herdeiros legítimos deste, os RR aqui Recorrentes, com a subsequente decisão de improcedência dos pedidos de declaração de falsidade das declarações prestadas e de cancelamento de registos, por ficar demonstrada a veracidade das declarações da cabeça de casal na habilitação de herdeiros de II, o que se peticiona.

Sem prescindir

0) Subsidiariamente requer-se que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que reconheça que, em qualquer dos casos, a quota disponível da herança de II passou para os seus herdeiros legítimos, os RR ora Recorrentes e, em consequência, decida pela improcedência de todos os pedidos formulados pelos AA, uma vez que, não tendo havido partilha da herança de II, o legado instituído no testamento de 2012 em favor dos AA. é nulo nos termos previstos no artigo 1685º, nº 2 do Código Civil, já que os bens que o constituem nunca passaram da herança indivisa para a propriedade de EE.

P) O acórdão recorrido merece reparo e deve ser revogado uma vez que, tendo sido dado como provado que o testador, pretendia assegurar que, por morte, os bens passassem para a sua família e não para o cônjuge supérstite e considerando que a vontade do testador não está limitada por lei no que diz respeito à quota disponível, importa concluir que a quota disponível passou para a sua família de sangue, independentemente da aceitação do legado em substituição da legítima pelo seu cônjuge, uma vez que a aceitação do legado em substituição da legítima só é uma condição legal para que também a legítima seja transmitida para a sua família de sangue, mas não para a transmissão da quota disponível.

Q) Logo, o acórdão recorrido, ao afirmar que, em consequência da não aceitação do legado em substituição da legítima, EE se tornou herdeira universal do testador, errou e deve ser substituído por uma decisão que declare que, na ausência de ascendentes e descendentes, a estipulação, pelo testador, de um legado em substituição da legitima em favor do cônjuge, significa a sua automática exclusão da herança legítima, independentemente da aceitação daquele legado, pelo que os RR e ora Recorrentes são os herdeiros da quota disponível do património hereditário em questão.

R) O acórdão recorrido deve ser revogado uma vez que o estabelecimento de um legado em substituição da legítima, quando existe um único herdeiro legitimário e este é o único herdeiro legítimo na sua classe, implica necessariamente uma exclusão automática do cônjuge da sucessão legítima e a atribuição da quota disponível aos herdeiros legítimos da classe sucessiva, pois se aquele mantivesse aquela qualidade, com todos os poderes e direitos relacionados com a titularidade da herança, a deixa testamentária não teria qualquer sentido, não surtiria qualquer efeito útil e careceria de objeto.

S) O acórdão recorrido merece reparo e deve ser revogado, por considerar que os AA, na qualidade de herdeiros, podem ter interesse na fidedignidade dos registos que incidem sobre os bens, quando aqueles nunca invocaram ser herdeiros.

T) O acórdão recorrido merece reparo e deve ser revogado, já que só pode ser considerado interessado no cancelamento de um registo, aquele que tenha a possibilidade de, após o cancelamento, vir a registar um hipotético direito de propriedade sobre os bens que são objeto do registo. Ora, decidindo o Tribunal pela improcedência da reivindicação, os AA não poderão vir a registar o direito de propriedade que o Tribunal lhes negou, devendo, em consequência, considerar-se prejudicado o pedido de cancelamento de todos os registos que tiveram por base a escritura de habilitação de herdeiros lavrada com base nas declarações da R. EE.

U) O acórdão recorrido deve ser igualmente revogado, no que respeita à verificação da autenticidade das declarações prestadas na habilitação de herdeiros efetuada pela R. EE em 31 de maio de 2019, e ao pedido de declaração de nulidade e de cancelamento de registos por não existir, da parte dos AA., o pressuposto processual do interesse em agir.

