Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3372/18.7T8VNF-A.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUIS ESPÍRITO SANTO
Descritores: VALOR DA CAUSA
AÇÃO DE PREFERÊNCIA
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
RECURSO SUBORDINADO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Data do Acordão: 02/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - A cumulação de pedidos só tem influência na determinação do valor da causa quando se trate de pedidos distintos, no sentido de não pretenderem as partes conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que as restantes se propõem obter.
II - Numa acção de preferência em que há vários titulares com direito a preferir, o valor da causa não se calcula pela soma dos montantes que cada preferente está disposto a oferecer para obter o desiderato que é comum: substituir-se ao adquirente na aquisição da quota social transmitida e assumir, em seu lugar, a qualidade de cessionário.
III - Com efeito, tanto a autora como cada um dos intervenientes admitidos nos autos prosseguem na presente acção exactamente o mesmo desígnio jurídico, traduzido no efeito associado ao exercício individual do direito de preferência que lhes assistirá uma vez arredados, pela licitação, os restantes concorrentes.
IV - O art. 299.º, n.º 4, do CPC, pressupõe, com vista à sua aplicação, que não se encontre previamente definido o pedido inicial formulado (quer pela autora, quer pelos restantes intervenientes principais), partindo a norma legal de uma situação de indefinição do valor concreto correspondente à utilidade económica do pedido que, por sua natureza, só poderá vir a ser encontrado numa fase mais adiantada do processo, como sucede tipicamente nos processos de liquidação em que foi deduzido inicialmente pedido genérico.
V - Havendo sido apresentado, tanto pela autora como por cada um dos intervenientes, o valor correspondente ao seu concreto pedido, devidamente quantificado e preciso - e não ilíquido -, não é aplicável, para efeitos de fixação do valor da causa, o disposto no art. 299.º, n.º 4, do CPC.
VI - Encontra-se em consonância com o critério legal estabelecido no art. 301.º, n.º 1, do CPC, a fixação do valor da acção que tem como referência o valor mais alto oferecido e depositado nos autos com vista ao exercício do direito de preferência, constituindo nessa medida a expressão da utilidade económica do pedido e que resulta, em termos gerais, do disposto no art. 1410.º, n.º 1, do CPC.
Decisão Texto Integral:


 
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).

I - RELATÓRIO.
Instaurou AA a presente acção declarativa, com processo comum, contra Cosoli, SGPS. S.A. e Crosscalender, S.A..
Essencialmente alegou:
Por escrito de 25 de Março de 2016 e pelo preço de € 1.500,00, a 1ª Ré Cosoli, SGPS. S.A., cedeu à 2ª Ré Crosscalender, S.A., a quota social que aquela detinha na sociedade por quotas “Olinveste, SGPS, Lda.”, da qual a autora e os intervenientes são igualmente sócios, sendo que tal cessão foi operada sem o conhecimento e autorização da sociedade Olinveste, assim como da autora e dos demais sócios, violando o exercício de direito preferência que lhes assiste, que a autora veio exercer através da presente ação.
Mais requereu a intervenção principal dos demais sócios da referida “Olinveste”, na medida em que os mesmos são contitulares do referido direito de preferência relativo à transmissão da identificada participação social, a fim de, como associado da autora, prosseguirem os termos da presente demanda.
Conclui pedindo, a título principal, que:
a) Seja reconhecido à autora, conjunta ou individualmente, o direito de preferência na cessão de quota com o valor nominal de € 994.625,95 no capital social da “Olinveste”, que a “Cosoli” fez à “Crosscalender” pelo preço de € 1.500,00, substituindo-se a autora à ali cessionária no respetivo contrato;
b) Seja ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos que hajam sido feitos na sequência dessa cessão, nomeadamente a favor da ré “Crosscalender”, pelo Dep. 123/2016.04.27 e a sua inscrição na titularidade daqueles que venham a exercer a preferência.
Ou, a título alternativo, quando se entenda dever aplicar-se a forma processual do art. 1037º, do C. P. Civil, que seja ordenada a alteração da forma de processo e aproveitados os actos praticados e:
a) Seja reconhecido à autora o direito à licitação no exercício do direito de preferência na aquisição da identificada quota social;
b) Seja ordenado a notificação dos intervenientes para comparecerem no Tribunal no dia e hora que sejam fixados, a fim de se proceder a licitação entre eles e a autora, no que respeita ao exercício daquele direito de preferência.
As rés contestaram, designadamente excepcionando a falta de verificação de condição sine qua non da acção (determinação prévia de preferente), assim como invocaram a caducidade do direito da autora.
Defenderam-se ainda por impugnação, tendo concluído pela improcedência da acção e pelo indeferimento do incidente de intervenção a título principal provocada requerida pela autora.
Entendem que o valor da presente causa deverá fixar-se em € 481.179,37.
Mediante despacho proferido em 7 de Novembro de 2018, foi indeferido o incidente de intervenção principal provocada dos restantes sócios da sociedade “Olinveste”. (cfr. fls. 126 e 127).
A autora veio responder à defesa por exceção apresentada pelas rés (cfr. fls. 128 a 130), tendo concluído pela improcedência das mesmas e, no mais, como na petição inicial.
Foi proferido despacho a 31 de Dezembro de 2018, no qual se dispensou a realização da audiência prévia e se fixou o valor da ação em € 481.179,37.
Após o que foi proferido despacho saneador, onde se julgou procedente a excepção dilatória inominada de falta de condição de procedibilidade da acção, por não ter arredado os demais sócios com direito de preferência na cessão de quotas.
AA. AA interpôs recurso de apelação, no qual suscitou a nulidade do despacho saneador por ambiguidade e por omissão de pronúncia, pedindo a revogação da decisão que não admitiu a intervenção principal dos demais sócios da R. Cosoli, e do despacho saneador que julgou procedente a exceção dilatória inonimada, bem como pela revogação da decisão fixou o valor da causa em € 481.179,37, a qual, em seu entender, deveria ser fixado no valor que indicou na petição inicial (€1.750,00).
Em 6 de Junho de 2019, foi proferido acórdão que julgou procedente a apelação e, consequentemente, revogou os despachos proferidos a 7 de Novembro de 2018 (cfr. fls. 126 e 127) e a 31 de Dezembro de 2018 (cfr. fls. 131 a 133) e, em consequência, decidiu admitir a intervenção principal provocada dos demais identificados sócios da sociedade “Olinveste – SGPS, Lda.”, com a subsequente citação dos mesmos para os termos da presente demanda (art. 319º, do C. P. Civil), seguindo-se os ulteriores termos processuais.
A propósito do valor da causa, consignou-se no mesmo acórdão:
“Por último, no que se refere ao valor da presente causa, a mesma deverá relegar-se para fase ulterior do processo, uma vez respeitado o princípio do contraditório, mormente no que à mesma refere, em relação aos demais sócios que irão intervir na presente acção, como associados da autora”.
Regressados os autos à primeira instância, por despacho de 19 de Setembro de 2019 foi ordenada a citação dos demais sócios da Olinveste, SGPS, Lda: Acro SGPS, SA, F Pimenta, SGPS, SA, Oro-Sociedade Gestora de Participações, Sociais, SA, JO Investimentos- SGPS, SA, BB e CC para contestarem, querendo.
Os demais sócios da R. apresentaram articulado próprio, no qual declararam pretender exercer a preferência.
A interveniente Oro formulou pedido de reconhecimento do direito de preferência pelo preço de € 24.750.00 que depositou, acrescido de € 250,00 para despesas e cada um dos restantes cinco intervenientes manifestou também a vontade de preferir pelo preço de € 1.500,00 que depositaram, acrescido de 250,00 relativo a despesas.
As RR. por articulado de 3 de Setembro de 2020, pronunciaram-se sobre os articulados oferecidos pelos intervenientes.
Em 2 de Novembro de 2020 foi proferido despacho saneador, tendo sido fixado o valor da acção nos seguintes termos:
“Nos termos do disposto no artigo 301º, nº 1 do CPC, por ter sido pedido se declare o direito de preferência em cessão de quota da sociedade Olinveste, fixo à causa o valor pelo qual o negócio foi realizado- € 1.500,00.”
