Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
455/12.0TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
AQUISIÇÃO DERIVADA
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
COMPRA E VENDA
PEDIDO SUBSIDIÁRIO
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÕES LEGAIS
Data do Acordão: 05/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / PRESUNÇÕES – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE / MODOS DE AQUISIÇÃO.
Doutrina:
-Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 1999, p. 232.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 350.º E 1316.º.
Sumário :
I - O titular da aquisição derivada do direito de propriedade sobre um bem não está impedido de invocar o reconhecimento desse direito com base na aquisição originária do mesmo. São duas vias ou modalidades de aquisição de direitos, cabendo ao autor escolher uma delas ou apresentá-las sob a veste de pedido principal e pedido subsidiário.

II - A compra e venda não é constitutiva do direito de propriedade, apenas transmite o direito que existia na esfera jurídica do alienante (nemo plus juris ad alium transfere potest, quam ipse habet), e uma vez submetida ao registo predial confere ao adquirente do direito de propriedade a possibilidade de o ver reconhecido desde que a presunção legal (registal) daí resultante não seja ilidida (art. 350.º do CC).

III - Tratando-se de uma modalidade de aquisição derivada, não resiste se lhe for oposta a aquisição originária do mesmo direito real, isto é, se aquele contra quem é invocado o direito na acção lograr demonstrar os factos de que emerge a aquisição originária do seu direito de propriedade, designadamente, a usucapião (art. 1316.º do CC).

IV - A aquisição por usucapião, também chamada prescrição aquisitiva ou prescrição positiva, constitui um efeito da posse reiterada de um direito real, nomeadamente o direito de propriedade e opera a aquisição originária do direito correspondente à posse exercida.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I - Relatório:


AA, BB, CC, DD, EE e FF intentaram a presente acção declarativa contra GG e HH na qual concluíram pedindo que fosse(m):

a) Declarado o reconhecimento judicial de que os Autores são os únicos donos e legítimos proprietários do prédio n.º 3434 melhor identificado nos art.s 2.º e 3.º da p.i. e respectivas linhas divisórias constantes do traçado das plantas topográficas juntas (foram juntas plantas topográficas a fls. 40, 41, 49 e 57);

b) Condenados os RR. a reconhecerem que os Autores são os únicos donos e legítimos proprietários do prédio referido na alínea anterior e nos exactos termos aí referidos;

c) Declarado procedente o direito à reivindicação da parcela do prédio n.º 3434, identificada no art. 11.º da p.i.;

 d) Os Réus condenados a restituírem aos Autores a parcela de terreno do prédio n.º 3434, da qual aqueles abusivamente se apropriaram, melhor identificada no artigo 11.º da p.i.;

e) Os Réus condenados a concorrerem para a delimitação das extremas entre o seu prédio (n.º 4229) e o prédio dos Autores (n.º 3434), através da reconstrução do muro de meação referido melhor identificado no art. 11.º da p.i..

Para tanto alegaram, em suma, que faz parte integrante do prédio de que são proprietários, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do Porto, sob o nº 3434, da freguesia de …, uma parcela de terreno – melhor identificada no art. 11º da petição inicial – abusivamente ocupada pelos réus em 17 de Dezembro de 2012, os quais procederam à demolição do muro que constituía a demarcação das extremas entre o prédio dos autores e o prédio dos réus e erigiram um muro em blocos de cimento a separar aquela parcela do terreno dos autores.

Contestaram os réus, alegando, em resumo, que a dita parcela de terreno lhes pertence, por integrar o imóvel descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 4229, por si adquirido às 1ª e 2ª autoras em 22 de Maio de 2007.

Replicaram os autores, alegando terem adquirido a ajuizada parcela de terreno por usucapião e formulando pedido subsidiário (que foi admitido), para o caso de improcedência do pedido primitivo formulado, nos seguintes termos:

“a) Reconhecer e declarar judicialmente que o direito de propriedade incidente sobre a parcela de terreno constante do traçado das plantas topográficas juntas à petição inicial - cuja reivindicação se peticiona - é propriedade dos Autores, por efeito da usucapião nos termos do disposto no art. 1287.º e ss do Código Civil;

b) Condenar os Réus a reconhecerem que os Autores são os únicos e legítimos proprietários dessa parcela de terreno;

c) Declarado procedente o direito à reivindicação desse prédio e os Réus condenados a restituírem aos Autores a parcela de terreno em causa;

d) Ordenar, para efeitos registrais, a rectificação da área do prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial, sob o nº 4229, reduzindo-a em conformidade com o resultado da medição que oportunamente se vier a apurar, e a correspectiva rectificação da área do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o nº 3434, aumentando-a, na justa medida do resultado da medição;

e) Os Réus condenados à reconstrução do muro de meação antes existente, para delimitação das extremas entre o seu prédio e do prédio dos Autores”.


Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença na qual se decidiu julgar a acção parcialmente procedente e consequentemente:

«A - Condenam-se os RR. a reconhecer que os AA. são os únicos proprietários do prédio referido em 1) dos factos provados com as delimitações e confrontações que decorrem dos n.ºs 12), 13) e 17) dos factos provados.

B – Declara-se que os AA. adquiriram a parcela referida em 13) e 17) dos factos provados por usucapião como parte integrante do prédio referido em 1) dos factos provados.

C- Consequentemente condenam-se os RR. a reconhecer que os AA. são proprietários de tal parcela, integrante do prédio referido em 1) dos factos provados e como tal a restituir a mesma aos AA..

D- Condenam-se os RR. a concorrerem para a delimitação das extremas do seu prédio referido em 3) dos factos provados com o prédio dos AA. referido em 1) dos factos provados, através da reconstrução do muro de meação antes existente e que demoliram.

E- Condenam-se os RR. a reconhecer que o seu prédio referido em 3) dos factos provados tem a área total de 339,20 m2.

F- Declara-se que a parcela de terreno referida em 13) e 17) dos factos provados tem a área de 26,16 m2 que acresce à área do terreno referido em 1) dos factos provados.

II) Quanto ao mais absolvem-se os RR. do pedido contra os mesmos formulado».


Inconformados, apelaram os réus, tendo o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 22 de Maio de 2017, julgado o recurso improcedente e confirmado a sentença da 1ª instância, ainda que com fundamentação não inteiramente coincidente.

Persistindo inconformados, recorreram os réus de revista, formulando, a final, nas suas alegações a seguinte síntese conclusiva, que se transcreve no segmento relevante:

«H. Para a douta sentença da 1ª instância a faixa de terreno ajuizada pertence às Recorridas em virtude de a terem adquirido por usucapião.

I. O que mereceu a oposição do douto Acórdão recorrido, com o fundamento de que não se pode adquirir por usucapião o que se adquiriu pela escritura de 19 de julho de 1946;

J. Mau grado isto, o Tribunal a quo entende que a faixa de terreno pertence às Recorridas, em virtude de uma operação de anexação e desanexação operada pela anterior proprietária ao abrigo do poder de disposição material do proprietário de prédios contíguos;

K. O que merece a mais viva e frontal discordância dos Recorrentes;

L. De acordo com a escritura de 19 de Julho de 1946, o prédio actualmente dos Recorrentes:

•Tem a área de 346,50 metros quadrados, sendo 133 m2 de área coberta e 213,50 de área descoberta;

•Confrontando a poente com II;

M. Foi este prédio que a JJ vendeu às netas AA e BB e estas venderam aos Recorrentes;

N. Compras e vendas e constituição de servidão de passagem que estão tituladas por escrituras públicas, que são documentos autênticos dotados de força probatória plena dos respectivos factos;

O. De acordo com as descrições prediais nºs 21043 e 4229 o prédio dos Recorrentes:

i. Tem a área de 346.50 metros quadrados, sendo 133 m2 e área coberta e 213.50 de área descoberta;

ii. Confronta a poente com II;

P. Os Recorrentes beneficiam pois da presunção derivada do artº 7 do Código do Registo Predial;

Q. Nos registos camarários a faixa de terreno em disputa integra o prédio dos Recorrentes sendo designada por caminho de servidão;

R. Daqui decorre que de acordo com as escrituras públicas, o registo predial e as evidências camarárias, a faixa de terreno ajuizada pertence aos Recorrentes;

S. As Recorridas nunca alegaram que a antiga proprietária JJ tivesse operado uma anexação e desanexação dessa faixa de terreno;

