Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1132/23.2T8OER-A.L1-A.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
PLATAFORMA DIGITAL
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PACTO ATRIBUTIVO DE JURISDIÇÃO
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
Data do Acordão: 07/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE
Sumário :
I. O Regulamento (UE) 1215/2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, tem aplicação directa e prioritária na ordem jurídica interna e sobrepôe-se ao regime geral do CPC sobre competência internacional.

II. Estabelece como regra geral atributiva de competência o domicílio do réu ou requerido (demandado), em princípio num dos Estados membros da União Europeia, independentemente da sua nacionalidade e de outras conexões da situação em concreto (art. 4º, 1).

III. O respectivo art. 25º prevê a possibilidade de as partes, por acordo, fixarem a competência de um tribunal de um Estado membro distinto do «domicílio» das partes (ou mesmo que as partes não residam ou tenham sede na União Europeia) para dirimir os litígios que tenham surgido ou possam surgir de uma determinada relação jurídica – pacto atributivo de jurisdição –, que prevalece sobre as regras de direito interno, nomeadamente os arts. 59º (na parte aplicável) e 94º do CPC.

IV. O art. 25º não é oponível às partes em litígio se a Ré é “representação permanente” em Portugal (com personalidade judiciária: arts. 4º, 1, CSC; 13º, 1, CPC) de sociedade estrangeira, que não corresponde às entidades terceiras envolvidas na celebração de contrato de compra e venda em plataforma digital de negociação, a que respeitam os eventuais pactos atributivos de jurisdição, e é demandada por factos por ela praticados no âmbito do cumprimento e execução de contrato celebrado nesse tipo de plataformas (para além de poder não ser válido).

V. Se há conexão de estraneidade relevante em função de a Ré ser “representação permanente” de sociedade estrangeira da União Europeia (com sede efectiva fora de Portugal), uma vez considerada a nacionalidade da representada em Portugal para efeitos de actividade exercida pela parte demandada, aplica-se, tendo em vista a aferição da competência internacional dos tribunais portugueses, o art. 4º, 1, do Regulamento 1215/2012, sendo o domicílio do Réu integrado pela sede da “representação permanente” em Portugal e, portanto, dotado de competência internacional o tribunal português.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 1132/23.2T8OER-A.L1-A.S1


Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, ... Secção


Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO


1. «AA» intentou acção declarativa sob a forma de processo comum contra «Auto 1 European Cars B.V. – Representação Permanente», pedindo: “- ser anulado o negócio de compra e venda do veículo com matrícula ..-..-TE;- ser a ré condenada no pagamento da quantia global de €1.180,82 a título de indemnização pela anulação do negócio; - ser a ré condenada a efetuar, a expensas suas, o cancelamento do registo de propriedade do veículo a favor da autora; - ser a ré condenada a pagar os juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal aplicável desde a data da comunicação da resolução do negócio até efetivo e integral pagamento”.


Alegou ter comprado comprado à Ré o referido veículo num leilão electrónico em sítio da internet; pretende a anulação do negócio por incumprimento da Ré quanto à questão do transporte e entrega do veículo e por erro ou dolo da Ré quanto às características do veículo (defeito e impossibilidade de circulação do veículo); por isso, considera ter direito a indemnização relativa ao prejuízo decorrente da celebração do contrato, cumulável com a referida anulação.


2. A Ré apresentou Contestação, invocando a excepção inominada de violação de pacto atributivo de jurisdição, nos termos do qual é competente o tribunal distrital de ..., Alemanha, absolvendo o Réu da instância, e defendendo-se por impugnação, concluindo pela improcedência da acção e absolvição da Ré dos pedidos formulados pela Autora.


A Autora apresentou Resposta, pugnando pela improcedência da excepção.


3. O Juiz ... do Juízo Local Cível ... proferiu despacho saneador, no qual se dispensou a realização de audiência prévia e julgou improcedente a excepção dilatória alegada de incompetência internacional (absoluta) do tribunal, declarando-se o tribunal competente em razão da nacionalidade.


O objecto do litígio foi assim fixado:


“apurar se a Autora tem direito a receber da Ré a quantia de €1.180,82, pela anulação do contrato de compra e venda do veículo e pagamento do IUC, a título de responsabilidade civil contratual por venda de coisas defeituosas ou a título de erro, com o consequente cancelamento do registo de propriedade, bem como os juros de mora peticionados”.


Fixou-se o valor da causa em € 1.180,82, transitado em julgado.


4. Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação do despacho de improcedência da excepção dilatória de incompetência para o Tribunal da Relação de Lisboa, que conduziu a ser proferido acórdão, no qual, identificada a questão decidenda (“se o tribunal português é internacionalmente competente por haver pacto privativo da jurisdição”), julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão recorrida (por maioria, com voto de vencido).


5. Novamente sem se resignar, a Ré interpôs recurso de revista para o STJ, tendo por base o art. 629º, 2, a), do CPC («violação das regras de competência internacional»), finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões:


“A) Considerando o efeito direto e o primado do direito da União Europeia, a disciplina interna da competência internacional do C.P.C. apenas se aplica quando a ação não for abrangida pelo âmbito do regulamento nº 1215 (cfr. Artigo 8º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa), o que não sucede no caso dos autos.


B) Estando as partes domiciliadas em Estados-Membros da União Europeia e sendo convocada para solucionar o litígio a jurisdição de um Estado-Membro são aplicáveis as normas constantes do regulamento n.º 1215 (cf. artigo 1.º, n.º 1).


C) As regras gerais em matéria de jurisdição são subsidiárias, valendo apenas na falta de escolha pelas partes, do tribunal competente em caso de litígio.


D) Independentemente do seu acerto quanto à validade substantiva do pacto atributivo de jurisdição, a verificação do pressuposto processual da competência internacional constitui condição para que o tribunal se pronuncie sobre o mérito do objeto da ação.