Tanto a interveniente principal ORO-Sociedade Gestora de Participações Sociais, Lda., como as RR. Cosoli, SGPS. S.A. e Crosscalender, S.A.., vieram interpor recurso deste despacho para o Tribunal da Relação ..., o qual, através do acórdão proferido em 6 de Maio de 2021, julgou procedente a apelação da interveniente Oro e parcialmente procedente a apelação das RR. Cosoli, SGPS, S. A. e Crosscalendar, S. A., revogando o despacho que fixara à causa o valor de € 1.500,00, fixando-o agora em € 24.750,00.
Apresentou Cosolis.SGPS, SA, recurso de revista contra a decisão de fixação do valor da causa.
Concluiu nos seguintes termos:
1.ª – A revista é admissível, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 629.º,n.º 2, al. b) e 671.º, n.º 2, al. a), ambos do CPC;
2.ª – Está-se em presença de direitos de preferência concorrentes: no dizer do próprio acórdão recorrido “os sócios que pretendem exercer o direito de preferência são sete e apenas a uma deles pode ser adjudicada a quota”;
3.ª – Em face da natureza concorrencial dos direitos de preferência ajuizados, cada um dos intervenientes, a par da Autora, formula uma pretensão substantiva própria, sendo que a atribuição a um deles do direito de preempção significa a exclusão dos direitos dos demais;
4.ª – Temos assim que, à semelhança do que acontece com a pretensão da A., a formulação por cada um dos intervenientes do pedido de reconhecimento do direito de preferência representa uma diferente e própria utilidade ou valor económico;
5.ª – O mesmo é dizer que há tantos pedidos quantos os litisconsortes;
6.ª – Com efeito, a intervenção principal consubstancia uma verdadeira e própria acção, reconduzindo-se a uma cumulação atípica de pedidos; o interveniente principal faz valer um direito próprio, é titular de um interesse também próprio, e como parte principal, reclama a tutela de um direito subjectivo radicado na sua esfera jurídica.
7.ª – Por isso, deduzida intermação principal activa, o valor da causa corresponde à soma dos valores dos pedidos formulados pelo(s) autor(es) e pelo(s) interveniente (art. 299.º, n.º 2, CPC);
8.ª – No caso dos autos, verifica-se portanto, uma cumulação de pedidos: cada interveniente formula um pedido de caracter substancial, tradutor de uma pretensão autónoma, que configura uma distinta utilidade económica;
9.ª – Nos termos do art. 297.º, n.º 2, do CPC, no caso de cumulação de pedidos o valor de causa corresponde à soma de todas as parcelas, sendo certo que essa norma abrange, conforme entendimento da generalidade da doutrina, a cumulação de pedidos litisconsorcial;
10.ª – De resto, no rigor das coisas, a argumentação do acórdão recorrido encerra uma contradictio in adjectu: se o pedido da interveniente Oro é relevante para efeitos de fixação do valor da causa, devem, por identidade de razões, ser atendidas as pretensões substantivas dos demais intervenientes, por isso que cada uma dessas situações jurídicas reveste uma utilidade económica distinta das demais;
11.ª - Na espécie vertente, cada um dos intervenientes principais apresentou articulado próprio, no qual declaram pretender exercer a preferência, isto é, cada um dos intervenientes formula uma pretensão substantiva própria - a atribuição do direito de preferência em exclusivo.
12.ª - A interveniente Oro formulou o pedido de reconhecimento do direito de preferência pelo valor de € 24.750,00, que depositou, e cada um dos restantes cinco intervenientes manifestou também a vontade de preferir pelo valor unitário de € 1.750,00, igualmente depositado, o que significa que o valor da causa é o correspondente ao somatório dos valores dos pedidos formulados pelos intervenientes e do pedido formulado pela Autora.
13.ª - Somado o valor dos pedidos dos intervenientes (€ 33.750,00, correspondendo € 24.750,00 à interveniente Oro, e € 8.750,00 € aos demais cinco intervenientes) ao valor do pedido formulado pela Autora (€ 1.750,00), alcança-se o valor global de € 35.250,00, que é o valor que deve ser fixado à causa.
14.ª - Subsidiariamente, a fixação definitiva do valor da causa deverá corresponder ao lance mais alto da licitação entre os preferentes, cuja realização foi determinada nos autos pela 1.ª instância;
15.ª - O n.º 2 do art. 306.º do CPC estatui a regra de que o juiz deve fixar o valor da causa no despacho saneador, comportando, porém, duas excepções, relativas, por um lado, aos processos em que não haja lugar a despacho saneador e, por outro, aos processos a que se refere o n.º 4 do art. 299.º do CPC, ou seja, aqueles em que a utilidade económica do pedido só se define na sequência da acção (nessas duas hipóteses, expressamente ressalvadas no n.º 2 do art. 306.º do CPC, a sentença será, pois, o lugar próprio para a fixação do valor da causa).
16.ª - In casu, por despacho de 11 de Dezembro de 2019, foi determinada a realização da licitação para preferência entre a A. e os intervenientes principais, que, porém, não se realizou até à data presente ainda não se encontra fixada a utilidade económica do pedido em termos definitivos; só no momento da licitação é, corporizada na realização do maior lanço, se poderá proceder à correcção e fixação definitiva do valor da causa, que até aí terá um valor meramente provisório.
17.ª - Aplica-se, portanto, o disposto no n.º 4 do art. 299.º do CPC, segundo o qual “nos processos de liquidação ou noutros em que, analogamente, a utilidade económica do pedido só se define na sequência da acção, o valor inicialmente aceite é corrigido logo que o processo forneça os elementos necessários”, o que vale por dizer que valor a ter em conta não pode ser aquele que lhe é atribuído na acção, devendo, ao invés, tal valor ser corrigido de acordo com o resultado da licitação ordenada.
18.ª – Donde, para o caso de se entender que o valor da causa não é o resultante da soma dos pedidos formulados pelos intervenientes e do pedido formulado pela Autora, terá de se concluir que o Tribunal a quo não pode fixar em definitivo o valor da causa, pois tal implicaria que o mesmo não mais poderia ser corrigido em função do valor da licitação.
19.ª – A sentença recorrida violou por erro de interposição as disposições legais citadas supra.
Recorreram subordinadamente BB e J.O. INVESTIMENTOS, SGPS, S.A., Intervenientes Principais, apresentando as seguintes conclusões:
1.ª — No entender dos ora Recorrentes, a douta decisão recorrida assenta numa fundamentação que, se correctamente interpretada, pode aceitar-se, mas retira uma conclusão que se afigura errada, ao decidir fixar o valor da causa, em termos definitivos, no referido montante de € 24.750 euros.
2.ª — O acórdão recorrido decide duas coisas, ambas relacionadas estritamente com a questão do valor da causa. A primeira, que o critério relevante para efeitos da aferição do valor da causa é o do “valor do acto determinado pelo preço a que alude o artº 301º, nº 1 do CPC e não apenas o valor constante do contrato”; a segunda, que, verificando-se que um dos Intervenientes, a Oro, havia depositado uma quantia de € 24.750 euros a título de preço, deveria ser esse o valor da causa.
3.ª — Ao assim decidir, porém, o Tribunal a quo não está a tomar posição sobre o modo como, a final, deverá ser decidida a acção, nem está a tomar posição se a pretensão da Oro tem algum fundamento e se o montante adiantado por esta tem alguma relevância.
4ª — A decisão do Tribunal a quo também não condiciona em nada a sequência do processo em Primeira Instância, nomeadamente quanto à questão de saber se, após se apurar quais são os preferentes que manifestaram validamente a intenção de exercer a preferência, deverá ser realizada a licitação já ordenada para se adjudicar a quota ao preferente que ofereça o montante mais elevado ou se deverá antes prevalecer o critério especial previsto no art. 6.º, n.º 6, dos estatutos da Olinveste, de repartição da quota alienada por esses preferentes.
5.ª — A não ser assim, aliás, a decisão seria manifestamente nula e ineficaz, por extravasar do objecto da questão decidenda.
