Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
310/18.0T8PNI.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DE PAI DE FAMÍLIA
PRÉDIO URBANO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
PODERES DA RELAÇÃO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 03/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Na constituição de uma servidão de passagem por destinação do pai de família é a existência de uma situação de facto reveladora de uma relação de cooperação fundiária que, cessada a impossibilidade de constituição de um direito de servidão, resultante da concentração do domínio dos prédios em causa, na mesma pessoa, justifica que se conceda tutela jurídica a essa relação predial, de modo a preservar uma melhor valorização da propriedade imobiliária.
II. Pela sua configuração, um corredor sinaliza de uma forma patente e unívoca a existência de uma passagem para diferentes espaços.

III. O conteúdo da vontade do proprietário “pai de família” que presidiu à construção do referido corredor e/ou à sua manutenção até á separação da titularidade dos prédios é irrelevante para a verificação dos requisitos necessários à constituição de um direito de servidão por destinação do pai de família.

IV. Numa técnica paralela à que ocorre com a usucapião, na constituição do direito de servidão por destinação do pai de família, a lei transmuda uma determinada situação de facto composta por um encadeamento de atos voluntários numa situação jurídica, atribuindo um direito real de servidão, pelo que estamos perante um modo de constituição deste direito que escapa à dicotomia servidões legais/servidões voluntárias.

V. O cariz híbrido do modo de constituição deste direito justifica que a sua disciplina possa recolher, por analogia, soluções, quer no regime das servidões coativas, quer da autonomia de vontade que carateriza as servidões voluntárias.

Decisão Texto Integral:

I - Relatório

GG (entretanto falecido, tendo sido habilitados na sua posição processual os Autores) e AA propuseram uma ação declarativa, com processo comum, contra os Réus, pedindo que estes fossem condenados:

- a reconhecer o direito de os Autores utilizarem e fazerem serventia do corredor de acesso dos Prédios Um, Dois e Três à Rua ...;

- a demolirem o muro/a parede que levantaram e que passou a impedir a passagem até então existente dos Prédios Um e Dois ao corredor de acesso à Rua ...;

- a absterem-se de praticar quaisquer atos que possam limitar ou condicionar o direito de os Autores acederem e circularem pelo corredor de acesso à Rua ....

Invocaram a titularidade de um direito de servidão sobre esse corredor constituído por usucapião.

Os Réus contestaram, negando a existência do alegado direito de servidão, tendo concluído pela absolvição dos pedidos formulados pelos Autores e, subsidiariamente, solicitaram que se decretasse a extinção da servidão pelo não uso ou desnecessidade, ao abrigo do disposto nos artigos 1569.º, n.º 1, b) e c), 298.º, n.º 3, 274.º e 333.º do Código Civil.

Os Autores apresentaram resposta em que se pronunciaram pela improcedência da defesa por exceção deduzida pelos Réus na contestação.

Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou a ação totalmente procedente, tendo condenado os Réus a reconhecerem o direito dos Autores a utilizarem e fazerem serventia do corredor de acesso dos Prédios Um, Dois e Três à Rua ...; a demolirem o muro/a parede que levantaram e que passou a impedir a passagem até então existente dos Prédios Um e Dois ao corredor de acesso da Rua ...; e a absterem-se de praticar quaisquer atos que possam limitar ou condicionar o direito de os autores acederem e circularem pelo corredor de acesso à Rua ....

Os Réus interpuseram recurso de apelação desta decisão, tendo sido proferido acórdão no Tribunal da Relação ... em 09.11.2021 que julgou o recurso procedente, revogou a sentença recorrida e absolveu os Réus dos pedidos.

Os Autores recorreram desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

1. Ao contrário do feito constar do Acórdão do Tribunal da Relação ..., seguramente que por lapso, os aqui Recorrentes apresentaram contra-alegações, onde argumentaram pela improcedência do recurso.

2. O douto Acórdão do Tribunal da Relação ... decidiu alterar a decisão sobre a matéria de facto, dando agora como não provado o 11.º facto anteriormente dado como provado pela primeira instância, tecendo críticas à douta sentença de primeira instância que, no entender daquele Tribunal de recurso, não cumpriu o dever de fundamentação da sua decisão da matéria de facto

3. O Tribunal da Relação tem amplos poderes na apreciação e modificação da decisão de matéria de facto, conferidos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil, resultante da reforma processual civil operada pela Lei n.º 31/2013, de 26 de junho.

4. A reforma processual civil acima mencionada não eliminou, contudo, os princípios da imediação e da oralidade, sendo que só o contacto pessoal com a prova permite que o julgador se aperceba, de forma completa – rectius, o mais completa possível – dos factos relevantes para a resolução da contenda.

5. Sob pena da desconjunção do sistema, a atuação da Relação na reapreciação da matéria de facto é ou deve ser praticamente idêntica à da primeira instância, mas com cedência nos aludidos factos da imediação e da oralidade.

6. A reapreciação deve ser usada quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, designadamente por os depoimentos prestados em audiência de julgamento, em conjugação com a restante prova produzida, imporem decisão diferente.

7. A partir do momento em que entende que a primeira instância não fundamentou devidamente a sua decisão sobre a matéria de facto – circunstância que merece apreciação particularmente crítica e contundente da Relação, prévia à reapreciação da matéria de facto –, devia o douto Acórdão do Tribunal da Relação ... ter determinado, sob a égide do disposto no artigo 662.º, número 2, alínea d), do Código de Processo Civil, que a primeira instância fundamentasse devidamente a sua decisão sobre o concreto facto provado impugnado em sede de recurso de apelação, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

8. Ao não o fazer, o Tribunal da Relação ... violou o dever que decorre do aludido artigo 662.º, número 2, alínea d), do Código de Processo Civil, e, concomitantemente, os princípios da imediação da oralidade emergentes, designadamente, do artigo 607.º do Código de Processo Civil.

9. O douto Acórdão da Relação ... não cumpriu devidamente o dever de fundamentação da sua decisão relativamente à reapreciação da matéria de facto, nos termos do disposto nos artigos 663.º, número 2, e 607.º, números 4 e 5, do Código de Processo Civil.

10. O Tribunal da Relação ... não se refere aos depoimentos das testemunhas indicados pelo Recorrente nas suas alegações de recurso, não os apreciando criticamente, valorizando-os, porque mais credíveis, de forma diversa da primeira instância, ou conferindo-lhes um sentido diverso do sentido atribuído por esta; do mesmo modo que não se refere aos restantes depoimentos prestados em audiência de julgamento, em concreto àqueles que a primeira instância valorizou e em que assentou a decisão da matéria de facto, agora desvalorizando-os, ou atribuindo-lhes sentido diverso do atribuído pela primeira instância.

