Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 4ª SECÇÃO | ||
| Relator: | MÁRIO BELO MORGADO | ||
| Descritores: | PLATAFORMA DIGITAL PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO CONTRATO DE TRABALHO CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO | ||
| Data do Acordão: | 10/03/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
| Sumário : | I. Relativamente a relações jurídicas iniciadas antes da entrada em vigor do art. 12.º-A, do CT, a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital é aplicável aos factos enquadráveis nas diferentes alíneas do seu nº 1 que, no âmbito dessas relações jurídicas, tenham sido praticados posteriormente àquele momento. II. Traduzindo a presunção de laboralidade em apreço o empenhamento do legislador e das instituições da União Europeia em combater o falso trabalho independente em plataformas digitais e as inerentes relações laborais encobertas, bem como, conexamente, facilitar a determinação do real estatuto profissional das pessoas que trabalham nessas plataformas, não pode deixar de assumir-se que o legislador, ao exprimir o seu pensamento, consagrou as soluções mais consentâneas com as finalidades visadas no tocante às situações paradigmáticas em questão. III. No caso vertente, estão verificados os índices da presunção de laboralidade previstos nas alíneas a), b), c), e) e f) do n.º 1 do art. 12.º-A, do Código do Trabalho, ou seja, um total de cinco elementos em seis possíveis. IV. Os elementos que de forma mais nítida apontam no sentido de uma relação de trabalho autónomo são os habitual e tipicamente verificados no plano das relações estabelecidas entre os estafetas e as empresas detentoras de plataformas digitais, elementos já oportunamente ponderados pelo legislador nacional – bem como pelas instâncias e países da União Europeia – e que não obstaram à introdução da presunção de laboralidade no ordenamento jurídico, a qual foi consagrada nos termos tidos por mais adequados e que são obrigatórios para os tribunais. V. Não tendo a ré logrado ilidir esta presunção de laboralidade, impõe-se concluir pela existência de um contrato de trabalho entre ela e o estafeta em causa. | ||
| Decisão Texto Integral: | Revista n.º 29352/23.2T8LSB.L1.S1 Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça I. 1. O MINISTÉRIO PÚBLICO intentou ação declarativa, com processo especial, de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, contra Glovoapp Portugal Unipessoal, LDA., peticionando que seja declarada a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre esta e AA, com efeitos reportados a 19.07.2021. 2. Na 1ª Instância, a ação foi julgada improcedente. 3. O Autor apelou, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) confirmado esta decisão. 4. Inconformado, o MP interpôs recurso de revista, alegando, em síntese, que tem natureza laboral a relação jurídica estabelecida entre a R. e AA. 5. A ré contra-alegou. 6. Em face das conclusões das alegações do recorrente, a questão a decidir consiste em determinar se entre as partes se estabeleceu uma relação jurídica de trabalho subordinado (com efeitos reportados a 19.07.2021), sendo que as subquestões em que se desdobra este thema decidendum são as seguintes: i) Se à relação jurídica em causa é aplicável a (nova) presunção de laboralidade consagrada no art. 12.º-A, do Código do Trabalho (CT); ii) Na afirmativa, se se encontram preenchidas pelo menos duas das bases/características constantes das alíneas a), b), c), e) e f) do n.º 1 do mesmo artigo1; iii) Na afirmativa, se foi ilidida a presunção de laboralidade. Decidindo. II. 7. Com relevo para a decisão, as instâncias julgaram provados os seguintes factos: 1. (…) 2) A ré tem como única sócia a sociedade “Glovoapp23, S.L. (com sede em: C/Pujades 94, 08005, Barcelona, Espanha). 3) A ré explora uma plataforma tecnológica designada “glovoapp” através da qual estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos que podem ser solicitados por qualquer interessado que à mesma aceda através de uma aplicação móvel ou através da internet. 4) Para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, a Ré utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma, para esse efeito; 5) As funções desempenhadas pelos estafetas consistem na recolha dos bens nos estabelecimentos aderentes (restaurantes, supermercados, lojas, etc…) e no seu transporte até ao cliente final. 6) Para proteção dos mesmos em caso de lesão ou óbito, durante os serviços de recolha e entrega, a Ré celebrou um contrato de seguro com a Chubb European Group SE, Sucursal Em Espanha, apólice n.º ESBMN232412; 7) Para lhe serem distribuías tarefas/pedidos na plataforma da Ré, o estafeta tem que criar uma conta na plataforma, efetuando o respetivo registo na modalidade de utilizador/estafeta. 8) Para tanto tem que demonstrar: - Ser maior de idade; - Ter meio de transporte próprio, no caso concreto, bicicleta elétrica; - Ter documento de identificação; - Ter comprovativo da atividade aberta nas finanças; - Aceitar os termos e condições de utilização da plataforma para estafetas; 9) Mais tem que comprovar perante a Ré a posse de uma mochila térmica, com os requisitos específicos que exige. 10) Ativada a conta, o estafeta descarrega então no seu telemóvel a aplicação Glovo Courriers. 11) Após o que lhe é distribuída pela Ré trabalho, receção e distribuição de encomendas. 12) Para o que apenas tem que ligar o telemóvel e aceder à conta, a partir da qual recebe da Ré a indicação do estabelecimento onde tem que levantar a encomenda, o tipo de pedido, o valor do serviço, o cliente final e a morada de entrega. 13) Sendo que a atribuição dos pedidos aos estafetas é determinada essencialmente em função do critério da distância entre aquele, o estabelecimento e o consumidor. 14) Ao aceitar um pedido de entrega da Ré, o estafeta concorda então em prestar aquele serviço de entrega em troca do pagamento da taxa de entrega proposta na aplicação, que pode aumentar ou diminuir consoante a utilização de um multiplicador. 15) O estafeta recebe da Ré, como contrapartida da sua atividade, um valor por cada pedido/entrega que efetua. 16) Valor esse que a Ré fixa e que pode ser alterado pelo multiplicador disponibilizado pela ré. 17) Para fixação deste valor a Ré escolheu os seguintes critérios: - a distância (número de quilómetros do ponto de recolha até ao ponto de entrega); - o tempo de espera (tempo de espera do estafeta na recolha do pedido); - o horário (sendo os de maior afluxo mais bem pagos); - E outras variáveis (no caso de condições meteorológicas adversas, feriados, períodos de alta procura, etc.). 18) Sendo que o período de faturação é quinzenal. 19) E o estafeta pago por transferência bancária. 20) A Ré só atribui encomendas se o estafeta usar uma mochila térmica para transporte das encomendas. 21) O estafeta aceitou seguir as regras de segurança e higiene de transporte de alimento, nos termos do anexo III do contrato “CONTRATO PARA A REALIZAÇÃO DE ACTIVIDADE PROFISSIONAL COMO PROFISSIONAL LIBERAL”. (…). 22) Por força dos acordos que a Glovo estabeleceu com os seus utilizadores clientes, a Glovo exige que o estafeta chegado ao cliente final, e se este não estiver na morada, espere 10 minutos, dando nota disso ao suporte técnico da Ré. (5.1.5 - TERMOS E CONDIÇÕES DE UTILIZAÇÃO DA PLATAFORMA GLOVO PARA ESTAFETAS). 23) A partir do momento em que o estafeta se coloca na aplicação em modo de disponibilidade, a plataforma fica a saber qual é a sua localização, através de um sistema de geolocalização, sendo aquele indispensável ao exercício da atividade, para a atribuição dos pedidos dos clientes finais e, para o cálculo do valor do serviço. 24) Pois que a partir dessa via, a Ré sabe onde o estafeta se encontra à espera de algum pedido. 