Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
197/09.4TYVNG-BI.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: APELAÇÃO
CONCLUSÕES
FALTA DE CONCLUSÕES
Apenso:
Data do Acordão: 06/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :

I- O legislador prevê duas hipóteses de “anomalias” respeitantes às alegações de recurso e suas conclusões: a ausência e a deficiência (em sentido amplo). Quando o requerimento para recurso não contenha alegações ou estas não apresentem conclusões, a consequência é o seu indeferimento, nos termos do artigo 641º, n.º 2, alínea b). Quando as conclusões apresentadas forem deficientes, obscuras, complexas, deve o recorrente ser convidado a corrigir essas anomalias, nos termos do artigo 639.º, n.º 3 do CPC.


II- A hipótese de o recorrente repetir nas conclusões da apelação a quase totalidade do que disse no corpo das alegações não pode ser apreciada em termos simplistas e puramente formais, equiparando tal situação à de ausência total ou real de conclusões, porque tal tese não tem o mínimo apoio na letra da lei. O que a lei exige é que as conclusões sejam, em si mesmas, uma indicação sucinta dos fundamentos (sendo indiferente o grau ou percentagem de reprodução do que o recorrente já afirmou), porque essa síntese conclusiva delimita o objeto do recurso, nos termos do artigo 635.º, n.º 4 do CPC, e permite, tanto ao julgador como à contraparte, a inequívoca apreensão das pretensões do recorrente.


III- Se o recurso apresenta alegações e se o respetivo conteúdo não apresenta anomalias, sendo, portanto, facilmente percetível qual a pretensão normativa do recorrente, não existirá fundamento legal para a sua rejeição, havendo, pois, que conhecer do objeto do recurso.

Decisão Texto Integral:







Processo n.º 197/09.4TYVNG-BI.P1.S1


Recorrente: AA


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


1. AA, administrador judicial nomeado no processo de insolvência da sociedade “MATEACE, S.A.”, foi destituído por decisão (de 31.05.2011) proferida no apenso F, tendo sido nomeado, em sua substituição o administrador BB (com decisão transitada em julgado).


2. O novo administrador da insolvência instaurou (em 28.10.2019) o presente apenso de prestação de contas, no qual concluiu, além do mais, que:


«Considerando-se os valores constantes do mapa de presentação de contas anexo, resulta que o Administrador de Insolvências substituído, Dr. AA, deverá proceder à restituição à massa insolvente, os seguintes montantes:


- € 15.471,31, correspondente ao saldo da conta de gestão da insolvente ainda na sua posse;


- € 79.514,03, referente à remuneração pela gestão de estabelecimento indevidamente retirada das contas da massa insolvente.»


3. Veio a ser proferida decisão (21.09.2022), onde se decidiu, além do mais, como se extrata:


«(…) dado que não foi apresentada qualquer contestação, julgo boas as contas apresentadas pelo/a Administrador/a da Insolvência.


Mais deve o administrador substituído, Dr. AA, no prazo de 10 dias, proceder à restituição do montante global de €108.181,95, mediante transferência bancária (…)».


4. O administrador judicial substituído (AA) interpôs recurso de apelação contra essa decisão.


5. Por despacho de 19.05.2023, o valor da presente causa foi fixado em 108.181,95 Euros.


6. O TRP entendeu que o recurso não apresentava conclusões, dado que, sob essa epígrafe, o recorrente se limitava a reproduzir o corpo das alegações. E, por decisão singular, de 07.07.2023 (antecedida do despacho previsto no art.º 655.º do CPC), estatuiu o seguinte:


«(…) profere-se singular, ao abrigo do disposto nos artigos 652º, n. 1, al. b) do CPC, de rejeição do recurso interposto pelo Apelante, em conformidade com o disposto nos artigos 641º, n.º 2, al. b) e 652º, n.º 1 al. b), ambos do CPC.»


7. O recorrente pediu a intervenção da Conferência, a qual veio a proferir acórdão, em 12.09.2023, no sentido de confirmar a decisão singular (embora com um voto de vencido).