6.ª — A decisão recorrida errou ao fixar definitivamente o valor da acção em € 24.750 euros.
7.ª — Na verdade, aceitando como bom o critério de determinação do valor da causa escolhido pelo Tribunal a quo, este é claramente um daqueles casos em que a utilidade económica do pedido só se apura, definitivamente, na sequência da acção.
8.ª — Dos articulados resulta que a utilidade económica do pedido, tendo em conta as posições assumidas pelos vários Intervenientes, é de pelo menos € 24.750 euros; falta apurar, porém, em face da sequência da acção, e nomeadamente em resultado daeventual licitação nela ordenada, seseráefectivamente esse, ou outro, o valor a considerar, a título definitivo, como sendo o que representa a utilidade económica do pedido.
9.ª — Por conseguinte, a atribuição de um valor de € 24.750 euros à causa só poderia, nesta fase, ser feita em termos provisórios, conforme previsto no art. 299.º, n.º 4, do CPC.
10.ª — Ao fixar o valor da causa, definitivamente, em € 24.750 euros, o Tribunal a quo não atendeu ao carácter manifestamente precário deste valor enquanto correspondente pecuniário da utilidade económica do pedido, em face da fase meramente vestibular em que ainda se encontra o exercício da preferência na acção, pelo que incorreu em violação do art. 299.º, n.º 4, do CPC.
Termos em que deverá julgar-se procedente o recurso e, consequentemente, substituir-se a decisão recorrida por outra que fixe à acção provisoriamente, nos termos do art. 299.º, n.º 4, do CPC, o valor de € 24.750 euros.
Contra-alegou a Cosolis.SGPS, SA, referindo:
Inadmissibilidade do Recurso Subordinado.
1. Uma decisão judicial pode causar decaimento simples, decaimento recíproco e decaimento paralelo consoante, respectivamente, só uma das partes fique vencida, ambas as partes fiquem vencidas, ou uma parte ou mais partes de uma pluralidade de sujeitos processuais – cfr., Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. IV, reimp. de 1984, pg. 293.
Na situação de decaimento recíproco podem ambas as partes recorrer de modo independente ou pode uma parte recorrer de modo independente e a outra de modo subordinado.
A justificação do recurso subordinado é a salvaguarda da igualdade no acesso ao recurso entre as contrapartes reciprocamente vencidas.
Com efeito, a introdução no CPC de 1961 da modalidade do recurso subordinado foi assim justificada:
“Essa decisão – de conformação com o veredicto do tribunal - assenta normalmente sobre a persuasão de que a outra parte se conformará também com ele. Se essa pressuposição se não verifica, parece equitativo conceder àquela parte a faculdade de interpor, se quiser, um recurso subordinado” (in BMJ, n.º 123, pg. 134).
Temos assim que o recurso subordinado é interposto pela parte que, tendo-se conformado inicialmente com a decisão recorrida, é surpreendida pela interposição de recurso pela sua contraparte – cfr., M. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pg. 496.
Nessa hipótese, em vez de se limitar à defesa, contrariando a argumentação aduzida pelo recorrente principal a fim de o recurso ser julgado improcedente, o recorrente subordinado vem recorrer da parte da decisão que lhe foi desfavorável, para o Tribunal superior reapreciar, também nesse segmento decisório, a decisão impugnada.
Como assinala F. Amâncio Ferreira, “se tal ocorrer, o recorrente principal pode ver alterado em seu prejuízo a decisão recorrida (reformatio in peius)” (in Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª ed., 2009, pg. 93.
2. A admissão de um recurso subordinado pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos.
O primeiro pressuposto é ambas as partes terem ficado vencidas, isto é, terem legitimidade recursória nos termos do n.º 1 do art. 631.º do CPC: ambas não obtiveram procedência total da sua pretensão (não dos respectivos fundamentos). Se só uma tiver ficado vencida não é admissível a cumulação de recursos, pois está-se perante um decaimento simples – cfr., v.g., Acs. STJ de 20.3.90, Proc. n.º 078098, e de 21.1.92, Proc. n.º 080464, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Donde, o recurso subordinado pode ser definido como o recurso que apenas pode ser interposto pelo vencido que seja recorrido – cfr., Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. V., reimpressão de 1984, pg. 291.
O segundo pressuposto do recurso subordinado é a parte contrária (não uma comparte, o que seria decaimento paralelo) ter deduzido recurso independente. – cfr., inter alia, Ac. STJ de 5.10.2003, Proc. n.º 02B2592, em www.dgsi.pt.
Uma vez que o recurso subordinado é uma reacção a um recurso independente (ou principal) da parte contrária, o primeiro depende da admissibilidade e da subsistência do segundo – cfr., Acs. STJ de 26.1.2017, Proc. n.º 308/13, de 15.6.2005, Proc. n.º 04S3167, de 27.1.98, Proc. n.º 97A902, de 3.6.97, Proc. n.º 96A917, de 20.3.90, Proc. n.º 078098, de 20.12.89, Proc. n.º 040230, e de 28.7.87, Proc. n.º 001597; Ac. RL de 8.10.2002, Proc. n.º 0042881, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
O terceiro pressuposto é o da subordinação do objecto do recurso subordinado ao objecto do recurso independente.
Efectivamente, a letra do n.º 1 do art. 633.º do CPC aponta claramente no sentido de que toda e qualquer impugnação recursória que mereça recurso independente pode também ser apresentada em modo de recurso subordinado, sendo que, em qualquer das modalidades, o respectivo objecto é uma parte de uma mesma decisão.
Ou seja, a lei toma por quadro comum do recurso principal e do recurso subordinado uma mesma decisão, embora cada um se refira a partes diferentes do julgado. A parte concretamente impugnada será aquela em que se decaiu, pela qual se afere a legitimidade recursiva (art. 631.º CPC).
Por conseguinte, o recurso subordinado incide – e só pode incidir – sobre um segmento decisório em que o recorrente tenha ficado vencido.
Neste sentido, que é corrente e pacífico, discreteia Luís Filipe Brites Lameiras: “Quer o independente, quer o subordinado, hão-de ser interpostos do mesmo acto decisório do juiz do mesmo despacho ou da mesma sentença.
O que acontece é que, esse mesmo acto contém extractos decisórios distintos, isto é, pronuncia-se, em parte, a favor de um dos lados da causa, e em outra parte, a favor do outro – sendo isto que significa que ambas as partes ficaram vencidas. Acompanhamos, por isso, Miguel Teixeira de Sousa quando escreve que, em regra, “o recurso principal e o recurso subordinado só podem ser interpostos da mesma decisão, ou melhor, de partes distintas de uma mesma decisão” (in Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2.ª ed., 2009, pg. 70).
Vale isto por dizer que o recurso subordinado pressupõe que a decisão recorrida contenha segmentos decisórios distintos e, como tal, seja divisível nessas diferentes partes dispositivas – cfr., Rui Pinto, CPC Anotado, vol. II, 2018, pg. 253; M. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 1999, pg. 497.
Quer o recurso independente, quer o recurso subordinado, têm por objecto a mesma decisão, aquela pela qual se afere, precisamente, se as partes ficaram reciprocamente vencidas e, por isso, se recorre “na parte (da decisão) que lhe seja desfavorável “ (art. 633.º, n.º 1, CPC).
Esse objecto comum tem expressão na legitimidade recursória: por ele se afere o recíproco decaimento dos recorrentes – principal e subordinado.
Em conformidade, é de concluir que o recurso subordinado só é admissível se tiverpor objecto a impugnação da parte em que se decaiu de uma mesma decisão.
3. Aqui chegados, pode desde já antecipar-se a conclusão segura de que o recurso subordinado não é legalmente admissível pela singela mas decisiva razão de a Recorrente não ser parte vencida no acórdão recorrido.
Como se demonstra.
O recurso ordinário, sendo uma fase da instância, carece de partes – cfr., A. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, pg.77.
O ser-se parte principal no processo não garante ipso facto a legitimidade para recorrer: a solução legal apela ao critério da sucumbência ou decaimento.
