Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
97P900
Nº Convencional: JSTJ00033436
Relator: VIRGILIO OLIVEIRA
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
PENA ACESSÓRIA
Nº do Documento: SJ199802110009003
Data do Acordão: 02/11/1998
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N474 ANO1998 PAG144
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/SOCIEDADE.
Legislação Nacional:
Jurisprudência Nacional:
Sumário : Com a entrada em vigor do Código Penal de 1995, a condução de um veículo em estado de embriaguês é punível não apenas com a pena cominada no artigo 292 daquele diploma como também da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. - No Tribunal Judicial de Ponta Delgada, perante o tribunal Colectivo, foi o arguido A julgado sob a imputação de haver praticado um crime de condução sob o efeito do álcool, previsto e punido no artigo 2 do
Decreto-Lei n. 124/90, de 14 de Abril.
2. - O arguido veio a ser condenado pela autoria material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292 do
Código Penal, na pena de noventa dias de multa, à taxa diária de 500 escudos ou, em alternativa, em sessenta dias de prisão (acórdão de 10 de Julho de 1996).
3. - O Ministério Público recorreu, concluindo na motivação que tempestivamente apresentou:
3.1. - No douto acórdão recorrido foi o arguido condenado tão somente na pena prevista no artigo 292 do
Código Penal revisto, por se entender que, com a entrada em vigor do referido Código, nos casos de crime por condução de veículo em estado de embriaguez, deixou de se aplicar a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados;
3.2. - O nosso entendimento é, porém, no sentido de que, no caso sub júdice, se aplica o disposto no artigo
69, n. 1, alínea a) do Código Penal.
3.3. - Deve o acórdão ser revogado na parte em que não condenou na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, condenando-se o arguido em tal pena por um período de seis meses.
Com os vistos legais e após audiência oral, cumpre decidir.
4. - A matéria de facto, tal como vem da 1. instância,
é a seguinte:
4.1. - No dia 5 de Junho de 1994, pelas 3 horas, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de matrícula QZ-41-05 e, ao ser submetido ao teste de alcoolemia, acusou um T.A.S. de 2,4 g/l;
4.2. - O arguido tinha bebido vinho ao jantar e depois tomou whisky;
4.3. - O arguido sabia que não podia conduzir com aquela T.A.S., por ser proibida a sua conduta, mas não deixou de o fazer, deliberada e livremente;
4.4. - O arguido era vendedor de produtos hospitalares, auferindo cerca de 80000 escudos por mês e sua mulher é enfermeira, tendo dois filhos gémeos com 14 anos e um outro com 18 anos de idade, todos estudantes;
4.5. - A firma onde o arguido trabalhava fechou há dois meses, encontrando-se o arguido actualmente à procura de emprego;
4.6. - Tem carta de condução desde 9 de Janeiro de
1979, sendo esta a primeira vez que responde em juízo;
4.7.- Utiliza o automóvel no dia a dia.
5. - No acórdão sob recurso, a fundamentar o decidido, argumenta-se:
5.1. - À data da prática dos factos estava em vigor o
Decreto-Lei n. 124/90, de 14 e Abril e a conduta do arguido preenchia os elementos objectivos e subjectivos do crime previsto e punido pelo artigo 2 daquele diploma legal, a que correspondia a penalidade de prisão até um ano ou multa até 200 dias, acrescida, nos termos do seu artigo 4, n. 2, alínea a), da sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir de seis meses a cinco anos;
5.2. - Em 1 de Outubro de 1994 entrou em vigor o
Decreto-Lei n. 114/94, de 3 de Maio (novo Código da
Estrada), cujo artigo 87, n. 1 prescreve ser proibido conduzir sob a influência do álcool, considerando-se como tal a condução com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l;
5.3. - Nos termos conjugados dos artigos 139, 141, 148 e 149 do Código da Estrada, a condução sob a influência do álcool constitui contra-ordenação grave quanto estiver em causa uma taxa de 0,5 a 0,8 g/l (148, m) e muito grave quando a taxa de álcool no sangue for superior a 0,8 g/l e inferior a 1,2 g/l (149, i)), sendo em ambos os casos puníveis com coima e com a sanção acessória de inibição de conduzir (141);
5.4. - De 1 de Outubro de 1994 a 1 de Outubro de 1995, coexistiram os dois regimes, constituindo a condenação sob a influência do álcool uma conduta que tanto podia constituir crime, se a taxa fosse superior a 1,2 g/l, como contra-ordenação, se os valores daquela fossem mais baixos;
5.5. - O ilícito criminal era punível com pena de prisão ou multa, a que acrescia a sanção acessória da inibição da faculdade de conduzir, com natureza de medida de segurança e com aplicação automática, enquanto o ilícito contra-ordenacional é punido com coimas e com a pena acessória de inibição de conduzir, susceptível de graduação (142 C.E.);
5.6. - O artigo 2, n. 2, alínea e) do Decreto-Lei n.