8. Contra esse acórdão, vem o apelante interpor recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:


«1. O presente recurso é admissível nos termos do artigo 14 n.º 1 do CIRE, porquanto o presente acórdão está em oposição com os seguintes doze acórdãos do STJ de:


09/07/2015 (proc. nº 818/07.3TBAMD.L1.S1), relator Abrantes Geraldes;


13/10/2016 (proc. nº 5048/14.5TENT-A.E1.S1), relator Oliveira Vasconcelos;


25/05/2017 (proc. nº 2647/15.1T8CSC.L1.S1), relatora Ana Paula Boularot:


06/07/2017 (proc. nº 297/13.6TTTMR.E1.S1), relator Júlio Gomes;


13/07/2017 (proc. nº 6322/11.8TBLRA-A.C2.S1), relator Fonseca Ramos;


27/11/2018 (proc. nº 28107/15.2T8LSB.L1.S1), relator Júlio Gomes;


19/12/2018 (proc. nº 10776/15.5T8PRT.P1.S1),relator Henrique Araújo;


07/03/2019 (proc. nº 1821/18.3T8PRD-B.P1.S1), relatora Rosa Tching;


02/05/2019 (proc. nº 7907/16.1T8VNG.P1.S1), relator Bernardo Domingos;


16/12/2020 (proc. nº 2817/18.0T8PNF.P1.S1), relator Tomé Gomes;


30/03/2023 (proc. n.º 351/16.2T8CTB.C1.S) relator Maria Olinda Garcia;


que no domínio da mesma legislação consideraram que a circunstância de, em sede de conclusões, o recorrente reproduzir a motivação constante da alegação propriamente dita não configura um caso de falta absoluta de conclusões, não podendo, por isso, o recurso ser rejeitado de imediato, antes devendo ser proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento, com fundamento na apresentação de conclusões complexas ou prolixas.


2. O acórdão recorrido decide em sentido totalmente diverso da jurisprudência UNÂNIME DO STJ;


3. As alegações de recurso interpostas pelo apelante continham 25 conclusões, que correspondem de facto a formulações conclusivas e não a meras considerações.


4. As conclusões apresentadas não defraudam o Tribunal de Recurso e cumprem os ónus de explanar os motivos pelos quais se pretende que o Tribunal ad quem modifique a decisão proferida e de identificar as questões suscitadas e os seus fundamentos essenciais.


5. O tribunal a quo não teve qualquer dificuldade na identificação das questões e dos fundamentos suscitados pela Recorrente, e isso só aconteceu porque não se encontra verificado o vício de falta de conclusões.


Sem prescindir, sempre se dirá que:


6. A equivalência que o acórdão recorrido faz, considerando não haver conclusões pelo facto delas serem a reprodução das alegações, é manifestamente excessiva e desproporcional.


7. Mesmo que se admita que a falta de concisão prejudica a delimitação do objeto da apelação – o que não aconteceu no caso em apreço - mormente quanto à configuração das questões suscitadas, sempre se imporá o convite à recorrente para aperfeiçoar as suas conclusões.


8. A orientação jurisprudencial. UNANIME - que vem sendo consolidada no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA tem sido “no sentido de que a circunstância de, em sede de conclusões, o recorrente reproduzir a motivação constante da alegação propriamente dita não configura um caso de falta absoluta de conclusões, não podendo, por isso, o recurso ser rejeitado de imediato, antes devendo ser proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento, com fundamento na apresentação de conclusões complexas ou prolixas”.


9. Assim se decidiu, entre outros, nos acórdãos, (todos consultáveis em www.dgsi.pt ) melhor identificados no artigo 1 das presentes conclusões e cujos sumários forma transcritos nas motivações


10. A douta decisão recorrida violou o disposto no artigo 639 do C.P.C.


Atento o exposto, deve o presente recurso ser julgado totalmente provado e procedente e, por conseguinte deve ser revogado o acórdão recorrido e substituído por um outro que:


A. Admita o recurso interposto pelo recorrente para o Tribunal da Relação por o mesmo se mostrar devidamente instruído com as competentes conclusões.