11. O Tribunal da Relação ... faz antes uma referência geral, e displicentemente não concretizada, aos depoimentos de “sete ou oito testemunhas inquiridas”, “cerca de metade” das quais se pronunciou num sentido, enquanto a outra “cerca de metade” se pronunciou em sentido diverso, o que não é só por si suficiente para que se possa considerar que a decisão contida no acórdão recorrendo, de dar como não provado o facto 11.º, se encontra fundamentada ou, pelo menos, devidamente fundamentada.

Acresce que,

12. a decisão sobre a matéria de facto assentou sobre o objeto do litígio, assim definido pelo Tribunal a quo:

“[e]m face do alegado pelas partes nos respetivos articulados impõe-se aferir se os Autores têm ou não o direito de utilizarem o corredor de acesso aos Prédios através das .... Caso tal direito resulte de servidão de passagem, impõe-se aferir se a mesma se encontra extinta por não uso”

13. Resulta da factualidade dada como provada que o corredor de acesso dos Prédios Um, Dois e Três à Rua ... é, há mais de cinquenta anos, comum aos três prédios, donde resulta que ele não é parte integrante do Prédio Três.

14. Não existe, na factualidade dada como provada, qualquer facto que permita afirmar, seja em que instância for, que o corredor de acesso à Rua ... é ou faz parte do Prédio Três, seja porque assim fosse “desde sempre”, seja porque, entretanto, algum facto tivesse ocorrido que determinasse a sua aquisição, originária ou derivada, pelos Recorridos.

15. A decisão do Tribunal da Relação ..., portanto, à decisão sobre a matéria de facto no seu conjunto, que determina seja a ação julgada procedente por provada na medida em que a limitação de acesso, pelos Prédios Um e Dois, ao corredor da Rua ... levada a cabo pelos Recorridos, não tem enquadramento legal.

16. Ainda que assim não se entenda, e que se perfilhe, ao invés, o entendimento do Tribunal da Relação ... e da primeira instância segundo o qual a solução de direito para o presente litígio se há-de encontrar no regime da servidão, a verdade é que sempre a ação deverá ser julgada procedente por provada.

17. O douto acórdão recorrendo dá como verificado que os três prédios em causa nos presentes autos pertenceram ao mesmo dono, e que foram separados quanto ao seu domínio, não tendo havido declaração oposta à constituição do encargo no documento de separação.

18. Entende, contudo, que não se provou a existência de sinais visíveis e permanentes que revelam serventia do Prédio Três relativamente aos Prédios Um e Dois, na medida em que “(...) não se provaram factos que convençam ou inculquem suficientemente a ideia que o pai de família quis estabelecer uma relação de sujeição do prédio 3 e do respetivo logradouro aos prédios 1 e 2”.

19. Dúvidas não restam da matéria de facto dada como provada de que existem sinais visíveis e permanentes do corredor de acesso dos Prédios Um e Dois à Rua ..., anteriores à separação domininal.

20. O que o Tribunal da Relação ... parece entender é que era necessário que se tivesse provado nos presentes autos a vontade subjetiva do então proprietário dos três prédios de constituir uma relação de serventia.

21. Salvo o devido respeito, tal exigência da prova da vontade subjetiva do proprietário não decorre do disposto no artigo 1.549.º do Código Civil; o que a lei exige, no referido preceito legal, é que os sinais, além de visíveis, sejam permanentes, evidenciando uma situação estável.

22. Não se exige, sequer, que os ditos sinais tenham sido postos pelo antigo proprietário do direito real de propriedade ou por algum dos seus antecessores, podendo ter sido postos, por exemplo, por arrendatário ou comodatário.

23. Uma vez que os sinais existem, e têm caráter de permanência, e existiam à data da separação, não se antolha como se possa deixar de concluir que a situação deve ser mantida uma vez que o proprietário, dela tendo conhecimento, não dispôs de forma diversa no documento de separação.

24. O corredor de acesso à Rua ... é, e sempre foi, verdadeiramente, a única forma de acesso dos Prédios Um e Dois diretamente àquela rua, sendo que o proprietário residia precisamente no Prédio Um.

25. Os sinais existentes, visíveis e permanentes, foram colocados ou deixados, portanto, de modo a assegurar certa utilidade aos Prédios Um e Dois, à custa do Prédio Três, o que é ou deve ser suficiente para que se entenda por revelada

“(...) a vontade ou consciência de criar uma situação de facto estável e duradoura, uma situação que objetivamente corresponda à de uma servidão aparente” (Mário Tavarela Lobo, Manual do Direito das Águas, Vol. II, Coimbra Editora, 1999, p. 243).

26. Este o sentido com que, salvo o devido respeito, deveria o Tribunal da Relação ... ter interpretado e aplicado o artigo 1.549.º do Código Civil.

Termos em que, bem como em todos os demais, de direito, aplicáveis, deve o douto Acórdão proferido ser revogado, proferindo-se decisão que, como a da primeira instância, julgue a presente ação totalmente procedente por provada ou, no limite, que determine que a primeira instância fundamente devidamente a respetiva decisão sobre a matéria de facto, em concreto aquela relativa ao facto dado como como provado sob o número 11.

Os Réus apresentaram contra-alegações em que concluem pela improcedência do recurso e pedem a condenação dos Autores como litigantes de má fé em multa e indemnização.

                                               *

II – O objeto do recurso

Tendo em consideração as conclusões das alegações dos Recorrentes e o conteúdo da decisão recorrida cumpre apreciar as seguintes questões:

- o Tribunal da Relação deveria ter determinado o reenvio do processo à 1.ª instância para que esta fundamentasse melhor a decisão sobre a matéria de facto?

- a decisão sobre a impugnação da matéria de facto pelo acórdão recorrido encontra-se insuficientemente fundamentada?

- o corredor em causa não integra o prédio dos Réus?

- estão verificados os requisitos exigidos pelo artigo 1549.º do Código Civil para a constituição de um direito de servidão, designadamente a existência de sinais visíveis e permanentes da servidão?

                                               *

III – Do cumprimento do artigo 662.º, n.º 2, d), do Código de Processo Civil

No recurso de apelação interposto para o Tribunal da Relação os Réus impugnaram a prova do facto constante do ponto 11 da matéria de facto.

O Tribunal da Relação deferiu esta pretensão, considerando que o facto não se encontrava demonstrado em função da prova produzida, uma vez que, no mínimo existe uma forte e insanável dúvida, a qual se situa para além da aludida margem de álea, quanto à passagem dos donos e residentes dos prédios 1 e 2 através do logradouro do prédio 3, pelo menos de um modo público e pacífico, para acederem à aludida Rua ....