E) Conforme é jurisprudência pacífica, a validade da cláusula em causa não pode ser aferida pelo direito interno, mas sim pelo direito da União Europeia, no caso concreto pelo direito alemão – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/10/2021, proc. 448/18.4T8FAR.E1. S1, disponível em www.dgsi.pt, exercício de análise e interpretação que o tribunal recorrido não fez.


F) A aplicação do art. 25º do Regulamento n.º 1215/2012 permite uma derrogação dos critérios gerais em matéria de competência, em homenagem ao princípio da autonomia da vontade das partes e, da derrogação dos critérios gerais em matéria de competência, decorre que as partes, independentemente do seu domicílio, e não se colocando qualquer vício ou imperfeição formal relativamente ao pacto atributivo de jurisdição, podem convencionar que um tribunal (ou tribunais) de um Estado-Membro da União Europeia tenha competência para decidir quaisquer litígios surgidos ou a surgir entre elas de uma determinada relação jurídica, em termos tais que à luz do Regulamento, não cabe aferir da eventual aplicação do disposto em normas de direito nacional – Com este entendimento, cf., de entre vários, o acórdão do STJ de 11.02.2015-processo 877/12.7TVLSB.L1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt (negrito nosso).


G) Não são, por isso, convocáveis as regras do direito interno, nomeadamente o disposto no artigo 59º e a verificação de algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º do C.P.C., designadamente a exigência da verificação do requisito da conexão objetiva entre o tribunal designado com a relação jurídica designada, com os seus sujeitos ou com o seu objeto, como condição da validade substancial do pacto atributivo de jurisdição – Cfr. Acórdão do STJ 04.02.2016 - processo 536/14.6TVLSB.L1. S1, disponível em www.dgsi.pt .


H) Por força do princípio da autonomia das partes, a aplicação das regras do Regulamento 1215 e a validade do pacto atributivo de jurisdição, não exigem a verificação prévia de qualquer elemento de conexão relevante de natureza objetiva, num contexto de um litígio plurilocalizado, designadamente que a localização da sede das partes intervenientes no negócio, se situe em diferentes países.


I) De acordo com o disposto no art. 25.º do Regulamento 1215, os requisitos de validade e existência da cláusula atributiva de jurisdição dependem da existência de um acordo entre as partes e a sua redução a escrito.


J) São válidas e hodiernamente aceites juridicamente as cláusulas de competência contidas nos contratos celebrados por meios eletrónicos, onde se incluem as que se formam e aceitam entre as partes contratantes, através da internet, via botão eletrónico virtual, conquanto que seja possível manter um registo duradouro da vontade manifestada, conforme prescreve o art. 25.º, n.º 2, do Regulamento 1215, sendo este, também, o entendimento da doutrina a propósito, sendo exemplo o estudo de Alexandre Dias Libório Pereira, em “A jurisdição na internet segundo o Regulamento 44/2001 e as alternativas extrajudiciais e tecnológicas”, disponível em https://estudo geral.uc.pt/bitstream, página 21.


K) Considerando que o contrato de compra e venda dos autos foi celebrado através da plataforma eletrónica, e que os Termos e Condições de venda foram pela recorrida expressamente aceites, que os pôde ler e analisar, ao que acresce o facto de a versão atualizada desse documento ser disponibilizada em formato imprimível, podendo igualmente ser recuperada e guardada a qualquer momento na página principal de www.auto1.com (Cfr. Secção A, número 7), verifica-se que se mostra preenchido o requisito previsto na alínea a) do citado artigo 25º.


L) Preenchido o requisito previsto na alínea a) do art. 25.º do Regulamento 1215, a jurisdição competente para a apreciação do presente litígio é aquela que foi aceite pelas partes e constante dos Termos e Condições do Contrato: o Tribunal alemão.


M) Conforme entendimento vertido no recente acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 8/2/2024, a que alude o voto de vencido do acórdão da Relação de Lisboa, ora sob escrutínio, disponível em https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=7E9CA856EBF1D51A2516 993C31763781?text=&docid=282586&pageIndex=0&doclang=PT&mode=req&dir=&occ=fir st&part=1&cid=231610 , proferido no processo C-566/22, em sede de decisão prejudicial requerida pelo Supremo Tribunal da República Checa, no caso Inkreal s.r.o. vs Duha reality s.r.o., onde se decidiu:


O artigo 25º, n.º 1, do Regulamento (UE) 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que:


um pacto atributivo de jurisdição através do qual as partes num contrato estabelecidas num mesmo Estado-Membro acordam atribuir competência aos tribunais de outro Estado-Membro para dirimirem litígios resultantes deste contrato está abrangido por esta disposição, ainda que o referido contrato não comporte nenhuma outra conexão com esse outro Estado-Membro.


N) Assim a recorrente secunda, na íntegra, a posição do referido voto de vencido no sentido que: “o pacto de jurisdição invocado deveria ser analisado à luz deste Regulamento, na interpretação do TJUE, prosseguindo os autos para apreciação da nulidade da cláusula, invocada no articulado de resposta à excepção (nos termos do disposto no citado art. 25º, nº1, parte, mediante aplicação do direito alemão substantivo).


A Autora apresentou contra-alegações, pugnando pela bondade da decisão das instâncias.





Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS


1. Sem prejuízo do valor da causa, inferior à alçada da Relação, a revista é admissível à luz do art. 629º, 2, a), aplicável por força do art. 671º, 2, a), do CPC, para avaliação das regras aplicáveis de competência internacional (e consequente preenchimento de pressuposto processual de que depende o conhecimento e apreciação da acção, uma vez dado como verificado na instância recorrida1) que determinam o tribunal que deve decidir a causa, em face da excepção dilatória invocada pela Ré.


2. Vistas as conclusões da Recorrente, a questão a decidir consiste em aferir da competência internacional do tribunal português onde foi instaurada a acção, o que implica conhecer da aplicação do Regulamento n.º 1215/2012 e da validade e eficácia de pacto privativo de jurisdição invocado pela Ré.


