Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | HENRIQUES GASPAR | ||
Descritores: | INTERNAMENTO DE IMPUTÁVEL EM ESTABELECIMENTO DESTINADO | ||
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Nº do Documento: | SJ200310150021453 | ||
Data do Acordão: | 10/15/2003 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | 1 J CR MATOSINHOS | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 719/02 | ||
Data: | 03/18/2003 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
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Sumário : | 1. A norma do artigo 104° do Código Penal (na redacção do Decreto-Lei n° 48/95, de 15 de Março, correspondente ao artigo 103° na redacção originária) institui um regime específico para os casos em que o agente, sendo imputável, sofre, contudo, de anomalia psíquica contemporânea dos factos, que tem por consequência a inadequação do regime prisional comum, seja por que este regime se revela prejudicial ao condenado, seja pela perturbação causada por indisciplina ou inadaptação do agente. 2. O artigo 104° do Código Penal, ao dispor que o condenado cumpra a pena privativa de liberdade em estabelecimento destinado a inimputáveis, tem como finalidade solucionar particulares problemas de execução da pena de prisão aplicada a indivíduos imputáveis, mas que sofrem de anomalia psíquica que torna l problemática a execução da pena no regime dos estabelecimentos comuns. 3. A finalidade da instituição deste regime é, assim, a de permitir a escolha de uma pena mais individualizada através de uma forma específica de execução da pena, em condições que permitam a disponibilidade de tratamentos adequados ao estado de saúde mental do condenado. 4. O internamento previsto no artigo 104° do Código Penal constitui, pois, uma forma de cumprimento da pena de prisão; não é um substituto da pena de prisão, mas uma forma de execução da pena, como resulta da aplicabilidade do regime da liberdade condicional e da obrigatoriedade de cessação, com a colocação do condenado em estabelecimento comum, logo que deixe de subsistir a causa que determinou o internamente | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: 1. "A", identificado no processo, foi acusado pelo Ministério Público pela prática, em co-autoria material com outros dois indivíduos, e em concurso real, de um crime consumado de roubo, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs. 210°, n°s l e 2, alínea b), e 204°, n° 2, alínea f), ambos do Código Penal, com referência ao art° 3°, n° l, alínea f), do Decreto-Lei n° 207-A/75, de 17 de Abril; e de um crime consumado de furto, p. e p. pelo art° 203°, n°l, do Código Penal. Efectuado o julgamento, o tribunal colectivo do Círculo e de comarca de Matosinhos julgou procedente a acusação, condenando o arguido como co-autor material de um crime de roubo, p. e p. pelo art° 210°, n° l, do Código Penal, na pena de dezoito meses de prisão, e como co-autor material de um crime de furto de uso de veículo, p.e p. pelo artigo 208º, nº l, do Código Penal, na pena de nove meses de prisão. Em cúmulo jurídico, de harmonia com o disposto no art° 77° do Código Penal, o arguido A foi condenado na pena única de vinte e dois meses de prisão. 2. Não se conformando com o decidido, interpôs recurso para o Supremo Tribunal, que motivou, formulando, após notificação para cumprimento do disposto no artigo 412º, nº 2, do Código de Processo Penal, as seguintes conclusões: - O Tribunal a quo achou por bem, à luz dos art.°s 70º e 71º do Código Penal, aplicar a pena de prisão ao agente. No entanto, para o cumprimento da pena decretada, o recorrente não se encontra em condições quer físicas, quer psíquicas, conforme se aduz da leitura da sentença, bem como da gravação ia audiência de julgamento; - No referente à reintegração do delinquente na sociedade, conclui-se ter havido violação dos art.°s 70° e 71°, ambos do Código Penal, porquanto, tendo em vista os factos trazidos à luz ao longo de todo o processo no que concerne ao estado físico e psíquico do arguido, haveria que atender ao art° 104º do Código Penal, como normativo aplicável. Assim o Tribunal a quo deveria ter levado em análise o art.° 30º, nº 5, da CRP, o qual dispõe "os condenados a quem sejam aplicadas penas mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, sendo que na execução das penas se deve proceder com respeito da dignidade humana dos condenados, devendo ser-lhes dispensados os tratamentos necessários para salvaguarda da saúde física e mental e para a inserção na sociedade. O recorrente invoca, assim, a violação dos art.