Com efeito, o regulando o pressuposto subjectivo dos recursos, o art. 631.º do CPC estabelece no seu n.º 1 de que só a parte principal que tenha ficado vencida pode recorrer.
A generalidade da doutrina qualifica o pressuposto subjectivo para a interposição de recurso estabelecido no n.º 1 do art. 631.º do CPC como sendo de legitimidade recursória – cfr., Castro Mendes, DPC, vol. III, 1987, pg. 14; A. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, pg. 162; Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. V, reimp. de 1984, pg. 266; Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil. À luz do novo CPC de 2013, 2014, pg. 115; J. Lebre de Freitas, CPC Anot., Vol. III, t.1, 2008, pg. 25; A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, pg. 72; Rui Pinto, O Recurso Civil. Uma Teoria Geral, 2017, pg. 177 e ss.
Para aferir da legitimidade recursória, há que atender ao que foi pedido pela parte: a parte é vencida sempre que uma pretensão sua é julgada improcedente, seja por razões de mérito ou razões processuais.
Assim, sintetiza Alberto dos Reis:
“Vencida é a parte cuja pretensão foi repelida ou rejeitada; vencedora é a parte cuja pretensão foi atendida” (in CPC Anotado, vol. V, reimp. de 1984, pg. 265).
O pressuposto subjectivo para a interposição do recurso afere-se, pois, pela desconformidade da decisão recorrida com a pretensão do recorrente.
Só a parte que sucumbiu, por não ver reconhecidos todos os efeitos jurídicos por si pretendidos, pode impugnar a decisão. No caso de sucumbência parcial, a parte apenas pode impugnar o segmento da decisão em que decaiu. E tal sucumbência deve apurar-se pelo exame da parte dispositiva da decisão.
Na verdade, a parte dispositiva de uma decisão judicial pode ser singular ou plural, consoante contenha um ou mais julgados. Em caso de pluralidade de julgados, só são susceptíveis de impugnação os que forem desfavoráveis ao recorrente, por só se poder recorrer daquilo em que se ficou vencido (art. 631.º, n.º 1, CPC).
É a parte dispositiva da decisão que afecta a esfera jurídica do recorrente (art. 635.º, n.º 3, CPC); o objecto mediato do recurso é a decisão recorrida, e não os seus fundamentos.
Do exposto segue-se, em síntese, que o critério de quem pode recorrer afere-se pela pretensão que a parte deduziu e a sua comparação com o conteúdo da decisão recorrida – cfr., J. Lebre de Freitas/A. Ribeiro Mendes, CPC Anotado, vol. III. t.1, 2008, pg. 25.
Consequentemente, para que se verifique a legitimidade recursória não basta ser-se parte principal; é necessário que a parte tenha deduzido “sem sucesso, total ou parcial, um pedido de produção de efeitos na sua esfera jurídica. Se o pedido julgado improcedente não é o seu é parte alheia à decisão” – cfr., Rui Pinto, O Recurso Civil, Uma teoria geral, 2018, pg. 196.
4. Há ainda que ter presente que o critério material de decaimento é definido como a parte ser prejudicada pela decisão.
A doutrina converge no entendimento de que o critério material de sucumbência é, no essencial, um critério de prejuízo, visto que nele se define “a utilidade na procedência, que funda a legitimidade do recorrente, em função do prejuízo que é causado pela decisão desfavorável” – cfr., J. Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol. III, t. 1, 2008, pg. 25; vd., t.b., no mesmo sentido, Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. V, reimp. de 1984, pg. 266; Castro Mendes, DPC, vol. III, 1987, pgs.14-15; A. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, pg. 162.
Na síntese sugestiva de Manuel de Andrade, “diz-se vencida a parte que sofreu gravame com a decisão, a quem ela foi desfavorável” (in NEPC, 1976, pg. 198).
É essa também a orientação da jurisprudência. Vejam-se a título de exemplo, o Ac. STJ de 23.4.91, Proc. n.º 079669 (“Só pode recorrer quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido, no sentido de prejudicado com a decisão”); Ac. STJ de 17.3.2016, Proc. n.º 806/13 (“o vencimento ou decaimento da parte devem ser aferidos segundo um critério material, que tem em consideração o resultado final da acção e a sua projecção na esfera jurídica da parte, e não numa perspectiva formal, em função dos fundamentos ou razões que ditaram a decisão ou da adesão ou não adesão do juiz à posição expressada pela parte sobre a matéria litigiosa”); Ac RC de 4.4.2017, Proc. n.º 825/15 (“no conceito de parte vencida, previsto no art. 631.º, n.º 1, do CPC, para efeito de legitimidade de recurso, a lei consagrou um critério material de legitimidade para recorrer, ou seja, a parte afectada objectivamente pela decisão, e não meramente um citério de legitimidade formal, em que não se obteve o que se pediu ou requereu”); Ac. TCAS de 18.6.2015, Proc. n.º 08609/15, (“na apreciação deste pressuposto subjectivo dos recursos, e para aferir da sua verificação, o que é efectivamente determinante é apurar em que medida é que a decisão é desfavorável ao recorrente e não tanto indagar do comportamento que assumiu no processo e precedeu aquela mesma decisão (critério formal)”.
Temos assim que para aferir o decaimento importa verificar em que medida a decisão recorrida é objectivamente desfavorável ao recorrente. A legitimidade recursória afere-se pelos efeitos materiais ou processuais da decisão concretamente impugnada. Quem não é prejudicado pela decisão, apesar de esta produzir efeitos contra ele, não tem qualquer interesse a tutelar, nenhuma necessidade de revogação ou alteração da decisão recorrida.
Isto dito.
5. No causo dos autos, os recorrentes subordinados não impugnaram a decisão da 1.ª instância (despacho de 2.11.20) que atribuiu à acção o valor de € 1.500,00.
Dessa decisão, apenas as ora recorrentes principais e a interveniente “Oro” interpuseram recurso para o Tribunal da Relação ....
A não interposição de recurso pelos recorrentes subordinados significa que se conformaram com aquela decisão da 1.ª instância, certamente por considerarem não ter sido por ela afectados desfavoralmente na sua esfera jurídica.
Na realidade, confrontada com uma decisão que lhe seja desfavorável, total ou parcialmente, a parte tem o ónus de a impugnar. Se não o faz, é porque a aceita e com ela se conforma.
Tendo-se conformado com o valor da causa fixado na 1.ª instância, não podem vir agora recorrer subordinadamente do acórdão da Relação prolatado na sequência de recurso interposto apenas pelas aqui recorrentes principais.
Uma vez que o acórdão recorrido fixou à acção um valor substancialmente superior ao fixado na 1.ª instância, e com o qual se conformaram, não se pode dizer que essa decisão lhes seja objectivamente desfavorável.
Pelo contrário, ainda que não tenham recorrido da decisão da 1.ª instância, os ora recorrentes subordinados viram a sua posição processual ser favorecida por força do acórdão recorrido, pois este, ao fixar à acção um valor superior ao fixado na 1.ª instância, abriu-lhes a via da apelação que antes lhes estava vedada.
Assim sendo, como efectivamente é, os recorrentes subordinados não ficaram vencidos no acórdão recorrido e, como tal, não têm legitimidade para recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça.
E se não podem recorrer de modo independente, pelas mesmas razões não o podem fazer subordinadamente.
Como vimos supra, o decaimento terá de ser apreciado em função da posição assumida por cada uma das partes e o resultado final expresso na decisão recorrida. É a sucumbência que dita a legitimidade para o recurso; vencida é a parte que deduziu sem sucesso, total ou parcial, uma pretensão material ou processual. Se o pedido julgado improcedente não é o seu, então é parte alheia à decisão e dela não pode recorrer.
Neste sentido, diz A. Abrantes Geraldes:
“O vencimento ou o decaimento devem ser aferidos em função da pretensão formulada ou da posição assumida pela parte relativamente à questão que tenha sido objecto de decisão” (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4.ª ed., pg. 78).
Ora, os recorrentes subordinados não deduziram junto do Tribunal da Relação nenhuma pretensão de ver alterada o valor da causa fixado na 1.ª instância; a posição processual por eles assumida foi a de aceitar esse valor.