25) Por essa via, sendo igualmente possível à Ré controlar o tempo de entrega dos pedidos e o percurso efetuado pelo estafeta, se o estafeta mantiver o GPS ligado, o que não se mostra essencial, durante o percurso. 26) A Ré pode verificar a qualidade da atividade prestada através de um sistema denominado "sistema de reputação", no qual os clientes finais avaliam as entregas, através de meios eletrónicos inseridos na aplicação. 27) O estafeta não tem qualquer intervenção na escolha dos clientes finais e dos respetivos pedidos que surgem na aplicação móvel, uma vez que estes surgem por escolha da Ré. 28) Podendo a Ré, temporariamente, restringir o acesso à aplicação, ou mesmo desativar a conta em definitivo, no caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo estafeta ao vincular-se aos termos gerais de utilização da aplicação, designadamente, se permitir a utilização de conta por terceiros, sem prévia comunicação, ou for efetuada queixa contra o mesmo relacionada, nos exatos termos constantes da cláusula 5.2. dos TERMOS E CONDIÇÕES DE UTILIZAÇÃO DA PLATAFORMA GLOVO PARA ESTAFETAS. 29) No dia 20/09/2023, pelas 12:51 horas AA, estava no exterior do Centro Comercial Vasco da Gama, com o telemóvel n.º ...15, com a aplicação da Glovo activa , à espera de levantar algum pedido nos estabelecimentos de restauração sitos nesse Centro Comercial. (…) 31) Tendo em vista a prestação da atividade de estafeta para a Ré, a 19 de julho de 2021 o AA registou-se na plataforma da Ré, escolhendo como área de trabalho a área da Grande Lisboa- Lisboa, Amadora, Sintra, Cascais. 32) Para o que criou uma conta na sua aplicação Glovo Couriers, o que fez através do nome de utilizador por si escolhido, após ter recebido um código de segurança da Ré que esta lhe forneceu por ter demonstrando cumprir os requisitos referidos em 17. 33) E após ter assinado o “Contrato Para a Realização de Atividade Profissional como Profissional Liberal”, datado de 27 de junho de 2021, junto à participação. 34) E ter remetido cópia da Autorização de Residência, da carta de condução, do passaporte, do comprovativo de atividade exercida como trabalhador independente. 35) Por cada encomenda AA recebia no mínimo, € 2,00. 36) AA recebeu da Ré, as seguintes quantias: - € 365, 84, a 28 de setembro de 2023; - € 660, 41, a 13 de setembro de 2023; - € 566, 94, a 31 de agosto de 2023; - € 495, 41, a 16 de agosto de 2023; - € 538, 35, a 4 de agosto de 2023; - € 660, 71, a 24 de julho de 2023; - € 614, 84, a 5 de julho de 2023; - € 395, 38, a 21 de junho de 2023; - € 616, 25, a 7 de junho de 2023; 37) Recebe quinzenalmente e à quarta-feira. 38) Por transferência bancaria para a conta do AA. 39) Para o que a Ré previamente lhe envia um comprovativo em como a transferência foi efectuada. 40) E emite uma factura relativo ao serviço prestado na quinzena pelo AA. 41) No processo de registo na plataforma, AA aceitou os Termos e Condições de utilização da plataforma GLOVO para estafetas, documento disponível no site Https://glovoapp.com/docs/pt/legal/terms-couriers/ , que a Ré altera quando o entende, sendo a última alteração de 4 de maio de 2023. 42) Para fazer as entregas, AA utiliza um motociclo que lhe pertence, tal como uma mochila térmica e um telemóvel, onde tem a aplicação da Glovo instalada. 43) AA realiza a atividade de estafeta diariamente. 44) E recebe uma média mensal de € 1000. 45) Para além desta atividade, entre 2020 e abril de 2024, AA trabalhou desde Portugal, para uma empresa de call center, com sede em Inglaterra. 46) AA podia escolher um multiplicador, que permanece durante 24 horas, o qual é disponibilizado pela Ré, na plataforma, que define limites mínimos e máximos. 47) AA utilizou o multiplicador conforme resulta do documento junto com o requerimento de 12-05-2024. 48) Os clientes da Ré concedem gratificações aos estafetas. 49) É o prestador de atividade que escolhe conectar-se ou desconectar-se da aplicação quando o entende. 50) Uma vez recebido o pedido, que a Ré lhe atribui, o prestador de atividade tem conhecimento do valor a receber e pode aceitar ou rejeitar o pedido. 51) É a plataforma que define as variáveis que relevam para o preço a pagar por encomenda. 52) Após a aceitação do pedido e até à chegada à morada do cliente a geolocalização pode ser objeto de desativação 53) Entre Julho de 2021 e novembro de 2023, AA rejeitou as encomendas propostas pela Ré, constantes das listas juntas com o requerimento de 12-05-2022. 54) Nos termos da cláusula 9.2 dos “Termos e condições”: “Os dados relacionados com a geolocalização do Estafeta são necessários para a execução dos Termos e Condições, bem como para utilizar a Plataforma, a fim de permitir aos Consumidores e Estabelecimentos Comerciais saber o estado e localização do Estafeta durante a recolha ou entrega”. 55) A Ré estabeleceu os termos da subcontratação no anexo II dps “Termos e condições …” designadamente que o utilizador da conta não pode ceder ou subcontratar, total ou parcialmente, os direitos e obrigações decorrentes do uso da Plataforma sem comunicação prévia por escrito à GLOVO e a Glovo pode rejeitar a pessoa proposta. 56) Em 2023, o estafeta entre fevereiro e maio de 2023 esteve alguns dias sem se ligar à plataforma, porque viajou para a Índia. III. (a) – Quanto à delimitação do objeto do contrato de trabalho, no seu confronto com o contrato de prestação de serviço. 8. Segundo o art. 1152º, do Código Civil, “Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade (…) a outra pessoa, sob a autoridade e direção desta”. Idêntica noção constava da legislação laboral, até que o Código do Trabalho de 2009, no seu art. 11º, suprimindo o vocábulo “direção” e introduzindo na definição o elemento organizatório, adotou a seguinte redação: “Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas”. Com esta alteração, ter-se-á pretendido sinalizar a desnecessidade de o trabalhador efetivamente receber “ordens diretas e sistemáticas”, bem como, por outro lado, a conexão em regra existente entre a inserção do trabalhador na organização do empregador e a autoridade deste (cfr. infra nº 15). 9. Ao contrário das relações de trabalho autónomo, nas quais se proporciona um resultado do trabalho, nas de trabalho subordinado (que corporizam uma mera obrigação de meios), uma das partes obriga-se a prestar a outra uma atividade positiva e heterodeterminada, cujo conteúdo preciso é (em maior ou menor medida) unilateralmente fixado pelo empregador (apresentando, à partida, um certo grau de indeterminação, a prestação vai sendo “potestativamente”2 determinada por este). Todavia, são frequentemente inseparáveis a atividade e o seu resultado, pelo que “os limites operativos deste critério obrigam a considerá-lo como um critério de mera prevalência” 3; ou seja, “no contrato de trabalho a atividade tem um valor prevalente para o empregador, enquanto no contrato de prestação de serviço é o resultado dessa atividade que tem mais relevo para o credor” 4. Como nota Monteiro Fernandes, “a referenciação do vínculo à atividade indica que o trabalhador não suporta o risco da eventual frustração do resultado pretendido pela contraparte” 5; mas, apesar de a obtenção do resultado não estar, em regra, “dentro do círculo do comportamento devido pelo trabalhador”, “esse resultado ou efeito pode, todavia, constituir elemento referencial necessário ao próprio recorte do comportamento devido”, pois, independentemente de o trabalhador conhecer, ou não, o “escopo global e terminal” visado pelo empregador, “o processo em que a atividade (...) se insere é naturalmente pontuado por uma série de objetivos imediatos, (...) fins técnico-laborais, os quais, ou uma parte dos quais (...), se pode exigir – presumir – sejam nitidamente representados pelo trabalhador” 6. Em especial, não são de fácil integração na dicotomia atividade-resultado aqueles casos em que, sendo contratualizado o próprio trabalho (e não o seu resultado), ele se desenvolve com elevado grau de independência e autonomia técnica, embora no âmbito do quadro organizativo do outro contraente, que – com maior ou menor nitidez, ainda que apenas potencialmente – orienta/dirige o seu trabalho. Paradigmáticas destas dificuldades são as múltiplas situações em que a atividade é suscetível de ser levada a cabo, indistintamente, quer num quadro de subordinação, quer em termos autónomos, como é o caso das profissões liberais (médicos, enfermeiros, arquitetos, engenheiros, advogados, etc.), dos jornalistas, de alguns artistas (v.g. os profissionais de espetáculos, como é o caso dos músicos) ou dos estafetas que prestam atividade laborativa no âmbito de plataformas digitais e aplicações associadas. 