T. E somente alegaram a usucapião após a contestação dos Recorrentes e em consequência da junção da escritura de 19 de Julho de 1946 – compra e venda com reserva de servidão de passagem;

U. Daí que não haja qualquer facto alegado ou provado que sustente a putativa desanexação – anexação;

V. Não tendo também as Recorridas invocado qualquer causa de pedir para essa operação de desanexação – anexação;

W. E, em consequência, também não formularam qualquer pedido relativo à transmissão da coisa em consequência da putativa operação de desanexação – anexação;

X. Em conclusão, não há factos, nem causa de pedir, nem pedido que sustentem a transformação da coisa por ato do proprietário dos prédios contíguos, através de uma operação de desanexação – anexação;

Y. Mas ainda que a proprietária dos prédios contíguos – a sobredita JJ, quisesse retirar unilateralmente uma faixa de terreno ao prédio dos Recorrentes e integrá-la no prédio das Recorridas podia legalmente fazê-lo?

Z. A resposta somente pode ser negativa;

AA. Isto porque, sem se querer ser exaustivo, o artº 58 da Lei nº 31/2014 (Lei dos Solos); o artº 4 do DL 585/89 (RGUE); os artºs 1 e 2 do DL 38382 (RGEU) e o PDM do Porto, determinam, além do mais, que:

•O regime jurídico do urbanismo e os instrumentos de gestão territorial vinculam directa e imediatamente os particulares;

•As operações urbanísticas, como são as operações anexação/desanexação de prédios urbanos estão sujeitas ao controle e licenciamento das entidades públicas competentes, onde avulta a Câmara Municipal do Porto;

BB. Ora em nenhum momento destes autos foi alegado e muito menos provado que a JJ e as Recorridas tivessem submetido a controle e licenciamento esta putativa operação urbanística;

CC. Não podendo o Tribunal a quo pronunciar-se sobre a eventual isenção de controle e licenciamento desta operação urbanística porque não tem competência para tal, pois não é uma entidade com competência no domínio da gestão territorial;

DD. Diga-se, aliás, que foi com recurso a este expediente, que as Recorridas tentaram dar “um golpe urbanístico”;

EE. Tentando transferir capacidade construtiva do jardim do palacete para o prédio onde está implantado o armazém;

FF. Em conclusão, o douto Acórdão recorrido carece de todo e qualquer sustentação fática e jurídica, viola grosseiramente a legislação do urbanismo, ataca a competência das autoridades na gestão e ordenamento do território e, a ser admitida, viabilizaria os mais sórdidos atropelos urbanísticos.

GG. Impondo-se, por isso, a sua revogação, o que se pretende com este requerimento».

Finalizaram, pedindo a improcedência da acção com a consequente revogação do acórdão recorrido.

 

Os autores apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II. Fundamentos:

De facto:

Vem provada a seguinte matéria de facto:

1) Por escritura pública de compra e venda celebrada em 19 de Fevereiro de 2010, as 1.ª e 2.ª Autoras venderam aos 3.º a 6.º Autores em comum e partes iguais, um quarto do prédio descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial do Porto, sob o n.º 3434, da freguesia de …, inscrito na matriz sob o n.º 11484 e descrito em livro sob o n.º 16465 [cfr. doc. 1 de fls. 30 a 34 e doc. 2 de fls. 35/36] [al. A) dos factos assentes].

2) O prédio referido em 1) encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 3434 como “prédio urbano situado em …, Rua …, área total de 1000 m2; área descoberta 1000m2; terreno destinado a construção; Confrontações – Norte: Escola primária; Sul: Rua …; Nascente: JJ; Poente: KK (Desanexado dos prédios n.º 16074… e 16213…)” [cfr. doc. 2 de fls. 35/36] [al. B) dos factos assentes].

3) Por escritura pública de compra e venda celebrada em 22 de Maio de 2007, a 1ª e 2.ª autoras venderam aos Réus “livre de quaisquer ónus ou encargos, o prédio urbano composto de casa de cave, rés-do-chão e andar com quintal, sito na Rua …, n.º 5… da freguesia de …, concelho do Porto, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial do Porto, sob o n.º quatro mil duzentos e vinte e nove” (4229) [cfr. doc. 1 de fls. 92 a 98 dos autos] [al. C) dos factos assentes].