3. A acção foi instaurada pela Autora tendo em vista a anulação do negócio de compra e venda do veículo automóvel com matrícula ..-..-TE, considerado como tal celebrado com a Ré, e a condenação desta no pagamento da quantia global de € 1180,82 a título indemnizatório.


A Autora alega que se dedica ao comércio de veículos automóveis ligeiros e que, no exercício da sua actividade, se registou no site https://www.auto1.com/pt, com vista a efectuar a compra de veículos através de leilão, onde alega ter adquirido à Ré o referido veículo, tendo pago o respectivo preço e a quantia relativa a despesas de transporte. A Ré solicitou à Autora o pagamento de cerca de mais € 250,00, porquanto o veículo não circulava e necessitava de um transporte especial. A Autora não aceitou e manifestou, no que mais importa, a intenção de proceder à “anulação da compra” e à indemnização ressarcitória correspondente aos prejuízos sofridos.


A Ré contestou, invocando, além do mais, a excepção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses, por violação de pacto privativo de jurisdição. Alegou que o site identificado pela Autora é uma plataforma online de compra e venda de veículos usados operada por entidade estranha e independente dos seus utilizadores (vendedores e compradores profissionais), sendo apenas uma intermediária entre vendedores e compradores. No acto de registo na plataforma, os potenciais compradores vinculam-se aos “Termos e Condições de Venda” aí mencionados e que estão disponíveis em formato imprimível, tendo a Autora alegadamente aderido e aceite estes termos, nos quais constariam as seguintes cláusulas:


«Secção D


“Termos e Condições Comuns”


Ponto IV


Número 5


Todos os contratos, relações jurídicas e relações comerciais que estão sujeitas a estes Termos e Condições de Venda, bem como as obrigações associadas e resultantes, serão regidas pela lei alemã, com exclusão da Convenção das Nações Unidas sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadoria (CISC).


Número 6


O local exclusivo de jurisdição para todas as reivindicações atuais e futuras que surjam da relação comercial entre as partes será o tribunal distrital de ..., Alemanha, ou o tribunal superior deste tribunal, se a jurisdição relevante se enquadrar na jurisdição deste último.»


Porém.


O que a Ré alega não corresponde ao documento 1 que junta na sua Contestação: «Termos e condições gerais de utilização dos serviços da AUTO1.com GmbH» (versão de Julho de 2020).


Neste, a cláusula relevante aí constante é a seguinte:


«§ 10 Lei aplicável, localização de execução e jurisdição

1. As leis da República Federal da Alemanha aplicam-se à exclusão de todas as outras leis.

2. A localização de execução é ...61 ..., Alemanha, se as partes contratantes forem comerciantes, pessoas jurídicas de direito público ou fundos especiais de direito público.

3. O único tribunal competente para todas as reclamações atuais e futuras decorrentes desta relação contratual será o tribunal distrital de ... ou o tribunal regional superior deste tribunal, na medida em que as partes contratantes sejam comerciantes, pessoas jurídicas sob o direito público ou fundos especiais de direito público ou pelo menos uma das partes contratantes não tem jurisdição geral na República Federal da Alemanha.»


4. Na 1.ª instância, foi decidido julgar a excepção improcedente, em face da ineficácia do pacto atributivo de jurisdição, com a seguinte fundamentação:


“Nesta senda, mesmo que se provasse que a Autora aceitou os «Termos e Condições de Venda», nos quais consta o pacto atributivo de jurisdição aos tribunais alemães, considera-se que o litígio em causa nos presentes autos não emerge de uma relação transnacional, mas sim de uma relação puramente interna.


Os elementos de conexão com relevo remetem todos para Portugal, em concreto, a sede de ambas as partes, o local de entrega do veículo e a matrícula do mesmo.


O facto de o site www.auto1.com (terceiro nesta relação contratual), usado para a compra do veículo automóvel realizado em leilão eletrónico, ser alegadamente operado por uma entidade alemã não configura um elemento de estraneidade juridicamente suficiente ou, dito por outras palavras, não constitui um indício minimamente consistente de transnacionalidade.


Com efeito, a competência internacional é aferida em função da relação material controvertida, tal como é delimitada pela Autora, não havendo qualquer menção a uma entidade alemã que gere a plataforma online.


Conclui-se, assim, que o pacto atributivo de jurisdição é ineficaz, pelo que os tribunais portugueses são competentes.”


5. Por seu turno, o acórdão recorrido confirmou a sentença, com a seguinte motivação conclusiva, em face da não aplicação do Regulamento 1215/2012:


“No caso concreto, o negócio foi celebrado entre a apelante e a apelada, ambas com sede em Portugal, ainda que através de uma plataforma electrónica (on-line), pelo que inexiste relação jurídica transnacional. Nesta conformidade, carece de fundamento a invocação do direito da União Europeia, concretamente, do art. 25º do Regulamento (UE) nº 1215/2012 para determinação do tribunal competente.”


Vejamos o direito aplicável.


6. No âmbito da repartição do poder de julgar entre os vários tribunais, a competência internacional, enquanto pressuposto processual, designa “a fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros, para julgar as acções que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas estrangeiras. Trata-se, no fundo, de definir a jurisdição dos diferentes núcleos de tribunais dentro dos limites territoriais de cada Estado”2.


Por outras palavras, a competência internacional apenas se afere quanto temos objectos processuais e partes da causa que comportam uma ou várias conexões com uma ou várias ordens jurídicas distintas, na perspectiva da ordem jurídica portuguesa, e, por isso, exigem a aplicação das regras da competência internacional, levando a que os tribunais nacionais conheçam de situações que, apesar de possuírem essa relação com ordens jurídicas estrangeiras (relação jurídica plurilocalizada), apresentam igualmente uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa3.


