Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
22640/18.1T8LSB.L1.S1-B
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
CONCEITO INDETERMINADO
BOA -FÉ
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
DESPACHO DO RELATOR
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/31/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (CÍVEL)
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO, MANTENDO-SE A DECISÃO DA RELATORA
Sumário :
I - Estando em causa o regime das cláusulas contratuais gerais, cujas normas recorrem a conceitos indeterminados, por exemplo, como no presente caso, a boa fé (artigo 15.º do DL 446/85), o processo de aplicação do direito faz-se numa base necessariamente casuística e contextualizada, através do recurso a um preenchimento valorativo insuscetível de generalizações, pois o que está em causa é a justiça contratual que tem uma natureza flexível e evolutiva.

II - Assim como não é possível uniformizar o sentido juridicamente relevante com que devem valer cláusulas contratuais gerais inseridas em contratos diferentes, ainda que o seu teor textual seja padronizado e idêntico, também não é possível generalizar os juízos de validade ou invalidade que incidem sobre elas, à luz da boa fé e de outros conceitos indeterminados.

III – Os critérios destinados ao preenchimento valorativo de conceitos indeterminados são necessariamente casuísticos e destinam-se a possibilitar uma decisão que atende às particularidades do caso concreto, pelo que, pela sua natureza, são insuscetíveis de originar uma contradição de julgados.

Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça


1. Vodafone Portugal – Comunicações Pessoais, S.A., Recorrente nos autos de recurso para uniformização de jurisprudência acima melhor identificados, em que são Recorridos AA e BB, notificada da decisão singular proferida, em 16 de dezembro de 2022, que não admitiu o recurso e com ela não se conformando, vem, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 692.º do Código de Processo Civil, apresentar reclamação para a Conferência,  com os fundamentos desenvolvidos em trinta páginas, sem conclusões, que aqui se consideram transcritas.


2. Os recorridos apresentaram resposta, em que pugnam pela não admissibilidade do recurso e subsidiariamente para a hipótese de o acórdão de uniformização da jurisprudência ser admitido, o reenvio para interpretação prejudicial pelo TJUE.


3. A decisão singular pronunciou-se sobre a alegada contradição entre o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 2 de fevereiro de 2022, que condenou a Vodafone e outro Acórdão também proferido por este Supremo Tribunal de Justiça, em 16 de outubro de 2014, no processo n.º 2476/10.... (já transitado em julgado e do qual a recorrente juntou cópia), entendendo que não estão presentes os requisitos exigidos pela lei (artigo 688.º, n.º 1, do CPC) para a admissibilidade do recurso de uniformização de jurisprudência, com os seguintes fundamentos, que se passam a transcrever:  

«4.1. O presente recurso incide sobre a interpretação do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais (DL 446/85, de 25-10) e sobre a validade de cláusulas contratuais gerais apostas em contratos de adesão.

Em ambos os casos, estão em causa pedidos de apreciação da validade de cláusulas contratuais inseridas em contratos de adesão, sujeitos ao regime jurídico das cláusulas contratuais gerais: no caso do acórdão fundamento o Supremo pronunciou-se pela validade da cláusula; no caso do acórdão recorrido o Supremo pronunciou-se pela nulidade da cláusula.

No caso do acórdão fundamento (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.10.2014, processo n.º 2476/10....) estamos perante um contrato de mútuo bancário para financiamento de aquisição de automóvel, enquanto no caso do acórdão recorrido estamos perante um contrato de telecomunicações.

As cláusulas em litígio têm o seguinte teor:

No acórdão recorrido, a cláusula considerada nula afirmava o seguinte:

“a) Após a ativação do serviço o cliente poderá usufruir de todas as funcionalidades do mesmo, as quais se encontram descritas em ... bem como no tarifário subscrito pelo Cliente, o qual faz parte integrante do respetivo contrato”.

No acórdão fundamento a cláusula do contrato de mútuo bancário era do seguinte teor, consoante consta do sumário do acórdão:

«Não padece de nulidade a cláusula contratual geral, inserida em contrato de adesão destinado ao financiamento de crédito automóvel, em que se prevê que o mutuário se confessa devedor do capital mutuado e respectivos juros, bem como dos encargos contratualmente previstos como estando a seu cargo, remetendo-se a determinação dos respectivos montantes para o Preçário do Banco – documento facilmente acessível ao interessado e que deverá, no momento da subscrição do contrato, ser objecto de adequado esclarecimento e informação ao aderente».

