Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A740
Nº Convencional: JSTJ00000096
Relator: ARMANDO LOURENÇO
Descritores: HERANÇA
INOFICIOSIDADE
REDUÇÃO
CADUCIDADE
Nº do Documento: SJ200204090007406
Data do Acordão: 04/09/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 872/01
Data: 11/08/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR SUC.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 2178.
Sumário : O artigo 2178º, CC não é aplicável às situações em que o beneficiário da titularidade seja herdeiro legitimário.
Decisão Texto Integral: A, requereu Inventário Facultativo para partilha das heranças de B e mulher C.
Nesse requerimento disse: "Das referidas heranças fazem parte quatro prédios, sendo que três foram doados aos filhos."

Para exercer as funções de cabeça de casal foi nomeado D.

Em declarações de cabeça de casal foi dito:
O B faleceu em 14/9/90 e a mulher em 2/2/95.
Foram casados no regime de comunhão geral de bens.
Como únicos herdeiros deixaram os seus filhos:
A, E, D.
Houve doações a todos os filhos.

Após decisão da reclamação contra a relação de bens foi apresentada nova relação corrigida.
Nesse requerimento o cabeça de casal escreveu:
"Caducou, nos termos do artº 2178º do CC, o direito de os interessados reduzirem por eventual inoficiosidade as doações dos imóveis das verbas 13, 14 e 15, por ter mediado mais de dois anos entre as aceitações das heranças e o requerimento do presente inventário.
Assim, as doações em causa devem estar sujeitas a colação, nos termos das disposições conjugadas dos artºs 2104 e 2108 CC.
Por isso, REQUER, nos termos do nº1 do artº 2109º se proceda à avaliação dos bens doados."

A isto, respondeu o A dizendo : "Se o donatário é herdeiro, a todo o tempo se pode pedir, no respectivo inventário, a redução da doação por inoficiosidade.
Deve a aludida pretensão do cabeça de casal ser desatendida."

Da acta da conferência de interessados, consta que:
O Dr. F (cremos tratar-se do mandatário do interessado A) requereu a licitação nos bens doados.
O Dr. G (mandatário da interessada E) também requereu a licitação dos bens doados.
O Dr. F requereu a avaliação dos mesmos bens e opôs-se à licitação requerida.
O Dr. G requereu a avaliação dos bens doados.
O Dr. H (mandatário do C.C.) disse: " que se opunha à licitação dos bens doados com fundamento de a licitação pressupor a possibilidade da redução por inoficiosidade das doações, entendendo que a faculdade de requerer tal redução caducou, nos termos do artº 2176º do CC... . Todavia, como as doações em causa estão sujeitas a colação, reitera o requerimento com que finda a relação de bens para se proceder à avaliação."
Em seguida foi proferido o seguinte despacho: " a questão suscitada sobre a inoficiosidade será apreciada no despacho a que se refere o artº 1373º n º 2 do C.P.C..
Determino a avaliação dos bens."

No requerimento em que se pronunciou sobre a forma da partilha, o cabeça do casal disse, após larga dissertação sobre o regime da redução, : "Deve concluir-se que está sujeita ao prazo de caducidade prevista no artº2078º do C.C. (deveria querer dizer-se 2178º) a redução por inoficiosidade da doação, quer o donatário seja herdeiro ou não, e que a única acção em que tal redução pode ser feita é o processo de inventário."
" A caducidade prevista no artº 2178º refere-se a direitos disponíveis, pelo que tem de ser invocada pelos interessados."
"O único interessado que a invoca é o cabeça de casal, pelo que só ele dela beneficia."
"Assim, as doações que devem ser reduzidas por inoficiosidade são as feitas aos interessados E e A, já que, quanto ao direito de obter a redução da doação feita ao cabeça de casal, caducou."
Nessa conformidade, começou por dizer que se deve começar por "somar os valores dos bens, corrigidos pelas avaliações e elevado pelas licitações."
"Das duas doações sujeitas a redução por inoficiosidade, começa-se pela da E."
".....sofre uma redução de 19251667 escudos, que repõe para ser partilhada, em conjunto com o valor dos outros bens, em partes iguais pelos três herdeiros."