°s 30°, nº 5, e 64°, nº 1, alínea a), da Constituição, reclamando «a atendibilidade da norma prevista no art.° 104 do CP». O recorrente pede, em suma e unicamente, a "substituição da medida da pena de prisão efectiva em que foi condenado por igual pena de internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis, no respeito ao preceituado no art.° 104° do Código Penal. O Ministério Público junto do tribunal recorrido pronunciou-se, na sua resposta, no sentido do não provimento do recurso. 3. Neste Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, após ter requerido a notificação do recorrente para, nos termos do n° 4 do artigo 690° do CPC, com referência ao seu n° 2 (aplicável por força do artigo 4° do CPP), dar integral cumprimento à norma do art. 412° do CPP, designadamente ao seu n° 2, pronunciou-se no sentido de nada obstar ao conhecimento do recurso, designando-se dia para audiência. 4. Colhidos os vistos, teve lugar a audiência com a produção de alegações, cumprindo decidir. O Tribunal Colectivo considerou provados os seguintes factos: No dia 28 de Outubro de 2002, cerca das 18:30 horas, na rua do Senhor, próximo da estrada Exterior da Circunvalação, os arguidos, ao avistarem o ofendido B, que caminhava a pé pela referida rua acompanhado de outro indivíduo, que apenas sabe chamar-se C e ser seu vizinho, em direcção a uma paragem de autocarro, decidiram, de comum acordo e agindo concertadamente e em conjugação de esforços e intentos, retirar-lhes o que de valor os mesmos trouxessem com eles. Na sequência de tais desígnios, os três arguidos aproximaram-se do ofendido B e acompanhante C, e quando se encontravam junto deles o arguido A pediu um cigarro ao ofendido B, pedido a que aquele acedeu. Seguidamente o arguido A, virando-se para o B, agarrou-o pelo casaco que o mesmo trazia vestido e, em voz alta e tom intimidatório e sério, ordenou-lhe que lhe entregasse tudo o que tivesse em seu poder e nomeadamente dinheiro e telemóvel. Enquanto isso o arguido D agarrou o dito C. Como o ofendido B resistisse, tentando libertar-se do mencionado A, nomeadamente fazendo gestos bruscos com o corpo e com as mãos, o arguido D sacou de um objecto com o aspecto de faca de mato, objecto que não foi apreendido nem examinado nos autos e em posição de corporalmente o ofender, encostou-a ao pescoço do C. Por sua vez o arguido A levantou a camisola que trazia vestida e exibiu ao ofendido B um objecto que tinha o aspecto de faca, que trazia preso na cintura, objecto que também não foi apreendido nem examinado nos autos e disse-lhe "queres que eu te fure?’ Nessa altura o ofendido B deixou de se debater e entregou ao arguido A o seu telemóvel, marca Samsung e modelo R200, com o IMEI 350195260259647, no valor de € 150 (cento e cinquenta euros). Na posse do referido telemóvel, os três arguidos abandonaram o local a correr. O telemóvel nunca foi recuperado. Os arguidos actuaram deliberada, livre e conscientemente, sabendo que a conduta deles é proibida por lei. Os arguidos fizeram coisa deles o mencionado telemóvel, pela forma e processo supra descrito, não se coibindo de fazer uso da força física, bem sabendo que o mesmo não lhes pertencia e que agiam sem o consentimento e contra a vontade do respectivo dono, o qual não consentia na apropriação efectuada. Na madrugada seguinte, algum tempo antes das 4:00 horas do dia 29 de Outubro de 2002, na Rua de Damão, na cidade de S. Mamede de Infesta, os arguidos aproximaram-se do veículo automóvel marca Fiat e modelo Uno, com a matrícula BA, com o valor de cerca de € 1000 (mil euros), pertencente a E, e que se encontrava ali estacionado. Logo que chegaram junto desse veículo, os arguidos, agindo concertadamente e em conjugação de esforços e intentos, com o auxílio da vareta de óleo, vulgo gazua, objecto que se encontra apreendido e examinado nos autos, abriram a porta da frente do lado do condutor do mesmo, após o que nele se introduziram sentando-se o F ao volante. Seguidamente, com o auxílio da mencionada vareta, os arguidos colocaram o respectivo motor em funcionamento, após o que o F, apesar de não se encontrar habilitado com carta de condução ou qualquer outro documento equivalente, que lhe permitisse conduzir o referido