V) O acórdão recorrido merece reparo e deve ser revogado uma vez que, não demonstrando a propriedade dos bens nem a validade do legado por si invocado, a pretensão dos AA de ver cancelado o registo de propriedade dos bens em favor dos RR configura um manifesto abuso do direito, nos termos previstos no artigo 334º do Código Civil, uma vez que não visa a satisfação de qualquer direito ou interesse legítimo.

W) Em suma, deve ser decidida a revogação do acórdão recorrido, na parte relativa à impugnação das declarações constantes da habilitação de herdeiros outorgada pela ré EE e à invocação de nulidades e pedido de cancelamento dos registos efectuados com base na referida de habilitação de herdeiros, pois não invocando a qualidade de herdeiros, sendo-lhes negada a qualidade de proprietários e sendo nulo, pelo menos quanto à substância, o legado de 2012, é manifesta a falta do pressuposto processual do interesse em agir, devendo o Tribunal abster-se de se pronunciar acerca das pretensões dos AA relativas à veracidade das declarações prestadas por EE na habilitação de herdeiros de 31 de maio de 2019 e à nulidade dos registos lavrados com referência aos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de ..., freguesia de ..., sob os nº ...35 e ...37, bem como a determinação de cancelamento das respetivas inscrições, o que se requer.

Supletivamente,

X) Quando assim não se entenda, deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outra decisão que julgue improcedentes todos os pedidos formulados na petição inicial pelos AA, incluindo os pedidos de declaração de falsidade das declarações prestadas por EE constantes da escritura de habilitação de herdeiros outorgada em 31 de maio de 2019 no Cartório Notarial de ... e de declaração de nulidade e cancelamento dos registos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de ..., freguesia de ..., sob os nº ...35 e ...37 em favor dos RR e absolva os RR de todos os pedidos contra eles formulados, o que se requer

Y) Em qualquer dos casos, deve ser revogada a condenação em custas, uma vez que, não tendo os AA tido vencimento na reivindicação formulada, foram quem mais decaiu.

Nestes termos e nos mais de direito que Vossas Excelências doutamente suprirão deve:

- ser admitido o presente recurso de revista, nos termos peticionados;

- serem reconhecidas e declaradas as nulidades de sentença, com todas as consequências legais;

- ser revogado o acórdão recorrido nos termos acima peticionados e substituído por decisão determine a consequente absolvição dos RR de todos os pedidos contra si formulados pelos AA.


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7) Os autos não evidenciam que tenha sido apresentada resposta às alegações de revista.

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8) Colhidos que foram os Vistos dos Juízes Conselheiros adjuntos importa apreciar e decidir.

Tendo em conta o teor das decisões impugnadas e o das – com o respeito que é devido, manifestamente confusas e mal estruturadas – conclusões das alegações do recurso interposto as questões a decidir na presente revista são as seguintes:

- a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia ao não considerar provada a alegação contida no artigo 40.º da contestação;

- a regularidade do (não) uso dos poderes de cognição do Tribunal da Relação sobre a decisão da matéria de facto;

- a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia sobre a titularidade dos bens da herança de II;

- a (in)existência de dupla conforme e dos fundamentos da admissão da revista a título excepcional para apreciação da questão dos efeitos da estipulação de um legado em substituição da legítima, independentemente da sua aceitação pelo legatário único herdeiro legitimário.



◊ ◊



II - FUNDAMENTAÇÃO

Parte I – Os Factos

São os seguintes os factos provados, tal como resultam do decidido pelas instâncias:

A) Dos factos alegados na petição inicial 1:

1) Em 15 de novembro de 1970, na freguesia e concelho de ..., II contraiu casamento católico, sem convenção antenupcial, com HH, em primeiras núpcias de ambos, tendo esta última assumido o apelido “de ...”.

2) Em 20 de junho de 2003, na freguesia de ..., concelho do ..., faleceu o referido II.

3) No estado de casado com sua esposa HH, sem deixar descendentes ou ascendentes sobrevivos.