Em ambos os casos, as cláusulas remetem para documentos externos aos contratos, gerando para o aderente o ónus de pesquisar para se informar sobre elementos negociais que não estão determinados ou descritos no contrato de adesão.

4.2. Será que a circunstância de no acórdão fundamento o Supremo ter considerado a cláusula válida e no acórdão recorrido ter declarado a nulidade da cláusula consiste numa contradição relevante para o efeito de exigir uma uniformização de jurisprudência?

Pensamos que não.

As cláusulas contratuais em debate estão inseridas em contratos distintos, não só nos serviços que fornecem, mas também nos destinatários a que se dirigem, sendo que os destinatários dos serviços de telecomunicação são em muito maior número (os serviços de internet e telemóveis estão praticamente generalizados a toda a população) e incluem cidadãos com pouca informação e conhecimentos, bem como famílias onde há crianças e jovens que utilizam os serviços, necessitando pois estes últimos de uma maior proteção do que os compradores de automóveis.

Por outro lado, as cláusulas estão inseridas em contratos com outras cláusulas, necessariamente diferentes no seu conjunto. O sentido e alcance de uma cláusula não se determina isoladamente das restantes cláusulas do contrato, antes tem de ser interpretado no seu contexto, nos termos do artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil: «A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoávelmente contar com ele».

O artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil consagra a teoria da impressão do destinatário, isto é, a declaração negocial deve ser interpretada como um declaratário razoável, colocado na posição concreta do declaratário, a interpretaria.

Para apurar o sentido juridicamente relevante, importa, pois, considerar outros elementos ou circunstâncias, designadamente o contexto das declarações e a sua finalidade.

A declaração negocial é também “um acto social de comunicação, que tem de ter relação com aquele a quem se destina ou o conhece” (cf. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 442).

Como tem entendido a doutrina, a interpretação da declaração negocial deve ser, assim, assumida como uma “operação concreta, integrada em diversas coordenadas”, tendo em conta “o conjunto do negócio, a ambiência em que ele foi celebrado e vai ser executado” (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo I, Almedina, Coimbra, 2005, p. 755).

Para proceder à interpretação das declarações negociais são atendíveis os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo; a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; as precedentes relações negociais entre as partes; os usos da prática; os modos de conduta por que, posteriormente, se executou negócio concluído (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., pp. 446-447).

Em síntese, os critérios que presidem à interpretação da declaração negocial são os seguintes:

«(1) o contexto negocial em que a declaração aparece; (ii) eventuais antecedentes próximos ou elementos preparatórios; (iii) o ambiente ou contexto externo, de facto e jurídico, em que a declaração é emitida; (iv) a finalidade da declaração (ou negócio); (v) o tipo de negócio em causa, bem como os valores e interesses em jogo; (vi) a anterior e subsequente prática negocial entre declarante e declaratário, se existir; (vii) o modo como a declaração ou o negócio em que se integra vem sendo executado» (cf. Evaristo Mendes/Fernando Sá, “Anotação ao artigo 236.º”, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, p. 538).

5. Ora, para o efeito de ajuizar da admissibilidade de um recurso para uniformização de jurisprudência sobre a validade de uma cláusula negocial inserida num contrato de adesão, não pode o intérprete separar a cláusula dos restantes elementos do contrato, da sua natureza jurídica e contexto, pelo que seria de todo inútil admitir o presente recurso para resolver uma questão que não é suscetível de generalização – antes, pelo contrário, é necessariamente casuística e dependente das idiossincrasias de cada caso concreto.

6. Para além disto, a interpretação do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, a fim de aferir da validade ou invalidade da cláusula em debate, inserida num contrato de telecomunicações, foi feita à luz de diretivas comunitárias que só são aplicáveis a este setor. É o caso Diretiva 2018/1972, de 11 de dezembro de 2018, que estabelece o Código Europeu das Comunicações Eletrónicas (ainda não transposta para o direito nacional, sem detrimento de, em tudo o que nela estiver determinado de forma clara e precisa, ser diretamente aplicável, conforme tem sido orientação da jurisprudência).