Na análise da prova produzida quanto a este facto afirmou o acórdão recorrido:

Desde logo há que verificar que a julgadora não cumpre cabalmente o dever de fundamentação.

Efetivamente, limita-se a fazer uma explanação meramente descritiva dos depoimentos, sem os analisar, ao menos suficientemente, criticamente.

Mesmo as menções por ela apostas de que uma testemunha depôs de forma «rigorosa e isenta» e que outra o fez «atabalhoada e hesitante», quedam-se nesta generalidade, abstração e conclusão, pois que não especifica, e, logo, convence, porque motivo assim taxou os depoimentos.

Ademais, opera uma análise meramente global e tabicada da prova, sem reportar, como devia, concretamente cada meio de prova, rectius cada depoimento, como fator alicerçante, a cada facto probando, ou, ao menos, a cada núcleo factual homogéneo.

As críticas feitas à motivação da decisão da matéria de facto proferida pela 1.ª instância não apontam para uma falta de fundamentação que impeça o Tribunal da Relação de verificar quais foram os motivos pelos quais determinado facto foi dado como provado, mas revelam antes uma discordância quanto à idoneidade dos meios de prova invocados por essa decisão para fundamentarem a resposta dada. Não estamos, pois, perante uma constatação pelo Tribunal da Relação de falta de fundamentação, mas sim de discordância quanto à fundamentação aduzida na 1.º instância.

Nestas situações, não cumpre ao Tribunal da Relação reenviar o processo à primeira instância para que esta fundamente os resultados da prova produzida, nos termos da alínea d), do n.º 2, do artigo 662.º, do Código de Processo Civil, mas sim alterar a decisão da 1.ª instância, utilizando os seus poderes de modificação da decisão sobre a matéria de facto, conferidos pelo n.º 1, do mesmo artigo, o que sucedeu.

Não se verifica, pois, o alegado incumprimento do disposto no artigo 662.º, n.º 2, d), do Código de Processo Civil.

                                               *

IV – Da fundamentação da decisão que decidiu a impugnação da matéria de facto

Os Autores alegam ainda que a decisão do Tribunal da Relação que considerou não provado o facto descrito sob o n.º 11 não se encontra suficientemente fundamentada.

Além do que já acima se transcreveu lê-se no acórdão recorrido:

Apreciada a prova, não se pode concluir, sequer dentro da margem de álea em direito probatório concedida e admissível, que o facto ora impugnado resultou provado.

Na verdade, a prova testemunhal é claramente contraditória e antinómica neste particular.

Das sete ou oito testemunhas inquiridas, cerca de metade pronunciou-se no sentido propugnado pelos autores - e nem sequer em toda a amplitude factual constante neste ponto - e a outra metade pronunciou-se em sentido oposto, ou seja, nunca terem visto ninguém passar no acesso à Rua ... peio prédio que é atualmente dos RR.

Nenhuma testemunha apesentou uma especial e fidedigna razão de ciência que permitisse ao seu depoimento ganhar uma dignidade e relevância valorativa acrescidas.

Na verdade, todas as testemunhas falaram em função do que se iam apercebendo, ou por residirem nos prédios em causa, ou por morarem nas proximidades.

Há ainda que relevar o facto de algumas testemunhas apresentadas pelos próprios autores - a HH e a II - verbalizarem, com maior ou menor acuidade e abrangência, no sentido oposto ao por eles alegado e aqui neste ponto provado.

Finalmente, tendo o acesso das casas 1 e 2 que, alegadamente, servia para desembocar na Rua ..., sido cortado em 2005, não se alcança, em função da necessidade que tal acesso representava para os proprietários ou os ocupantes de tais casas, a razão pela qual a presente ação apenas foi instaurada 13 anos depois.

Enfim, tudo visto e ponderado, conclui-se que, em função da prova produzida, no mínimo existe uma forte e insanável dúvida, a qual se situa para além da aludida margem de álea, quanto à passagem dos donos e residentes dos prédios 1 e 2 através do logradouro do prédio 3, pelo menos de um modo público e pacífico, para acederem à aludida Rua ....

Da leitura destes excertos resulta que o acórdão recorrido explicita cabalmente a razão pela qual, no uso da sua liberdade avaliativa das provas produzidas, entende que o facto em análise não pode ser julgado provado. A razão apontada foi a da constatação da existência de uma dúvida insanável sobre a verificação do facto n.º 11 da sentença da 1.º instância, como resultado de terem sido produzidos depoimentos testemunhais contraditórios sobre a sua existência. Não residindo o resultado da avaliação probatória em concretos depoimentos testemunhais, mas sim numa avaliação global do conjunto dos depoimentos prestados, não é necessária, para se entender a motivação da decisão que recaiu sobre a impugnação parcial da matéria de facto provada, uma análise crítica de cada um dos depoimentos, sendo suficiente a indicação da contradição verificada e as razões pelas quais o tribunal não conferiu maior credibilidade a qualquer uma das versões apresentadas, o que resulta do excerto do acórdão recorrido acima transcrito.

Não se verifica, pois, um défice de fundamentação da decisão proferida pelo Tribunal da Relação sobre a não demonstração do referido facto e que determinou a sua eliminação dos factos provados.

                                               *

V- Factos provados

Neste processo mostram-se provados os seguintes factos:

1. Em 18 de Março de 1980, GG e mulher, AA, ora AA., JJ Março, por si e na qualidade de procurador de sua mulher, AA e KK, subscreveram a escritura pública cuja cópia se acha a fls. 21-25 intitulada "Partilha", pela qual declararam o que da mesma consta e que aqui se tem por reproduzido, designadamente que procediam a partilha por morte de LL e MM, por que GG, AA e KK eram seus únicos herdeiros, cujo acervo os outorgantes declararam ser composto por duas verbas (Verbas 1 e 2), decompondo a segunda (Verba 2) em dois lotes (Lotes A e B), todos eles partes integrantes do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.° ...82, inscrito na respetiva matriz predial urbana com o n.° ...77, de que os autores da sucessão eram legítimos donos;

2. Pela mesma escritura, mais declararam os sobreditos outorgantes que:

a) Adjudicavam a GG e mulher, ora AA., a Verba 2, Lote B, composta por casa de R/C e 1.° andar, sita em Rua ... freguesia ..., concelho ...,

b) Adjudicavam a AA e marido a Verba 2, Lote A, composta por casa de habitação para nove inquilinos e logradouro, sita em Rua ..., freguesia ..., concelho ...;

c) Adjudicavam a KK a Verba 1, composta por casa de R/C, sita em Rua ..., freguesia ..., concelho ... inscrita na matriz predial urbana sob o n.° ...77;