4) Em 15 de julho de 2003 a viúva, HH, compareceu no serviço de finanças de ... e aí disse que: “…na qualidade de herdeira, pretendia declarar que no dia ... de junho de 2003, faleceu no Instituto de Oncologia ..., onde se encontrava acidentalmente em tratamento, mas com domicílio em ...,..., deste concelho, seu marido II com quem era casada em primeiras e únicas núpcias, no regime geral de bens, sem ter feito testamento ou outra qualquer disposição de sua última vontade, deixando a suceder-lhe na herança:

1) A declarante cônjuge.

Mais declarou que a seu favor não se operou qualquer outra transmissão, a título gratuito, provinda do mesmo autor da herança”.

5) Com base nesta declaração o serviço de Finanças de ... instaurou processo de liquidação de imposto sucessório registado sob o n.º ...39.

6) No âmbito desse mesmo processo de Imposto sucessório e a 15 de setembro de 2003 a mesma viúva compareceu novamente no serviço de Finanças de ... e na qualidade de Cabeça de Casal, declarou que a transmissão aí em causa se compunha dos bens que constavam “… da relação junta, escrita em quatro folhas, devidamente autenticadas, compreendendo dezanove verbas de ativo e uma de passivo e da qual consta que não se procede a inventário judicial”.

7) Junto ao referido processo de imposto sucessório consta a referida relação dos bens, constituído por 10 verbas de móveis (1 a 10), 9 verbas de imóveis (11 a 19) e uma verba de passivo, relativa às despesas do funeral.

8) Como bens imóveis que integravam o acervo hereditário do falecido II constavam os seguintes na referida relação de bens, todos inscritos na matriz da Freguesia de ...:

Verba 11 – Casa de habitação inscrita na matriz urbana sob o artigo ...72, atual artigo urbano ...7 da União das freguesias de ... e ..., com o valor patrimonial de € 6.221,95 (doc. n.º 4).

Verba 12 – Pinhal denominado C... sito na P..., inscrito na matriz rustica sob o artigo ...60.

Verba 13 – Pinhal denominado ..., sito em ..., inscrito na matriz rustica sob o artigo ...75.

Verba 14 – Pinhal denominado S..., sito em ..., inscrito na matriz rustica sob o artigo ...77.

Verba 15 – Pinhal denominado L..., inscrito na matriz rustica sob o artigo ...19.

Verba 16 – 1/3 indiviso de uma pastagem denominada Sa..., inscrita na matriz rustica sob o artigo ...96.

Verba 17 – Terra culta denominado C..., inscrita na matriz rústica sob o artigo ...00, atual artigo rústico ...25 da União das freguesias de ... e ..., com o valor patrimonial de € 235,28.

Verba 18 – Um barracão destinado a aviário, sito na ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo ...28.

Verba 19 - Um barracão destinado a aviário, inscrito na matriz urbana sob o artigo ...29.

9) A relação de bens está datada de 9 de setembro de 2003 e tendo igualmente a referida HH aposto no seu final e pelo seu punho a sua assinatura.

10) Todas as verbas do ativo foram relacionadas em plena propriedade, tendo a verba 16 sido relacionada como 1/3 indiviso de um prédio rústico,

11) Constando a final de referida relação de bens o seguinte atribuído à cabeça de casal: “Mais declara que os bens não se encontram hipotecados nem sobre eles recai quaisquer ónus ou encargos, e não se procede a inventário.

12) Na liquidação a que se procedeu nesse processo consta como única interessada a viúva e cabeça de casal HH a quem foram adjudicadas todas as verbas do ativo e passivo,

13) tendo ficado isenta de imposto de sucessões e doações.

14) No âmbito do mesmo processo e ainda arrogando-se a qualidade de única e universal herdeira do marido, II, com data de 12-12-2008 e entrada em 17-12-2008, a referida HH solicitou a retificação da relação de bens (documento n.º 7).