A isto veio responder a E dizendo que discorda da forma à partilha dada pelo cabeça de casal.
Segundo o artº 2173º nº 1 do CC, "a regra é começar por reduzir a doação por conta da quota disponível ao interessado D. Se a redução desta não bastar, reduzir também a da interessada E."
"Deve manter-se ou subsistir a quota disponível do A".
Feita a redução por inteiro da doação ao D, a quota disponível dos "de cujus" fica reduzida a 18568333 escudos, pelo que a doação feita à interessada E deve ser reduzida no que exceder.

No despacho sobre a forma da partilha, o senhor juiz diz:
" o cabeça de casal veio arguir a caducidade do direito de redução por inoficiosidade da doação que lhe foi efectuada."
O prazo de caducidade previsto no artº 1278º aplica-se independentemente do beneficiário da liberalidade ser ou não herdeiro legitimário.
"Decide-se julgar extinto o direito de redução da doação efectuada pelos inventariados ao cabeça de casal, por caducidade."
Quanto à herança do pai dos inventariados foi decidido:
"Somam-se os valores dos bens doados com os valores dos bens não doados, com o aumento das licitações.
A meação divide-se em duas partes, a metade subdivide-se em três partes iguais.
Uma delas é a quota disponível do inventariado.
As doações, conferidas só pela metade, saem da quota disponível do inventariado, observando-se o disposto no artº 2173ºnº 1 do CC, no que respeita às doações feitas à E e ao A (sendo caso disso) e, se a não esgotarem, o que dela restar junta-se à quota indisponível.
As restantes duas partes dividem-se em quatro partes iguais, pelo cônjuge sobrevivo e filhos.

A herança da inventariada mãe, no que toca à redução, está sujeita à mesma regra.

O interessado A interpôs recurso quanto à questão da caducidade.
A interessada E interpôs recurso quanto ao despacho que deu forma à partilha.
Proferiu-se sentença homologatória do mapa de partilha.
O A interpôs recurso . O mesmo fez a E.

Na Relação, dando-se provimento ao agravo foi decidido que inexistia a caducidade do direito de redução das doações feitas pelos inventariados alterou-se a forma da partilha.

"Somam-se os valores dos bens doados e não doados, com os aumentos provenientes das licitações, e o total divide-se em três partes iguais, constituindo duas a legitima dos herdeiros e a restante a quota disponível dos inventariados.
Nesta última integram-se todas as doações, as quais, no caso de excederem a referida quota, deverão ser imputadas na quota legitimária do respectivo donatário, só havendo lugar à sua redução, a efectuar nos termos do nº1 do artº 2173, no caso de se verificar que se mostram já esgotadas aquelas quotas disponível e indisponível.
A porção legitimária divide-se em três partes iguais."

O interessado D interpôs recurso.

Apresenta conclusões que passamos sintetizar.
a) Foi decidido não se verificar o direito de redução da doação de um prédio que lhe foi feita por seus pais, por terem mediado mais de dois anos entre a aceitação tácita da herança por todos e o requerimento do inventário.
b) Entendeu-se que o artº 2178º do CC só se aplica a quem não seja herdeiro legitimário.
c) Entendeu-se que no caso de herdeiros legitimários só pode haver redução, quando a doação exceder os valores da quota disponível e legitimária.
d) Violaram-se os artºs 9ºnº3, 2178,2169,2174,2101 nº1, 1404,1412,1413,2049 e 331nº2 do CC, e 1327 nº1 alª a), 1365, 1467 e seg., 1132 e segs, 1341, 233 nº 6, 244 e 248 e seg.s do CPC.
e) Deve ser julgado caduco o direito de obter a redução da doação por inoficiosidade outorgada a favor do recorrente.

Em contra alegações diz o interessado A que é de manter o decidido, não só porque o artº 2178º não é de aplicar às situações de donatários herdeiros, mas também porque ainda não decorreram dois anos após a aceitação.
A E diz que só discorda do acórdão na parte em que entendeu que o acto de recebimento de uma quota parte da renda praticado pelos herdeiros é uma forma clara e inequívoca de um acto de aceitação tácita da herança.

Após vistos cumpre decidir.