10. Enquanto elemento basilar do contrato de trabalho, a subordinação jurídica corporiza-se: (i) na posição de desigualdade/dependência do trabalhador que é inerente à sua inserção, em maior ou menor grau, numa estrutura organizacional alheia (estrutura que não se reconduz necessariamente a uma empresa, podendo até ser muito rudimentar7) , dotada de regras de funcionamento próprias; (ii) na correspondente posição de domínio do empregador, traduzida na titularidade do poder de direção (que implica o dever de obediência às ordens e instruções do empregador, maxime no tocante ao modo de cumprimento/execução da prestação, bem como às regras organizacionais e de conduta estabelecidas) e do poder disciplinar. Diferentemente da “atividade” e da “retribuição”, categorias presentes em vários tipos contratuais, é na “subordinação jurídica” – elemento que no essencial o caracteriza e demarca de realidades fronteiriças – que reside a especificidade mais típica do contrato de trabalho. 11. Porém, a nova economia colaborativa e digital (acarretando substituição do trabalho humano por tecnologia, hiperconectividade e teletrabalho e, em geral, exigências organizativas das empresas muito distanciadas do modelo taylorista/fordista) está a provocar profundas mudanças nos modelos de organização do trabalho e do emprego. Assistimos a toda uma panóplia de manifestações de flexibilidade laboral (temporal e espacial) e de fragmentação e externalização do processo produtivo, ganhando expressão a dependência organizativa, bem como a dependência económica a ela associada. Aumentando muito significativamente as margens e expressões de autonomia no campo do trabalho subordinado, esbate-se a oposição tradicionalmente existente entre o trabalho subordinado e o trabalho autónomo. Deste modo, enquanto fator identificativo do contrato de trabalho, a subordinação perspetiva-se atualmente como elemento dotado de grande plasticidade, munido de “novos rostos”, e, nessa medida, num “identificador problemático”8. Na verdade, uma vez que “aumentaram, de forma significativamente relevante, por um lado, as margens e expressões de autonomia no campo do trabalho subordinado (...), mas também foi possível verificar, por outro lado, que o próprio domínio do trabalho independente ou autónomo passou a conhecer, de forma crescente, expressões de tutela e enquadramento que são mais próprias do típico trabalho subordinado”, a oposição tradicionalmente existente entre o trabalho subordinado e o trabalho autónomo vai-se esbatendo e diluindo, “através de um processo de metamorfose das formas jurídicas de exercício do poder por parte do empregador”.9 Por seu turno, Júlio Gomes, chamando a atenção para as implicações da “automatização” e da “informatização”, que “permitem a integração à distância e novas modalidades” de trabalho10, sinaliza que “a malha” da subordinação jurídica não é atualmente, porventura, a mais adequada para “filtrar” ou selecionar os casos que mais carecem de tutela” 11. Por conseguinte, nem sempre estando presentes alguns dos seus traços tradicionais e mais característicos, a subordinação deve perspetivar-se enquanto conceito de “geometria variável”, que comporta graus de intensidade diversos, em função, nomeadamente, da natureza da atividade e/ou da confiança que o empregador deposita no trabalhador, assumindo natureza jurídica e não técnica, “no sentido em que é compatível com a autonomia técnica e deontológica (...) e se articula com as aptidões profissionais especificas do próprio trabalhador e com a autonomia inerente à especificidade técnica da (...) atividade”12, sendo, deste modo, consentânea, designadamente, com atividades profissionais altamente especializadas ou que tenham uma forte componente académica ou artística13 (realidade específica que, evidentemente, não é a do caso dos autos e que apenas se menciona para contextualizar o conjunto desta problemática), tal como pode ser meramente potencial, bastando a possibilidade de exercício dos inerentes poderes pelo empregador. Na verdade, como paradigmaticamente refere sobre esta problemática Monteiro Fernandes:14 «A subordinação pode não transparecer em cada instante do desenvolvimento da relação de trabalho. Muitas vezes, a aparência é de autonomia do trabalhador, que não recebe ordens diretas e sistemáticas (…). Um dos motivos pelos quais a aparência das situações concretas pode ser enganadora consiste no facto de ser suficiente, para que haja subordinação, um estado de dependência potencial do trabalhador (conexo à disponibilidade que o patrão obteve pelo contrato), não sendo necessário que essa dependência se manifeste ou explicite em atos de autoridade e direção efetiva.(…) A ausência de ordens resulta da desnecessidade ou mesmo do interesse do empregador em beneficiar plenamente das aptidões do empregado. Isto é tanto mais real quanto mais se avança na sofisticação e diferenciação das qualificações profissionais. Muitos trabalhadores conhecem melhor o trabalho que têm que realizar do que o empregador. No entanto, este conserva o poder de, se quiser ou lhe convier, dar ordens e instruções (…). (…) Há, pois, uma progressiva desvalorização dos comportamentos diretivos na caracterização do trabalho subordinado (…) [sob pena de se deixar] à margem da regulamentação laboral um número crescente de situações de verdadeiro “emprego”, em tudo merecedoras do mesmo tratamento. Na verdade, a subordinação consiste, essencialmente, no facto de uma pessoa exercer a sua atividade em proveito de outra, no quadro de uma organização de trabalho (…) concebida, ordenada e gerida por essa outra pessoa. O elemento organizatório implica que o prestador de trabalho está adstrito a observar os parâmetros de organização e funcionamento definidos pelo beneficiário, submetendo-se, nesse sentido, à autoridade que ele exerce no âmbito da organização de trabalho, ainda que execute a sua atividade sem, de facto, receber qualquer indicação conformativa que possa corresponder à ideia de “ordens e instruções” (…). O elemento-chave de identificação do trabalho subordinado há de, pois, encontrar-se no facto de o trabalhador não agir no seio de uma organização própria, antes se integrar numa organização de trabalho alheia, dirigida à obtenção de fins igualmente alheios (…), o que implica, da sua parte, a submissão às regras que exprimem o poder de organização do empregador – à autoridade deste, em suma, derivada da sua posição na mesma organização. É nesta perspetiva que (…) se entende o enunciado, nessa parte, da definição legal do contrato de trabalho adotada no Código revisto: a (muito) antiga referência à “direção” do empregador é substituída pela alusão ao facto de o trabalhado ser executado “no âmbito de organização” dele, e, naturalmente, sob a sua “autoridade”.» 