15) No dia dois de março de 2004, no Cartório Notarial de ..., HH outorgou a escritura de Habilitação de Herdeiros, Livro ...44-A a fls. 22, na qual declarou o seguinte: “Que, nos termos do artigo 2.080º, do Código Civil, outorga como cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu marido, com quem era casada sob o regime da comunhão geral e em primeiras núpcias, II, natural da freguesia de ..., concelho de ... e que teve a sua última residência habitual no lugar da ..., freguesia dita de ..., falecido em ... de junho de dois mil e três, na freguesia de ..., concelho do ....

Que o falecido não deixou testamento ou doação por morte, não deixou descendentes nem ascendentes sobrevivos, sucedendo-lhe, por vocação da Lei, como única herdeira ela outorgante, sua viúva.

Que não há outras pessoas que, segundo a lei, prefiram à indicada herdeira ou com ela possam concorrer à sucessão.

16) No dia 20 de junho de 2012, no Cartório Notarial de ..., HH outorgou testamento no qual efetuou legados a diversas pessoas de alguns dos bens relacionados supra no artigo 8º, nomeadamente,

17) ao sobrinho e réu FF da verba 12 referida nesse artigo 8º,

18) aos 3 sobrinhos FF, JJ e KK, em partes iguais, das verbas 13, 14, 15 e 16,

19) e aos seus sobrinhos e autores AA e CC, em partes iguais, das verbas 11 e 17.

21) desde ... de junho de 2003 e até data que não foi possível apurar, HH, com referência a alguns dos imóveis referidos na Relação de Bens junta ao processo de Imposto Sucessório ...39,

22) Habitou e fez obras.

23) De forma continuada e ininterrupta, à vista de toda a gente, sem oposição e na convicção de não ofender direitos de terceiros.

25) Entre os anos de 2014 e 2015 a referida HH ordenou a realização e pagou obras de reconstrução de uma capela que se integra no prédio referido na verba 11.

28) HH faleceu em ... de abril de 2019, no estado de viúva, sem deixar descendentes ou ascendentes vivos.

29) deixando a suceder-lhe como únicos herdeiros irmãos e sobrinhos, entre os quais os autores AA e CC, filhos da irmã pré-falecida LL,

30) e deixando o testamento outorgado no Cartório Notarial de ... no dia 20 de junho de 2012, exarado a folhas trinta e três, do Livro de testamentos número seis – H.

31) no qual entre outros, declarou que “lega, em partes iguais, a seus sobrinhos AA, casado, e CC, filhos de sua referida irmã LL, com quem tem residido grande parte do tempo após o óbito de seu marido, os seguintes imóveis sitos no lugar da ..., freguesia de ..., concelho de ...:

Prédio urbano, constituído por casa de habitação, com alpendre e lagar, pátio e rossio (artigo 272.º), com todo o recheio que a mesma contiver, móveis e utensílios diversos;

e Prédio rústico “C...”, terreno culto e inculto, com videiras, fruteiras, pomar, pinhal, mato e dependências inscrito sob art.º ...00º”.

32) tendo após seu óbito sido outorgado no Cartório Notarial de ... no dia 15 de maio de 2019 escritura de habilitação de herdeiros, Livro ...37-D a fls. 8, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

33) Em 13-06-2019, na Repartição de Finanças de ..., o autor AA fez participação de Imposto de Selo na qual, entre o mais, se indicou a si e à autora CC como legatários e herdeiros,

34) relacionou sob cada uma das verbas 20 e 21 metade indivisa do artigo urbano 27 da União das Freguesias de ... e ... (anterior artigo ...72 da extinta Freguesia de ...),

35) e sob cada uma das verbas 22 e 23 metade indivisa do artigo rustico ...25 da União das Freguesias de ... e ... (anterior artigo ...00 da extinta freguesia de ...),

36) E atribuindo/adjudicando as verbas 20 e 22 ao autor AA e as verbas 21 e 23 à autora CC, tendo os autores pago os respetivos impostos, de Selo, pelas transmissões em causa.