Os factos apurados com interesse para a decisão da questão da caducidade são os seguintes:
Os inventariados foram casados no regime de comunhão geral de bens e faleceram sem testamento ou disposição de última vontade.
Faleceram, um, em 4/9/90, outro, em 2/2/95.
Por conta das suas quotas disponíveis, em conjunto fizeram as seguintes doações:
Em 24/8/82, doaram ao filho A o prédio inscrito na matriz sob o artº 1114.
Em 26/1/90, doaram à filha E o prédio inscrito na matriz sob o artº 1168.
Em 6/6/90, doaram ao filho D o prédio inscrito na matriz sob o artº 1365.
Estes prédios foram relacionados, respectivamente, nas verbas 13, 14 e 15.
O prédio doado ao A foi avaliado em 27656000 escudos.
O prédio doado à E foi avaliado em 27680000 escudos.
O prédio doado ao D foi avaliado em 28235000 escudos.
Os prédios doados foram avaliados em 83571000 escudos.
Os prédios licitados foram-no por 42212000 escudos.
O móvel não licitado foi relacionado por 15000 escudos.
O valor total dos bens deixados foi de 125798000 escudos.


DO DIREITO DE REDUÇÃO E DA CADUCIDADE

Legitima é a porção de bens que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários.
A legitima do cônjuge e dos filhos é de 2/3.
A legitima dos filhos é de 2/3 se forem dois ou mais.
No cálculo da legitima deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dividas da herança.
Dizem-se inoficiosas as liberalidades que ofendam a legitima dos herdeiros legitimários.
As liberalidades inoficiosas são redutíveis, a requerimento dos herdeiros legitimários, em tanto quanto for necessário para que a legitima seja preenchida.
Na redução das liberalidades feitas em vida, começar-se-á pela última, no todo ou em parte; se isso não bastar passa-se à imediata; e assim sucessivamente.
Sendo divisíveis os bens a redução faz-se separando a parte necessária para preencher a legitima.
Sendo os bens indivisíveis, se a importância da redução exceder metade do valor dos bens, estes pertencem integralmente ao herdeiro legitimário e o donatário haverá o resto em dinheiro; no caso contrário pertencem ao donatário pagando este a importância da redução.
A acção de redução caduca dentro de dois anos a contar da aceitação da herança pelo herdeiro legitimário.

DO PROCESSO DE INVENTÁRIO e DO EXERCÍCIO DO DIREITO DE REDUÇÃO.

Havendo herdeiros legitimários, o cabeça de casal identificará os donatários, que serão citados para a herança
Havendo herdeiros legitimários os bens doados serão relacionados.
Se houver herdeiros legitimários e algum declarar que pretende licitar sobre os bens doados, a oposição do donatário tem como consequência poder requerer-se a avaliação dos bens a que se refira a declaração.
A declaração fica sem efeito se vier a apurar-se que o donatário não é obrigado a repor bens alguns.

QUANDO SE RECONHEÇA QUE É INOFICIOSA :
Se recair sobre prédio divisível abre-se licitação sobre a parte a repor, não sendo admitido o donatário.
Se recair sobre coisa indivisível abre-se licitação sobre ela entre os herdeiros legitimários, no caso de a redução exceder metade do seu valor.
O mapa da partilha, será elaborado de acordo com a forma dada à partilha e o artº 1374 .
Se a secretaria verificar que os bens doados, legados ou licitados excedem a quota do respectivo interessado ou a parte disponível do inventariado, lançará uma informação.
Se houver doações inoficiosas, o juiz ordena a notificação dos interessados para requerem a sua redução nos termos da lei civil, podendo o legatário ou donatário escolher, entre os bens doados, os necessários a preencher o valor que tenha direito a receber.

Vemos do que se deixa transcrito que, quando alguém tem herdeiros legitimários, tem limitado o poder de dispor gratuitamente de parte dos seus bens, no interesse desses herdeiros.
Uma quota - parte do seu património pode ser disponibilizada sem restrições, é o que se chama quota disponível.
A outra quota - parte não pode ser disponibilizada gratuitamente, é o que se chama, legítima. Sendo-o, é ineficaz em relação aos herdeiros legitimários.
Qualquer disposição gratuita que exceda a quota disponível pode ser, a pedido dos legitimários, reduzida do excesso.
A vontade de redução pode ser feita em processo de inventário pela declaração de licitação nos bens cedidos gratuitamente e relacionados.
A vontade de redução pode ser expressa por qualquer forma, mesmo sem pedido de licitação, basta que estejam de acordo com o valor dado aos bens.
Assim, podemos concluir que os interessados A e E manifestaram a vontade de reduzir as doações.
Não o dizem, mas subentende-se que queriam reduzir as doações alheias.
O interessado D, de inicio parece não querer a redução por entender que o fenómeno era antes de colação (o que significava que as doações tivessem sido feitas por conta da legitima), dizemos parece, porque ao mesmo tempo parece querer afastar pedidos de redução invocando a caducidade do direito.
De qualquer modo, acaba por pedir a redução.