4) O prédio referido em 3) encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 4229 como “prédio urbano situado em …, Rua …, n.º 5…; área total: 346,5 m2; área coberta:133 m2 e área descoberta 213,5 m2 (…), inscrito na matriz sob o n.º 7505; composição e confrontações: casa de cave, rés-do-chão e andar, com quintal (o solo foi desanexado dos n.ºs 48005 … e 16465…)” [cfr. doc. 4 de fls. 50 a 54 dos autos] [al. D) dos factos assentes].

5) A aquisição referida em 3) encontra-se registada a favor dos RR. provisoriamente por dúvidas pela ap. 9 de 2007/05/17, após convertido em definitivo em 04/06/2007 [cfr. doc. 4 de fls. 50 a 54] [al. E) dos factos assentes].

6) O prédio referido em 3) estava antes descrito em livro sob o n.º 21043, onde o mesmo era identificado com a área aproximada de 346,5 m2, medindo “dez metros e meio de frente para a rua … por cerca de trinta e três metros de fundo, confronta do nascente com a rua, poente com II, norte com JJ e marido LL e sul com o Doutor MM e esposa NN (…)” [cfr. doc. 4 de fls. 109] [al. F) dos factos assentes].

7) As 1ª e 2ªs Autoras adquiriram o prédio referido em 1) por sucessão hereditária de JJ – conforme Ap. 3777 de 2009/01/19 [cfr. doc. 2 de fls. 35/36 dos autos] [al. G) dos factos assentes].

8) As 1ª e 2ªs Autoras adquiriram, por compra, o prédio referido em 3) a JJ através de escritura pública celebrada em 16/05/2002 onde este prédio está ali identificado sob a alínea b) como “…com a área de duzentos e treze vírgula cinco metros quadrados sito na Rua ……”. A final constando “Dois.- Que os imóveis referidos nas als. b) e c) estão também identificados quanto à área descoberta em termos contraditórios com a descrição matricial, devido a mero erro de medição, embora não excedente a cinco por cento em relação à área maior, fixando porém os outorgantes como área correta a constante da descrição predial” - cfr. doc. de fls. 139 a 143 dos autos cujo teor aqui se dá por reproduzido e doc. 4 de fls. 50 a 54 dos autos, onde a aquisição se encontra registada a favor das 1ª e 2ª AA. pela Ap. 25 de 2002/06/27 [al. H) dos factos assentes].

9) Encontra-se registada a aquisição a favor de JJ do prédio referido em 3) por partilha por morte de LL – conforme Ap. 7 de 1977/05/18 (cfr. doc. 4 de fls. 50 a 54 dos autos) [al. I) dos factos assentes].

10) Por escritura pública de 19/07/1946, na qual foram primeiros outorgantes Dr. MM e NN e segundos outorgantes JJ e marido LL (respectivamente filha e genro dos primeiros) foi declarado pelos primeiros outorgantes “Que são senhores e legítimos possuidores de dois terrenos de natureza alodial, sitos na Rua …, freguesia de …, desta cidade, tendo um deles o número cinquenta e nove e confronta do nascente com a rua, do poente com II, do norte com o terreno a seguir mencionado e do sul com eles primeiros outorgantes; e o outro tem o número setenta e sete, confrontando do nascente com a rua, do poente com II, do norte com eles primeiros outorgantes e do sul com o terreno precedente. Cada um destes terrenos tem a área aproximada de trezentos e quarenta e seis metros quadrados e cinquenta decímetros, medindo dez metros e meio de frente para a Rua Dr. … por cerca de trinta e três metros quadrados de fundo e corresponde, em valor, a um vinte avos do quintal do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo mil novecentos e quarenta e sete e é destacado dos descritos no livro B-cento e trinta e seis a folhas noventa verso, sob o número quarenta e oito mil e cinco e no livro B quarenta e dois, a folhas cento oitenta e sete, sob o número dezasseis mil quatrocentos sessenta e cinco da respectiva Conservatória.

Que, pela presente escritura, vendem o terreno mencionado em primeiro lugar, ou seja o que tem o número cinquenta e nove para a rua …, à segunda outorgante, sua única filha, JJ; e o mencionado em segundo lugar, ou seja o que tem o número setenta e sete, para a dita rua à mesma sua filha e ao marido dela (…) em comum e partes iguais.