12. Efetivamente, há várias situações profissionais em que é muito estreita a fronteira entre subordinação e autonomia e, nessa medida, entre o contrato de trabalho e outros tipos contratuais (maxime, o contrato de prestação de serviço), realidade que vem suscitando acrescidas dificuldades de enquadramento jurídico no contexto atual, marcado pelas novas tecnologias e por novas formas de organização do trabalho, traduzidas, nomeadamente, nas mais diversas modalidades de flexibilidade e mobilidade laboral, maior autonomia técnica dos trabalhadores e pela diluição de vários dos elementos tradicionalmente presentes numa abordagem rígida do conceito de subordinação jurídica. Estas zonas cinzentas estão cada vez mais presentes nas relações que se estabelecem entre as empresas e os seus colaboradores; e as relações de emprego atípicas vão-se tornando cada vez mais típicas. Com frequência, trabalhadores ditos independentes são economicamente dependentes da empresa em que desenvolvem a sua atividade, não raro ao longo de vários anos e em situação de exclusividade. Acresce que em muitos casos eles trabalham na esfera da organização empresarial, utilizam equipamentos desta e executam tarefas semelhantes às de “colegas” seus formalmente assalariados, relativamente aos quais nem sempre se evidencia uma diferença nítida em termos de inserção na estrutura organizativa. Todo um campo privilegiado, pois, para relações de trabalho pouco claras, ambíguas ou encobertas. (b) – Se à relação jurídica em causa é aplicável a (nova) presunção de laboralidade consagrada no art. 12.º-A, do CT. 13. A presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital foi introduzida na nossa ordem jurídica pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, no contexto da agenda do trabalho digno e de toda uma série de desafios suscitados pela chamada “economia das plataformas”, que é uma das manifestações mais visíveis e significativas das profundas alterações que a digitalização – pondo em crise os parâmetros tradicionais da qualificação do trabalho como subordinado e potenciando falsas situações de autonomia – introduziu no plano da organização e execução do trabalho. Esta inovação assume marcada relevância, pois, no dizer de Maria do Rosário Palma Ramalho, “com a atual configuração legal, pode (…) dizer-se que, pela primeira vez, a presunção de laboralidade desempenha uma função útil na qualificação do contrato de trabalho”.15 Como se sabe, a nova presunção resulta de imposição da Diretiva (UE) 2024/2831 do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de outubro de 2024, a qual, exprimindo o empenhamento das instituições da União Europeia no combate ao abuso do estatuto de trabalhador independente e às já apontadas relações de trabalho encobertas (em linha com a Recomendação nº 198 (2006) da OIT), e visando, precisamente, a melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais16, assenta, entre outros, nos seguintes considerandos/pressupostos que importa destacar: – O artigo 31.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia prevê que todos os trabalhadores têm direito a condições de trabalho justas e equitativas que respeitem a sua saúde, segurança e dignidade. – Os trabalhadores têm direito a um tratamento justo e equitativo em matéria de condições de trabalho. – A digitalização está a mudar o mundo do trabalho, a melhorar a produtividade e a flexibilidade, mas comporta também alguns riscos para o emprego e as condições de trabalho. – As tecnologias baseadas em algoritmos, incluindo os sistemas automatizados de monitorização e os sistemas automatizados de tomada de decisões, permitiram o aparecimento e o crescimento de plataformas de trabalho digitais. Se forem devidamente regulamentadas e aplicadas, as novas formas de interação digital e as novas tecnologias no mundo do trabalho podem criar oportunidades de acesso a empregos dignos e de qualidade para pessoas que tradicionalmente não teriam tal acesso. No entanto, se não forem regulamentadas, podem também resultar numa vigilância baseada em meios tecnológicos, aumentar os desequilíbrios de poder e a opacidade na tomada de decisões, bem como pôr em risco condições de trabalho dignas, a saúde e a segurança no trabalho, a igualdade de tratamento e o direito à privacidade. – O trabalho em plataformas digitais pode resultar numa imprevisibilidade dos horários de trabalho e pode dificultar a distinção entre “relação de trabalho” e “atividade independente”, bem como a separação de responsabilidades dos empregadores e trabalhadores. A classificação incorreta do estatuto profissional tem consequências para as pessoas afetadas, na medida em que pode restringir o acesso aos direitos laborais e sociais existentes. Além disso, gera condições injustas de concorrência para as empresas que classificam corretamente os seus trabalhadores e tem implicações nos sistemas de relações laborais dos Estados-Membros, na sua base tributável e na cobertura e sustentabilidade dos seus sistemas de proteção social. – A fim de combater o falso trabalho independente em plataformas digitais e facilitar a determinação do estatuto profissional correto das pessoas que trabalham em plataformas digitais, os Estados-Membros deverão dispor de procedimentos adequados para prevenir e eliminar a classificação incorreta do estatuto profissional das pessoas que nelas trabalham. 14. No caso em apreço, tendo em conta que a relação jurídica estabelecida entre os respetivos sujeitos se iniciou em data anterior à da entrada em vigor do art. 12.º-A, do CT (o que teve lugar em 01.05.2023, como preceitua o art. 37º da sobredita Lei n.º 13/2023), o TRL entendeu que esta norma é inaplicável ao caso dos autos. Não acompanhamos esta conclusão, pelas razões que se passam a expor. 15. Sobre a aplicação das leis no tempo há a considerar, desde logo, os princípios gerais constantes do art. 12º do Código Civil, que tem o seguinte teor: “1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que, lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. 2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”. Especificamente sobre a matéria ora em discussão no recurso, atinente à aplicação no tempo do art. 12.º-A, do CT, rege o art. 35º da referida Lei n.º 13/2023: “Ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho, com a redação dada pela presente lei, os contratos de trabalho celebrados antes da entrada em vigor desta lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações anteriores àquele momento”. No essencial, esta disposição legal encontra-se alinhada com o disposto no art. 7º da Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro, relativo à aplicação no tempo do Código do Trabalho de 2009 [“Sem prejuízo do disposto no presente artigo e nos seguintes, ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho aprovado pela presente lei os contratos de trabalho (…) celebrados ou adotados antes da entrada em vigor da referida lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento”], afigurando-se-nos que aos segmento finais destas duas norma, pese embora a diferente técnica legislativa (onde agora se diz “… anteriores àquele momento”, dizia-se antes “… totalmente passados anteriormente àquele momento”), deverá ser atribuído o mesmo sentido. 16. Incontornavelmente, sobre esta matéria, refere Joana Nunes Vicente17: “[A] norma relativa à presunção de laboralidade não é uma norma que diretamente disponha sobre requisitos de validade nem sobre o conteúdo ou sobre os efeitos de uma situação jurídica contratual. A presunção de laboralidade vai incidir sobre factos que condicionam a qualificação jurídica de uma dada relação jurídica, à qual irá depois corresponder, de facto, uma determinada disciplina jurídica. Do funcionamento da presunção infere-se precisamente um facto presumido complexo ou um conjunto de factos presumidos – os elementos constitutivos da noção de contrato de trabalho: a atividade, a retribuição e a subordinação jurídica – que permitem a qualificação da relação em causa como uma relação de trabalho subordinado”. Na verdade, in casu não estão em discussão as condições de validade das relações jurídicas estabelecidas entre as partes, nem, sequer, os efeitos jurídicos de factos/situações (totalmente) anteriores à entrada em vigor da lei nova. Do que se trata é – relativamente a cada um dos autores – de determinar as regras em função das quais se afere a qualificação jurídica de dada situação (jurídica), traduzida na prestação duradoura de uma atividade produtiva, situação que, no tocante a todos eles, perdurou para além do momento da entrada em vigor da Lei n.