Por outro lado, o acórdão recorrido contém um único julgado: a atribuição à acção do valor de € 24.750,00.
Uma vez que a decisão recorrida não é divisível, não se pode falar, nem sequer em abstracto, de um segmento decisório desfavorável susceptível de impugnação pelos recorrentes subordinados.
Acresce que:
6. Como está dito e redito na doutrina e na jurisprudência, exceptuando os casos de verificação de nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC), de existência de questão de conhecimento oficioso, de alteração do pedido, em 2.ª instância, por acordo das partes (art. 264.º do CPC) ou de mera qualificação jurídica diversa da factualidade alegada e provada (art. 5.º do CPC), os recursos destinam-se à reponderação de questões que hajam sido suscitadas pelo recorrente junto do tribunal recorrido.
Ora seja, os recursos visam apenas modificar as decisões recorridas, e não criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao tribunal de que se recorre.
Consequentemente, o Supremo Tribunal de Justiça não pode, por regra, apreciar uma questão que não foi anteriormente colocada pelo recorrente à Relação – cfr., entre muitos outros, A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª ed., 2014, pgs. 92-94; F. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª ed., 2009, pgs. 153-158; Ac. RP de 16.12.2015, CJ ano 40, t.5, 184.
Por todas e cada uma das razões acima apontadas, os recorrentes subordinados carecem de legitimidade para o recurso, pelo que deve ser liminarmente rejeitada a sua apreciação – cfr., Ac. STJ de 15.11.95, Proc. n.º 004339, www.dgsi.pt.
7. Em derradeira alternativa, verifica-se um abuso do direito ao recurso.
Como assinala Rui Pinto, “abusa do direito ao recurso a parte que não participou na formação da decisão de modo a evitar um certo resultado adverso, mas vem, depois, impugná-la” (in CPC anotado, vol. II, 2018, pg. 237).
Não tendo recorrido da decisão da 1.ª instância, precludiu o direito dos recorrentes subordinados de impugnar o acórdão da Relação que recaiu sobre aquele julgado.
É que “o direito ao recurso não pode deixar de estar limitado pelas preclusões que se abatem sobre as partes principais, enquanto sujeitas ao princípio da auto-responsabilidade” – cfr., Rui Pinto, CPC Anotado, vol. II, 2018, pg. 238.
II – Quanto ao Fundo
8. A alegação dos recorrentes subordinados quanto ao valor que deve ser atribuído à causa coincide com a linha argumentativa sustentada, subsidiariamente, pelas Rés no recurso de apelação e reeditada na presente revista. Por esse facto, as rés estão naturalmente de acordo com a posição dos recorrentes subordinados.
A problemática verdadeiramente em apreço não é, contudo, o verdadeiro objecto do recurso subordinado.
O teor das alegações em resposta evidencia que o leitmotiv dos recorrentes subordinados é tão só o de afastar a posição privilegiada que resultaria para a interessada “Oro” pelo facto de ter indicado e depositado um valor (€ 24.750,00) superior àquele que os demais intervenientes principais ofereceram para efeitos do exercício do direito de preferência.
No rigor das coisas, o verdadeiro objecto do recurso é o de interpretar o real sentido e alcance do acórdão recorrido ao estabelecer como critério relevante para a fixação do valor da causa o montante (mais alto) depositado pela interveniente “Oro” para efeitos do exercício da preferência e de esse montante ter sido o referente utilizado no acórdão recorrido para fixar o valor da causa.
Segundo a tese dos recorrentes subordinados, o Tribunal da Relação, ao assim decidir, não se pronunciou (nem se podia pronunciar, sob pena de nulidade por excesso de pronúncia) sobre o fundo da causa.
Nas palavras dos recorrentes, ”com isso o Tribunal a quo não está a tomar posição sobre o modo como, a final, deverá ser decidida a acção” (cfr., n.º 19 das alegações), e, com base nessa interpretação “correctiva” do alcance do acórdão recorrido, declaram concordar com os seus fundamentos, mas já não com a conclusão deles extraída -, o que, por si só, envolve uma contradição nos próprios termos.
Ou seja, aquilo que os recorrentes pretendem acautelar é a interpretação do acórdão recorrido no sentido de que a decisão quanto ao valor da causa em nada interfere ou condiciona a decisão sobre a questão de fundo, nomeadamente a de saber se o direito de preferência deverá ser encabeçado no preferente que na licitação já ordenada por despacho de fls…ofereça o valor mais elevado ou se deve prevalecer o critério previsto no art. 6.º, n.º 6, dos estatutos da Ré Olinvest.
É este o verdadeiro cerne do recurso, sendo a discordância sobre o valor da causa meramente instrumental.
Ora, a única questão que pode ser decidida na revista é a do valor da causa, sendo esse o fundamento que permite o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.
A interpretação do julgado da Relação, designadamente na projecção dos seus termos dispositivos na decisão de mérito, exorbita manifestamente a questão do valor da causa, que é a única que pode ser apreciada e decidida.
E tanto basta para ditar a improcedência do recurso subordinado.
Termos em que, na procedência da questão prévia, deve ser julgado inadmissível o recurso subordinado, ou, se assim não se entender, julgar-se não conhecer do seu objecto.
Observado o contraditório, nos termos do artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, vieram os recorrentes subordinados apresentar articulado no qual responderam à questão da invocada inadmissibilidade do seu recurso.
 
II – FACTOS PROVADOS.
Os indicados no RELATÓRIO supra.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
1 – Admissibilidade do recurso subordinado.
2 - Fixação do valor da causa na acção de preferência em que o respectivo direito compete a várias pessoas simultaneamente, seguindo os termos do artigo 1032º do Código de Processo Civil. Prevalência do maior valor oferecido ou soma dos diversos valores oferecidos individualmente por cada um dos preferentes. Da aplicação da regra prevista no artigo 299º, nº 4, do Código de Processo Civil, tendo em consideração o valor do lance mais alto que venha a ser oferecido na sequência do prosseguimento da acção. Da determinação do valor da causa tendo por referência o valor mais alto oferecido e depositado à ordem dos autos, com vista ao exercício do direito de preferência, em consonância com o disposto no artigo 301º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Passemos à sua análise:
1 – Admissibilidade do recurso subordinado.
A decisão de 1ª instância que, em 2 de Novembro de 2020, fixou o valor da causa em € 1.500,00 apenas foi impugnada pela interveniente Oro – Sociedade Gestora de Participações Sociais, Lda, e pelas RR. Cosoli SGPS, SA, e Crosscalendar, SA.
No acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação ... em 6 de Maio de 2021, foi pela primeira vez e em termos expressos abordada e afastada a aplicação in casu do critério previsto no artigo 299º, nº 4, do Código de Processo Civil, fixando-se à causa o valor de € 24.750,00.
A questão jurídica que constitui o objecto da presente revista, admitida com fundamento no disposto no artigo 629º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Civil, reporta-se exclusivamente à matéria atinente à fixação do valor à presente causa, que abrangerá e afectará, exactamente nos mesmos termos, todos as partes na presente acção (A., RR. e intervenientes principais).
E é neste especial contexto que terá que ser compreendida a posição assumida pelos recorrentes subordinados que não tinham, de facto, reagido contra a decisão que, sobre esta matéria, fora proferida em 1ª instância.
Ou seja, estes recorrentes (intervenientes principais), embora aceitem neste momento o valor da causa que foi fixado em € 24.750,00, correspondente ao mais alto oferecido por um dos titulares do direito de preferência e entretanto depositado, pretendem, por via da interposição do seu recurso (subordinado), que se considere (apenas) que esse valor fixado à acção reveste natureza provisória (e não definitiva), devendo vir a ser modificado ou corrigido na sequência do prosseguimento dos autos, uma vez realizadas as necessárias licitações, à luz da regra consignada no artigo 299º, nº 4, do Código de Processo Civil.