Para este efeito, sempre que o litígio que é submetido a juízo apresenta elementos de estraneidade relativamente à ordem jurídica portuguesa, ou seja, conexão (objectiva, subjectiva, substantiva ou processual) com outras ordens jurídicas – nacionalidade dos sujeitos de direito, o domicílio das partes, o lugar da ocorrência do facto ilícito, o lugar da celebração do acto ou negócio jurídico, o lugar do cumprimento da obrigação, etc. 4–, coloca-se uma questão de competência internacional dos tribunais portugueses para apreciar essa relação jurídica.


7. Nos termos da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário: LOSJ), o art. 37º, 2, estabelece que compete à lei de processo fixar os factores de que depende a atribuição da competência internacional dos tribunais judiciais portugueses.


O art. 62.º do CPC estabelece esses factores (sem dependência ou sucessão entre si):


a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa – critério da coincidência;


b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram – critério da causalidade;


c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real – critério da necessidade.


E, por força do disposto no art. 59º do CPC, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique – embora sem esgotamento para este efeito – algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º, assim como 63.º (este para a «competência exclusiva»5), ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º, sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais.


Isto significa que “as regras de competência internacional de direito interno só se aplicam quando não devam prevalecer as mencionadas regras de direito europeu ou de direito internacional”. Logo, “quando algum destes instrumentos seja aplicável, é pelas regras nele estabelecidas que deve aferir-se a competência dos tribunais portugueses”; por outro lado, “se for aplicável algum desses instrumentos e dele não resultar a competência dos tribunais portugueses, também não poderá tal competência resultar da aplicação das regras internas”6.


8. O art. 94º do CPC, que regula os «pactos privativo e atributivo de jurisdição», permite que as partes acordem sobre a matéria da competência internacional dos tribunais portugueses.


Determina:


«1 – As partes podem convencionar qual a jurisdição competente para dirimir um litígio determinado, ou os litígios eventualmente decorrentes de certa relação jurídica, contanto que a relação controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica.


2 – A designação convencional pode envolver a atribuição de competência exclusiva ou meramente alternativa com a dos tribunais portugueses, quando esta exista, presumindo-se que seja exclusiva em caso de dúvida.


3 – A eleição do foro só é válida quando se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:
a) Dizer respeito a um litígio sobre direitos disponíveis;



b) Ser aceite pela lei do tribunal designado;


c) Ser justificada por um interesse sério de ambas as partes ou de uma delas, desde que não envolva inconveniente grave para a outra;


d) Não recair sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;


e) Resultar de acordo escrito ou confirmado por escrito, devendo nele fazer-se menção expressa da jurisdição competente.


4 – Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se reduzido a escrito o acordo constante de documento assinado pelas partes, ou o emergente de troca de cartas, telex, telegramas ou outros meios de comunicação de que fique prova escrita, quer tais instrumentos contenham diretamente o acordo quer deles conste cláusula de remissão para algum documento em que ele esteja contido.»


Neste âmbito, são pactos atributivos de jurisdição os acordos pelas quais as partes conferem competência aos tribunais portugueses e pactos privativos de jurisdição os acordos pelas quais as partes retiram aos tribunais portugueses a competência que lhes é, em geral, reconhecida pela lei, atribuindo-a em exclusivo a tribunais estrangeiros7.


9. Perante a salvaguarda de prioridade estabelecida pelo art. 59º do CPC, e seguindo a doutrina consensual, é jurisprudência estabilizada neste STJ que, em matéria de competência internacional, a nossa lei processual – no caso, quanto à disciplina interna de competência internacional consagrada no CPC – reconhece a prevalência de que gozam, sobre a nossa lei nacional, os regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais a que o nosso país está vinculado, numa decorrência do plasmado nos arts. 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e 8º, 2 e 4, da CRP, onde se consagra o primado do direito da União Europeia sobre o nosso direito interno, bem como da própria jurisprudência emanada do TJUE8-9.


Impõe-se, desta forma, apurar de que forma, uma vez aplicável como prevalecente sobre o regime processual geral do CPC10, poderá ser convocado o Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial11, cujas normas têm aplicação directa e prioritária na ordem jurídica interna.


10. Este instrumento legislativo europeu prevê a competência judiciária em matéria cível e comercial, independentemente da natureza da jurisdição (art. 1º, 1), devendo ser ponderada a sua aplicação em face dos factos alegados pela Ré e os pedidos feitos de anulação negocial do contrato de compra e venda de bem móvel, redução do preço e responsabilidade civil indemnizatória (cfr. Considerando (10)) – enquanto relação jurídica de direito privado cível.


De acordo com o art. 2º, a), «decisão» para o Regulamento 1215/2012 é «qualquer decisão proferida por um tribunal de um Estado-Membro, independentemente da designação que lhe for dada, tal como acórdão, sentença, despacho judicial ou mandado de execução, bem como as decisões de fixação do montante das custas do processo pela secretaria do tribunal.»


A regra geral atributiva de competência resultante deste Regulamento encontra assento no art. 4º, nos termos do qual o critério geral é o domicílio do réu ou requerido (demandado), em princípio num dos Estados membros da União Europeia, independentemente da sua nacionalidade e de outras conexões da situação em concreto (cfr. Considerando (15)) – princípio do actor sequitur forum rei.


Para esse efeito, o art. 63º, 1, considera que uma sociedade ou pessoa colectiva tem domicílio no lugar em que tiver: a) a sua sede social; b) a sua administração central; ou c) o seu estabelecimento principal.


Por seu turno, o art. 5º determina que «[a]s pessoas domiciliadas num Estado-membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo [arts. 7º a 26º].»


E, se o requerido não tiver domicílio num Estado membro, a competência será determinada pela lei do respectivo Estado membro (art. 6º, 1).


Estas regras apresentarm desvios ou especialidades relativas à competência, com destaque para os arts. 7º e ss, 18º, 1, 21º, 2, 24º e 25º deste Regulamento.