º 13/2023. Nesta perspetiva, sobre a aplicação no tempo das normas relativas às presunções legais, Baptista Machado sustenta que, em geral, “elas se aplicam diretamente aos atos ou aos factos aos quais vai ligada a presunção e que, portanto, a lei aplicável é a lei vigente ao tempo em que se verificarem esses factos ou atos (…) com ressalva apenas daquelas hipóteses em que uma presunção legal (…) se refira aos pressupostos de uma SJ [situação jurídica] inteiramente nova (…)”18. Deste modo, encontrando-se em causa relações jurídicas duradouras (como acontece nas situações reportadas nos autos), nada obsta, e tudo aconselha, a que aos diferentes factos praticados em execução do conjunto de cada programa contratual sejam aplicáveis as normas concernentes a presunções de laboralidade que estejam em vigor à data da respetiva produção. Com efeito, se com a presunção de laboralidade apenas se visa facilitar a qualificação jurídica das situações de fronteira entre o trabalho autónomo e o trabalho subordinado, e sabido que com ela não se produz qualquer alteração dos princípios relativos à distribuição da prova, mas (com base em imperativos de verdade/justiça material e de combate à dissimulação do contrato de trabalho e à precariedade) o mero aligeiramento do ónus que sobre o trabalhador impende neste âmbito19, não se vislumbram quaisquer razões de segurança/estabilidade jurídica – e muito menos de salvaguarda de eventuais direitos adquiridos ou de proteção da confiança – que determinantemente imponham diversa solução. Nas palavras de Monteiro Fernandes, “afigura-se difícil aceitar que um instrumento destinado a potenciar as probabilidades de [a] verdade material ser captada e juridicamente enquadrada possa constituir fator de desequilíbrio no desenvolvimento de qualquer litígio em que essa qualificação esteja em causa”20. É certo que, nesta matéria, o Supremo Tribunal de Justiça tem limitado a aplicação da lei nova aos casos em que, após o início da sua vigência, o vínculo obrigacional estabelecido entre as partes se vai reconfigurando ao longo do tempo21. Mas, mormente no plano da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, não se vê que seja de exigir efetiva comprovação dessa reconfiguração, em especial em casos – como paradigmaticamente acontece nas plataformas digitais – em que, pelas próprias especificidades inerentes à atividade prestada, esta tem naturalmente associados elevados grau de heterogeneidade, atipicidade, aleatoriedade e fluidez [como de forma lapidar evidenciam os “Considerandos” da aludida Diretiva (UE) 2024/2831] que implicam a sua sucessiva reconstrução (Cfr. Ac. de 15.05.2025 desta Secção Social do STJ, Proc. n.º 1980/23.3T8CTB.C2.S1, já referido na nota de rodapé nº 1). Em suma, relativamente a relações jurídicas iniciadas antes da entrada em vigor do art. 12.º-A, do CT, a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital é aplicável aos factos enquadráveis nas diferentes alíneas do seu nº 1 que, no âmbito dessas relações jurídicas, tenham sido praticados posteriormente àquele momento (01.05.2023). (c) – Se os factos provados impõem presumir a existência de um contrato de trabalho. 17. Nos termos do nº 1 do art. 12.º-A, do CT, “(…) presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital, se verifiquem algumas das seguintes características: a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela; b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade; c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica; d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma; e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta; f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.” 18. Esta presunção aplica-se “independentemente da denominação que as partes tenham atribuído ao respetivo vínculo jurídico” (n.º 3 do mesmo artigo) e “pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata” (n.º 4). 19. Para aferir da concreta (in)verificação de cada uma destas alíneas, há que fazer apelo aos elementos interpretativos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica, na sua interligação com o sentido literal da lei, o qual, como se sabe, tem a dupla função de ponto de partida e de limite da interpretação22. Na verdade, conforme emerge do art. 9º, do Código Civil, embora a interpretação não deva cingir-se à letra da lei, “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”; e, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. Contudo, frequentemente, como se sabe, a resolução dos casos jurídicos não se compadece com a mera aplicação mecânica/esquemática de normas jurídicas (regras e princípios), ou seja, mediante puro silogismo. Com efeito: A linguagem jurídica comporta zonas de significado claro – que suscitam acordo quanto ao sentido de determinado termo ou conceito, bem como no tocante às consequências jurídicas que lhe estão associadas –, a par de espaços de penumbra, aos quais respetivamente correspondem os chamados casos claros/fáceis, que apenas apelam a elementos semânticos, fácticos e lógicos, e, por outro lado, os casos duvidosos/difíceis, que se reconduzem basicamente a três tipos: i) imprecisão (ou indeterminação em sentido lato), traduzida no uso de termos vagos ou não claros (i.e., ambiguidade, que é uma questão linguística/semântica) ou de conceitos indeterminados (que exprimem a “textura aberta” do direito e se situam no plano concetual); ii) lacunas; iii) antinomias. Há um largo consenso na doutrina quanto ao facto de o modelo de racionalidade (crítica) subjacente à interpretação e aplicação do direito não se esgotar em valorações objetivas e mecanismos lógico-dedutivos (puramente formais, lineares e fechados), incluindo antes, nos casos “difíceis”, uma problematização argumentativa das questões que – nalgumas das premissas invocadas – não dispensa mesmo o apelo (pré-lógico) a standards/critérios valorativos que não são adquiridos por via axiomática (i.e., por via meramente dedutivo-analítica). Em primeira linha, as decisões jurídicas devem apoiar-se em valorações extraídas de normas e princípios jurídicos (e não em valorações próprias/subjetivas do próprio aplicador do Direito), como o impõem as exigências contidas nos princípios da legalidade, da igualdade (que impõe o igual tratamento de situações fundamentalmente iguais) e também da separação de poderes. Mas – sem ultrapassar os limites ainda consentidos pelo elemento literal – nada impede o necessário recurso a valorações fundadas nas circunstâncias históricas e sociais que estão na génese da lei ou nas suas finalidades e objetivos (ratio legis), procedimento ainda orientado e limitado pela norma e, nessa medida, a ela vinculado. Nesta perspetiva, traduzindo (como já mencionado) o corpo normativo ora em questão o empenhamento do legislador e das instituições da União Europeia em combater o falso trabalho independente em plataformas digitais e as inerentes relações laborais encobertas, bem como, conexamente, facilitar a determinação do real estatuto profissional das pessoas que trabalham nessas plataformas, não pode deixar de assumir-se – como pano de fundo da abordagem do caso sub judice – que o legislador, ao exprimir o seu pensamento, consagrou as soluções mais consentâneas com as finalidades