Esta concreta pretensão acaba por ser essencialmente coincidente com a formulada pelos recorrentes principais que, a título subsidiário, referiram: “a fixação definitiva do valor da causa deverá corresponder ao lance mais alto da licitação entre os preferentes, cuja realização foi determinada nos autos pela 1.ª instância; (...) O n.º 2 do art. 306.º do CPC estatui a regra de que o juiz deve fixar o valor da causa no despacho saneador, comportando, porém, duas excepções, relativas, por um lado, aos processos em que não haja lugar a despacho saneador e, por outro, aos processos a que se refere o n.º 4 do art. 299.º do CPC, ou seja, aqueles em que a utilidade económica do pedido só se define na sequência da acção (nessas duas hipóteses, expressamente ressalvadas no n.º 2 do art. 306.º do CPC, a sentença será, pois, o lugar próprio para a fixação do valor da causa)”.
Ora, tratando-se de uma questão jurídica que apenas foi tratada, em termos concretos e específicos, pela primeira vez, no acórdão recorrido, e perante a natureza absolutamente singular do objecto do presente recurso - que se reporta exclusivamente ao valor da causa -, não é possível concluir-se que não exista decaimento por parte dos recorrentes subordinados, conforme é invocado pelos recorrentes principais.
O mesmo é dizer que não pode afirmar-se a sua ilegitimidade para recorrer nos termos do artigo 631º, nº 1, do Código de Processo Civil.
De resto, não resulta dos autos que os mesmos tivessem aceite, em momento algum, a natureza definitiva do valor fixado à acção que, de resto, não só se encontra igualmente em discussão no recurso principal, como não foi minimamente aflorada ou esclarecida na sentença de 1ª instância que se limitou a mencionar, de forma extremamente directa e sintéctica: “nos termos do disposto no artigo 301º, nº 1, do CPC, por ter sido pedido que se declare o direito de preferência em cessão de quota da sociedade Olinvest, fixo à causa o valor pelo qual o negócio foi realizado - € 1.500,00”.
Não se abrindo por esta via – através de recurso principal ou subordinado – a possibilidade discussão sobre a alteração superveniente do valor da causa, por aplicação da regra constante do artigo 299º, nº 4, do Código de Processo, os recorrente poderão ficar efectivamente prejudicados no debate (com ou sem razão) desta questão jurídica, que tem directa influência na possibilidade de interposição, pela sua parte, de um futuro recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, por falta de alçada.
Ou seja, tratando-se, em suma, de matéria – fixação do valor da causa – que abrange da mesma forma todos os intervenientes processuais e sobre a qual sempre competiria ao tribunal pronunciar-se, analisando da sua conformidade com as disposições legais que a regulam, entende-se não existir motivo bastante para a rejeição do presente recurso subordinado, que será, nessa mesma medida e por esses motivos, conhecido.
O que em nada afectará as recorrentes principais Cosoli-SGPS, SA., e Crosscalendar, S.A., que suscitaram precisamente, nas suas alegações/conclusões de recurso, esta mesma questão (aplicação da regra prevista no artigo 299º, nº 4, do Código de Processo Civil), embora a título subsidiário.
Admite-se, portanto, o recurso subordinado.
2 - Fixação do valor da causa na acção de preferência em que o respectivo direito compete a várias pessoas simultaneamente, seguindo os termos do artigo 1032º do Código de Processo Civil. Prevalência do maior valor oferecido ou soma dos diversos valores oferecidos individualmente por cada um dos preferentes. Da aplicação da regra prevista no artigo 299º, nº 4, do Código de Processo Civil, tendo em consideração o valor do lance mais alto que venha a ser oferecido na sequência do prosseguimento da acção. Da determinação do valor da causa tendo por referência o valor mais alto oferecido e depositado à ordem dos autos, com vista ao exercício do direito de preferência, em consonância com o disposto no artigo 301º, nº 1, do Código de Processo Civil.
A apreciação do presente recurso de revista versa exclusivamente sobre a questão processual respeitante ao valor a fixar à presente causa, a qual tem a ver com o exercício do direito de preferência que compete, individualmente, a diversos titulares.
A situação pode resumir-se nos seguintes termos:
1º - A A. AA instaurou acção declarativa comum destinada a ver-lhe reconhecido o direito à licitação no exercício do direito de preferência na aquisição da quota na sociedade Olinvest, SGPS, Lda., de que é sócia, e que fora transmitida pela Cosoli-SGPS, SA., à Crosscalendar, S.A., sem lhe ser feita a respectiva comunicação para preferir.
Indicou como valor da acção € 1,750,00, correspondente ao preço convencionado para a transmissão da quota entre a Cosoli-SGPS, SA., e a Crosscalendar, S.A., acrescido de despesas de registo.
2º - Na contestação que apresentaram, vieram a Cosoli-SGPS, SA., e Crosscalendar, S.A., impugnar o valor da causa, afirmando-se que o mesmo se deverá fixar em € 481.179,37, equivalente ao benefício ou utilidade que a A. se propõe alcançar através da presente acção, uma vez que o valor de € 1.750,00 constitui um preço meramente simbólico e que tal transmissão, feita a título oneroso (e real), nunca seria inferior àquele montante (de € 481.179.37).
3º - Na decisão proferida em 31 de Dezembro de 2018, na qual de decidiu pela procedência da excepção inominada da falta de condição de procedibilidade por não ter arredado os demais sócios com direito de preferência na cessão de quotas, foi fixado à causa o valor de € 481.179,37, com invocação do disposto no artigo 301º, nº 1, do Código de Processo Civil (interpretado no sentido de o valor da causa dever corresponder ao valor real da quota em cuja transmissão se pretende preferir).
4º - Por acórdão do Tribunal da Relação ... de 6 de Junho de 2019 foi revogada a decisão proferida em 31 de Dezembro de 2018 e admitida a intervenção principal dos demais identificados sócios da sociedade Olinvest-SGPS, Lda., e decidido, quanto ao valor da causa, que “(...) o mesmo deverá relegar-se para fase ulterior do processo, uma vez respeitado o princípio do contraditório, mormente no que ao mesmo se refere, em relação aos demais sócios que irão intervir na presente acção, como associados do autora.”.
5º - Veio a sócia Oro – Sociedade Gestora de Participações Sociais, Lda. apresentar articulado em que manifestou o exercício do seu direito de preferência sobre a alineação da quota representativa de 20% do capital social da Olinvest – SGPS, Lda., referindo que tanto a A. como cada um dos intervenientes exerceram o direito de preferência pelo valor unitário de € 1.750,00. Acrescenta que, nesta fase, exerce o seu direito de preferência pelo valor de € 24.750,00, a título de preço. No seu entender, deve ser este o valor a fixar à presente causa, na medida em que nas acções para preferência o valor da causa deve corresponder ao valor depositado pelo preferente, representando assim a utilidade económica do pedido (artigo 1410º ex vi artigo 421º, nº 2, do Código Civil).
6º - Em 2 de Novembro de 2020 foi proferido despacho que fixou à presente causa o valor de € 1.500,00, com a seguinte fundamentação: “Nos termos do disposto no artigo 301º, nº 1, do CPC, por ter sido pedido que se declare o direito de preferência em cessão de quota da sociedade Olinvest”.
7º - Desta decisão recorreram para o Tribunal da Relação ... ORO – Sociedade Gestora de Participações Sociais, Lda., e Cosoli-SGPS, SA., e Crosscalendar, S.A., concluindo a primeira no sentido de que o valor da causa deverá ser fixado em montante superior à alçada da 1ª instância, designadamente em € 24.750,00; e a segunda pretendendo que o valor da causa se fixe em € 35.500,00 (correspondente à soma de todos os pedidos dos intervenientes), ou, subsidiariamente, em € 481.179,37 (referente ao valor real da quota cedida), ou então que se relegue a determinação do valor da causa para momento ulterior em que seja realizada a licitação para a preferência, e em conformidade com o valor do maior lanço.
8º - Foi proferido acórdão do Tribunal da Relação ..., datado de 6 de Maio de 2021, que ficou o valor de causa em € 24.750,00, e onde se consignou a este respeito: .
“Nas acções de preferência, para a determinação do valor da ação, é de convocar o critério consagrado no nº 1, do art.º 301.º do CPC, sendo o valor da ação determinado por referência ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado entre as partes.