A este propósito afirmou-se o seguinte no acórdão recorrido:

«O sentido da cláusula 2.ª al. d) é incompleto e vago, não contém de forma clara e inequívoca todos os elementos necessários para uma cabal compreensão do que está em causa.

A remissão para outros documentos para mais informações não garante que o aderente tenha efetivamente conhecimento de elementos essenciais do contrato como é dever da empresa predisponente. Daí que não estejamos perante uma aceitação consciente suscetível de demonstrar consenso entre as partes e de integrar um acordo vinculativo. O dever das empresas predisponentes é o de fornecerem, por escrito, um resumo do contrato, em linguagem clara, simples e facilmente percetível para os cidadãos comuns, onde se chama a atenção para as cláusulas que contêm riscos de prejudicar o cliente e de frustrar as suas expetativas em relação ao contrato que celebrou. Nos termos do artigo 102.º, n.º 3, da Diretiva 2018/1972, os fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público fornecem aos consumidores um resumo do contrato, conciso e facilmente legível. Esse resumo identifica os principais elementos dos requisitos de informação, que devem incluir no mínimo: “ a) O nome, endereço e os dados de contacto do fornecedor e, se diferentes, os dados de contacto para eventuais reclamações; b) As principais características de cada serviço prestado; c) Os respetivos preços de ativação do serviço de comunicações eletrónicas e de quaisquer encargos recorrentes ou associados ao consumo, se o serviço for prestado contra uma prestação pecuniária direta; d) A duração do contrato e as condições de renovação e cessação; e) A medida em que os produtos e serviços são concebidos para os utilizadores finais com deficiência; f) No que respeita aos serviços de acesso à Internet, um resumo das informações necessárias nos termos do artigo 4.o, n.o 1, alíneas d) e e) do Regulamento (UE) 2015/2120”.»

Em virtude da aplicação desta diretiva sobre as comunicações eletrónicas, não se pode dizer que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação, também por este motivo fracassando a demonstração pelos recorrentes dos requisitos de admissibilidade dos recursos para uniformização de jurisprudência nos termos dos artigos 688.º e seguintes do CPC.

7. Pelo que, não se admite o recurso para uniformização de jurisprudência interposto pela Vodafone.»



Cumpre apreciar e decidir.



II – Fundamentação

1. Na reclamação para a Conferência, a recorrente utiliza, em síntese, os seguintes argumentos para fundamentar a admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência: i) que a decisão singular reconhece implicitamente a identidade das questões de direito em confronto e a verificação dos pressupostos legais da admissibilidade do recurso; ii) que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento foram proferidos no domínio da mesma legislação, o Decreto-lei 446/85, de 30 de outubro, que consagrou o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais; iii) que as decisões foram contraditórias na medida em que o acórdão fundamento admitiu a validade de uma cláusula contratual geral idêntica àquela que foi declarada nula pelo acórdão recorrido; iv) que a decisão sumária impugnada incorre em contradição ao afirmar que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento não foram proferidos no domínio da mesma legislação; v) que a circunstância  de os contratos onde as cláusulas em análise se encontram inseridas terem uma natureza jurídica distinta não é de molde a afastar a verificação dos pressupostos legais para a interposição do presente recurso; vi) que basta a identidade substancial do núcleo essencial das situações de facto do acórdão fundamento e do acórdão recorrido, não importando diferenças acessórias ou casuísticas; vii) que o mercado do crédito bancário para as famílias é semelhante aos serviços de telecomunicações, sendo ambos generalizáveis a quase toda a população.

Por último, pugnam para que este Supremo Tribunal, para além de admitir o recurso, decida, reunido em Pleno, que «não padece de nulidade a cláusula contratual geral, inserida em contrato de adesão, em que se prevê a obrigação de pagamento de quantias adicionais correspondentes a consumos posteriores a ser atingido o plafond previsto na mensalidade inicial, remetendo-se especificação do serviço e a determinação dos respectivos montantes para, in casu, as Condições Pré-Contratuais e características específicas do concreto tarifário/pacote de serviços contratado, os quais fazem parte integrante do respetivo contrato – informação facilmente acessível ao interessado».