visadas no tocante às situações paradigmáticas em questão. Posto isto. 20. Quanto à alínea a). Neste âmbito, há a considerar, em especial, os pontos nº 14 a 19, 35 a 40, 44, 46 a 48, 50 e 51 da matéria de facto. Resulta daqui que o valor auferido pelo estafeta é verdadeira e essencialmente determinado pela ré (ou pela plataforma pela mesma detida), que pré-define os fatores em que radica a fixação desses valores, sem qualquer possibilidade de negociação real e igualitária entre as partes, como é típico do trabalho autónomo. A isto não obsta o facto de o trabalhador ser pago “à peça”. Para além de esta forma de cálculo da retribuição se reconduzir, no fundo, a uma forma modificada do salário por tempo, a retribuição pode ser calculada em função de outros fatores, como o rendimento do trabalhador (retribuição variável). Aliás, apesar de na norma em apreço não se encontrar previsto o pagamento “com determinada periodicidade de uma quantia certa” (ao contrário do que sucede com a alínea d) do art. 12º do CT), a verdade é que o estafeta em causa era pago, em regra, com uma periodicidade quinzenal (cfr. pontos nº18 e 36, 37 da factualidade assente). Também não é de valorizar a circunstância de o estafeta poder alterar o valor base dos serviços mediante a aplicação de um multiplicador, uma vez que esta ferramenta era disponibilizada pela própria ré e dentro dos limites por esta fixados. Quanto ao facto de o estafeta poder aceitar ou rejeitar os pedidos na aplicação (ponto nº 50 da matéria de facto) – faculdade que, tendo em conta a fragilidade económica da generalidade destes profissionais, não passará, na maior parte das situações, de uma liberdade meramente abstrata e formal, sem efetivo exercício – tal não envolve, nem se confunde, com a negociação ou fixação da retribuição, pelo que não assume qualquer relevo no âmbito da matéria em apreço. Como pertinentemente nota o Acórdão do TRG de 24.04.2025, infracitado, “seria como dizer que um trabalhador que dá uma falta injustificada, ou recusa fazer trabalho suplementar, intervém por isso na determinação do valor da sua retribuição”. Encontra-se preenchida, pois, a previsão normativa da alínea a). 21. Quanto às alíneas b) e c). Estas alíneas têm um conteúdo que apresenta fortes e evidentes conexões, uma vez que o poder de direção se encontra indissociavelmente imbrincado com os poderes de controlo e supervisão, pelo que serão apreciadas conjuntamente. Quanto à alínea b), uma vez que, rigorosamente, o poder de direção é um elemento essencial do contrato de trabalho [tal como o exercício do poder disciplinar, referido na alínea e)], e não um indício de subordinação, limitar-nos-emos a aferir se a ré determina regras específicas ao estafeta (nomeadamente, as elencadas nesta alínea). Como nota Leal Amado23: “[A]ludir, na base da presunção, como elemento indiciário do qual se infere (…) a existência de um contrato de trabalho, ao exercício de “poder de direção” (al. b) e de “poder disciplinar” (al. e) por parte da plataforma digital, constitui uma autêntica petição de princípio (…). Ora, convenhamos, se o prestador de atividade provar que a plataforma digital exerce sobre ele tanto o poder de direção como o poder disciplinar não parece que tenha nada mais a provar para que o tribunal conclua, diretamente e sem dar um salto no desconhecido, que está perante um contrato de trabalho. Não há, aqui, qualquer ilação, o que há é um mero raciocínio circular.». Na mesma perspetiva, vide Maria do Rosário Palma Ramalho, ob. cit., II, pp. 61 – 62. Nesta parte, e para além da factualidade assente em matéria de pagamento do preço devido ao estafeta, há a considerar, em especial, os pontos nº 9, 20, 21 e 22 da matéria de facto, daqui resultando que, no concreto desenvolvimento da sua atividade, o estafeta tem de observar vários procedimentos padronizados instituídos pela ré, decorrentes de “regras específicas” definidas por esta relativamente a todo o ciclo produtivo inerente ao seu negócio, desde logo quanto à forma de prestar o serviço e ao pagamento da retribuição. Quanto à alínea c), há a considerar, fundamentalmente, os pontos nº 23, 24, 25, 26, dos quais emerge que a ré, através da sua aplicação (App) e do GPS nela integrado, tem acesso imediato e instantâneo à prestação profissional do estafeta, desta forma controlando e supervisionando a sua atividade em tempo real – pelo menos, tem a possibilidade de o fazer, sendo que o preenchimento desta previsão normativa não exige que o faça efetivamente. Encontram-se preenchidas, pois, ambas as alíneas. 22. Quanto à alínea e). Como já se referiu, sendo também o “poder disciplinar” um elemento essencial do contrato de trabalho (como, por definição, a generalidade dos “poderes laborais”), e não um mero indício de subordinação, cumpre tão somente aquilatar da possibilidade de “exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta”, elemento que se encontra inequivocamente comprovado, desde logo em face do ponto nº 28. 23. Quanto à alínea f). Perpassa do conjunto da matéria de facto [maxime, pontos nº 42 (uso da aplicação da Glovo instalada no telemóvel) e 54] que é detida e explorada pela R. a aplicação informática (e todo o demais software a ela associado) que – enquanto intermediária tecnológica no processo de transmissão dos dados relativos aos pedidos formulados pelo utilizador/cliente – é o instrumento de trabalho (absolutamente) essencial do estafeta, uma vez que toda a sua atividade está condicionada pela efetiva ligação/conexão a esta ferramenta digital. Sendo certo que a lei não exige que os equipamentos e instrumentos de trabalho pertençam (ou sejam explorados) exclusivamente à plataforma digital – entendida como pessoa coletiva detentora da App (cfr. nº 2 do art. 12º-A) –, bastando a sua essencialidade, encontra-se preenchida, pois, a previsão legal. Em sentido contrário à verificação deste elemento, argumenta v.g. Acórdão de 16.01.2025 do TRE, Proc. nº 3848/23.4T8PTM.E1, que, “se fosse suficiente para a verificação da característica que a ré gerisse uma aplicação informática, então seria redundante a existência desta característica, pois a própria atividade em causa, trabalho em plataforma digital, já conteria o requisito/caraterística da alínea f)”. Não acompanhamos este entendimento, uma vez que a plataforma digital, que é uma pessoa (coletiva), não se confunde com a aplicação informática que constitui o substrato da sua atividade empresarial. Acresce que as plataformas digitais não têm de recorrer necessariamente a uma App, podendo, em vez disso, limitar-se a usar, por exemplo, um sítio da internet, como expressamente prevê o sobredito nº 2 do art. 12º-A do CT. E, por fim, refira-se que esta alínea não excluiu a possibilidade de o estafeta (também) utilizar instrumentos de trabalho próprios. 24. Em suma, encontram-se preenchidos os elementos previstos nas alíneas a), b), c), e) e f). Neste sentido, v.g. Acs. da Relação de Guimarães de 24.04.2025, Proc. nº 3/24.0T8BRG.G2 [alíneas a), b), c), e e)], e de 08.05.2025, Procs. nº 7559/23.2T8VNF.G1 [alíneas a), b) e e)], nº 2837/23.3T8VRL.G1 [alíneas a), b), c), e) e f)] e nº 7564/23.9T8VNG.G2 [alíneas a), b), c) e e)]; da Relação de Lisboa de 05.12.2024, Proc. nº 4306/23.2T8VFX.L1-4 [alíneas a), e) e f)]; da Relação de Coimbra de 11.12.2024, Proc. n.º 5075/23.1T8VIS.C1 [alíneas a), b), c), e) e f)]; e o já mencionado acórdão da Relação de Évora de 16.01.2025 [alíneas a), b), e e)]. (d) – Se, em face dos elementos em contrário, deve considerar-se ilidida a presunção de laboralidade. 