B. Subsidiariamente, ordene que o tribunal a quo profira despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões no sentido de lhes conferir maior concisão nos termos do artigo 639 n.º 3 do C.P.C.»


9. Após redistribuição dos autos no STJ, cabe ao presente coletivo apreciar a pretensão do recorrente.


*


II. FUNDAMENTOS


1. Admissibilidade e objeto da revista


O recorrente funda a admissibilidade da revista no artigo 14º do CIRE. Porém este regime de recurso de revista não tem aplicação ao caso concreto, porque o acórdão recorrido é proferido em apenso (de prestação de contas); e não no processo de insolvência.


Este é o sentido interpretativo do artigo 14.º do CIRE confirmado pelo AUJ n.º 13/2023, proferido no processo n. 3125/11.3TJCBR-B.C1.S1-A, publicado no Diário da República em 21.11.2023, cujo segmento uniformizador tem a seguinte formulação:


«A regra prevista no art. 14.º, n.º 1, do CIRE, restringe o acesso geral de recurso ao STJ às decisões proferidas no processo principal de insolvência, nos incidentes nele processado e aos embargos à sentença de declaração de insolvência.»


O erro quanto ao regime de recurso invocado pelo recorrente é, todavia, corrigível oficiosamente, nos termos do artigo 193º, n.º 3 do CPC, determinando-se que se sigam os termos processuais adequados. Assim, o recurso é admissível nos termos gerais – artigo 671.º, n.º 1 do CPC, dado que o acórdão recorrido põe fim ao processo.


Sobre a admissibilidade da revista neste tipo de hipóteses, veja-se, por exemplo:


- Acórdão do STJ, de 07.10.2020 (relator Abrantes Geraldes) no processo n. 1075/16.6T8PRT.P1.S1:
«
É admissível recurso de revista do acórdão da Relação que, com fundamento na falta de conclusões das alegações, não admite o recurso de apelação, ao abrigo do art. 641.º, n.º 2, al. b), do CPC, na medida em que, para todos os efeitos, tal acórdão põe termo ao processo por uma via formal equiparada à da absolvição da instância referida no n.º 1 do art. 671.º do CPC


O objeto da revista é o de saber se a decisão recorrida fez a correta aplicação do direito (concretamente do direito processual) ao rejeitar o recurso de apelação por entender que o apelante não havia apresentado conclusões.


2. Fundamentos de facto.


A factualidade relevante para a apreciação do presente recurso é a que já resulta do Relatório supra exposto.


3. O direito aplicável


3.1. A única questão a decidir é a de saber se a segunda instância fez a correta aplicação do direito ao rejeitar a apelação por entender que o recurso não tinha conclusões.


Entende o recorrente, em síntese, que as alegações da apelação continham 25 conclusões, correspondendo a formulações conclusivas e não a meras considerações; e que a equivalência que o acórdão recorrido faz, considerando não haver conclusões pelo facto de serem a reprodução das alegações, é excessiva e desproporcional, devendo, pelo menos, ser convidado a corrigi-las.


3.2. Da fundamentação da decisão recorrida extratam-se as seguintes passagem, que resumem o pensamento do tribunal recorrido:


«Compulsadas as alegações apresentadas pelo Apelante afigura-se-nos que o mesmo repete praticamente ipsis verbis o teor das alegações nas conclusões, ainda que com algumas nuances meramente irrelevantes atendendo ao quadro global das mesmas.


Depois de notificado da possibilidade de rejeição do recurso por tal motivo, vem sustentar que, se este Tribunal considerar que as conclusões não foram apresentadas como o deviam ser, o tribunal deverá dar cumprimento ao art. 639º nº 3 do CPC.


É caso para dizer que, para o Apelante, no processo civil os ónus processuais não recaem sobre as partes, uma vez que sustenta que o tribunal deve mandar corrigir as alegações de recurso, olvidando que o recorrente deve apresentar recurso observando devidamente o determinado no art 639º nº 1 do CPC, vigorando o princípio da auto-responsabilidade das partes.