37) Em 18-06-2019 o autor dá entrada na Conservatória do Registo Predial de ... do pedido de aquisição a seu favor e da autora CC da propriedade de ambos os prédios atrás referidos.

38) e em 1 de julho de 2019 é notificado pela respetiva Conservatória de que o registo de aquisição destes dois prédios a favor dos autores foi lavrado provisório por natureza sob as descrições ...35 e ...37 da freguesia de ... e Aps....23 de 2019/06/18, por não ter decorrido ainda o prazo para a interposição de recurso hierárquico ou impugnação judicial contra a recusa de registo requerido na Conservatória do Registo Predial de ... pela Ap. ...85 de 2019/06/06.

39) Aos balcões da A.T. de ... já havia sido apresentada uma participação de imposto de selo onde foram declarados como legatários de II os aqui réus, EE e FF, com base num testamento outorgado no Cartório Notarial de ... em 3 de junho de 1997.

49) No dia 31 de maio de 2019, no Cartório Notarial de ..., a 2ª ré EE outorgou escritura de habilitação de herdeiros, Livro ...42-N a fls. 16, na qual disse o seguinte: “Que desempenha o cargo de cabeça de casal na herança aberta por óbito do seu irmão, II, falecido a... de junho de dois mil e três, na freguesia de ..., concelho do ..., era natural da dita freguesia de ..., onde teve a sua última residência habitual no lugar da ..., concelho de ..., falecido no estado de casado com HH, em primeiras e reciprocas núpcias de ambos, segundo o regime da comunhão de adquiridos.

Que o falecido deixou testamento iniciado a folhas oitenta e um do Livro de Testamentos número ...4-B do Cartório Notarial de ..., no qual legou em substituição da legítima à sua mulher HH o usufruto vitalício de todos os bens da herança, tendo esta aceitado o legado, pelo que nos termos da lei e do indicado testamento lhe ficaram a suceder como herdeiros:

A irmã germana: EE, ora outorgante;

e o sobrinho: FF, natural da freguesia e concelho de ..., residente na Rua ..., União das Freguesias de ... e ..., concelho de ..., casado na comunhão geral de bens com GG, em direito de representação de seu pai MM, falecido a ... de julho de mil novecentos e oitenta e oito, o qual era irmão germano do falecido.

Assim, são eles os únicos herdeiros do falecido II, não havendo quem com eles concorra à sucessão, ou que a eles prefira.

50) Anexo a essa escritura de Habilitação consta testamento outorgado e assinado por II no dia 3 de junho de 1997, Livro ...4-B a fls. 81, no qual consta a seguinte declaração do testador: - “Declara, em testamento, que dispõe o seguinte, por morte:

- a) Lega à mulher, HH, em substituição da legítima, o usufruto vitalício de todos os bens da herança;

- b) Este testamento não surtirá efeito se o testador sobreviver à beneficiária. - Assim declara; e outorga”.

58) Nunca em vida da referida HH os réus se arrogaram ou atuaram em tempo algum ou por qualquer forma herdeiros ou requereram inventário, por óbito do falecido II,

59) Nunca solicitaram e obtiveram da viúva HH a sua declaração expressa de aceitação desse legado,

60) Nem nunca solicitaram, através do Tribunal a notificação da referida HH e a fixação pelo Tribunal de um prazo para que ela dissesse se aceitava ou não o legado.




B) Dos factos alegados na contestação:

21) II, morreu no dia ... de junho de 2003, no estado de casado, sob o regime da comunhão de adquiridos, com HH, em primeiras e recíprocas núpcias de ambos, sem deixar descendentes ou ascendentes que lhe sucedessem na herança dos seus bens.

22) Ele tinha por únicos irmãos a ora R. EE e MM, pré-falecido e Pai do ora R. FF.

23) II deixou o testamento lavrado a folhas oitenta e um do Livro de Testamentos número ...4.B, do Cartório Notarial de ..., pelo qual legou, em substituição da legítima, à sua Mulher, o usufruto vitalício de todos os seus bens.