Nos casos em que, do lado activo da acção de preferência, apenas existe um titular que pretende exercer o direito de preferência, não suscita dúvidas que o valor da ação de preferência corresponde ao do preço pelo qual a coisa foi vendida. Nestas situações que serão as mais comuns, haverá identidade de preço entre o preço constante do contrato e aquele pelo qual se pretende preferir e que representa a utilidade económica do pedido formulado.
No casos em que do lado activo se posicionam vários sócios, concorrentes do direito de preferência, sendo que apenas a um dos sócios será atribuído esse direito, o valor do preço que qual se preferirá na cessão, poderá ser superior ao valor constante do contrato, uma vez que em consequência da pluralidade de titulares, o direito de preferência irá ser atribuído àquele que oferecer o melhor preço.
Assim, nos casos particulares em coexistem vários titulares, pretendendo exercer o direito de preferência, o valor do acto determinado pelo preço, não corresponderá ao preço constante do contrato, mas ao preço mais alto oferecido por um ou alguns dos titulares.
A tal valor não há que somar o valor dos pedidos formulados pela A. e pelos demais intervenientes, porque a tal se opõe o disposto no artº 299º, nº 2 e 530º, nº 3 do CPC, uma vez que qualquer dos intervenientes pretende conseguir em seu benefício o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter – a aquisição da quota cedida”.
9º- Recorrem Cosoli-SGPS, SA., e Crosscalendar, S.A., para o Supremo Tribunal de Justiça, respaldados na alínea b) do nº 2 do artigo 629º do Código de Processo Civil, sustentando que o valor a fixar à presente causa deverá resultar da soma dos pedidos realizados pelos diversos preferentes, nos termos dos artigos 299º, nº 2 e 4, 297º, nº 2, 306º, nº 2, do Código de Processo Civil, fixando-se à presente causa o valor de € 35.250,00, ou, subsidiariamente, a fixação definitiva do valor da causa deverá corresponder ao lance mais alto da licitação entre os preferentes, cuja realização foi determinada nos autos pela 1.ª instância.
10º - No mesmo sentido, os recorrentes subordinados pretendem que a atribuição à causa de um valor de € 24.750 euros, só poderia, nesta fase, ser feita em termos provisórios, conforme previsto no art. 299.º, n.º 4, do CPC e que assim seja declarado.
Apreciando:
Nos termos gerais do artigo 296º, nº 1, do Código de Processo Civil:
“A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica do pedido”.
Dispõe o artigo 301º, nº 1, do Código de Processo Civil: “Quando a acção tiver por objecto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um acto jurídico, atende-se ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes”.
Estabelece o artigo 299º, nºs 1, 2 e 4, do Código de Processo Civil:
“Na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a acção é proposta, excepto quando haja reconvenção ou intervenção principal” (nº 1).
“O valor do pedido formulado pelo réu e pelo interveniente só é somado ao valor do pedido formulado pelo autor quando os pedidos sejam distintos, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 530º” (nº 2).
“Nos processos de liquidação ou noutros em que, analogamente, a utilidade económica do pedido só se define na sequência da acção, o valor inicialmente aceite é corrigido logo que o processo forneça os elementos necessários” (nº 4).
Na situação sub judice estamos perante uma acção destinada ao exercício do direito de preferência que tem por objecto a cessão (não comunicada nem autorizada) de uma quota entre uma determinada sócia e um terceiro, sendo igualmente candidatos ao exercício da preferência os restantes sócios, concretamente a A. e os intervenientes entretanto admitidos nos presente autos, cada um titular, nos mesmos termos, do direito a preferir em relação ao objecto do dito contrato de cessão.
Não há dúvidas de que o critério para a fixação neste caso do valor da acção é o constante do artigo 301º, nº 1, do Código de Processo Civil, isto é, o do valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.
(considerando a aplicação deste critério às acções de preferência, vide Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa in “Código de Processo Civil Anotado. Volume I. Parte Geral e Processo de Declaração. Artigos 1º a 702º”, Almedina 2020, 2ª edição, a página 370; Miguel Teixeira de Sousa in “Código de Processo Civil Online”, publicado no Blogue do Instituto Português do Processo Civil (IPPC), em anotação ao citado artigo 301º, nº 1, do Código de Processo Civil; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Julho de 2021 (relatora Catarina Serra), proferido no processo nº 8526/19.6T8SNT.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Dezembro de 2002 (relator Eduardo Antunes), proferido no processo nº 02A2890, publicitado in www.jusnet.pt; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24 de Maio de 2011 (relatora Rosa Tching), proferido no processo nº 1.09.3TCGMR-A.G1, publicitado in www.jusnet.pt; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26 de Novembro de 2013 (relator Henrique Antunes), proferido no processo nº 9/11, publicitado in www.jusnet.pt acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16 de Outubro de 2007 (relator Isaías Pádua), proferido no processo nº 1937/04.3TBC, publicitado in www.jusnet.pt; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de Junho de 2018 (relatora Eugénia Cunha), proferido no processo nº 2269 /17, publicitado in www.jusnet.pt e que contém referências jurisprudenciais sobre este ponto; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9 de Dezembro de 2014 (relatora Maria Domingas Simões), proferido no processo nº 33/09.1TBPNC.C1, publicado in www.dgsi.pt).
Conforme refere, sobre este ponto, Salvador da Costa in “Os Incidentes da Instância”, Almedina 2020, 11ª edição, a página 40:
“Por força deste normativo, o valor processual da acção de preferência corresponde ao do preço pelo qual a coisa foi vendida e não ao seu valor real (...)”.).
Na petição inicial foi indicado como valor da causa € 1.750,00, resultante do preço da quota transmitida (€ 1.500,00) acrescido das despesas com a referentes à realização do registo comercial (€ 250,00).
O tribunal de 1ª instância, através do despacho proferido em 31 de Dezembro de 2018, fixou o valor da causa em € 481.179.37, correspondente ao valor real da quota cedida e sobre a qual incidirá o direito de preferência invocado pela A.
Revogado tal despacho e admitida a intervenção principal dos restantes sócios candidatos à preferência, por despacho de 2 de Novembro de 2020 foi então fixado o valor da causa em € 1.500,00 (preço da transmissão da quota).
Porém, na sequência do acórdão do Tribunal da Relação ... datado de 6 de Maio de 2021, e que constitui agora o acórdão recorrido, foi alterado tal valor para € 24.750,00, que expressa o montante mais elevado oferecido por um dos preferentes e depositado.
Interposta a presente revista pela alienante e pela adquirente da quota, vieram estas sustentar que o valor da causa se deverá fixar em € 35.250,00, que corresponde à soma do valor do depósito de € 24.750,00, com o valor total (€ 8.750,00) que cada uma das intervenientes se propõe preferir (e que é, em termos individuais de € 1.750,00), com o valor do pedido formulado pela A. (€ 1.750.00).
Para o efeito, invocam a aplicação do disposto no artigo 297º, nº 2, do Código de Processo Civil, uma vez que, segundo o seu entendimento, cada um dos intervenientes formulou um pedido próprio e autónomo.
As mesmas recorrentes aceitam, em termos subsidiários, que a fixação definitiva do valor da causa seja o do lance mais alto da licitação entre os preferentes, por aplicação da regra constante do artigo 299º, nº 4, do Código de Processo Civil.
Vieram os outros dois sócios candidatos à preferência (BB e J.O. Investimentos SGPS,S.A., através da interposição de recurso subordinado, pronunciar-se no sentido de a fixação do valor da acção em € 24.750,00 (que até poderá, no seu entender, aceitar-se), não ser considerada definitiva, na medida em que, face à sequência da acção, falta apurar, a título definitivo, a expressão pecuniária correspondente à representação da utilidade económica do pedido, após a realização das necessárias licitações.
Sustentam, pois, a aplicação neste caso da regra constante do artigo 299º, nº 4, do Código de Processo Civil.