A epígrafe do art. 639º do CPC menciona de forma lapidar - Ónus de alegar e formular conclusões -, não menciona apenas “ónus de alegar”, de modo que, se não fosse preciso sintetizar as alegações em conclusões finais, melhor seria que o legislador (não competindo tal tarefa ao julgador) eliminasse tal obrigação e apenas passe a exigir um texto de alegações que culmine com o pedido recursivo.


Para além da epígrafe distinguir perfeitamente e exigir simultaneamente o cumprimento dos dois ónus - ónus de alegar e ónus de concluir - o texto desse preceito legal esclarece perfeitamente o que se exige, dele se lendo que “o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.”


(…)


A cominação legal para a falta de conclusões é a do indeferimento do recurso, sendo que o incumprimento do ónus de formulação de conclusões cai no âmbito do princípio da autorresponsabilização das partes, uma vez que, querendo recorrer, as partes devem fazê-lo nos prazos e de acordo com a forma consagrada na lei.


Se assim é, como pensamos, repetir nas conclusões praticamente tudo o que se escreveu no corpo das alegações, sem triagem de relevo, é ignorar a obrigação legal imposta pelo art. 639º nº 1 do CPC e apresentar uma peça processual sem conclusões propriamente ditas.


Neste sentido vai a maioria da Doutrina, apesar da controvérsia existente ao nível jurisprudencial, assumindo o Supremo Tribunal de Justiça posição contrária àquela por nós sufragada cujos argumentos, salvo o devido respeito e, pelas razões aqui expostas, não merecem a nossa concordância


3.3. Nos termos do artigo 639.º, n.º 1 do CPC, o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sucinta, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.


No caso concreto, como decorre dos autos, e especificamente da fundamentação da decisão recorrida, as alegações do recurso de apelação não se apresentavam desprovidas de “conclusões”, no sentido ontológico, ou seja, enquanto ausência de uma parte correspondente a tal designação. Tais alegações tinham, efetivamente, uma parte com a epígrafe “conclusões”.


Todavia, o teor dessas conclusões correspondia, na essência, ao que constava do corpo das alegações. Por tal razão o tribunal recorrido entendeu que, na realidade, o recorrente não tinha apresentado “conclusões”.


É o seguinte o teor das conclusões apresentadas pelo recorrente na apelação:


«1. O ora recorrente apenas recebeu a notificação do despacho recorrido no dia 28/09/2022, conforme se pode comprovar pela pesquisa do site dos CTT que ora se junta sob a forma de doc. 1, cujo conteúdo aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos devidos efeitos legais.


2. A condenação do recorrente no pagamento da quantia de 108.181.95€ constitui a prática de um acto que a lei não permite, o que acarreta a sua nulidade, nulidade que expressamente se invoca.


3. A condenação do recorrente no pagamento de qualquer quantia teria de ser efectuada no âmbito de uma ação especial de prestação de contas, como a que correu seus termos no apenso AZ dos presentes autos, na qual o recorrente foi absolvido da instância por sentença transitada em julgado.


4. O tribunal a quo não pode por despacho, sem possibilitar ao recorrente a possibilidade de se defender, sem invocar quaisquer factos, sem invocar qualquer fundamentação, condenar o recorrente ao pagamento de uma qualquer quantia à massa insolvente.


5. A preterição do direito de defesa é uma violação do direito consagrado na Constituição, o que torna o douto despacho, para além de nulo, inconstitucional; inconstitucionalidade que expressamente se invoca.


6. Do despacho proferido não resultam os factos provados e quais os fundamentos de direito que determinaram a condenação do Recorrente, o que torna o mesmo nulo.


7. O recorrente foi nomeado como administrador judicial provisório em 20/03/2009.


8. O recorrente foi reconduzido como administrador da insolvência por sentença datada de 20 de abril de 2009.


9. O Tribunal decretou a insolvência sem 29 de abril de 2009, não tendo entregue a gestão à devedora, ou seja, confiou a gestão plena da insolvente ao Recorrente.