Os recorridos, em contraposição, defendem que não estão verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência, tal como exposto pela decisão singular, e que a nulidade da cláusula contratual geral impugnada não foi a ratio decidendi do acórdão recorrido, pois os pagamentos adicionais de internet sempre teriam de ser devolvidos ao abrigo do artigo 9.º - A da Lei n.º 24/96, de 31 de julho.


2. Vejamos:

Tem sido vasto o labor jurisprudencial acerca da temática dos pressupostos de admissibilidade dos recursos para uniformização de jurisprudência. Se, por um lado, a função uniformizadora é, por excelência, a competência mais importante do Supremo Tribunal de Justiça, por outro lado, estando em causa a reabertura do processo judicial, depois de a decisão ter transitado em julgado, o legislador foi particularmente cauteloso, exigindo um conjunto de requisitos apertados para a sua admissibilidade, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem interpretado de uma forma rigorosa. Neste juízo de ponderação existe sempre uma tensão entre a segurança jurídica do trânsito em julgado e a necessidade de promover a igualdade das orientações dos tribunais para casos semelhantes. O Supremo Tribunal de Justiça assume nesta nobre tarefa uma função quase semelhante ao legislador, embora os Acórdãos Uniformizadores de Jurisprudência não sejam fonte de direito e tenham apenas uma força de persuasão qualificada.

O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2015, publicado no DR n.º 200 SÉRIE I, de 13-10-2015, explica, de forma lapidar, quais os pressupostos legais deste recurso extraordinário, e que se centram, em síntese, na existência de contradição entre as decisões proferidas por dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça relativamente à mesma questão fundamental de direito, sob a égide da mesma norma. Aí se salienta, também, que o requisito contradição é referido à decisão em si e não aos fundamentos,  e que o conceito de identidade da questão fundamental de direito deve ser entendido como «(…) a controvérsia baseada numa norma que estava em apreciação para dirimir o litígio e cuja interpretação foi decisiva para que, num caso e noutro, o Supremo Tribunal de Justiça tivesse proferido decisões que colidem, que não se harmonizam, porque existe contradição quanto ao efeito jurídico que delas se extraiu e que foi crucial para o resultado, fruto do labor interpretativo».

A contradição de julgados pressupõe, pois, que o acórdão-fundamento e o acórdão recorrido tenham aplicado, de forma divergente, o mesmo critério de decisão geral e abstrato, excluindo-se, portanto, os casos em que o critério foi a equidade ou a discricionariedade (cfr. Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. II, AAFDL, Lisboa, 2022, p. 205). Prosseguem os autores, explicando que «Estes critérios destinam-se a possibilitar uma decisão que atende às particularidades do caso concreto, pelo que, pela sua natureza, são insuscetíveis de originar uma contradição de julgados. Mesmo que tenham sido proferidas decisões divergentes em dois casos concretos, isso não significa que, em função das especificidades destes casos, a divergência não seja perfeitamente justificada» (ibidem, p. 205).

Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, Coimbra, pp. 529 e seguintes), em comentário ao artigo 688.º do CPC, sintetiza assim os requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência:

«a) Objeto do recurso: acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.

b) Razão do recurso: Contradição entre o núcleo essencial do acórdão recorrido e o do outro acórdão do Supremo (acórdão fundamento);

c) Natureza da contradição: deve verificar-se uma oposição frontal e não apenas implícita ou pressuposta em relação ao acórdão fundamento;

d) Matéria: a divergência jurisprudencial deve verificar-se relativamente a questão ou questões de direito, sendo irrelevantes eventuais divergências relativamente a questões de facto;

 e) Identidade: relação de identidade entre a questão de direito que foi objeto de ambos os acórdãos;

f) Essencialidade: a questão de direito sob controvérsia deve revelar-se essencial para o resultado numa e noutra das decisões, sendo irrelevantes respostas ou argumentos que não tenham valor decisivo (obter dicta).

g) Anterioridade: o acórdão fundamento deve ter sido proferido antes de transitar em julgado o acórdão recorrido.