24) No mesmo dia, no mesmo Cartório Notarial e com as mesmas testemunhas, também HH fez lavrar um testamento com texto absolutamente idêntico, legando em substituição da legítima ao seu Marido o usufruto vitalício de todos os seus bens.

25) Marido e Mulher pretendiam, com a elaboração dos mencionados testamentos, assegurar que, por suas mortes, os bens que compunham os respetivos acervos hereditários, passassem para a família de cada um e não para o respetivo cônjuge e, posteriormente, para a família do cônjuge supérstite.

26) Marido e Mulher estavam cientes da elaboração e conteúdo do testamento do respetivo cônjuge.

76) FF apresentou, em 6 de Junho de 2019, na Conservatória dos Registo Civil e Registo Predial de ... o pedido de registo de aquisição pelos RR., em comum e sem determinação de parte ou direito, relativo aos prédios descritos sob os n.ºs ...81, ...82 e ...84 da freguesia de ..., Concelho de ... e nº...34, ...35, ...36 e ...37 da freguesia de ..., Concelho de ..., ao qual foi atribuído o n.º ...85, prédios esses que integravam a herança indivisa de II, por constituírem, na data da sua morte, bens próprios do mesmo, tendo sido invocado o seu óbito como causa de aquisição da respetiva propriedade, por serem os RR. os herdeiros do autor da herança.


◊ ◊



Parte II – O Direito

1) Importa agora apreciar as questões colocadas pelo recorrente e atrás sumariamente indicadas.

Antes de iniciar a sua abordagem uma nota prévia em jeito de esclarecimento face ao teor das alegações de revista.

a) Do cotejo das decisões proferidas em primeira e em segunda instância decorre claramente que o acórdão recorrido, suprindo a omissão expressa da sentença impugnada, julgou improcedentes os pedidos formulados pelos autores nas alíneas g) e h) do pedido, deles absolvendo os réus, e confirmou a sentença recorrida quanto a tudo o mais decidido.

O acórdão não regista qualquer declaração de voto de vencido e, na parte em que confirmou a sentença impugnada, fundou-se no mesmo núcleo essencial de argumentação e fundamentação jurídica, com base nos mesmos factos considerados provados em primeira instância, ou seja, na inexistência de prova acerca da aceitação, tácita ou expressa, do legado por parte da beneficiária do testamento outorgado por II, a falecida HH, em substituição da legítima e na inerente não aplicação ao caso dos efeitos típicos da aceitação do legado (cfr artigos 2049.º e 2050 e 2056.º do Código Civil).

b) Daí que o recurso de revista interposto pelos réus EE e FF, ora recorrentes, só seja admissível a título excepcional na parte relativa ao segmento da decisão proferida em primeira instância, confirmada no acórdão recorrido, alusivo à condenação dos réus no reconhecimento que HH foi a única e universal herdeira de seu pré - defunto marido II, sendo nulos os registos efectuados com base na escritura de habilitação de herdeiros outorgada por aquela EE e no testamento nessa oportunidade invocado com o seu consequente cancelamento das inscrições registadas.

Quanto aos dois restantes pedidos, porque os réus foram deles absolvidos, não é admissível o recurso de revista interposto, seja a que título for.

c) As alegações de revista apresentadas assentam, tal como assentou a sua anterior contestação, no facto de os ora recorrentes considerarem que a beneficiária do testamento aceitou o legado em substituição da legítima, tal como declarara a ré EE ao outorgar a escritura de habilitação de herdeiros de II em 31 de maio de 2019, após o falecimento da beneficiária do aludido testamento.

A isso acresce, no entender dos recorrentes, que o falecido II dispôs a seu favor a quota disponível do seu património.