10. O recorrente informou o processo e os credores que a insolvente e o seu estabelecimento se mantinham em funcionamento, conforme resulta do relatório a que alude o art.º 155 do CIRE apresentado, informando que pela gestão do Estabelecimento requeria a remuneração de 3.250,00 euros, ou seja, 50% da remuneração do Antigo Administrador da insolvente;


11. O estabelecimento foi encerrado, definitivamente, em março de 2011.


12. Em 19 de junho de 2013 o recorrente foi destituído, despacho que só transitou em julgado no ano de 2014, data em que forma definitiva o recorrente cessou funções nos presentes autos.


13. O Tribunal a quo nunca fixou qualquer remuneração ao Recorrente, nem pela gestão do estabelecimento (20/03/2009 a março de 2011), nem pelo desempenho das suas funções de administrador de 20 de abril de 2009 a 2014.


14. O douto despacho recorrido alude ao facto de o AI atual ter apresentado contas de liquidação referente ao período de até 31/05/2011.


15. O recorrente nunca foi notificado no âmbito deste apenso para prestar contas sob a cominação que - se não o fizesse – qualquer outra entidade o faria.


16. Não podem ser prestadas contas da liquidação até 31/05/2011, porque até essa data não houve qualquer liquidação, uma vez que a sentença que julgou os embargos improcedentes só veio a ser proferida em 21 de dezembro de 2010, facto que impossibilita a liquidação.


17. Por estar proibida a liquidação até ao transito em julgado da sentença que julgou improcedente os embargos o estabelecimento comercial da insolvente esteve até 20/03/2011 em pleno funcionamento, com contabilidade organizada, com trabalhadores, com fornecimentos de serviços e respetivos pagamentos, sob a gestão exclusiva do ora recorrente.


18. Durante a exploração do estabelecimento nunca existiu qualquer conta bancária aberta em nome da massa insolvente, sendo todos os movimentos efetuados através das contas bancárias da própria sociedade, não havendo, até ser decretada a liquidação, necessidade de abertura de conta da massa.


19. Toda a contabilidade foi mantida escrupulosamente atualizada ao dia, tendo a empresa um funcionário encarregue de a elaborar.


20. Mesmo que por cautela de patrocínio se admitisse que o Recorrente teria que devolver à massa insolvente qualquer quantia relativa à exploração de estabelecimento até ao seu encerramento – o que não se aceita - tal teria de resultar de uma ação judicial onde, analisada a contabilidade da empresa até ao seu encerramento, fosse imputado ao ora recorrente factos concretos que importassem a sua responsabilização


21. Até porque, a liquidação só começou depois do encerramento do estabelecimento e depois do transito em julgado que julgou improcedente os embargos à insolvência.


22. O aqui recorrente apenas cessou funções em 2014 com o trânsito em julgado da sentença que decretou a sua destituição.


23. Os créditos recuperados pela massa resultantes do trabalho efetuado pelo aqui recorrente totalizam a quantia global de 1.481.364.54 euros.


24. Só a título de remuneração variável, o aqui AI terá direito, no mínimo, a 5% de 1.481. 364.54 euros, deduzidas 530,21 euros de despesas de liquidação, ou seja, 74.068.43€, acrescidos da majoração do n.º 7 do art.º 23 do Estatuto.


25. A douta decisão recorrida violou o artigo 668º do C.P.C., o artigo 20º da Constituição, artigo 31º, 32º do CIRE e o artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial.


Concluiu, pedindo que o presente recurso seja julgado totalmente procedente, anulando-se a decisão recorrida, declarando a nulidade do despacho proferido, uma vez que o mesmo consubstancia a prática de um ato que a lei não permite, declarando a inconstitucionalidade do mesmo por preterição do direito de defesa.