 (…)

Que eles vendedores se reservam o direito de servidão de passagem pelos fundos dos mencionados terrenos, em toda a extensão das suas larguras, numa faixa de cerca de um metro e vinte centímetros de largura, e ainda o direito de continuarem a atravessar subterraneamente os mesmos terrenos com as canalizações de águas e esgotos já existentes e com as demais que lhe forem necessárias, e também de os atravessarem com linhas de electricidade, aéreas ou subterrâneas, podendo, assim, misturar livremente vistoriar essas canalizações e linhas sempre que preciso e proceder às obras de reparação, desobstrução e substituição de canos e linhas quando sejam necessárias, mas com o menor prejuízo possível para os proprietários dos terrenos aqui vendidos, pela qual servidão os compradores receberam dos vendedores a importância de duzentos escudos, de que lhes dão quitação.

Que, nestes termos, cedem e transferem para os compradores o pleno domínio directo, acção e posse, que até aqui têm tido sobre os terrenos vendidos, transmitindo-lhes, desde já, com todas as suas pertenças, servidões, direitos e regalias e livres de ónus reais e de quaisquer outras responsabilidades ou encargos que não sejam os acima mencionados. Que o prédio urbano acima referido, inscrito na matriz sob o artigo mil novecentos e quarenta e sete é situado na Rua A… (…) número quarenta e cinco.” [cfr. doc. de fls. 102 a 108 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido] [al. J) dos factos assentes].

11) O prédio urbano sito na Rua … n.º 7…, também referido em 10), antes descrito em livro sob o n.º 21044, encontra-se descrito na CRP sob o n.º 4230, como “prédio urbano situado em …, Rua …, n.º 7…; área total: 348,5 m2 (…), inscrito na matriz sob n.º 7506 (…) (o solo foi desanexado dos n.ºs 48005 … e 16465…)” [cfr. doc. 5 de fls. 55/56 dos autos] [al. L) dos factos assentes].

12) O prédio referido em 1) confronta a sul com a Rua A…, a nascente com JJ (hoje AA.), a poente com KK (hoje OO) e a norte também com o prédio referido em 3) dos factos provados.

13) A parcela de terreno assinalada a verde na fotocópia da planta topográfica junto sob o documento 6 a fls. 57 dos autos tem vindo a ser fruída desde pelo menos 1979 pela avó das 1ª e 2ª AA., após e desde 2002 pelas 1.ª e 2.ª Autoras e desde 2010 por todos os autores como entendem, à vista de toda a gente e sem a menor oposição de terceiros até ao facto referido em 19) infra.

14) Utilizando-a pelo menos para depósito das folhas do jardim depois reutilizadas como estrume.

15) Anteriormente tendo chegado a ser utilizada tal parcela como passagem para o armazém/garagens que ali existe(m) a Norte, também propriedade agora das Autoras.

16) Exercendo esse poder de facto por mais de 30 anos, sem interrupção, na convicção de estarem a agir como verdadeiros donos e proprietários de tal parcela, como parte integrante do prédio referido em 1).

17) A parcela de terreno referida em 13) confina a Nascente com o prédio dos Réus referido em 3) e a norte também com o armazém/garagens referido em 15). Tendo a área total de 26,15 m2, dos quais apenas 13,05 m2 correspondem ao prolongamento dos limites norte e sul do prédio dos RR. referido em 3) dos factos provados.

18) Desde pelo menos 1979 que a parcela de terreno referida em 13) esteve demarcada do prédio dos RR. referido em 3) e bem assim do prédio n.º 4230 referido em 11) através de um muro.

19) Em data não concretamente apurada, mas não posterior a 17 de Dezembro de 2012, os Réus erigiram um muro em blocos de cimento no limite sul da parcela referida em 13).

20) Obstruindo o acesso dos Autores para essa mesma parcela de terreno.

 21) Parcela de terreno esta, a referida em 13), que os RR. passaram a ocupar parcialmente.

22) Para os fins referidos em 19) os RR. previamente demoliram parcialmente o muro referido em 18) na parte correspondente ao seu prédio.