veículo, arrancou com o mesmo, nele transportando os outros dois arguidos. Após haverem circulado com aquele veículo por várias artérias, nomeadamente da cidade de S. Mamede de Infesta, os arguidos foram encontrados por três agentes da PSP, cerca das 4:00 horas do referido dia 29 de Outubro de 2002, quando circulavam com a dita viatura na rua Central do Seixo, na referida localidade. Porque veículos automóveis do tipo do acima mencionado são frequentemente alvos de furto, os mencionados agentes da PSP decidiram abordar, sendo que estes saíram do referido veículo e, cada um para seu lado, puseram-se em fuga. Foi-lhes de imediato movida perseguição, respectivamente por cada um dos agentes policiais em causa, e vieram todos a ser detidos, tendo sido necessário a utilização da força física para o efeito, uma vez que ofereceram resistência. No decurso da respectiva perseguição policial o guarda que concretamente perseguia o arguido F puxou pela sua pistola e disparou um tiro para o ar com o propósito de o intimidar. O veículo foi assim recuperado, e entregue ao seu proprietário não apresentando quaisquer estragos. Os arguidos agiram deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de se apoderarem do dito veículo BA, para o utilizarem como se fosse deles, bem sabendo que o mesmo não lhes pertencia e que agiam sem o consentimento e contra a vontade do dono. Os arguidos estavam cientes da ilicitude e reprovabilidade do seu descrito comportamento. O arguido A foi condenado em 1997 por três crimes de furto e um crime de introdução em casa alheia; em 2001 por um crime de furto e por dois crimes de resistência e coacção sobre funcionário; e em 2002 por um crime de roubo. À data da prática dos factos encontrava-se no período de suspensão da execução da pena de prisão decretada no penúltimo processo em que foi julgado - 631/00.9PWPRT da 4ª Vara Criminal do Porto. Provém de meio familiar instável e disfuncional marcado pela ausência do pai que se separou da mãe; desde cedo revelou condutas desviantes e agressivas com colegas, professores e funcionários, aos quais não eram alheios problemas do foro psiquiátrico não tratados, por negligência da mãe; foi internado em estabelecimento de reeducação onde se manteve até aos 18 anos de idade; manteve-se desinteressado pela aprendizagem ou pela actividade profissional, passando depois a viver afectado pelo consumo de drogas e álcool; depois de cumprir pena de prisão passou a viver com o pai, que lhe proporciona maior acompanhamento, conseguiu manter uma actividade laboral estável na área da construção civil e, até à data dos factos, cumpriu as obrigações decorrentes da suspensão da execução da pena de prisão fixadas no acórdão proferido no mencionado processo 631/00.9PWPRT da 4ª Vara Criminal do Porto. 5. O recorrente não questiona a qualificação dos factos provados nem a medida concreta da pena que lhe foi aplicada, pretendendo apenas, como refere nas conclusões da motivação, que «a medida da pena de prisão» seja substituída por «igual pena de internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis», invocando, para tanto, o artigo 104º do Código Penal. O artigo 104º do Código Penal (na redacção do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, correspondente ao artigo 103º na redacção originária) dispõe no nº 1 que «quando agente não for declarado inimputável e for condenado em prisão, mas se mostrar que, por virtude de anomalia psíquica de que sofria já ao tempo do crime, o regime dos estabelecimentos comuns lhe será prejudicial, ou que ele perturbará seriamente esse regime, o tribunal ordena o seu internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena»; a decisão que determine o internamento não impede, segundo dispõe o nº 2, a liberdade condicional, nem a colocação do condenado em estabelecimento comum logo que cessar a causa do internamento. A norma institui um regime específico para os casos em que o agente, sendo imputável, sofre, contudo, de anomalia psíquica contemporânea dos factos, que tem por consequência a inadequação do regime prisional comum, seja por que este regime se revela prejudicial ao condenado, seja pela perturbação causada por indisciplina ou inadaptação do agente. O artigo 104º do Código Penal, ao dispor que o condenado cumpra a pena privativa de liberdade em estabelecimento destinado a inimputáveis, tem como finalidade solucionar particulares