Subsidiariamente, deve o referido despacho ser considerado nulo por absoluta falta de fundamentação ou subsidiariamente deve ser absolvido o recorrente do pagamento da quantia em que foi condenado.»


3.4. Pelo exposto, não se poderá afirmar que as conclusões da apelação sejam irrazoavelmente extensas ou difíceis de compreender; ou que não contenham as pretensões recursivas que permitem delimitar o objeto do recurso.


Aliás, nem o acórdão recorrido aponta essas “deficiências”. Afirma-se nessa decisão:


«(…) quando as conclusões mais não são do que a cega repetição das alegações (como se a repetição pura e simples surtisse efeito de convencimento da bondade do argumentário) não estamos necessariamente perante conclusões deficientes, obscuras, nem mesmo complexas (…) porquanto as alegações/conclusões até podem ser escorreitas, suficientes, congruentes, inteligíveis e não prolixas mas apesar disso serem apenas repetições - copy past - do anteriormente alegado.


Nesse caso como poderemos sustentar que há conclusões, se as alegações e as conclusões são uma e a mesma coisa? Só porque estão antecedidas da expressão “CONCLUSÕES”?»


Claramente se concluiu que a decisão recorrida atende a um critério meramente formal para concluir que o disposto no artigo 639º, n.º 1 do CPC não foi cumprido, dado o facto de o teor das conclusões corresponder essencialmente ao teor do corpo das alegações.


Atendendo apenas a um critério de natureza formal, neste tipo de hipótese, também se poderia concluir exatamente o oposto, ou seja, que apenas existem conclusões (repetidas) e não um corpo de alegações, quando estas apresentem uma feição bastante sucinta e pouco explicativa.


Efetivamente, numa hipótese em que, por exemplo, não se recorra da decisão de facto e onde se discuta apenas uma questão normativa de delimitação simples, se o recorrente tiver um estilo de escrita bastante sucinto, facilmente poderá existir uma grande coincidência entre o corpo das alegações e o teor das suas conclusões.


Naturalmente que o conceito de “síntese” ou de “conclusão” dos fundamentos que sustentam a pretensão do recorrente, pressuposto pelo n.º 1 do artigo 639º, não é imune a alguma subjetividade interpretativa.


Todavia, não pode ser usado um critério arbitrário, puramente formalista, sem apoio na letra da lei. O critério tem, necessariamente, de ser teleológico, ou seja, tem de atender à razão pela qual o legislador exigiu, no artigo 639º, n.º 1, que o recorrente concluísse, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.


Em nenhum preceito legal se afirma que nessa indicação final dos fundamentos não possa ser repetido o que já se afirmou no corpo das alegações. O que se exige é que se trate, em si mesma, de uma indicação sucinta (sendo indiferente o grau ou percentagem de reprodução do que o recorrente já afirmou), porque essa síntese conclusiva delimita o objeto do recurso, nos termos do artigo 635.º, n.º 4 do CPC, e permite, tanto ao julgador como à contraparte, a inequívoca apreensão das pretensões do recorrente.


Em síntese, o legislador prevê duas hipóteses de “anomalias” respeitantes às alegações de recurso e suas conclusões: a ausência e a deficiência (em sentido amplo). Assim, quando o requerimento para recurso não contenha alegações ou estas não apresentem conclusões, a consequência é o seu indeferimento, nos termos do artigo 641º, n.º 2, alínea b). Por outro lado, quando as conclusões apresentadas forem deficientes, obscuras, complexas, deve o recorrente ser convidado a corrigir essas deficiências (em sentido amplo), nos termos do artigo 639.º, n.º 3.


Se o recurso apresenta alegações e se o respetivo conteúdo não apresenta anomalias, sendo, portanto, facilmente percetível qual a pretensão normativa do recorrente, não existirá fundamento legal para rejeição, havendo, pois, que conhecer do objeto do recurso.


Assim, a hipótese de o recorrente repetir nas conclusões a quase totalidade do que disse no corpo das alegações não pode ser apreciada em termos puramente formais e simplistas para se equiparar tal situação à de ausência total ou real de conclusões, porque tal tese não tem o mínimo apoio na letra da lei. Tudo dependerá de saber se, em concreto, as conclusões apresentadas cumprem ou não o seu propósito normativo.