23) Na sequência da aquisição referida em 3) os Réus efectuaram obras de reabilitação do imóvel comprado.

24) O qual tem a área de 339,20 m2, excluída a parcela de terreno referida em 13).

25) A servidão de passagem referida em 10) incidia sobre os prédios referidos em 3) e 11) dos factos provados correspondente à parcela de terreno referida em 13) dos factos provados com a área total de 26,16 m2 [tema da prova 14].

26) Inexistem canos de águas, de saneamento ou linhas de electricidade em uso sobre a parcela de terreno referida em 13).

27) As edificações implantadas ou a implantar no prédio referido em 1) têm livre acesso para duas ruas, através da Rua … se fazendo as ligações de água, saneamento, gás e electricidade.

28) Previamente à venda referida em 3) os RR. ignoravam a exata área deste prédio.

29) Aquando da venda do prédio referido em 3) aos RR., foi este previamente mostrado aos mesmos por um agente imobiliário.

30) Tendo então este prédio a configuração correspondente àquela que existia antes de os Réus destruírem o muro que o separava da parcela de terreno referida em 13) e retratada no levantamento topográfico de fls. 451.

31) As 1.ª e 2.ª Autoras quiseram vender e os Réus quiseram comprar o prédio referido em 3) com a configuração referida em 30).

32) Independentemente da sua metragem.

                                              

De direito:

Em face da síntese conclusiva apresentada pelos réus, aqui recorrentes, balizadora do objecto do recurso, salvo questão de conhecimento oficioso, coloca-se à apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça saber se a facticidade provada permite o reconhecimento de que os autores são os proprietários da parcela de terreno em litígio nos presentes autos.

A sentença da 1ª instância respondeu afirmativamente a esta questão, reconhecendo que a faixa de terreno ajuizada pertence aos autores, ora recorridos, em virtude de a terem adquirido por usucapião, solução que os réus não aceitaram, apelando, por isso, de tal decisão.

Por sua vez, o Tribunal da Relação, após julgar improcedente a impugnação da decisão fáctica, que manteve intocada, entendeu também que a dita faixa de terreno pertence aos autores, mas por força de uma operação de anexação e desanexação operada pela anterior proprietária ao abrigo do poder de disposição material do proprietário de prédios contíguos.

Na verdade, a Relação considerou «que não fará sentido que o possuidor (causal) invoque a aquisição pela via originária da usucapião de um direito que radica já na sua esfera jurídica», enveredando, por isso, por fundamentação diversa que alcançou, no entanto, idêntica solução para o litígio que opõe as partes.

Também desta solução discordaram os réus, apontando na sua alegação de recurso as razões dessa discordância.

Como se vê, a questão nuclear a decidir no presente recurso consiste em apurar se os autores são os proprietários da faixa de terreno em causa ou se esta pertence aos réus.

Os autores pediram, a título principal, nesta acção de reivindicação (artigo 1311º do Código Civil) o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a aludida faixa de terreno com base na presunção registal derivada do disposto no artigo 7º do Código do Registo Predial.

O direito de propriedade, como sucede com outros direitos reais, pode adquirir-se por efeito de negócio jurídico, designadamente, por contrato de compra e venda (artigos 1316º e 879º al a) do Código Civil).

A compra e venda, não é constitutiva do direito de propriedade, apenas transmite o direito que existia na esfera jurídica do alienante (nemo plus juris ad alium transfere potest, quam ipse habet), e uma vez submetida ao registo predial confere ao adquirente do direito de propriedade a possibilidade de o ver reconhecido desde que a presunção legal (registal) daí resultante não seja ilidida (artigo 350º do Código Civil).

Tratando-se de uma modalidade de aquisição derivada, não resiste se lhe for oposta a aquisição originária do mesmo direito real, isto é, se aquele contra quem é invocado o direito na acção lograr demonstrar os factos de que emerge a aquisição originária do seu direito de propriedade, designadamente, a usucapião (artigo 1316º do Código Civil).