Em especial, o art. 25º («Extensão de competência») prevê a possibilidade de as partes, por acordo, fixarem a competência de um tribunal de um Estado membro distinto do «domicílio» (nacionalidade ou sede) das partes para dirimir os litígios que tenham surgido ou possam surgir de uma determinada relação jurídica – ou seja, um pacto atributivo de jurisdição.12


Este regime prevalece sobre as regras de direito interno, nomeadamente os arts. 59º (na parte aplicável) e 94º do CPC. Nomeadamente, “o regime torna ainda mais residual o âmbito de aplicação do art. 94º”, uma vez que este “só pode ser aplicado a acordos que retirem competência internacional a um tribunal português e a atribua aos tribunais de um Estado que não seja membro do Reg. 1215/2012”13.


Transcreve-se:


«1. Se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo. Essa competência é exclusiva, salvo acordo das partes em contrário. O pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:


a) Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita;


b) De acordo com os usos que as partes tenham estabelecido entre si; ou


c) No comércio internacional, de acordo com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial concreto em questão.


2. Qualquer comunicação por via eletrónica que permita um registo duradouro do pacto equivale à «forma escrita».


3. O tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro a que o ato constitutivo de um trust atribuir competência têm competência exclusiva para conhecer da ação contra um fundador, um trustee ou um beneficiário do trust, se se tratar de relações entre essas pessoas ou dos seus direitos ou obrigações no âmbito do trust.


4. Os pactos atributivos de jurisdição bem como as estipulações similares de atos constitutivos de trusts não produzem efeitos se forem contrários ao disposto nos artigos 15.º, 19.º ou 23.º, ou se os tribunais cuja competência pretendam afastar tiverem competência exclusiva por força do artigo 24.º.


5. Os pactos atributivos de jurisdição que façam parte de um contrato são tratados como acordo independente dos outros termos do contrato.


A validade dos pactos atributivos de jurisdição não pode ser contestada apenas com o fundamento de que o contrato não é válido.»


Neste contexto, um dos objectivos da reforma de 2012, com a introdução do Regulamento (em relação ao Regulamento 44/2001), foi reforçar a eficácia e a amplitude dos pactos de jurisdição (eleição do foro), permitindo a validade da cláusula atributiva de jurisdição a um Estado membro, ainda que nenhuma das partes tenha domicílio nesse Estado membro, e mesmo que residam ou se sediem fora da União Europeia. Do disposto no art. 25º deste Regulamento, resulta, portanto, que, desde que as partes tenham acordado atribuir competência a favor de um tribunal europeu, este é obrigado a aplicar o Regulamento, independentemente de as partes estarem domiciliadas num outro Estado membro. E deve fazê-lo como competência exclusiva, nos termos melhor concretizados no art. 31º, 2 a 4, tendo o tribunal designado no pacto prioridade na apreciação da validade desse acordo. O que interessa, portanto, é aquilo que as partes convencionem atribuir a um tribunal ou aos tribunais de um Estado membro da EU competência para dirimir quaisquer litígios que tenham surgido ou possam surgir numa determinada relação jurídica.


Assim, será perfeitamente admissível a cláusula de um pacto privativo de jurisdição em que as partes têm domicílio ou sede num Estado membro da União Europeia e acordam atribuir competência a outro Estado membro, mesmo que com ele não tenham qualquer ligação, seja de nacionalidade seja de domicílio ou sede, à luz do art. 25º do Regulamento 1215/2012, pois mostra-se conforme com o objectivo de segurança jurídica que lhe está associado, sem qualquer imposição da tradicional referência ao litígio transfronteiriço subjectivo e sem dependência de uma conexão entre a relação controvertida e o tribunal designado14 (isto sem prejuízo da aferição da validade da cláusula, nos termos do mesmo art. 25º, o que deve ser apreciado à luz da lei do tribunal competente para a causa).


Nestes casos, o exigido elemento de estraneidade de um litígio é o próprio pacto privativo de jurisdição que prevê a atribuição da competência a um Estado membro diferente. A perspectiva tradicionalista que impunha que o conflito tivesse natureza plurilocalizada, isto é, que a relação jurídica em litígio estaria em contacto com diversas ordens jurídicas nacionais, mostra-se arredada, pois o elemento internacional a considerar é o que resulta do pacto de jurisdição e, portanto, da vontade das partes.


Deste modo, em síntese, uma vez demonstrado que se mostre acordada entre as partes a atribuição de competência para dirimir o litígio a um outro Estado membro, tal acordo é admissível à luz do art. 25º do Regulamento n.º 1215/2012, ainda que as partes tenham domicílio ou sede noutro Estado membro ou mesmo fora da União Europeia.15


11. Porém, como também é entendimento estabilizado, na doutrina e na jurisprudência, a competência internacional é aferida em função da natureza da relação material controvertida, nos termos em que é delineada pelo autor, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respectivos fundamentos (causa de pedir), independentemente do seu acerto substancial (quanto ao mérito) – este é um pressuposto inultrapassável.


12. In casu, a Autora, sociedade comercial com sede em Portugal, alegou que acedeu a um site de venda em leilão de veículos automóveis usados, e adquiriu à Ré o veículo automóvel identificado na petição inicial. Confrontada com a falta de entrega tempestiva do veículo, a Autora confrontou a Ré, “representação permanente” em Portugal de sociedade estrangeira relacionada com a exploração e venda no site, daí resultando, por força de defeito do automóvel e custos relativos ao transporte, o intento de invalidar o contrato de compra e ressarcir-se dos danos sofridos.


A Ré veio alegar que a Autora, ao utilizar o aludido site de negociações sob a forma de leilões, que é gerido por uma entidade terceira, “estranha e independente relativamente aos seus utilizadores – vendedores e compradores profissionais” –, vinculou-se aos “termos e condições” daquele site, de acordo com as quais será competente tribunal alemão para dirimir os litígios com os seus utilizadores, por força de pacto privativo de jurisdição constante daqueles termos e condições que a Autora alegadamente aceitara.