3.5. Este tem sido o entendimento reiterado da jurisprudência do STJ. Veja-se, a título exemplificativo, o que se sumariou nos seguintes arestos:


- Acórdão do STJ, de 25.05.2017 (relatora Ana Paula Boularot)1, no processo n.º 2647/15.1T8CSC.L1.S1:


«A reprodução nas conclusões do recurso da respectiva motivação não equivale a uma situação de alegações com falta de conclusões.


Nestas circunstâncias, não há lugar à prolação de um despacho a rejeitar liminarmente o recurso, impondo-se antes um convite ao seu aperfeiçoamento, nos termos do nº 3 do artigo 639º do CPCivil, atenta a sua complexidade e/ou prolixidade.»


- Acórdão do STJ, de 05.07.2018 (relator Abrantes Geraldes)2, no processo n.º 131/16.5T8MAI-A.P1.S1:


«O facto de o recorrente ter reproduzido, nas conclusões da alegação, o que constava da motivação não legitima a rejeição imediata do recurso, com fundamento na falta de conclusões, ao abrigo do art. 641º, nº 2, al. b), do CPC


- Acórdão do STJ, de 27.11.2018 (relator Júlio Gomes)3, no processo n.º 28107/15.2T8LSB.L1.S1:


«Quando as conclusões de um recurso são a mera reprodução, ainda que parcial, do corpo das alegações, não se pode, em rigor, afirmar que o Recorrente não deu cumprimento ao ónus previsto no artigo 641.º, n.º 2, alínea b) do CPC.»


- Acórdão do STJ, de 19.12.2018 (relator Henrique Araújo)4, no processo n.º 10776/15.5T8PRT.P1.S1


«A reprodução da motivação nas conclusões do recurso não equivale à falta de conclusões, fundamento de indeferimento do recurso – art. 641.º, n.º 2, al. b), do CPC.»


- Acórdão do STJ, de 09.11.2022 (relator Luís Espírito Santo)5, no processo n.º 539/22.7T8STS.P1.S1:


«A repetição no âmbito das conclusões de recurso do teor das respectivas alegações não corresponde, em termos técnico-jurídicos, à ausência de apresentação de conclusões que motiva, por si só, a rejeição do recurso nos termos do artigo 641º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Civil.»


3.6. Conclui-se, neste quadro, que a decisão recorrida fez errada aplicação da lei de processo, nomeadamente dos artigos 639.º, n.º 1 e 641º, n.º 2, alínea b) ao rejeitar o recurso de apelação por ter entendido não existirem conclusões. Não havendo, assim, fundamento para rejeitar o recurso de apelação, esse recurso deverá ser admitido, conhecendo-se do seu objeto.


Admite-se, porém, que o tribunal recorrido possa não perceber o correto alcance das pretensões normativas do apelante e que, no uso dos seus poderes, se assim o entender, convide o recorrente ao aperfeiçoamento desse recurso, particularmente das suas conclusões, nos termos do artigo 639.º, n.º 3 do CPC.


*


DECISÃO: Pelo exposto, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido e determinando-se a baixa do processo ao Tribunal da Relação para que este conheça o objeto do recurso de apelação ou, no uso dos seus poderes, previamente convide o recorrente ao aperfeiçoamento desse recurso, particularmente das suas conclusões, nos termos do artigo 639.º, n.º 3 do CPC.


Custas pela parte vencida a final (sem prejuízo da isenção eventualmente aplicável ou do apoio judiciário).


Lisboa, 25.06.2024


Maria Olinda Garcia (Relatora)


Luís Espírito Santo


Ricardo Costa








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1. Publicado em:

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2. Publicado em:

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/367ab9d334a7dbee802582c20034212e?OpenDocument↩︎

3. Publicado em:

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4. Publicado em:

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5. Publicado em:

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