A usucapião determina, salvo disposição em contrário, a aquisição originária do direito correspondente à posse exercida durante certo lapso de tempo (artigo 1287º do Código Civil), traduzindo-se aquela, tal como se acha definida no artigo 1251º do Código Civil, no poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, poder que se traduz na prática de actos que o exteriorizam, no exercício de poderes de facto (corpus) reveladores da aparência do direito e que exprimem ou fazem presumir a vontade de quem os pratica, na relação material que mantém com coisa, de agir como titular do direito real correspondente (animus possidendi).

Nem toda a posse é idónea à constituição de direitos reais por usucapião, incluindo o direito de propriedade. Decorre do disposto no artigo 1297º do Código Civil que para esse efeito só a posse pública, a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados, e pacífica, a que foi adquirida sem violência, é, como afirma Luís Carvalho Fernandes, boa para a usucapião (Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 1999, p. 232).

Revestindo a posse essas características – pública e pacífica – e sendo exercida por certo lapso de tempo é susceptível de conduzir à usucapião desde que aquela se prolongue por quinze anos, se for de boa fé, ou pelo prazo de vinte anos, se for de má fé (artigo 1296º do Código Civil).

A aquisição por usucapião, também chamada prescrição aquisitiva ou prescrição positiva, constitui um efeito da posse reiterada de um direito real, nomeadamente o direito de propriedade, e opera a aquisição originária do direito correspondente à posse exercida.

O titular da aquisição derivada do direito de propriedade sobre um bem, não está impedido de invocar o reconhecimento desse direito com base na aquisição originária do mesmo. São duas vias ou modalidades de aquisição de direitos, cabendo ao autor escolher uma delas ou apresentá-las, como fizeram as autoras, sob a veste de pedido principal e pedido subsidiário. 

Nada impedia, por conseguinte, o reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre a “parcela de terreno assinalada a verde na fotocópia da planta topográfica junta sob o documento 6 a fls. 57 dos autos”, da qual ambas as partes se arrogam proprietárias, com fundamento na usucapião por si também invocada, a título subsidiário, como causa de pedir, desde que provada por estas a facticidade correspondente.

Com base no quadro factual que resultou provado, verifica-se que o prédio dos autores (actualmente descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do Porto, sob o nº 3434) e o prédio dos réus (actualmente descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do Porto, sob o nº 4229) pertenceram a MM e NN (bisavós da 1ª e 2ª autoras), facto que não foi posto em crise pelas partes.

O acórdão recorrido, alicerçando-se na facticidade provada, elencou, quanto ao prédio dos réus, descrito sob o nº 4229, os seguintes negócios translativos:

- por escritura pública de 19 de Julho de 1946 os referidos MM e NN venderam-no à sua filha JJ (avó da 1ª e 2ª autoras),

- por escritura de compra e venda de 16 de Maio de 2002 JJ transmitiu-o à 1ª e 2ª autoras;

- finalmente, por escritura pública de compra e venda celebrada em 22 de Maio de 2007, as 1ª e 2ª autoras venderam-no aos réus.

Relativamente ao prédio dos autores, descrito sob o nº 3434, temos que também havia pertencido aos referidos MM e NN, bisavós da 1ª e 2ª autoras, e que estas o adquiriram  por sucessão hereditária de JJ, sua avó, tendo, finalmente, por escritura pública de compra e venda celebrada em 19 de Fevereiro de 2010, as 1ª e 2ª autoras vendido aos 3º a 6º autores, em comum e partes iguais, um quarto deste prédio.

Da escritura pública de compra e venda outorgada em 19 de Julho de 1946 resulta ainda ter sido constituída uma «servidão de passagem pelos fundos dos mencionados terrenos, em toda a extensão das suas larguras, numa faixa de um metro e vinte centímetros de largura».

Este encargo extinguiu-se, contudo, pela reunião dos prédios envolvidos, dominante e serviente, no domínio da mesma pessoa, concretamente JJ, a qual se tornou proprietária desses imóveis (artigo 1569º, nº 1 al. a) do Código Civil). Razão por que nenhum reflexo tem já na resolução da presente acção, como é expressamente afirmado no acórdão recorrido.

Vejamos então se a materialidade provada pode conduzir ao sucesso da pretensão dos autores, como consideraram as instâncias, embora com diversa fundamentação jurídica, ou se o recurso dos réus merece acolhimento.