 h) Quadro normativo: deve verificar-se identidade substantiva do quadro normativo em que se insere a questão ou questões de direito em causa.

h) Resultado da contradição: é necessário que na decisão recorrida se tenha optado por uma decisão diversa da que foi assumida no acórdão de uniformização, diversidade que não representa uma necessária contradição absoluta quanto à decisão com efeito uniformizadores, bastando que esta não tenha sido inteiramente acolhida.

i) Definitividade dos acórdãos: qualquer dos acórdãos deve ter transitado em julgado, presumindo-se este relativamente ao acórdão fundamento.

j) Como acórdão fundamento poderá ser invocado, não apenas o proferido com intervenção de três juízes no âmbito da revista normal ou excecional, como ainda algum acórdão de uniformização de jurisprudência que tenha sido desrespeitado pelo próprio Supremo.

k) Requisitos formais: nas conclusões das alegações de recurso o recorrente deve aludir ao fundamento em que se baseia e devem ser instruídas com cópia, ainda que não certificada, do acórdão fundamento (art. 637.º)

l) Requisito negativo: Impede a admissão de recurso extraordinário o facto de o acórdão recorrido ter adotado jurisprudência anteriormente uniformizada pelo Supremo ou o facto de o acórdão recorrido ser ele mesmo um acórdão uniformizador».

No Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 2-10-2014, proferido no Proc. 268/03.0TBVPA.P2.S1-A, resume-se, no respetivo  sumário, a questão dos requisitos de admissibilidade, do seguinte modo:

«1. Para que exista um conflito jurisprudencial, susceptível de ser dirimido através do recurso extraordinário previsto no art. 688º do Código de Processo Civil, é indispensável que as soluções jurídicas, acolhidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, assentem numa mesma base normativa, correspondendo a soluções divergentes de uma mesma questão fundamental de direito.

2. O preenchimento deste requisito supõe que as soluções alegadamente em conflito:

a) - Correspondem a interpretações divergentes de um mesmo regime normativo, situando-se ou movendo-se no âmbito do mesmo instituto ou figura jurídica fundamental: implica isto, não apenas que não hajam ocorrido, no espaço temporal situado entre os dois arestos, modificações legislativas relevantes, mas também que as soluções encontradas num e noutro acórdão se situem no âmbito da interpretação e aplicação de um mesmo instituto ou figura jurídica – não integrando contradição ou oposição de acórdãos o ter-se alcançado soluções práticas diferentes para os litígios através da respectiva subsunção ou enquadramento em regimes normativos materialmente diferenciados;

b) Têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito – sejam análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto;

c) A questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso, ou seja, que integre a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto – não relevando os casos em que se traduza em mero obter dictum ou num simples argumento lateral ou coadjuvante de uma solução já alcançada por outra via jurídica».


3. Feito este excerto descritivo, a fim de determinar os critérios de decisão do presente debate, regressemos ao caso concreto.

No caso vertente, estando em causa o regime das cláusulas contratuais gerais, cujas normas recorrem a conceitos indeterminados, por exemplo, como no presente caso, a boa fé (artigo 15.º do DL 446/85), o processo de aplicação do direito faz-se numa base necessariamente casuística e contextualizada, através do recurso a um preenchimento valorativo insuscetível de generalizações, pois o que está em causa é a justiça contratual que tem uma natureza flexível e evolutiva. Por isso são corretos os critérios afirmados na decisão singular e que se reportam à diferente natureza e tipologia dos contratos em causa (um de concessão de crédito e outro de prestação de serviços de telecomunicações), à diferença entre os seus destinatários e utentes dos serviços, à diferença da função económico-social das prestações fornecidas. Também o sentido global das cláusulas contratuais gerais de cada contrato é distinto, não sendo correto, no plano da equidade inerente à justiça contratual, analisar-se o significado ou a validade/invalidade das cláusulas através de um juízo atomístico de cada uma das cláusulas isoladamente consideradas como pretende a recorrente.

O artigo 16.º do DL 446/85, aplicado pelo acórdão recorrido, recorre também a conceitos indeterminados e a cláusulas gerais, que remetem para a especificidade de casa situação:

«Na aplicação da norma anterior devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada, e, especialmente:

a) A confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis;
b) O objetivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efetivação à luz do tipo de contrato utilizado».