3. Em 06 de Agosto de 2014, NN e os AA subscreveram a escritura cuja cópia se acha a fls. 26-28, intitulada "COMPRA E VENDA", pela qual declararam o que da mesma consta e que aqui se tem por integralmente reproduzido, designadamente que a primeira vendia e os segundos compravam pelo preço de € 40.000,00 o prédio urbano composto por casa de habitação e logradouro sito em Rua ..., freguesia ..., concelho ...;

4. Mostra-se inscrita em registo a aquisição, pelos AA., da propriedade sobre os seguintes prédios urbanos:

a) prédio urbano sito na Rua ..., na freguesia ... (extinta freguesia ...), concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...23, e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...52 da extinta freguesia ..., atualmente artigo ... da freguesia ..., que corresponde ao prédio descrito em Factos 2, ai. a) (doravante também abreviadamente designado por "Prédio Um");

b) prédio urbano sito na Rua ..., na freguesia ...), concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...20, e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...51 da extinta freguesia ..., que corresponde ao prédio descrito em Factos 2, ai. b) (doravante também abreviadamente designado por "Prédio Dois");

5. Em 22 de Setembro de 2005, KK e os RR subscreveram a escritura cuja cópia se acha a fls. 49-50, intitulada "DOAÇÃO", pela qual declararam o que da mesma consta e que aqui se tem por integralmente reproduzido, designadamente que a primeira doava aos segundos, o prédio composto por casa de R/C, destinada a comércio, 1.° andar, destinado a habitação, e logradouro, sito em Rua ... e Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...97 da freguesia ... e inscrito na matriz predial urbana respetiva, sob o artigo número ...77;

6. Mostra-se inscrita em registo a aquisição, pelos RR., da propriedade sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...97 da freguesia ..., composto por casa de R/C e 1.º andar e logradouro, sito em Rua ... e Rua ..., que corresponde ao prédio descrito em Factos 2.), al. c) (doravante também abreviadamente designado por "Prédio Três");

7. Existe um corredor de acesso que dá acesso aos três prédios a um caminho público, a Sul, hoje denominado Rua ..., que os donos e ocupantes (arrendatários) dos três Prédios vieram utilizando desde há não menos de cinquenta anos;

8. O corredor tem cerca de um metro de largura, inicia-se no Prédio Um, com acesso também pelo Prédio Dois, e termina no Prédio Três, onde desemboca, a sul, num portão que acede à Rua ...;

9. LL, autor da sucessão referida no facto 1., quando em vida atravessava o logradouro do Prédio 3 pelo sobredito corredor, para, designadamente, visitar as instalações dos prédios, todos localizados na Rua ..., ou para regressar à então sua residência, sita no Prédio Um;

10. LL tanto saía do logradouro do Prédio 3, para aceder ao logradouro do Prédio 2 e daqui à Rua ..., onde viveu, no Prédio 1, como, por vezes, saindo do logradouro do Prédio 2, confinante com o logradouro do Prédio 3, acedia também ao logradouro deste último e, daqui, à Rua ...;

11. (Eliminado pelo Tribunal da Relação).

12. O corredor de acesso à Rua ..., durante o sobredito período, foi sempre comum aos Prédios Um, Dois e Três;

13. Em 28/09/2006, os Réus apresentaram um pedido de licenciamento de Obras à CM de ..., obtiveram o Alvará de Demolição n.° 48/..., em 14/02/2008, o Alvará de Obras de Construção n.° 49/..., em14/02/2008 e Alvará de Utilização n.° ...9 em 15/12/2009;

14. No ano de 2005 os Réus procederam a obras de recuperação do edifício existente no Prédio Três e simultaneamente procederam à construção de um muro/uma parede que tapou a passagem dos Prédios Um e Dois ao acesso que conduz à Rua ...;

15. Os RR taparam ainda duas janelas - uma delas com frestas - de uma das seis habitações existentes no Prédio Dois, que voltavam para o corredor de acesso à Rua ...;

16. Em resultado da obra levada a cabo pelos RR, os Autores deixaram de poder aceder, a partir dos seus prédios, à Rua ...;

17. Tendo o acesso à Rua ... passado a apenas poder ser utilizado pelos Réus a partir do Prédio Três.

                                               *

VI – O direito aplicável

1. Do direito de propriedade sobre o corredor

Relativamente à solução jurídica do litígio, os Autores começam por alegar que resulta da factualidade dada como provada que o corredor de acesso dos Prédios Um, Dois e Três à Rua ... é, há mais de cinquenta anos, comum aos três prédios, donde resulta que ele não é parte integrante do Prédio Três, não existindo, na factualidade dada como provada, qualquer facto que permita afirmar que esse corredor é ou faz parte do Prédio Três, o que não foi devidamente valorado e enquadrado juridicamente por nenhuma das instâncias, uma vez que dessa factualidade resulta que os Réus não tinham legitimidade para taparem o acesso a toda a extensão desse corredor, o que era suficiente para que os pedidos formulados pelos Autores fossem julgados procedentes.

A leitura que os Autores fazem da matéria de facto julgada provada não é correta.

Na verdade, consta dos pontos 7. e 8. da matéria de facto provada o seguinte:

7. Existe um corredor de acesso que dá acesso aos três prédios a um caminho público, a Sul, hoje denominado Rua ..., que os donos e ocupantes (arrendatários) dos três Prédios vieram utilizando desde há não menos de cinquenta anos;

8. O corredor tem cerca de um metro de largura, inicia-se no Prédio Um, com acesso também pelo Prédio Dois, e termina no Prédio Três, onde desemboca, a sul, num portão que acede à Rua ....

Seguindo o sentido do corredor que tem o seu final na Rua ..., resulta da matéria de facto provada acima transcrita que esse corredor, que tem um metro de largura, começa por ocupar uma área de terreno situada no Prédio Um, depois prossegue por uma área do Prédio Dois e termina numa área localizada no Prédio Três.

Tendo-se provado que cada um destes trechos do corredor se situa em áreas pertencentes a cada um dos referidos prédios, pode afirmar-se que cada um deles é partes componente do prédio em que se situa, pelo que, tendo os Réus procedido à construção de um muro que tapou a passagem dos Prédios Um e Dois ao acesso que conduz à Rua ..., a obra realizada situa-se no Prédio Três, o qual pertence aos Réus.