Para decidir esta questão importa considerar os seguintes factos provados:

13) A parcela de terreno assinalada a verde na fotocópia da planta topográfica junto sob o documento 6 a fls. 57 dos autos tem vindo a ser fruída desde pelo menos 1979 pela avó das 1ª e 2ª AA., após e desde 2002 pelas 1.ª e 2.ª Autoras e desde 2010 por todos os autores como entendem, à vista de toda a gente e sem a menor oposição de terceiros até ao facto referido em 19) infra.

14) Utilizando-a pelo menos para depósito das folhas do jardim depois reutilizadas como estrume.

15) Anteriormente tendo chegado a ser utilizada tal parcela como passagem para o armazém/garagens que ali existe(m) a Norte, também propriedade agora das Autoras.

16) Exercendo esse poder de facto por mais de 30 anos, sem interrupção, na convicção de estarem a agir como verdadeiros donos e proprietários de tal parcela, como parte integrante do prédio referido em 1).

17) A parcela de terreno referida em 13) confina a Nascente com o prédio dos Réus referido em 3) e a norte também com o armazém/garagens referido em 15), tendo a área total de 26,15 m2, dos quais apenas 13,05 m2 correspondem ao prolongamento dos limites norte e sul do prédio dos RR. referido em 3).

18) Desde pelo menos 1979 que a parcela de terreno referida em 13) esteve demarcada do prédio dos RR. referido em 3) e, bem assim, do prédio n.º 4230 referido em 11) através de um muro.

19) Em data não concretamente apurada, mas não posterior a 17 de Dezembro de 2012, os Réus erigiram um muro em blocos de cimento no limite sul da parcela referida em 13).

20) Obstruindo o acesso dos Autores para essa mesma parcela de terreno.

22) Para os fins referidos em 19) os RR. previamente demoliram parcialmente o muro referido em 18) na parte correspondente ao seu prédio.

21) Parcela de terreno esta, a referida em 13), que os RR. passaram a ocupar parcialmente.

23) Na sequência da aquisição referida em 3) os Réus efectuaram obras de reabilitação do imóvel comprado.

24) O qual tem a área de 339,20 m2, excluída a parcela de terreno referida em 13).

28) Previamente à venda referida em 3) os RR. ignoravam a exacta área deste prédio.

29) Aquando da venda do prédio referido em 3) aos RR., foi este previamente mostrado aos mesmos por um agente imobiliário.

30) Tendo então este prédio a configuração correspondente àquela que existia antes de os Réus destruírem o muro que o separava da parcela de terreno referida em 13) e retratada no levantamento topográfico de fls. 451.

31) As 1.ª e 2.ª Autoras quiseram vender e os Réus quiseram comprar o prédio referido em 3) com a configuração referida em 30).

32) Independentemente da sua metragem.

Perante esta facticidade, temos de concluir, como na sentença proferida em 1ª instância, que os autores lograram demonstrar, como era seu ónus, os requisitos ou pressupostos necessários à aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre a parcela de terreno identificada no ponto 13 dos factos provados.

Com efeito, de tais factos decorre que os autores, por si e por intermédio dos seus antepossuidores, vêm exercendo, reiteradamente, sobre aquela parcela posse pública e pacífica, que vai além dos vinte anos estabelecidos no artigo 1296º do Código Civil, tendo os réus perturbado a posse dos autores, assim caracterizada, ao demolirem parcialmente o muro existente na parte correspondente ao seu prédio, em data não posterior a 17 de Dezembro de 2012, e construírem um muro em blocos de cimento no limite sul da mesma, passando a ocupá-la parcialmente e obstruindo o acesso dos autores a essa mesma parcela de terreno, como vinha sucedendo até então.

Do que referimos decorre a procedência da acção nos exactos termos em que foi definida pela sentença da 1ª instância, sem necessidade de recorrer ao percurso jurídico traçado no acórdão recorrido, ficando, em consequência, prejudicada a análise das questões suscitadas pelos réus, recorrentes, estritamente ligadas à solução jurídica dada ao litígio pelo Tribunal da Relação (artigo 608º nº 2 do Código de Processo Civil).


III. Decisão:

Nesta conformidade, acorda-se no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido, ainda que com base em fundamentação coincidente com a da sentença proferida em 1ª instância.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 24 de Maio de 2018


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Maria do Rosário Morgado