problemas de execução da pena de prisão aplicada a indivíduos imputáveis, mas que sofrem de anomalia psíquica que torna problemática a execução da pena no regime dos estabelecimentos comuns. A finalidade da instituição deste regime é, assim, a de permitir a escolha de uma pena mais individualizada através de uma forma específica de execução da pena, em condições que permitam a disponibilidade de tratamentos adequados ao estado de saúde mental do condenado. (cfr., MARIA JOÃO ANTUNES, "O Internamento de Imputáveis em Estabelecimentos Destinados a Inimputáveis", Col. STUDIA IURIDICA, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, 1993, pags. 17-19). O internamento previsto no artigo 104º do Código Penal constitui, pois, uma forma de cumprimento da pena de prisão; não é um substituto da pena de prisão, mas uma forma de execução da pena, como resulta da aplicabilidade do regime da liberdade condicional e da obrigatoriedade de cessação, com a colocação do condenado em estabelecimento comum, logo que deixe de subsistir a causa que determinou o internamento. A norma, no entanto, substancialmente e de modo exclusivo, não é uma simples norma de execução (como poderia ser induzido pela consideração da sua fonte próxima no regime prisional - o artigo 10º, nºs 2 e 4, do Decreto-Lei nº 265/79, de 1 de Agosto), sendo, por isso, indispensável a precedência de uma decisão judicial condenatória que aplique a medida de internamento que a norma prevê. A escolha e a aplicação da medida constitui um poder-dever do juiz («o juiz ordena», diz a lei, quando anteriormente dizia «pode ordenar»), que deve ser exercido sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos de aplicação. 6. Os pressupostos de aplicação da medida de internamento prevista no artigo 104º do Código Penal estão directamente fixados: a existência de uma anomalia psíquica ao tempo de crime, que, não determinando a inimputabilidade, torne o regime dos estabelecimentos comuns prejudicial ao condenado, ou seja causa de inadaptação com a consequente perturbação do funcionamento do estabelecimento. O primeiro pressuposto é de verificação efectiva: a anomalia psíquica deve existir ao tempo de crime e deve ser verificada e comprovada; não impedindo a efectivação da responsabilidade criminal e a aplicação de uma pena de prisão, deve ser de tal natureza que determine as dificuldades de execução da pena a que o internamento previsto pretende responder. As situações que cabem na previsão da norma são referidas aos casos usualmente designados de imputabilidade diminuída. A dificuldade de adaptação ou de compreensão do regime dos estabelecimentos comuns não constitui, no plano dos pressupostos, uma consideração de partida; apenas intervém se tiver sido verificado, através dos meios processualmente adequados e com o necessário auxílio pericial, que o arguido sofre de afecção psíquica que lhe diminui a imputabilidade, e que, em consequência da afecção é a medida de internamento que se mostra adequada, permitindo a individualização da execução, com a possibilidade, efectiva e de melhor prognóstico, de beneficiar de tratamento e intervenção terapêutica. No caso, porém, como resulta dos factos provados, este pressuposto fundamental não resulta demonstrado. Com efeito, não foi suscitada a necessidade de avaliar medicamente a situação do recorrente à data dos factos, nem foram requeridos exames ao seu estado de saúde psíquica. Apenas são referidos, de modo genérico, «problemas do foro psiquiátrico não tratados» no passado, e problemas de consumo de drogas e álcool, salientando-se, por outro lado, que depois de cumprir uma anterior pena de prisão passou a viver com o pai que lhe proporciona maior acompanhamento, tendo conseguido manter uma actividade laboral estável. As dificuldades (prognósticas) quanto à execução da pena em estabelecimentos comuns, invocadas mas que não constam da matéria de facto, não podem, por seu lado, ser consideradas no âmbito do artigo 104º do Código Penal, já que não têm autonomia sem a verificação da afecção psíquica, que haveria de determinar não apenas a necessidade da medida, mas também a adequação terapêutica que está ínsita na finalidade com que está prevista. 7. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido. Fixa-se a taxa de justiça em 2 UCs. Lisboa, 15 de Outubro de 2003 Henriques Gaspar (relator) Antunes Grancho Políbio Flor Soreto de Barros |