A circunstância de no ponto 12. da matéria de facto provada constar que o corredor de acesso à Rua ..., durante o sobredito período, foi sempre comum aos Prédios Um, Dois e Três, reporta-se ao uso que foi dado a esse corredor quando os três prédios pertenciam a LL e sua esposa, MM, e que se encontra descrita nos pontos 9. e 10. da matéria de facto provada, e não a qualquer titularidade do direito de propriedade sobre o mesmo que não faria qualquer sentido, uma vez que, no sobredito período, os três prédios pertenciam apenas àquele casal.

Por não ser verdadeiro o pressuposto deste fundamento do recurso, o mesmo improcede.

2. Do direito de servidão

A sentença proferida na 1.ª instância julgou procedente a presente ação, com fundamento em que da matéria de facto provada resulta que os Autores, na qualidade de proprietários dos Prédios Um e Dois, são titulares de um direito de servidão de passagem sobre o Prédio Três, constituído por destinação do pai de família.

Por sua vez, o acórdão recorrido revogou esta decisão, absolvendo os Réus dos pedidos formulados pelos Autores, por ter entendido que não se verificavam todos os requisitos necessários à constituição de um direito de servidão por destinação do pai de família, mais concretamente por não se ter provado que existissem sinais visíveis e permanentes que revelassem a existência de uma serventia no Prédio Três em benefício dos Prédios Um e Dois.

Os Autores recorrem desta decisão, alegando que é possível extrair esse requisito da matéria de facto provada.

Nos sistemas jurídicos como o nosso, em que, aderindo à conceção do direito romano – nemine res sua servit -, se entende que é juridicamente impossível constituir-se um direito de servidão entre dois prédios pertencentes ao mesmo dono [1], em “compensação”, admite-se que, se e quando, por qualquer ato translativo do direito de propriedade, esses prédios passam a pertencer a donos distintos, as serventias neles existentes convertem-se, por lei, em direitos de servidão – são as denominados servidões por destinação do pai de família [2].

É o que atualmente se prevê no artigo 1549.º do Código Civil ao admitir-se a constituição de servidões prediais por destinação do pai de família, após no artigo 1543.º do mesmo diploma se ter excluído a possibilidade de se constituírem direitos de servidão entre prédios pertencentes ao mesmo dono, tendo essa opção sido, no entanto, objeto de discussão nos trabalhos preparatórios do Código Civil [3].

A constituição de servidões prediais por destinação do pai de família terá sido mais uma das criações do jurisconsulto e glosador medieval Bártolo de Sassoferrato e ganhou expressão prática no direito consuetudinário francês [4], sendo depois acolhida pelo Código de Napoleão (artigos 692 a 694.), de onde transitou para o Código Civil Italiano de 1842 (artigos 632. e 633.) e para o Código Civil Espanhol (artigo 541), cujo Projeto influenciou a sua previsão no artigo 2274.º do Código de Seabra [5] [6].

Conforme referiu Pires de Lima na Exposição de Motivos do anteprojeto por si elaborado sobre as servidões prediais no futuro Código Civil de 1966 [7], no artigo 8.º desse anteprojeto, que veio a corresponder ao texto do atual artigo 1549.º do Código Civil, manteve-se a redação do artigo 2274.º do Código de Seabra, segundo a reforma de 1930, uma vez que as dúvidas que a disposição primitiva suscitava foram afastadas, e em termos que não tem merecido reparos.

No entanto, quer a doutrina sobre o tema, quer a aplicação deste modo de constituição das servidões prediais, vieram a ser influenciadas pelo profuso labor doutrinal que ocorreu em Itália, a propósito da transposição para o Codice Civile de 1942 desta figura [8].

Quanto a esta forma de constituição do direito de servidão, determina o artigo 1549.º do Código Civil:

Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas frações de um só pré­dio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas frações do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respetivo documento.

Assim, se em dois ou mais prédios pertencentes ao mesmo dono, existirem sinais que atestem que determinada utilidade de um dos prédios está a ser desfrutada por outro desses prédios, estamos perante uma simples situação de facto, sem qualquer significado jurídico, uma vez que o direito de servidão apenas se constitui em proveito de proprietário diferente do dono do prédio onerado – nemini res sua servit – conforme dispõe o artigo 1543.º do C. Civil. Mas, se, por qualquer ato, os prédios passam a pertencer a titulares distintos, aquela serventia de facto aparente, converte-se num verdadeiro direito de servidão, salvo se ao tempo daquele ato se houver declarado uma oposição à constituição deste direito real. Este direito de servidão nasce, pois, automaticamente, por força da lei, com o ato pelo qual passam a existir pelo menos dois prédios com proprietários diferentes.

Durante grande parte do período da vigência do Código de Seabra e mesmo já na vigência do Código Civil de 1966, apontavam-se como fundamentos para este modo de constituição do direito de servidão, a existência de um acordo tácito entre o alienante e o adquirente (nos atos de partilha entre os interessados), ou uma presunção legal, na falta de declaração em contrário, da existência de uma vontade comum dos intervenientes nesse ato de manterem a possibilidade de gozo da utilidade de facto existente, conferindo-lhe significado e efeitos jurídicos [9].

No entanto, por influência de uma perspetiva objetivista da doutrina italiana acima referida, veio a ganhar força a ideia que, salvo na sua dimensão negativa (no ato de divisão da titularidade pode ser clausulada eficazmente a não constituição de qualquer direito de servidão), a vontade dos outorgantes no ato de divisão é irrelevante para a constituição do direito de servidão. Seria apenas a existência de uma situação de facto que revelaria uma relação de cooperação fundiária que, cessada a impossibilidade resultante da concentração do domínio da mesma pessoa, importava conceder tutela jurídica, de modo a preservar-se uma melhor valorização da propriedade imobiliária.

Não deixaram, porém, de subsistir opiniões voluntaristas, procurando ver na exigência de que a relação predial de serventia se evidencie por sinais visíveis e permanentes, que essa destinação resulte de um ato de vontade do “pai de família”, com a intenção de colocar um prédio ao serviço do outro. Por conseguinte, a constituição de um direito de servidão por destinação do pai de família, nesta perspetiva, não poderia prescindir do apuramento da existência dessa vontade, a qual é suscetível, no entanto, de ser retirada das caraterísticas dos sinais existentes [10].