A relação jurídica configurada no processo implica a Autora e a Ré, ambas com sede e representação em Portugal, mas sendo a Ré “representação permanente” de sociedade estrangeira da União Europeia, demandada nos termos dos fundamentos que baseiam os pedidos e que servem de fundamento á acção.


Assim.


Em face da discrepância do teor das cláusulas em confronto, a única interpretação que podemos extrair, por ora e para o efeito pretendido, é tão-somente a de que a relação contratual em crise para a aplicação do pacto atributivo de competência pressupõe a relação jurídica que se interpõe entre os utilizadores do site e a pessoa jurídica que é titular e responsável pelo site (em concreto, uma sociedade comercial de responsabilidade limitada de direito alemão: a «AUTO1.com GmbH», tal como consta do Doc. 1 junto com a Contestação e a informação disponibilizada no respectivo site; cfr. arts. 607º, 4, 663º, 2, 679º, CPC) e as pessoas jurídicas (relacionadas ou não no âmbito do seu universo empresarial) que se apresentem como vendedores dos veículos nessa plataforma.


Ora, de acordo com a relação jurídica pressuposta pela Autora, e correspondentes causa de pedir e pedidos ínsitos na petição inicial, para além do que foi configurado e aceite pela Ré, a relação jurídica em litígio é aquela que se estabeleceu entre a Autora compradora e a Ré, enquanto “representação permanente” com actividade em Portugal, em função do cumprimento e execução do contrato de compra e venda do veículo automóvel concluído no site, sem que tivessem sido aduzidos factos ou pedidos contra a pessoa terceira a que se imputa a titularidade e gestão da referida plataforma de negociação, no contexto da utilização e da prestação de serviços associados a essa plataforma, ou contra a pessoa terceira que se afigure como vendedora na plataforma de tais veículos (sejam ou não pessoas relacionadas entre si).


É neste trânsito entre a celebração do contrato e o cumprimento-execução do contrato (na concretização dos seus efeitos jurídico-materiais e na satisfação do interesse do credor em face das prestações exigidas ao devedor) que encontramos o critério decisivo.


Com efeito.


O elemento de estraneidade que a Ré pretende adicionar, isto é, o pacto atributivo de jurisdição, não pode ser atendido nem oponível às partes tal como identificadas na acção, na medida em que tal pacto tem como pressuposto a ou as relações jurídicas com um terceiro sujeito, estranho ao pedido e à causa de pedir reflectidos no processo: a saber, a “entidade”-pessoa jurídica que é titular e administra o site de comercialização de automóveis usados e/ou a ou as “entidades”-pessoas jurídicas que nele efectua(m) negócios enquanto vendedora(s).


A Ré – melhor, esta Ré, na qualidade subjectiva e processual de “representação permanente” de uma sociedade de nacionalidade estrangeira –, enquanto interveniente ulterior na execução do contrato celebrado em plataforma electrónica, não pode impor à sua contraparte um pacto atributivo de jurisdição devida pela utilização daquela plataforma para a compra do bem em litígio, em que se integram como vendedores sociedades estrangeiras com personalidade jurídica. A pessoa que se poderia prevalecer de tal pacto é terceiro para este efeito processual e não é parte directa no litígio, razão pela qual o referido pacto atributivo de jurisdição – seja em que conformação for de convocar, atenta a disparidade já assinalada entre o conteúdo da contestação da Ré e o documento 1 junto como alegado correspondente – apenas poderá regular as relações jurídicas que se estabeleceram entre as partes, enquanto actuando singularmente no acesso aos serviços dessa plataforma, e essa pessoa terceira ou outras enquanto titulares-gestoras da plataforma e vendedoras.


Quanto às partes neste processo e ao litígio tal como aqui delimitado, com Ré distinta para efeitos susbtantivos e processuais das entidades terceiras em causa, o alegado pacto de jurisdição é inoponível para o efeito de eleição do foro internacionalmente competente.


Sendo certo que a Ré, enquanto dotada de personalidade judiciária, só é e pode ser demandada sobre factos por si praticados enquanto “representação permanente” – assim determina o art. 13º, 1, do CPC, ou seja, exige-se a “imputação material do facto que é objecto do litígio”16.


Posto isto.


13. A Ré tem a sua forma jurídica expressa em “representação permanente”, nos termos do art. 4º, 1, do CSC, tendo “sede” e actuando em Portugal em nome e no interesse de uma sociedade com “sede principal e efectiva”17 (da administração) fora de Portugal – logo, uma sociedade de nacionalidade estrangeira (ou de estatuto pessoal estrangeiro), pois não tem em Portugal a sua sede efectiva, por força da presunção operada pela sua sede estatutária18 –, sujeita ao especial regime de publicidade dos arts. 10º, c) e d), e 40º, 2, do CRCom.19.


Com efeito, a sociedade estrangeira representada – a saber, a «Auto1 European Cars B.V.» – tem a sua sede estatutária (e, portanto e sem mais, a efectiva) na Holanda (agora, Países Baixos), como resulta da consulta do registo comercial constante dos autos (v. Ap. 66 de 16/8/2016; requerimento sob a ref.ª CITIUS 24213822, de 11/10/2023; cfr. arts. 607º, 4, 663º, 2, 679º, CPC).


Desta forma, portanto, a relação jurídica controvertida tem conexão com uma ordem jurídica da União Europeia, por via da nacionalidade da representada em Portugal pela parte demandada, apresentando um elemento de estraneidade relevante para além de qualquer pacto atributivo de jurisdição – uma vez que a “representação permanente” constitui uma expressão orgânica em país diverso da entidade-sociedade em que se integra e a intervenção da “representação permanente” em substituição da própria pessoa coletiva que tenha a sede no estrangeiro se justifica em face da conexão com nacionalidade ou com o domicílio em território nacional20.