48/95, de 15 de Março, que entrou em vigor em 1 de
Outubro de 1995, revogou o artigo 2 e 4, n. 2, alínea a), do Decreto-Lei n. 124/90, de 14 de Abril;
5.7. - A partir daí, a consagração da condução do veículo com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, ou seja, a condução em estado de embriaguez, como ilícito criminal, deixou de fazer-se em lei avulsa, para passar a ter assento pela primeira vez no Código Penal, sendo aí punida com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias - artigo
292 do Código Penal;
5.8. - Na aplicação do disposto no artigo 2, n. 4 do
Código Penal, o regime mais favorável é o deste Código pois que, quanto à pena de multa, o seu limite máximo é de 120 dias, enquanto no Decreto-Lei n. 124/90 esse limite era de 200 dias;
5.9. - Coloca-se agora a questão de saber se o arguido pode ou não ver decretada a inibição da faculdade de conduzir;
5.9.1. - A sanção acessória que era aplicável na vigência do Decreto-Lei 124/90 já não o poderá ser, porque expressamente revogado o artigo 4, n. 2, alínea a), daquele Decreto-Lei pelo artigo 2, n. 2, alínea e), do Decreto-Lei n. 48/95;
5.9.2. - São também inaplicáveis as sanções acessórias previstas nos artigos 141, 148 e 149 do Código da
Estrada, porque privativas das contra-ordenações e estamos perante um ilícito criminal;
5.9.3. - Está também fora de questão a possibilidade de aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados previsto no artigo 69 do Código
Penal, pois quer, a condenação, digo, pois quer, a condução com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l constitui crime que obviamente não cabe na previsão da alínea a) daquele artigo 69, por não estar em causa crime cometido no exercício da condução com grave violação por regras de trânsito rodoviário, mas antes uma conduta integradora de um ilícito criminal tipificado no Código Penal;
5.9.4. - Aquela alínea a) do n. 1 do artigo 69 do
Código Penal terá em vista certamente os crimes de ofensas corporais e homicídio negligentes que tenham na sua base violações das regras estradais e não o crime em questão;
5.9.5. - Conclui-se que para o crime de condução em estado de embriaguez não está prevista qualquer medida de inibição de conduzir, muito embora essa lacuna esteja em desconformidade com o regime das contra-ordenações em que se prevê, para taxas de álcool mais baixas, a medida sancionatória em causa;
5.9.6. - Essa lacuna terá sido determinada pela circunstância de o Decreto-Lei 48/95 ter sido publicado em 15 de Março de 1995 e a revogação do Decreto-Lei n.
124/90 só se operar em 1 de Outubro de 1995, o que terá impedido a "visibilidade" da lacuna, por entretanto o sistema funcionar;
5.9.7. - Face a tal lacuna e por respeito ao princípio da legalidade, entende-se não ser de aplicar qualquer pena acessória.
6. - Pelo contrário, o Excelentíssimo Magistrado do
Ministério Público recorrente sustenta, na sua motivação, que "conduzir um veículo com uma taxa de
álcool igual ou superior a 1,2 g/l é crime (292 do
Código Penal) e constitui, sem dúvida, uma grave violação das regras de trânsito rodoviário, porquanto decorre do Código da Estrada de ser contra-ordenação grave a condução sob influência do álcool (148, m)) e contra-ordenação muito grave a infracção prevista na alínea m) do artigo 148 quando a taxa de álcool no sangue for superior a 0,8 g/l (149, i)).
7. - A única questão que vem suscitada no recurso diz, pois, respeito à aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, mais concretamente se ao caso em que o arguido é punido pela prática do crime do artigo 292 do Código Penal revisto se aplica ou não o disposto no artigo 69, n. 1, alínea a) do mesmo Código, não merecendo censura o discurso jurídico do acórdão sobre os restantes pontos focados.
7.1. - Sustenta-se no acórdão recorrido que a norma da alínea a) do n. 1 do artigo 69 do Código Penal revisto não suporta a inclusão do crime do artigo 292 do mesmo
Código por este não ter por objecto "exercício da condução com grave violação das regras do trânsito rodoviário", ou melhor, por não ser "crime cometido no exercício daquela condução com grave violação das regras de trânsito rodoviário", interpretação que é contrariada pelo Excelentíssimo recorrente para quem o crime em causa se inclui na previsão da citada alínea a) do n. 1 do artigo 69 do Código Penal.