O facto do Código Civil de 1966 ter eliminado deliberadamente a exigência que constava do artigo 2274.º do Código de Seabra, de que os sinais da serventia teriam que ter sido postos pelo “pai de família” ou pelos seus antecessores, se é um sinal da desvalorização da vontade daquele na constituição do direito de servidão, não é, porém, um argumento decisivo para afastar aquela tese, uma vez que, apesar de não ser ele o responsável pela colocação daqueles sinais, poder-se-á continuar a exigir o conhecimento dos mesmos pelo proprietário e a sua adesão a essa colocação. É isso, aliás que resulta da explicação dada por Pires de Lima para essa inovação do Código Civil de 1966:

O que importa é que existam sinais, e que estes sejam visíveis e permanentes. O facto de terem sido postos por um proprietário, por um usufrutuário, ou até por um arrendatário comum, não interessa, desde que o último proprietário tenha conhecimento da sua existência, e consentiu na sua manutenção, à data da separação ou da divisão do prédio. Não só, de resto, merece proteção a vontade deste, como a do adquirente, que não conhece, normalmente, as condições em que foram feitas as obras [11].

No entanto, como refere JÚLIO GOMES, há que reconhecer que a construção puramente objetivista não só é a mais próxima da letra da lei, como é também a mais coerente com a função do instituto que parece ser a tutela da aparência: ao adquirente de um prédio ou fração o que interessa é a existência dos sinais e não propriamente quem os criou e, acrescentamos nós, com que intenção os criou. O que está em jogo, é a tutela da aparência (e não o respeito pela vontade unilateral do antigo proprietário), pelo que o que importa não é indagar o que é que o antigo proprietário pretendeu com as obras, mas sim o sentido objetivo das mesmas [12] . E esta tutela do adquirente do prédio dominante não é motivo de preocupação para uma justa ponderação de interesses, uma vez que o eventual interesse do proprietário alienante e do adquirente do prédio serviente na não constituição de um direito de servidão estarão sempre salvaguardados pela possibilidade de no ato translativo da propriedade clausularem uma declaração em contrário.

Esta posição objetivista, que se reconhece constituir um desvio à história do instituto e ao pensamento do seu criador [13], tem vindo a merecer, entre nós, a concordância da doutrina [14] e a constituir o critério do reconhecimento por algumas decisões deste Supremo Tribunal da constituição das servidões por destinação do pai de família [15].

O modo de constituição deste direito gera alguma controvérsia quanto à sua natureza. Se é verdade que a lei não atribui aqui um direito potestativo de constituição de uma servidão, como sucede nas impropriamente denominadas sucessões legais (são antes servidões coativas), previstas nos artigos 1550.º e seguintes do Código Civil, ele também não se constituiu pelo exercício da liberdade negocial. Estamos perante uma situação em que, numa técnica paralela à que ocorre com a usucapião, a lei transmuda uma determinada situação de facto composta por um encadeamento de atos voluntários numa situação jurídica, atribuindo um direito real de servidão, pelo que estamos perante um modo de constituição deste direito que escapa à dicotomia servidões legais/servidões voluntárias [16]. O cariz híbrido desta figura justifica que a sua disciplina possa recolher soluções, quer no regime das servidões coativas, quer da autonomia de vontade que carateriza as servidões voluntárias.

No caso sub iudice, estamos perante uma situação em que os prédios aqui designados por Prédio Um, Prédio Dois e Prédio Três integravam o património comum do casal formado por DD e MM. Após a morte destes foi efetuada em 18 de março de 1980 partilha extrajudicial pelos seus herdeiros, tendo sido adjudicado a GG e mulher, AA, o Prédio Um, enquanto o Prédios Dois foi adjudicado a AA. No entanto, GG e AA vieram a adquiri-lo, por compra, em 06.08.2015, pelo que os Autores são também os seus atuais proprietários.

Já o Prédio Três, no mesmo ato de partilha extrajudicial, foi adjudicado a KK, a qual veio a doá-lo aos Réus em 22.09.2005, sendo estes os seus atuais proprietários.

Face ao descrito, verificamos que, tendo esses três prédios pertencido aos mesmos proprietários (o casal DD e MM), pela partilha efetuada em 18 de março de 1980 passaram a pertencer a diferentes proprietários. É neste ato de partilha que ocorre a separação da titularidade do domínio sobre os três prédios, uma vez que entre o decesso dos seus anteriores proprietários e o ato de partilha mantém-se uma titularidade coincidente, uma vez que eles integram o mesmo património hereditário, pelo que, nada se mostrando convencionado em contrário, todas as serventias existentes entre esses prédios, evidenciadas por sinais visíveis e permanentes, se converteram em direitos de servidão, nos termos do artigo 1549.º do Código Civil.

A circunstância de nos encontrarmos perante prédios urbanos não obsta, necessariamente, a que se possa constituir uma servidão de passagem entre eles. Se pode fazer algum sentido, como fez o tribunal recorrido, estender à constituição por destinação do pai de família a restrição imposta à constituição das servidões legais de passagem (artigo 1550.º do Código Civil), de forma a evitar situações de devassa da vida privada que colidem com a reserva do gozo de um edifício, há que salvaguardar a possibilidade de se constituírem servidões sobre os terrenos adjacentes de um prédio urbano, conforme igualmente admite para as servidões legais o disposto no artigo 1551.º do Código Civil.

Neste caso, o corredor que permite o acesso dos Prédios Um e Dois à Rua ... é um corredor a céu aberto que está implantado em terrenos adjacentes aos edifícios dos Prédios Um, Dois e Três, pelo que a constituição de uma servidão que permita a passagem por esse corredor não é inviabilizada pelo facto do prédio serviente ser um prédio urbano.

Também a circunstância dos Prédios Um e Dois não serem prédios encravados, por terem acesso direto à Rua ..., onde têm número de polícia, não impede a constituição de uma servidão por destinação do pai de família de acesso à Rua ..., uma vez que neste modo de constituição de uma servidão de passagem é irrelevante a situação de isolamento do prédio. Esta servidão não se constitui por necessidade, mas sim porque ao tempo da aquisição do prédio dominante já existia a correspondente serventia, a qual só não tinha reconhecimento jurídico, porque os prédios dominantes e o prédio serviente pertenciam ao mesmo dono, pelo que, nada tendo sido dito em contrário no ato de separação da titularidade, confere-se eficácia jurídica a essa situação de facto.

Resta, pois, apurar, e esse é precisamente o elemento que dividiu as decisões das duas instâncias, se a serventia invocada pelos Autores (uma passagem dos Prédios Um e Dois para a Rua ..., através do Prédio Três), à data da referida partilha, se encontrava suficientemente evidenciada por sinais visíveis e permanentes. Nesta averiguação convém ter presente que a situação de facto deve apresentar-se no momento da separação do domínio de modo a que se os prédios pertencessem já a diferentes proprietários haveria sinais que revelavam a existência de uma servidão aparentando um determinado conteúdo.