25. A presunção legal implica a inversão do ónus da prova, ficando o trabalhador dispensado de fazer a prova dos elementos constitutivos da relação laboral (art. 350º, nº 1, do C. Civil), embora seja admitida prova em contrário para a ilidir (nº 2 do mesmo artigo), mediante a prova pela contraparte de “factos positivos excludentes da subordinação”24, ou seja, da existência de trabalho autónomo ou da falta de qualquer elemento essencial do contrato de trabalho.25 Elementos que, à luz do art. 11º, do CT, são: i) obrigação de prestar uma atividade a outrem; ii) retribuição: e iii) subordinação jurídica. Prova em contrário consistente, numa formulação feliz de um Acórdão do TRL de 11.02.2015, citado por Milena da Silva Rouxinol e Teresa Coelho Moreira,26 na ocorrência de (contra)indícios que, “pela quantidade e impressividade, imponham a conclusão de se estar perante outro tipo de relação jurídica”. Explicitando o seu pensamento sobre o funcionamento desta presunção, referem ainda as mesmas autoras:27 «Importa assinalar as diferenças que permitem distinguir o método indiciário do presuntivo. Com efeito, não obstante os elementos constantes das diversas alíneas do art. 12º serem, frequentemente, chamados de indícios (…) as duas técnicas (…) devem (…) distinguir-se. Sobretudo, digamo-lo claramente, se a presunção de laboralidade for aplicável, então terá de o ser em termos tais que, metodologicamente, o processo qualificativo se distinga, realmente, do subjacente ao método indiciário. (…) [À] consagração da presunção de laboralidade subjaz uma intenção político-legislativa, de resto em linha com preocupações crescentemente manifestadas no plano internacional e europeu: em última análise, facilitar a demonstração do carácter laboral das relações jurídicas entre o prestador da atividade a outrem e o respetivo credor – o que se traduz no reforço do combate aos “falsos recibos verdes” e, bem assim, ao aclaramento de uma mais significativa área cinzenta. Em vista da concretização dessa intenção político-legislativa, impõe-se ao julgador firmar o resultado a que a presunção conduza, logo que verificados dois ou mais dos elementos enumerados no art. 12º, nº 1. Por certo que não se põe em causa (…) a necessidade de o julgador apreciar, a título de indícios de autonomia, os elementos que lhe sejam apresentados [para ilidir a presunção] (…). Nesse sentido, isto é, por força dos elementos de facto levados ao processo pela parte interessada na demonstração de que o contrato não tem natureza laboral, (…) o julgador será chamado a apreciá-los enquanto (…) indícios de sinal contrário aos elementos que hajam feito funcionar a presunção e firmar, prévia, embora provisoriamente, a natureza laboral do contrato. Numa palavra, a apreciação de índole tipológica própria do (…) método indiciário ocorrerá, então, se e na medida em que o sujeito a quem caiba iludir a presunção leve ao processo elementos passíveis de a abalar. A análise dos mesmos, em correlação com os elementos também provados e capazes de a fazer operar, determinará se são ou não suficientes para se ter como demonstrado o contrário do que se presumira.» 26. In casu, em seis elementos possíveis, estão assentes cinco índices da presunção de laboralidade em causa. Para além desta significativa expressão quantitativa, acresce que estão verificados os índices de subordinação previstos nas alíneas b) e c), que são especialmente fortes28, uma vez que os poderes de direção, supervisão e controle são elementos essenciais da relação laboral. Ponderado o conjunto dos factos provados, afigura-se-nos que não é possível afirmar – em termos inequívocos, como se impunha – que a relação estabelecida entre as partes não reveste natureza laboral. Sendo certo que a qualificação de determinada situação jurídica exige sempre uma abordagem holística, em que todos os factos e circunstâncias relevantes são tidos na devida conta, a favor de uma relação de trabalho subordinado, há a considerar no caso vertente, desde logo, uma forte inserção do estafeta na organização algorítmica da R. [v.g. nºs 4, 5, 6, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 17, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 31, 32, 33, 34, 35, 37 a 40, 41, 42 (uso da aplicação da Glovo instalada no telemóvel), 46, 51 e 54 da matéria de facto], encontrando-se o mesmo, inclusivamente, enquanto elemento do respetivo serviço de entregas, abrangido por um seguro de acidentes pessoais (nº 6 da matéria de facto). Especial relevo assume a circunstância de, como já se referiu, ser detida e explorada pela R. a aplicação informática e todo o demais software a ela associado, App que, repete-se, é o instrumento de trabalho essencial do estafeta: toda a sua atividade está condicionada pela efetiva ligação/conexão a esta ferramenta digital. Ainda no sentido da subordinação, há também a considerar o facto de o estafeta não ter qualquer obrigação de resultado para com a contraparte, bem como a circunstância de ele não assumir algum risco financeiro ou económico. Neste contexto, não assume relevo decisivo o facto de o estafeta escolher a área em que trabalha, poder recusar serviços e conectar-se/desconectar-se da aplicação quando o entenda, sem ter de cumprir qualquer horário predefinido, nem de cumprir qualquer limite mínimo de tempo de disponibilidade, ou, especificamente, que, em 2023, o estafeta, entre fevereiro e maio de 2023, tenha estado alguns dias sem se ligar à plataforma, porque viajou para a Índia (nº 56 dos factos provados). Como também já se mencionou: a existência de um horário de trabalho não é elemento essencial do contrato de trabalho, tal como nada obsta a que o trabalhador seja pago “à peça”; e também não é de valorizar a circunstância de o estafeta poder alterar o valor base dos serviços mediante a aplicação de um multiplicador, uma vez que esta ferramenta era disponibilizada pela própria ré e dentro dos limites por esta fixados. Do mesmo modo, não assume relevo decisivo a circunstância de, “para além desta atividade, entre 2020 e abril de 2024, AA [ter trabalhado] desde Portugal, para uma empresa de call center, com sede em Inglaterra (nº 45 dos factos provados), pois, como se sabe, nem a exclusividade, nem a dependência económica, são elementos essenciais do contrato de trabalho. O mesmo acontece quanto ao ponto nº 55 da matéria de facto (possibilidade de ceder ou subcontratar, total ou parcialmente, os direitos e obrigações decorrentes do uso da Plataforma, mediante comunicação prévia e por escrito à ré, que pode rejeitar a pessoa proposta), desde logo na medida em que não se provou que o estafeta, apesar de o poder fazer, alguma vez tenha efetivado tal faculdade, ou que se tenha feito substituir por alguém. Com efeito, quanto ao modus operandi (abstratamente) alegado pelas plataformas que se revele mais típico do trabalho autónomo, impõe-se sempre certificar se isso realmente acontece na prática, como notam João Leal Amado e Teresa Coelho Moreira29. Por outro lado, se a lei estipula que as restrições à autonomia do prestador de atividade no plano organizativo – mormente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos ou à escolha dos clientes – fazem presumir o vínculo laboralidade [alínea d) do nº 1 do art. 12º-A], parece poder concluir-se que a ausência destas restrições, embora obstando ao funcionamento da presunção, não impedirá, só por si, o reconhecimento de um contrato de trabalho. Vale dizer que neste âmbito não são fatores decisivos.30 Independentemente da margem de liberdade reconhecida ao estafeta em causa no exercício da sua atividade, a verdade, como já demonstrado, é que esta é desenvolvida num quadro de regras específicas definidas pela empresa, a qual – nos termos que tem por adequados e consentâneos com a prossecução do seu modelo de negócio – também controla e supervisiona a atuação da contraparte, ou tem essa possibilidade, tal como tem a possibilidade de exercer o poder disciplinar, mediante a suspensão ou desativação da respetiva conta. Dir-se-á que a possibilidade de a R. resolver o contrato e desativar a conta não permite