7.2. - A razão está, salvo o devido respeito pela posição contrária, ao lado do Excelentíssimo Magistrado recorrente.
7.2.1. - O tipo legal de crime do artigo 292 do Código
Penal visa a "condução de veículo em estado de embriaguez", prevendo-se como acção típica a condução de veículo com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l.
7.2.2. - Segundo se dispõe no artigo 87, n. 1 do Código da Estrada, é proibido conduzir sob a influência do
álcool, como tal se considerando a condução com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l. O mesmo Código da Estrada considera contra-ordenação grave a condução sob influência do álcool (148, alínea m)) e contra-ordenação muito grave a condução com uma taxa de álcool no sangue superior a 0,8 g/l (149, alínea i)).
A densificação da gravidade da condução sob influência do álcool é assim a que resulta daquelas normas do
Código da Estrada, não importando a qualificação jurídica da infracção que serve de suporte à classificação, mas tão só o conteúdo das normas classificatórias.
7.2.3. - Também não merece contestação que a condução de veículos com álcool ou sem álcool se integra no conceito do "exercício da condução", sendo este disciplinado por "regras do trânsito rodoviário".
Consequentemente, quem exerce a condução de veículos motorizados sob influência do álcool, exerce-a com violação das regras do trânsito rodoviário e, se a taxa de álcool é superior a 0,8 g/l, essa violação é por lei qualificada de muito grave, sendo tipificada como crime se a taxa de álcool for igual ou superior a 1,2 g/l.
7.2.4. - No acórdão interpretou-se a alínea a) do n. 1 do artigo 69 do Código Penal como consubstanciando apenas condução causal de um crime, ficando fora da previsão o exercício qualificado da condução por influência do álcool, ele próprio um crime que, por isso, não poderia dizer-se causado por si próprio.
Não se deixa no acórdão de salientar que tal interpretação conduz a solução desconforme com o regime traçado no Código da Estrada para as contra-ordenações, argumento que, no entanto, não poderia sobrepor-se ao princípio da legalidade.
7.2.5. - Pelo que já se deixou exposto, sem violação de tal princípio, o artigo 69, n. 1, alínea a) do Código
Penal comporta, na sua letra e no seu espírito, a inclusão do crime previsto no citado artigo 292 daquele
Código. As regras de trânsito proíbem a condução sob influência do álcool. O comportamento criminoso não resulta da condução em si, actividade obviamente permitida. Resulta, sim, de um comportamento acrescido e que qualifica o exercício da condução como integrando um crime, ou seja o excesso de álcool na percentagem da norma. Assim, quem conduz nesse estado comete um crime
(292 do Código Penal), comportamento que, por isso, ocorre no exercício da condução de veículos motorizados com grave violação das regras de trânsito, sancionável com a proibição de conduzir veículos dessa espécie por um período fixado por lei entre 1 mês e um ano (conf., em idêntico sentido, acórdão da Relação do Porto, de 7 de Maio de 1997, C.J. XXII, tomo III, 227; acórdão
S.T.J. 26 de Fevereiro de 1997, B.M.J. 464, páginas 200 e seguintes, que aplicou o artigo 69, n. 1, alínea a) em conexão com o crime do artigo 292 do Código Penal revisto).
8. - Resta assim determinar em concreto o tempo de proibição na moldura de 1 mês a 1 ano. Para esse juízo importa salientar o pertinente circunstancialismo que nos traz a matéria de facto provada: não há outro crime relacionado com a condução para além do tipificado no artigo 292; o arguido necessita do veículo para trabalhar, dele se utilizando no dia a dia; é a primeira vez que responde em juízo, é casado e com três filhos estudantes, na situação familiar se repercutindo a proibição de conduzir; o veículo que conduzia era um veículo automóvel ligeiro, menos perigoso, por ex., que veículos pesados; a condução era exercida com uma taxa de alcoolemia de 2,4 g/l; os factos ocorreram em Junho de 1994, pelas 3 horas.
8.1. - Ponderando todos esses elementos, tem-se como adequada a proibição de conduzir pelo período de 3 meses, na aplicação do que se dispõe no artigo 69, n.
1, alínea a), em conexão com o crime do artigo 292, ambos do Código Penal revisto.
9. - Pelo exposto, na procedência do recurso, condenam o arguido em três meses de proibição de conduzir veículos motorizados, no mais se mantendo o acórdão recorrido.
Sem custas. Fixam em 7500 escudos os honorários a favor da Excelentíssima defensora oficiosa a suportar pelos
Cofres.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 1998.
Virgílio Oliveira,
Mariano Pereira,
Flores Ribeiro,
Brito Câmara.
Decisão impugnada:
3. Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada -
Processo n. 706/94.