Quanto a esta matéria provou-se o seguinte:

- existe um corredor que dá acesso aos três prédios a um caminho público, a Sul, hoje denominado Rua ..., que os donos e ocupantes (arrendatários) dos três Prédios vieram utilizando desde há não menos de cinquenta anos;

- o corredor tem cerca de um metro de largura, inicia-se no Prédio Um, com acesso também pelo Prédio Dois, e termina no Prédio Três, onde desemboca, a sul, num portão que acede à Rua ...;

- LL, autor da sucessão referida no facto 1., quando em vida atravessava o logradouro do Prédio 3 pelo sobredito corredor, para, designadamente, visitar as instalações dos prédios, todos localizados na Rua ..., ou para regressar à então sua residência, sita no Prédio Um.

- LL tanto saía do logradouro do Prédio 3, para aceder ao logradouro do Prédio 2 e daqui à Rua ..., onde viveu, no Prédio 1, como, por vezes, saindo do logradouro do Prédio 2, confinante com o logradouro do Prédio 3, acedia também ao logradouro deste último e, daqui, à Rua ....

Um corredor exterior, como sucede no presente caso, é um espaço, lateralmente vedado, (apesar de poder conter aberturas de acesso), comprido e estreito (este tem 1 metro de largura, referindo-se apenas na matéria de facto provada quanto ao seu comprimento que atravessa três prédios) que visa proporcionar o acesso a diferentes espaços. Quando, como no presente caso, o percurso de um corredor atravessa prédios diferentes e termina numa estrada pública, ele proporciona o acesso desses prédios a essa estrada.

Pela sua configuração, um corredor sinaliza de uma forma patente e unívoca a existência de uma passagem para diferentes espaços, designadamente, como sucede no presente caso, estabelecendo um percurso bem definido de acesso a uma estrada pública. É essa e só essa a utilidade de um corredor.

Pode-se, pois, concluir que o corredor aqui em análise, que dá acesso aos três prédios à denominada Rua ... e que tem o seu início no Prédio Um, se prolonga pelo Prédio Dois e termina no Prédio Três, onde desemboca num portão através do qual se acede à Rua ..., é, ele próprio, um sinal visível e permanente que evidencia uma serventia constituída pela permissão de passagem sobre o Prédio Três, a partir dos Prédios Um e Dois, com a finalidade de aceder à Rua ....

O acórdão recorrido negou a prova da aparência da relação predial de facto de serventia à data da realização da escritura de partilha, argumentando que não se provaram factos que convençam ou inculquem suficientemente a ideia que o pai de família quis estabelecer uma relação de sujeição do prédio 3 e do respetivo logradouro aos prédios 1 e 2, o que revela uma adesão à tese voluntarista segundo a qual a constituição de uma servidão por destinação do pai de família não poderia prescindir do apuramento da existência de uma vontade subjetiva por parte daquele de instituir uma relação predial de serventia no tempo em que todos os prédios lhe pertenciam.

Como acima concluímos, em tese, a vontade do proprietário “pai de família” que presidiu à construção do referido corredor e à sua manutenção até á separação da titularidade dos três prédios é irrelevante para a constituição de um direito de servidão, tendo por objeto esse corredor, pelo que, constituindo o próprio corredor um sinal inequívoco da existência de uma serventia relacionando aqueles prédios, aquando da partilha das heranças a que eles pertenciam, era visível, para todos, a relação de cooperação fundiária no acesso à Rua ... – o corredor existente, cujo trecho final se situava no Prédio Três, na altura utilizado pelos donos e ocupantes (arrendatários) dos três Prédios, facultava o acesso à Rua ....

Estavam, pois, preenchidos todos os requisitos exigidos pelo artigo 1549.º do Código Civil para a constituição, por destinação do pai de família, de uma servidão de passagem através desse corredor, a favor dos prédios Um e Dois (prédios dominantes), sobre o Prédio Três (prédio serviente).

A relação de servidão constitui-se entre prédios e não entre pessoas, pelo que os Autores como atuais proprietários dos Prédios Um e Dois, são os titulares desse direito, e os Réus, como proprietários do Prédio Três, o prédio onerado com a servidão, estão obrigados a facultar essa passagem pelo seu prédio.

Provou-se que no ano de 2005 os Réus procederam a obras de recuperação do edifício existente no Prédio Três e, simultaneamente, contruíram um muro/uma parede que tapou a passagem dos Prédios Um e Dois ao acesso que conduz à Rua ..., pelo que, em resultado da obra levada a cabo pelos Réus, os Autores deixaram de poder aceder, a partir dos seus prédios, à Rua ..., violando, assim, os Réus o acima apurado direito de servidão de passagem de que os Autores são os atuais titulares, pelo que a ação deve ser julgada procedente, repondo-se integralmente a decisão proferida na 1.ª instância.

3. Da litigância de má fé

Os Réus pediram a condenação dos Autores, por litigância de má fé, por terem fundamentado o seu recurso com argumentos que sabiam não poder proceder.

O desfecho do recurso revela que, pelo menos, alguma da argumentação apresentada pelos Autores era válida e, em todo o caso, não se evidencia que relativamente a qualquer ponto da fundamentação do recurso, mesmo entre os argumentos que foram julgados improcedentes, tenha existido uma conduta dolosa ou gravemente negligente, pelo que deve ser indeferido o pedido de condenação dos Autores como litigantes de má fé.

                                               *

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repondo-se integralmente a sentença proferida na 1.ª instância.

                                               *

Indefere-se o pedido de condenação dos Autores como litigantes de má fé.

                                               *

Custas da ação e dos recursos pelos Réus.

                                               *

Notifique.