Como afirma Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983), os conceitos indeterminados e as cláusulas gerais visam realizar uma osmose entre o direito e as conceções sociais, bem como obter uma justiça individualizada e ajustada às especificidades do caso concreto.

A doutrina (Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Coimbra, 1995, p. 423.), referindo-se à proteção dos consumidores na contratação em massa, entende esta proteção não apenas como uma garantia da liberdade contratual, mas também uma forma de correção do desequilíbrio das prestações e de defesa da justiça interna do contrato.

Assim como não é possível uniformizar o sentido juridicamente relevante com que devem valer cláusulas contratuais gerais inseridas em contratos diferentes, ainda que o seu teor textual seja padronizado e idêntico, também não é possível generalizar os juízos de validade ou invalidade que incidem sobre elas, à luz da boa fé e de outros conceitos indeterminados.

 

4. Para além destas diferenças – conceituais, funcionais e fácticas – entre ambos os casos, não se pode considerar, como também se afirma na decisão singular, que a legislação aplicável ao contrato do acórdão recorrido e ao contrato do acórdão fundamento seja a mesma, pois que no acórdão recorrido foi aplicada, juntamente com o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, a Diretiva 2018/1972, de 11 de dezembro de 2018, que estabelece o Código Europeu das Comunicações Eletrónicas.

O que vem agora a recorrente Vodafone afirmar como sendo um obstáculo à aplicação da diretiva – a circunstância de não sido transposta para o direito nacional – não tem fundamento, pois como tem sido prática dos tribunais tudo o que na diretiva estiver determinado de forma clara e precisa pode ser diretamente aplicável, conforme se esclareceu no acórdão recorrido e tem sido orientação da jurisprudência, v. g., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-01-2010 (proc. n.º 2212/06.4TBMAI.P1.S1, segundo o qual «As Directivas Comunitárias têm aplicação directa no ordem jurídica interna – mesmo entre particulares, ou seja, têm efeito horizontal -, mesmo que não transpostas ou transpostas em termos que as violem, desde que haja decorrido o prazo para a sua transposição e sejam suficientemente claras e precisas, se mostrem incondicionais e não estejam dependentes da adopção de ulteriores medidas complementares por parte dos Estados Membros».


5. Por último, adere-se ao argumento dos recorridos, segundo o qual a nulidade da cláusula em litígio não constitui ratio decidendi do acórdão recorrido, no sentido em que não foi o fundamento decisivo e efetivo para a decisão de condenação da Vodafone, pois sempre seria devido o reembolso dos pagamentos adicionais por força do artigo 9.º-A da Lei n.º 24/96, de 31 de julho (aditado pela Lei nº 47/2014 de 28-07-2014).

Em consequência, ainda que o Supremo Tribunal viesse a uniformizar jurisprudência no sentido requerido pela Vodafone, teria esta de devolver aos consumidores, de qualquer modo,  os referidos pagamentos adicionais.

6. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I - Estando em causa o regime das cláusulas contratuais gerais, cujas normas recorrem a conceitos indeterminados, por exemplo, como no presente caso, a boa fé (artigo 15.º do DL 446/85), o processo de aplicação do direito faz-se numa base necessariamente casuística e contextualizada, através do recurso a um preenchimento valorativo insuscetível de generalizações, pois o que está em causa é a justiça contratual que tem uma natureza flexível e evolutiva.

II - Assim como não é possível uniformizar o sentido juridicamente relevante com que devem valer cláusulas contratuais gerais inseridas em contratos diferentes, ainda que o seu teor textual seja padronizado e idêntico, também não é possível generalizar os juízos de validade ou invalidade que incidem sobre elas, à luz da boa fé e de outros conceitos indeterminados.

III – Os critérios destinados ao preenchimento valorativo de conceitos indeterminados são necessariamente casuísticos e destinam-se a possibilitar uma decisão que atende às particularidades do caso concreto, pelo que, pela sua natureza, são insuscetíveis de originar uma contradição de julgados.  

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e não admitir o recurso para uniformização de jurisprudência, confirmando-se a decisão reclamada.

Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 31 de janeiro de 2022

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2.ª Adjunta)