concluir pela existência de um poder disciplinar, em virtude de o poder de resolução, em caso de violação de cláusula contratuais, ser facultado a qualquer contratante. É certo que em qualquer contrato as partes gozam do direito à respetiva resolução. Mas, no âmbito do contrato de trabalho, a resolução contratual em que se traduz o despedimento por justa causa, corporiza e pressupõe, precisamente, o exercício do poder disciplinar. Tudo a sugerir, pois, que, nesta medida, o estafeta em causa igualmente se encontrava sujeito à autoridade da R., cabendo aqui recordar que a subordinação pode ser meramente potencial, não sendo necessário que se traduza em atos de autoridade e direção efetiva, como aprofundadamente se referenciou em supra nº 11. O conjunto de factos provados que de forma mais nítida aponta no sentido de uma relação de trabalho autónomo não é desvalorizável. Mas, para além de tudo o que já antes ficou dito, impõe-se ter presente que (com maior ou menor expressão) tais elementos são os habitual e tipicamente verificados no plano das relações estabelecidas entre os estafetas e as empresas detentoras de plataformas digitais, elementos já oportunamente ponderados pelo legislador nacional – bem como pelas instâncias e vários países da União Europeia – e que não obstaram à introdução da presunção de laboralidade em apreço no ordenamento jurídico, a qual foi consagrada nos termos tidos por mais adequados e que são obrigatórios para os tribunais. Ainda assim, só por si, os elementos característicos da autonomia não assumem implicações determinantes, tendo em conta, desde logo, como acima se referiu, que nos situamos num “campo privilegiado para relações de trabalho pouco claras, ambíguas ou encobertas”, no qual o recurso a cláusulas contratuais com características de autonomia se encontra com frequência associado a falsos recibos verdes e ao abuso do estatuto de trabalhador independente, flagelo que as presunções de laboralidade legalmente previstas visam em grande medida combater. Reconhecendo-se que os factos assentes não permitem considerar comprovada a subordinação jurídica em termos totalmente irrefutáveis, a verdade é que, como flui de tudo o já exposto, a R. não logrou provar factos que, “pela quantidade e impressividade, imponham a conclusão de se estar perante outro tipo de relação jurídica”, como lhe competia (cfr. supra nº 25), resultando antes dos autos uma realidade que, nos seus aspetos nucleares, não se afasta das situações paradigmaticamente contempladas no art. 12º-A do CT. Vale dizer que a recorrida não logrou ilidir a presunção de laboralidade, impondo-se, por conseguinte, concluir pela existência de um contrato de trabalho entre a R. e o estafeta em causa. Procede, pois, a revista. V. 27. Em face do exposto, concedendo a revista, acorda-se, revogando o acórdão recorrido, em reconhecer a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre AA e a ré, desde 19.07.2021. Custas da revista, bem como nas instâncias, a cargo da recorrida. Lisboa, 03.10.2025 Mário Belo Morgado, relator Domingos Morais Júlio Manuel Vieira Gomes _____________________________________________ 1. Como foi entendido na 1ª Instância, ao contrário do Tribunal da Relação, que considerou inaplicável ao caso dos autos o art. 12.º-A do CT, atenta a data do início da relação jurídica.↩︎ 2. Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, Almedina, 1994, p. 125.↩︎ 3. Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 9ª edição, 2023, p. 26.↩︎ 4. Ibidem.↩︎ 5. Direito do Trabalho, 22ª edição, 2023, p. 131.↩︎ 6. Ibidem, p. 133.↩︎ 7. Cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, ob. cit., p. 42.↩︎ 8. Cfr. Rui Assis, O poder de direção do empregador, Coimbra Editora, 2005, pp. 44 e 176.↩︎ 9. Ibidem pp. 176 – 177, invocando Alain Supiot.↩︎ 10. Direito do Trabalho, Volume I, Relações Individuais de Trabalho, Almedina, 2007, p. 108.↩︎ 11. Ibidem, p. 113.↩︎ 12. Maria do Rosário Palma Ramalho, ob. cit., p. 39.↩︎ 13. Ibidem.↩︎ 14. Ob. cit., pp. 137 – 140.↩︎ 15. Delimitação do Contrato de Trabalho e Presunção de Laboralidade no Código do Trabalho – Breves Notas, in “Trabalho Subordinado e Trabalho Autónomo: Presunção Legal e Método Indiciário”, Seleção Formação Inicial do CEJ, p. 72, https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=WqLyWKW1e10%3d&portalid=30↩︎ 16. A Diretiva dispõe no seu art. 5º, sob a epígrafe “Presunção legal”: 1. A relação contratual entre uma plataforma de trabalho digital e uma pessoa que trabalha em plataformas digitais através dessa plataforma é legalmente presumida como uma relação de trabalho quando se verificarem factos que indiciem a direção e o controlo, nos termos do direito nacional, das convenções coletivas ou das práticas em vigor nos Estados-Membros e tendo em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça. Se a plataforma de trabalho digital pretender ilidir a presunção legal, cabe à plataforma de trabalho digital provar que a relação contratual em causa não constitui uma relação de trabalho, tal como definida pelo direito, por convenções coletivas ou pelas práticas em vigor nos Estados-Membros, tendo em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça. 2. Para efeitos do n.º 1, os Estados-Membros estabelecem uma presunção legal ilidível eficaz de uma relação de trabalho que constitua uma facilitação processual em benefício das pessoas que trabalham em plataformas digitais. Além disso, os Estados-Membros asseguram que a presunção legal não tem por efeito aumentar o ónus dos requisitos para as pessoas que trabalham em plataformas digitais, ou para os seus representantes, nos processos para determinar o seu estatuto profissional correto. (…) 6. No que diz respeito às relações contratuais que entraram em vigor antes de 2 de dezembro de 2026 e que estejam ainda em vigor nessa data, a presunção legal prevista no presente artigo só é aplicável ao período iniciado a partir dessa data.↩︎ 17. Código do Trabalho – Revisão de 2009, Coimbra Editora, 2011, pp. 70 – 71.↩︎ 18. Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Almedina, Coimbra, 1968, pp. 274-275.↩︎ 19. Cfr. Joana Nunes Vicente, loc. cit., p. 62.↩︎ 20. Uma jurisprudência consolidada: a presunção de laboralidade - Revista de Estudos Laborais | Ano IX - I da 4.ª Série - N.º 1 (2019) -, p. 247.↩︎ 21. V.g. Acs. de 19.06.2024, Proc. nº 368/22.8T8VRL.S1, e de 15.01.2025, Proc. nº 751/21.6T8CSC.L1.S1.↩︎ 22. Sobre a “tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal” (nas palavras do acórdão do STJ de 04.05.2011, Proc. n.º 4319/07.1TTLSB.L1.S1), v.g. Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª edição, pp. 439-489, e Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª edição, 2000, Coimbra, pp. 175-192.↩︎ 23. Supremo Tribunal de Justiça, XII COLÓQUIO DE DIREITO DO TRABALHO, OS NOVOS DESAFIOS DO DIREITO DO TRABALHO, Novembro 2022, p. 124, https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2024/02/livro-digital-direito-do-trabalho-2022.pdf↩︎ 24. Na expressão de Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 22ª edição, p. 155.↩︎ 25. Cfr. ainda Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 9ª edição, p. 53.↩︎ 26. Direito do Trabalho, Relação Individual, 2ª edição, Almedina, 2023, p. 100.↩︎ 27. Ibidem, pp. 98 – 99.↩︎ 28. Cfr. Milena da Silva Rouxinol e Teresa Coelho Moreira, ob. cit., pp. 118 – 119.↩︎ 29. As plataformas digitais, a presunção de laboralidade e a respetiva ilisão: nótula sobre o Acórdão da Relação de Évora, de 12/09/2024, https://observatorio.almedina.net/index.php/2024/10/08/as-plataformas-digitais-a-presuncao/↩︎ 30. Nesta perspetiva, a propósito da “cláusula de substituição”, cfr. João Leal Amado e Teresa Coelho Moreira https://observatorio.almedina.net/index.php/2024/12/02/estafetas-a-presuncao-a-ilisao-e-o-equivoco-da-substituicao/↩︎ |