Lisboa, 10 de março de 2022

João Cura Mariano (relator)

Fernando Baptista

Vieira e Cunha

_______

[1] O mesmo não sucede noutros ordenamentos jurídicos, em que se prevê expressamente essa possibilidade, como o Código Civil Suíço (artigo 733), o Código Civil da Catalunha (artigo 566 – 3 - 1) e o Código Civil do Quebeque (artigo 1183), ou em que sectores da doutrina e a jurisprudência acolhem essa possibilidade, como sucede na Alemanha, com a interpretação do § 1018 do BGB.
[2] Esta expressão foi copiada do Código de Napoleão que, no entanto, distinguia as servidões que tinham na origem a separação de prédios, a qual habitualmente era efetuada por partilha dos herdeiros do proprietário comum, entretanto falecido, as quais apelidava de servidões por destinação do pai de família (artigo 693.º), daquelas que tinham na origem um ato translativo da propriedade de um dos prédios pertencentes ao mesmo proprietário, denominadas servidões por destinação do antigo proprietário (artigo 694).
   O Código de Seabra adotou a primeira expressão para denominar ambas as realidades.
[3] Conforme se lê nas Atas da Comissão Revisora do Anteprojeto sobre Servidões Prediais do futuro Código Civil português, publicadas no Boletim do Ministério da Justiça n.º 136, Gomes da Silva propôs que se retirasse do artigo 1.º do anteprojeto apresentado por Pires de Lima, onde se definia a noção de servidão predial, a expressão “pertencente a dono diferente”. Apesar de na discussão essa proposta ter merecido a compreensão de Vaz Serra e Braga da Cruz, perante os argumentos pragmáticos invocados por Pires de Lima, Vaz Serra ficou isolado na votação, ao sustentar a eliminação daquela expressão, de forma a deixar livre à doutrina e à jurisprudência a apreciação do problema das chamadas servidões de proprietário.
[4] Sobre os costumes franceses nesta matéria, TAVARELA LOBO, Destinação do Pai de Família. Servidões e Águas, Atlântida, 1964, pág. 11-13.
[5] Nos trabalhos dos juristas do período da pré-codificação também já se previa este modo de constituição das servidões prediais. V.g. COELHO DA ROCHA, Instituições de Direito Civil Português, Tomo II, 6.ª ed., Imprensa da Universidade de Coimbra, 1886, pág. 460-461, CORREIA TELLES, Digesto Português, Tomo III, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1836, pág. 75, e MANUEL DE ALMEIDA E SOUSA DE LOBÃO, Tratado Prático e Compendiário das Águas, Imprensa Nacional, 1861, § 103.
[6] Sobre a história deste instituto, leia-se JÚLIO GOMES, Da servidão por destinação do pai de família, em Cadernos de Direito Privado, n.º 73 (janeiro/março de 2021), pág. 3-12.
[7] Publicada no Boletim do Ministério da justiça n.º 64, pág. 14.
[8] V.g. CARMELLO SCUTO, Della Servitù Prediali, 2.ª ed., Libreria Internazionale Trves di Leo Lupi, 1954, pág. 270,  FRANCESCO MESSINEO, Le Servitù, Giuffrè, 1949, pág. 141, LODOVICO BARASI, I Diritti Reali Limitati, Giuffré, 1947, pág. 263, BIONDO BIONDI, Fondamento e Carattere della Destinazione del Padre di Famiglia, Foro Italiano, Ano 71.º (1948), pág. 499, e GIUSEPPE GROSSO e GIOMMARIA DEIANA, Le Servitù Prediali, vol. I, 3.ª ed., Editrice Torinese, 1963, pág. 712-713, e GIUSEPPE BRANCA, Servitù prediali, 3.ª ed., Nicole Zanichelli Editore, 1963, pág. 261-265.
[9] V.g. CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil, em comentário ao Código Civil Português, vol. XI, Coimbra Editora, 1936, pág. 660-661, GUILHERME MOREIRA, As Águas no Direito Civil Português, Livro II, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1960, pág. 95, CARLOS GONÇALVES RODRIGUES, Da Servidão Legal de Passagem, Almedina, 1962, pág. 84, PIRES DE LIMA, Lições de Direito Civil (Direitos Reais), 3.ª ed., Coimbra Editora, 1946, pág. 320, MOTA PINTO, Direitos Reais, Almedina, 1971, pág. 322-323, JOSÉ LUÍS SANTOS, Servidões Prediais (Serventias), 2.ª edição, Coimbra Editora, 1983, pág. 34-35, e NORMAN MASCARENHAS, Constituição e Extinção das Servidões Prediais, Scientia Iuridica, tomo XXV, n.º 175-178, pág. 303.
[10] Neste sentido, JOSÉ LUÍS SANTOS, Servidões Prediais (Serventias), 2.ª edição, Coimbra Editora, 1983, pág. 34.
    No domínio do Código de Seabra, DIAS FERREIRA, Código Civil Português Anotado, vol. IV, 2.ª ed., Imprensa da Universidade de Coimbra, 1905, pág. 230, e CARLOS GONÇALVES RODRIGUES, ob. cit., pág. 98.
    Alguns autores, assim como alguns arestos da nossa jurisprudência, apesar de não exigirem a prova dessa intenção como requisito para a constituição da servidão, revelam alguma ambiguidade ao avaliarem a visibilidade e permanência dos sinais, à luz da intenção de quem os colocou. V.g. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1984, pág. 634.
[11] Exposição de Motivos do Anteprojeto, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 64, pág. 14.
[12] Ob. cit. pág. 7 e 8.
[13] Bártolo deduzia da aparência do serviço prestado por um prédio a outro a existência de um tácito consenso.
[14] TAVARELA LOBO, Manual do Direito de Águas, vol. II, 2.ª ed., pág. 228 e 241-243, e Mudança e Alteração da Servidão, Coimbra Editora, 1984, pág. 149-150, PENHA GONÇALVES, Curso de Direitos Reais, 2.ª ed., Universidade Lusíada, 1993, pág. 464, HENRIQUE MESQUITA, Anotação ao Acórdão do STJ de 20.01.2005, na R.L.J., Ano 135.º, n.º 3936, pág. 152-153, MENEZES CORDEIRO, Servidão Legal de Passagem e Direito de Preferência, R.O.A, Ano 50 (1990), vol. III, pág. 555-556, MENEZES LEITÃO, Direitos Reais, Almedina, 2009, pág. 405, nota 694, JÚLIO GOMES, ob. e loc. cit., MARIA ELISABETE FERREIRA, ob. cit., pág. 709, RUI PINTO e CLÁUDIA TRINDADE, Código Civil Anotado, vol. II, Almedina, 2017, pág. 418
[15] Acórdãos de 20.01.2005, Proc. 04B3748 (Rel. Noronha de Nascimento), de 15.03.2005, Proc. 05B287 (Rel. Ferreira de Almeida), de 13.12.2007, Proc. 07A2507 (Rel. Sebastião Póvoas), de 31.01.2012, Proc. 277/05 (Rel. Granja da Fonseca)
[16] Sustentando igual autonomia qualificativa, JOSÉ LUÍS BONIFÁCIO RAMOS, Manual de Direitos Reais, AAFDL, 2017, pág. 415.
    Sobre a discussão centrada na natureza jurídica deste modo de constituição das servidões prediais, enunciando as diferentes perspetivas, por todos, MARIA ELISABETE FERREIRA, Comentário ao Código Civil. Direito das Coisas, Universidade Católica Editora, 2021, pág. 710.