Sucede, porém, que essa versão da realidade não tem correspondência com aquela que foi processualmente fixada pelas instâncias, só podendo ser considerada caso de constate nesta sede haver razão para modificar a decisão sobre a matéria de facto e nessa exacta medida.

d) A questão que os requerentes suscitam e que identificam como reportando-se aos efeitos da estipulação pelo testador de um legado em substituição da legítima, independentemente da aceitação do legado sendo o legatário o único herdeiro legitimário e à repercussão da instituição do legado sobre a livre disposição da quota disponível pelo testador nessas circunstâncias, não foi, nesses exactos termos, apreciada nos autos, porque se partiu do princípio que, sem a prova da aceitação do legado em substituição da legítima, não podia concluir-se pela perda da legítima a que a esposa do falecido testador teria direito.

Relativamente a essa questão, porém, será o processo apresentado à Formação de Juízes Conselheiros a que alude o artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil para efeitos de apreciação sumária sobre a verificação dos pressupostos de admissibilidade a título excepcional do recurso de revista interposto.

Preliminarmente importa decidir se o acórdão recorrido incorre na alegada nulidade por omissão de pronúncia sobre a matéria de facto e se o tribunal da Relação usou dos poderes que lhe estão conferidos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil.

2) Começam os recorrentes por invocar a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia em relação a questão de que o tribunal deveria conhecer (artigo 615.º n.º 1 d) do Código de Processo Civil), entendendo que no caso não foi emitida qualquer pronúncia sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, relativamente ao por si alegado no artigo 40.º da contestação, isto é, ao conhecimento que HH tinha sobre a circunstância de o marido ter disposto da quota disponível em favor da sua irmã e sobrinho.

Liminarmente se dirá que o acórdão recorrido não padece de semelhante vício.

3) A nulidade invocada respeita aos limites da sentença e é uma consequência do incumprimento do dever imposto ao julgador pelo artigo 608.º n.º 2 do Código de Processo Civil, segundo o qual ele deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Não constitui, porém, nulidade da sentença a omissão de apreciação das linhas de fundamentação jurídica diferentes das acolhidas na sentença e que as partes hajam eventualmente invocado nem a omissão de factos que tenham sido alegados, mas sejam irrelevantes no contexto da decisão.

4) No acórdão recorrido foi exaustivamente analisada – ponto por ponto – a impugnação da matéria de facto feita pelos então apelantes, exarando-se quanto à não inclusão da alegação feita no artigo 40.º da contestação no elenco dos factos provados, que, “mais do que um facto, trata-se de uma conclusão a extrair do teor dos testamentos, conjugada com as disposições legais aplicáveis”, referindo que o notário mencionou ter esclarecido os presentes sobre os efeitos da aceitação do legado mas que, não sendo o conhecimento do teor do testamento pela esposa do testador questão de facto a decidir no contexto do processo – o que está em causa é a aceitação do legado – esse era um tema de direito a abordar em sede de fundamentação jurídica.

Para além de nada nos autos indiciar que o testador tenha feito disposições patrimoniais por conta da quota disponível da sua herança a favor de sua irmã e sobrinhos, o conhecimento dessa alegada disposição que pudesse ter tido HH só seria relevante – e essa é a questão central dos presentes autos – na medida em que ela tivesse aceitado, de forma expressa ou meramente tácita, o legado em substituição da legítima.

Como quer que seja, seguro é que o acórdão recorrido tomou posição sobre a pretensão dos ora recorrentes de verem a matéria do artigo 40.º da contestação integrada no elenco dos factos provados, ainda que não tenha lhe tenha dado acolhimento.

A revista improcede nesta parte, não ocorrendo a invocada nulidade por omissão de pronúncia.

5) De seguida os recorrentes invocam, subsidiariamente, a violação pelo acórdão recorrido das regras relativas à apreciação da prova em segunda instância, inseridas no artigo 662.º do Código de Processo Civil.

Este segmento do recurso não encontra fundamento na forma como o acórdão recorrido se posicionou ao analisar a prova produzida em primeira instância e expressou a formação da sua convicção sobre a realidade dos factos controvertidos.