As questões jurídicas que cumpre dilucidar são, portanto, as seguintes:
1 – Saber se numa acção de preferência em que existem, para além da A., diversos intervenientes principais, todos titulares individuais do direito a preferir, o valor da causa será o correspondente à soma dos valores pelos quais cada um se propõe exercer esse seu direito de preferência.
2 – Saber se a fixação, neste momento processual, do valor da causa deverá assumir natureza meramente provisória por aplicação da regra do artigo 299º, nº 4, do Código de Processo Civil, sendo corrigido em conformidade com a sequência do prosseguimento da presente acção, mormente em função das licitações que terão lugar nos autos.
3 – Saber se deverá fixar-se definitivamente o valor causa por referência ao valor mais alto oferecido entre os preferentes e que foi depositado à ordem dos autos.
Apreciando:
Quanto à primeira questão, afigura-se-nos que a lei não comporta a interpretação segundo a qual, numa acção de preferência em que são vários os titulares com direito a preferir, o valor da causa será calculado tendo por referência a soma dos montantes que cada um deles estará disposto a oferecer para obter o mesmo desiderato comum: substituir-se ao adquirente na aquisição da quota social respectiva, passando a assumir, em seu lugar, a qualidade de cessionário.
Conforme resulta do critério expresso no artigo 530º, º 3, do Código de Processo Civil, para o qual directamente remete o artigo 299º, nº 2, do mesmo diploma, a cumulação de pedidos só opera, com influência no apuramento do valor da causa, quando estes sejam distintos entre si, no sentido de não pretenderem as partes respectivas conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que as restantes se propõem obter.
No caso concreto, tanto a A. como cada um dos intervenientes principais prosseguem na presente acção exactamente o mesmo desígnio jurídico, traduzido no efeito associado ao exercício individual do direito de preferência que lhe assiste, uma vez arredados, pela licitação, os restantes concorrentes.
Logo, à luz dos preceitos legais invocados, não há fundamento para a pretendida soma dos valores oferecidos por cada um dos titulares do direito de preferência.
O artigo 301º, nº 1, do Código de Processo Civil é claro quando alude ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.
A soma das verbas inicialmente oferecidas por cada um dos interessados na preferência não traduz, nem constitui, de modo algum o valor do acto na medida em que são concorrenciais entre si, não podendo subsistir autonomamente, como é lógico.
Umas afastam necessariamente as outras.
Pelo que não é possível fazer o paralelo com a situação de cumulação de pedidos autónomos entre si, que, prosseguindo um efeito próprio e distinto dos demais,, serão individualmente considerados e que implicam um tratamento jurídico diferenciado (por aplicação do disposto no artigo 299º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Não assiste assim razão à recorrente principal.
Quanto à segunda questão (que aglutina a pretensão subsidiária da recorrente principal e dos recorrentes subordinados), tudo se resume em saber se na acção de preferência em que existem vários preferentes, que licitarão entre si o exercício deste direito, deverá concluir-se que a utilidade económica do pedido só poderá definir-se na sequência do prosseguimento da acção, o que obrigaria a que qualquer valor inicialmente fixado assumisse necessariamente natureza provisória, que seria corrigido ulteriormente, tendo em atenção o lance mais alto que viesse a triunfar na licitação realizada entre os preferentes, nos termos gerais do artigo 1037º do Código de Processo Civil.
Trata-se, no fundo, da avocação da regra constante do artigo 299º, nº 4, do Código de Processo Civil.
Ora, são geralmente apontados como exemplos do preenchimento desta previsão normativa os processos de liquidação, o processo especial de liquidação da herança vaga em benefício do Estado (artigos 938º e seguintes), o processo de insolvência (artigo 15º do CIRE), a prestação de contas (artigo 941º e seguintes), o processo especial de inventário (artigo 302º, nº 3) ou a acção de indemnização em que seja formulado pedido genérico sujeito a posterior liquidação (artigo 566º).
(Sobre este ponto, vide José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume I, Almedina 2021, 4ª edição, a página 607; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa in obra citada supra, a página 368; Salvador da Costa, in obra citada supra, a página 36; Miguel Teixeira de Sousa, in obra citada supra, em anotação ao artigo 299º, nº 4, do Código de Processo Civil).
Vejamos:
Na situação sub judice estamos perante o exercício do direito de preferência que assiste a mais do que um titular, nos termos gerais do artigo 419º, nº 2, do Código Civil, onde se prevê: “Se o direito pertencer a mais de um titular, mas houver de ser exercido apenas por um deles, na falta de designação abrir-se-á licitação entre todos, revertendo o excesso para o alienante”.
O que significa que, em conformidade com o decidido acórdão do Tribunal da Relação ... proferido em 6 de Junho de 2019, junto a fls. 116 a 123, que transitou em julgado neste tocante, à A. assiste o direito a instaurar a presente acção de preferência, embora devam estar presentes na lide, em termos de litisconsórcio necessário, os restantes sujeitos titulares do direito de preferência em concorrência.
O artigo 299º, nº 4, do Código de Processo Civil, pressupõe, com vista à sua aplicação, que não se encontre previamente definido o pedido inicial formulado (quer pela A., quer pelos restantes intervenientes principais).
Tal norma legal parte de uma situação de indefinição do valor concreto que correspondente à utilidade económica do pedido que, por sua natureza, só poderá vir a ser encontrado numa fase mais adiantada do processo, tal como sucede tipicamente nos processos de liquidação em que se concretiza numa fase posterior o pedido genérico inicialmente apresentado em juízo.
(sobre a aplicabilidade deste artigo vide José Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Volume 3º, Coimbra Editora, 1946, a páginas 660 a 667, onde se refere:
“Há casos em que o valor da acção ou do processo depende, na realidade, do que vier a apurar-se no desenvolvimento da lide. São os casos em que a verdadeira finalidade do processo é uma liquidação. No momento em que a causa começa, o valor é ilíquido ou indeterminado; há-de liquidar-se ou determinar-se por virtude do mecanismo do próprio processo.
É o que sucede no inventário, na falência e na insolvência, na liquidação em benefício de sócios e na liquidação em benefício do Estado”.
Sobre esta matéria, vide ainda Eurico Lopes Cardoso, in “Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil”, Livraria Petrony, Lda., 1992, a páginas 38 a 39; Salvador da Costa, in obra citada supra, a páginas 35 a 36; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Março de 2019 (relator Abrantes Geraldes) proferido no processo nº 21112/16.3T8LSB-A.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt).
Ora, tanto a A. como cada um dos intervenientes apresentaram nestes autos o valor correspondente ao seu concreto pedido, devidamente quantificado e preciso, não ilíquido.
Não há, portanto, que proceder a qualquer tipo de liquidação de um valor futuro a apurar nos termos e para os efeitos do artigo 299º, nº 4, do Código de Processo Civil.
Logo, a disposição legal citada não tem aplicação na situação sub judice.
Assim, não é possível considerar que na presente acção de preferência, não obstante a existência de vários preferentes, a utilidade económica do pedido só deva ficar definida na sequência do prosseguimento da acção.
Os procedimentos previstos nos artigos 1037º e 1032º, do Código de Processo Civil não são aliás suceptíveis de alterar o critério estabelecido no artigo 301º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Quanto à terceira questão, afigura-se-nos em perfeita consonância com o critério legal estabelecido no artigo 301º, nº 1, do Código de Processo Civil, que a fixação do valor à causa seja feita tendo como referência o valor mais alto oferecido com vista ao exercício do direito de preferência, com a realização do respectivo depósito à ordem dos autos, constituindo nessa medida a expressão da utilidade económica do pedido, tal como decidiu o acórdão recorrido, e que resulta, em termos gerais, do disposto no artigo 1410º, nº 1, do Código de Processo Civil.
É esse exacto montante que, nos termos legais enunciados, será considerado como “o preço devido” para efeitos de fixação do valor da causa, obedecendo-se assim ao critério estabelecido no artigo 301º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Nega-se, assim, provimento às revistas (principal e subordinada).

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em negar provimento às revistas (principal e subordinada), confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes (principal e subordinados).

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2022.
                                                    
Luís Espírito Santo (Relator)                             
Ana Paula Boularot
Pinto de Almeida

V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.