QUESTÃO da CADUCIDADE:

É velha esta questão. Perante norma idêntica do CC de 1867 já se pôs.
Acabou por ser dominante o entendimento de que a norma não se aplicava nas situações em que o donatário fosse herdeiro legitimário.
Associado a essa questão e servindo para a esclarecer, estava a questão de saber se o direito de redução devia ser necessariamente exercido em processo de inventário .
Entendeu-se e entende-se que sendo o donatário herdeiro legitimário, a redução só em processo de inventário podia ter lugar.
Isto porque a redução exige que se proceda a um inventário e à fixação do valor da herança e a uma distribuição dos bens que tenha em conta o efeito das alienações gratuitas na legitima.
Nos termos em que está regulamentado o exercício do direito de resolução, aliado ao facto de o inventário a todo o tempo poder ser instaurado,sem prejuízo do direito de usucapião, entendeu-se que, neste caso, não havia caducidade.
E compreende-se este entendimento, se tivermos em conta que o entendimento contrário levaria a que o herdeiro se visse pressionado a requerer o inventário para exercer o direito de redução, em prejuízo de um entendimento em partilhas amigáveis.
Entendemos, com a Relação, não ter caducado o direito de redução.

QUESTÃO da REDUÇÃO:

Quando uma pessoa faz doação a um herdeiro legitimário, põe-se a questão de saber com que intenção o faz.
Pode tê-lo feito para adiantar a quota da legitima, sem pretender beneficiá-lo em relação aos outros herdeiros.
Pode tê-lo feito para o beneficiar, aumentando a sua participação na herança à custa da quota disponível.
No primeiro caso, no momento da partilha da herança dá-se o fenómeno da colação, no segundo pode dar-se o fenómeno da redução.
É uma questão de interpretação da vontade.
No caso presente não se discute que as doações foram feitas por conta das quotas disponíveis.
Os doadores quiseram que os seus filhos fossem beneficiados na medida em que as doações eventualmente excedessem a sua legítima.
Sendo assim, pode acontecer que, em casos como o presente, a primeira doação tenha absorvido a quota disponível.
As doações posteriores só podiam ser feitas à custa da quota legitima, tendo de ser reduzidas na medida em que excedem a quota legitima de cada donatário.
Inclusive a primeira teria que ser reduzida na medida em que excedesse a soma da quota disponível com a quota da legitima do beneficiado.
As reduções irão integrar a legitima donde saíram, que será dividida por todos de acordo com a sua quota legitima.

REDUÇÂO E PARTILHA NO CASO PRESENTE:
Da herança do cônjuge primeiro falecido.
Deixou quatro herdeiros. A quota disponível era 1/3 e a legitima 2/3.
O valor das doações que lhe são imputadas é metade dos bens doados.
Soma-se o total dos bens deixados atendendo aos valores dos licitados, aos valores dos avaliados e ao valor relacionado dos restantes.
O total obtido divide-se em duas partes iguais.
Uma atribui-se ao cônjuge sobrevivo, à sua meação.
A quota disponível do "de cujus" é 1/3 da meação.
As doações serão reduzidas nos termos do artº 1273º do CC até que a legitima esteja integra.
A legitima divide-se em quatro partes iguais pelos quatro herdeiros.
Cada um recebe valores correspondentes à sua quota legítima acrescida do valor da quota disponível que lhe foi doada.

Da herança do cônjuge falecido em último lugar.
O valor é a soma da meação com a quota que herdou.
A sua quota disponível é 1/3.
O valor das doações é metade dos bens doados.
As doações serão reduzidas nos termos do artº1273º do CC. até que a legitima esteja integra.
A legitima divide-se em três partes iguais pelos três herdeiros.

Cada herdeiro recebe valores correspondentes à soma dos valores que lhe couberam nas duas heranças.

Na composição dos quinhões respeitar-se-á o resultado das licitações bem como as doações.

Em face do exposto confirmamos o acórdão, devendo proceder-se à partilha conforme expusemos.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 9 de Abril de 2002
Armando Lourenço,
Alípio Calheiros,
Azevedo Ramos.