Depois de passar em revista a forma como a decisão da matéria de facto foi fundamentada e fixada em primeira instância e de ouvir toda a prova produzida em audiência e oportunamente gravada, o acórdão recorrido faz a sua própria análise, de forma exaustiva, fundamentada e coerente, acabando por concluir em termos semelhantes aos da primeira instância, nada aditando nem excluindo.

Não se alcança – como foi devidamente explicado no acórdão recorrido – que prova produzida poderia ter imposto decisão diversa, tendo a segunda instância usado com rigor os poderes de que dispunha para o efeito.

Pelo que se conclui não ter o acórdão recorrido violado os deveres impostos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil.

6) A nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia sobre questão que, no entender dos recorrentes, o tribunal deveria ter conhecido e que vem invocada nas conclusões D) e E) das alegações da revista reporta-se a uma abordagem jurídica dos factos provados que ficou prejudicada pela solução dada à questão da relevância da não aceitação do legado por parte da esposa do testador.

Não constitui nulidade da sentença a omissão de apreciação de questão colocada na perspectiva inversa da que foi adoptada no acórdão recorrido, como se a aceitação do legado tivesse efectivamente acontecido. Tem aqui aplicação o que ficou dito no último parágrafo do anterior ponto 3.

O acórdão recorrido não incorre na nulidade invocada.

7) Com excepção das conclusões formuladas a título supletivo – conclusões X) e Y) – todas as demais conclusões das alegação do recurso de revista – nomeadamente as conclusões G), H), I), J), K), L), M), N), O), P), Q), R), S), T), U) e V) – se reportam directa ou indirectamente, à verificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso de revista a título excepcional com vista à apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça da questão de saber se a aceitação do legado em substituição da legítima por parte da HH, sendo ela a única herdeira legitimária do testador, era essencial à sua exclusão como herdeira legitimária do seu falecido marido II, sendo que a apreciação de algumas das questões ali colocadas – como as relativas ao cancelamento dos registos efectuados ou à sua fidedignidade porque assentes nas declarações da ré EE – poderão ficar prejudicadas pela solução de tal questão central.

A admissibilidade do recurso a esse título será decidida pela Formação de Juízes Conselheiros a que alude o artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil a quem os autos serão presentes.

8) Quanto às conclusões formuladas a título supletivo sempre se dirá que a integral improcedência dos pedidos formulados pelos autores não encontra suporte factual no quadro da matéria apurada e que também a apreciação da declaração de falsidade das declarações prestadas por EE e da condenação em custas poderão vir a ficar prejudicadas no âmbito do recurso de revista na parte ainda não admitida se ele vier a ser admitido a título excepcional.

Sem embargo da apreciação da responsabilidade pelo pagamento das custas que venha a ser decretada pela decisão eventualmente a proferir posteriormente, porque vencidos na parte já apreciada, condenam-se os recorrentes nas custas devidas nesta fse de recurso.



◊ ◊



III - DECISÃO

Termos em que os Juízes Conselheiros deste Supremo Tribunal de Justiça acordam em:

a) Julgar improcedente a revista interposta pelos réus quanto à modificação da matéria de facto decidida pelas instâncias incluindo por efeito do não uso dos poderes atribuídos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil à Relação;

b) Determinar que os autos sejam presentes à Formação de Juízes Conselheiros a que alude o artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil com vista à apreciação dos pressupostos de admissão da revista a título excepcional para apreciação da questão supra identificada;

c) Condenar os recorrentes no pagamento das custas da revista por si interposta, sem embargo de eventual posterior decisão sobre a matéria.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 17 de setembro de 2024


Manuel José Aguiar Pereira (relator)

Jorge Manuel Arcanjo Rodrigues

Jorge Manuel Leitão Leal

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1. A referência numérica aos factos provados corresponde à sua numeração no articulado↩︎