Sem prejuízo, para efeitos de aplicação do art. 4º, 1, do Regulamento 1215/2012, o domicílio do Réu corresponde à sede da “representação permanente” (e local) com a qual a sociedade com sede efectiva (e por ser estatutária) no estrangeiro desenvolve a sua actividade em Portugal, uma vez que vem a ser esta a demandada no litígio judicial.


Assim deve ser, de um lado, por interpretação extensiva do art. 63º, 1, a), do Regulamento 1215/2012 (para as pessoas colectivas e suas extensões), uma vez que este normativo deve ser aplicado igualmente às organizações ou entidades sem personalidade jurídica, abrangendo todos os sujeitos processuais que não sejam pessoas singulares, sendo suficiente a sua personalidade judiciária21 (com legitimação no prescrito, como regra de competência especial, no art. 7º, 5, do Regulamento («tribunal do lugar»));


por outra banda, nos termos habilitados pelo art. 62º, 1, do Regulamento 1215/201222, pela aplicação dos arts. 13º, 1 (personalidade judiciária das «representações») e 2 («Se a administração principal tiver a sede ou o domicílio em país estrangeiro, as (…) representações estabelecidas em Portugal podem demandar e ser demandadas (…) quando a obrigação tenha sido contraída com um português ou com um estrangeiro domiciliado em Portugal.») e 81º, 2, a) («Se o réu for outra pessoa coletiva ou uma sociedade, é demandado no tribunal da sede da administração principal ou no da sede da sucursal, agência, filial, delegação ou representação, conforme a ação seja dirigida contra aquela ou contra estas.»), do CPC.


14. Por isso:


14.1. À presente contenda não se mostra aplicável o art. 25º do Regulamento 1215/2012, uma vez que o pacto atributivo de jurisdição invocado pela Ré é inoponível às partes na presente acção.


Mesmo que assim não fosse, ademais, não se demonstra, com os elementos disponíveis nos autos, que o referido pacto atributivo de jurisdição tenha sido celebrado com as (exclusivas, em princípio) condições de validade exigidas nas als. do n.º 1 do referido art. 25º e necessárias a vincular a Ré “representação permanente” em Portugal (v. ainda, em acrescento, o art. 94º, 3, e) [«Resultar de acordo escrito ou confirmado por escrito, devendo nele fazer-se menção expressa da jurisdição competente.»], do CPC, uma vez sendo competente o tribunal português à luz desse art. 25º, tendo em conta a complementaridade – e só neste contexto – ditada pelo art. 67º do Regulamento 1215/201223).


14.2. Considerando que:


— o invocado pacto atributivo de jurisdição não é válido e é ineficaz em face das partes, para determinar o foro competente para a resolução do litígio fundado na relação material configurada nos autos;


— o litígio apresenta conexão relevante com o ordenamento jurídico dos Países Baixos (Estado membro da UE) por força da sede efectiva da sociedade representada pela Ré em Portugal;


— as partes têm sede (no caso da Autora) e representação permanente (no caso da Ré) em Portugal (Estado membro da UE);


aplica-se no caso o art. 4º, 1, do Regulamento 1215/2012: uma vez que a “representação permanente” da Ré – qualificada para o efeito como integrada na formulação legal de “domicílio” – está sediada em Portugal24, são os tribunais portugueses internacionalmente competentes para a tramitação e decisão da acção (equivalente à aplicação do CPC subordinado: arts. 62º, a), 80º, 1, e 81º, 2, do CPC).


Falecem, assim, as Conclusões da Recorrente, com a consequência processual que daí resulta para a tramitação subsequente da acção quanto à competência internacional do tribunal português.


III) DECISÃO


Pelo exposto, julga-se improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido, ainda que com fundamentação diversa e adicional.


Custas pela Recorrente.


STJ/Lisboa, 9/7/2024


Ricardo Costa (Relator)


Luís Espírito Santo


Maria do Rosário Gonçalves


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

____________________________________________

1. V., para este enquadramento processual-recursivo, LOPES DO REGO, “Problemas suscitados pelo modelo de revista acolhido no CPC. O regime de acesso ao STJ quanto à impugnação de decisões interlocutórias de natureza processual”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Maria Helena Brito, Volume II, Gestlegal, Coimbra, 2022, págs. 480-481, 484-485.↩︎

2. ANTUNES VARELA/J. MIGUEL BEZERRA/SAMPAIO NORA, Manual de processo civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 198.↩︎

3. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A competência declarativa dos tribunais comuns, Lex, Lisboa, 1994, págs. 32, 41-42, 43, 46.↩︎

4. V. por todos FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume I, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, págs. 412-413.↩︎

5. V. o art. 980º, c), do CPC.↩︎

6. RITA LOBO XAVIER/INÊS FOLHADELA/GONÇALO ANDRADE E CASTRO, Elementos de direito processual civil. Teoria geral, princípios, pressupostos, 3.ª ed., Universidade Católica Editora, Lisboa, 2023, págs. 204-205.↩︎

7. RITA LOBO XAVIER/INÊS FOLHADELA/GONÇALO ANDRADE E CASTRO, ob. cit., pág. 216.↩︎

8. V., sobre este último ponto, LUÍS DE LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, Vol. III, Tomo I, Competência Internacional, 3.ª ed., AAFDL Editora, Lisboa, 2019, págs. 78-79.↩︎

9. V., nomeada e mais recentemente, ex multis, com relação com o Regulamento 1215/2012 cuja prioridade nos ocupará, os Acs. do STJ de 9/5/2023, processo n.º 2038/20, 2/6/2021, processo n.º 449/18, 8/6/2021, processo n.º 20526/18, e de 7/10/2021, processo n.º 448/18; sempre in www.dgsi.pt.↩︎

10. Por todos, v. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 59º”, págs. 144-145, “Artigo 62º”, págs. 153-154, Código de Processo Civil anotado, Volume 1.º, Artigos 1.º a 361.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018.↩︎

11. Disponível in JOUE L 351, pág. 1 e ss; conhecido como Regulamento Bruxelas I bis).

Revogou (com “refomulação”) o Regulamento (CE) 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000 (conhecido como Regulamento Bruxelas I); entrou em vigor em 10 de Janeiro de 2015, com as alterações do Regulamento (UE) n.º 542/2014, de 15 de Maio, e do Regulamento Delegado (UE) 2015/281 da Comissão, de 26 de Novembro de 2014, com excepção dos arts. 75º e 76º; cfr. arts. 66º a 69º, 80º e 81º.↩︎

12. Avulta ainda o art. 24º, que restringe a aplicação do antes referido art. 63º do CPC (critério da exclusividade), que só se convoca nos casos que não forem subsumíveis a essa norma do Regulamento 1215/2012.↩︎

13. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Aspectos gerais do Reg. 1215/2012 (Reg. Bruxelas Ia) – Parte I”, Blog do IPPC, in https://blogippc.blogspot.com/2014/04/aspectos-gerais-do-reg-12152012-reg.html (28/3/2014).↩︎

14. V. esta asserção nos Acs. do STJ de 9/5/2023, cit., 2/6/2021, cit., 9/5/2019, processo n.º 3793/16 (in https://juris.stj.pt/ecli), e de 7/3/2019, processo n.º 13688/16 (in www.dgsi.pt).↩︎

15. V., para tudo, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Aspectos gerais do Reg. 1215/2012 (Reg. Bruxelas Ia) – Parte II”, Blog do IPPC, in https://blogippc.blogspot.com/2014/04/aspectos-gerais-do-reg-12152012-reg_12.html (13/4/2014), RUI MOURA RAMOS, “Competência judicial e execução das decisões na União Europeia. A reformulação do Regulamento Bruxelas I pelo Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro de 2012”, Estudos em memória do Conselho Artur Maurício, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, págs. 1282-1283, MARCO CARVALHO GONÇALVES, “Competência judiciária na União Europeia”, Scientia Iuridica, 2015, págs. 426-427, 441 e ss, RUI TORRES VOUGA, “O novo regime jurídico dos pactos de jurisdição (à luz do art. 25.º do Regulamento Bruxelas I revisto [Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro de 2012)]”, Revista do CEJ, 2018, págs. 66 e ss.↩︎

16. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 59º”, Código de Processo Civil anotado cit., pág. 66.↩︎

17. Cfr. art. 3º, 1, do CSC, com distinção em face da “sede estatutária” ou social: v. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, Volume II, Das sociedades, 8.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, págs. 116-117 (que, a nt. 221 – pága. 118, sustenta para o art. 4º, 1, a coincidência da sede efectiva com a sede estatutária da sociedade estrangeira).↩︎

18. Explicando a presunção de a sociedade ter a sede efectiva da administração no Estado da sede social ou estatutária (“Como, normalmente, a sede estatutária se situa no país da constituição, isto significa que, relativamente a estas pessoas coletivas, a teoria da sede postula que, em princípio, há coincidência entre o lugar da sede estatutária e o lugar da sede da administração.”), v. LUÍS DE LIMA PINHEIRO, “Introdução aos artigos 3.º 3 4.º (Direito Internacional Privado das sociedades)”, Código das Sociedades Comerciais anotado e Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais (DLA), coord.: A. Menezes Cordeiro, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, págs. 72-73.↩︎

19. V. LUÍS DE LIMA PINHEIRO, “Artigo 4º”, Código das Sociedades Comerciais anotado e Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais (DLA), coord.: A. Menezes Cordeiro, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, págs. 86-88, RUI PEREIRA DIAS, “Artigo 4º”, Código das Sociedades Comerciais em comentário, Volume I (Artigos 1º a 84º), 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, págs. 93-94, PEDRO LIETÃO PAIS DE VASCONCELOS, “O Brexit e o art. 4º do Código das Sociedades Comerciais”, Direito das Empresas – Reflexões e Decisões, coord.: Ricardo Costa, Almedina, Coimbra, 2022, págs. 106 e ss (“O art. 4º aplica-se a atividades desenvolvidas em Portugal, por sujeitos estrangeiros, mesmo que os sujeitos não estejam em Portugal e mesmo que o estabelecimento (conjunto de bens e situações jurídicas) não se encontrem em Portugal.”), 112 e ss (“desenvolvimento de atividade em Portugal por parte da sociedade comercial estrangeira”, por exemplo, “negócios cujo objeto deva ser entregue em Portugal” ou “cujos efeitos prático-jurídicos se produzam, no todo ou em parte, em Portugal”).↩︎

20. V., neste sentido, ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, “Artigo 13º”, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigo 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, págs. 44-45.↩︎

21. Neste sentido, LUÍS DE LIMA PINHEIRO, ob. cit., pág. 113.↩︎

22. «Para determinar se uma parte tem domicílio no Estado-Membro a cujos tribunais é submetida a questão, o juiz aplica a sua lei interna.»↩︎

23. «O presente regulamento não prejudica a aplicação das disposições que, em matérias específicas, regulam a competência judiciária, o reconhecimento e a execução de decisões, contidas nos atos da União ou nas leis nacionais harmonizadas nos termos desses atos.»↩︎

24. Sem prejuízo da prevalência do critério geral (no sentido de não se excluir a normal competência dos tribunais do domicílio do réu: RITA LOBO XAVIER/INÊS FOLHADELA/GONÇALO ANDRADE E CASTRO, ob. cit., pág. 208), v. ainda o critério especial do art. 7º, 1, a) e b), do Regulamento 1215/2012 (lugar do cumprimento da obrigação; cfr. Considerando (16)).↩︎