Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1667/08.7TBCBR.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: PAULO SÁ
Descritores: TELEVISÃO
SUICÍDIO
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO À IMAGEM
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
DIREITO À INFORMAÇÃO
COLISÃO DE DIREITOS
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
EX-CÔNJUGE
DESCENDENTE
Data do Acordão: 12/02/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDIAS / PESSOAS SINGULARES / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS.
DIREITO INTERNACIONAL - DIREITOS HUMANOS.
Doutrina:
- ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 483.
- ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, vol. I, pp. 526, 529, 552 e 553.
- MENESES LEITÃO, Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra, 5.ª ed., vol. I, pp. 285, 287.
- PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, “Código Civil”, Anotado, Coimbra Editora, Coimbra, vol. I, 4.ª ed., p. 488.
- RUI DE ALARCÃO, Direito das Obrigações, 1983, Coimbra, p. 238.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 70.º, 80.º, N.ºS 1 E 2, 335.º, 483.º, N.º1, 487.º, N.ºS 1 E 2, 563.º.
CÓDIGO DEONTOLÓGICO DOS JORNALISTAS: - ARTIGOS 6.º, 9.º, 10.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 8.º, 26.º, N.º1, 37.º, N.°S 1 E 2, 38.°, N.°S 1 E 2.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM (CEDH), DE 4-11-50: - ARTIGO 10.º, N.º1.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM (DUDH), DE 10-12-48: - ARTIGO 19.º.
Sumário :
I - A liberdade de expressão e o direito à informação constituem direitos fundamentais, neste sentido podendo ser convocados os princípios plasmados no art. 19.º da DUDH, de 10-12-1948, e no art. 100.º, n.º 1, da CEDH, de 04-11-1950, integrados no direito interno ex vi do art. 8.º da CRP, gozando de consagração constitucional nos arts. 37.º, n.ºs 1 e 2, e 38.º, n.ºs 1 e 2.

II - Reflexamente, a todas as pessoas é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de rectificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos – art. 37.º da CRP.

III - Os direitos em colisão com a liberdade de expressão só podem prevalecer sobre esta na medida em que a própria Constituição os acolha e valorize.

IV - Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes, o que traz ínsita a ideia de limites ao próprio exercício do direito, que, uma vez ultrapassados, conduzirá o agente para o campo da ilicitude.

V - Tendo uma estação de televisão exibido, em virtude do cometimento de suicídio pelo A, que se imolou pelo fogo – na sequência da execução de uma decisão administrativa de despejo do seu restaurante –, uma entrevista a um amigo da vítima mortal, seguida das imagens de arquivo de uma pessoa que se encontrava num quarto de hospital, coberta de ligaduras, incluindo a face, à excepção dos olhos, com 90% do corpo queimado, e ligado a um ventilador, demonstrando o sofrimento do doente que estava a ser filmado, e cuja visualização causou uma forte e intensa dor nas autoras (respectivamente, viúva e filha da vítima) – que, além do mais, tiveram negado o acesso ao quarto de A e se convenceram que tal acesso havia sido dado aos jornalistas –, deveria a mesma (estação de televisão) ter informado que a imagem exibida era de arquivo, afastando, assim, a ideia nos espectadores, e em particular nos familiares próximos, de que o visionado era A.

VI - Afigura-se, no entanto, que não ocorreu qualquer violação dos arts. 6.º e 9.º do Código Deontológico dos Jornalistas, apenas se podendo sustentar ter ocorrido uma infracção ao art. 10.º, por o relato não ter sido rigoroso, permitindo interpretações erróneas, sendo que esta norma não se destina a proteger qualquer direito pessoal dos espectadores.

VII - É certo que as autoras invocam que as imagens lhes causaram e agravaram o sofrimento, mas também que parte desse sofrimento, como se deu por provado, derivou não directamente da notícia mas da sua convicção de que lhes havia sido coarctado o acesso à vítima e autorizado o mesmo à comunicação social; por outro lado, o sofrimento resultante de terem sido abordadas por diversas pessoas não pode ser imputado ao visionamento da imagem do hospitalizado, mas antes pelo insólito da imolação pelo fogo (no nosso meio e pela publicitação da notícia), perfeitamente natural, uma vez que a vítima optou por uma atitude pública de protesto, dessa forma tão radical.

VIII - Não existe violação do direito à imagem, nem reserva da intimidade das autores, uma vez que não se demonstrou que tenham sido tomadas fotografias não autorizadas à vítima, nem existe violação da reserva da vida privada, uma vez que foi a própria vítima que tornou público o facto e suscitou esse mesmo interesse público, afastando assim a ilicitude da actuação da ré.

IX - A transmissão das imagens descritas, imprimindo no contexto da notícia uma especial nota de dramatismo, com infracção da moderação e objectividade a que a ré, operadora de televisão, estava obrigada, não releva senão relativamente ao espectador em geral e ao seu direito de ser informado com verdade.

X - Reconhece-se que todas as notícias que relatam um grave acidente, uma catástrofe natural ou acto de desespero que deixa determinada pessoa em risco de vida cria nos seus familiares um agravamento da ansiedade e do sofrimento, mas este facto não pode dar origem a uma indemnização por não ser, em si mesmo, um acto ilícito.

XI - É de conceder revista e revogar a decisão das instâncias que atribuíram a cada uma das vítimas, a título de danos não patrimoniais, a indemnização de € 10 000 a cada uma, no montante global de € 20 000.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 1667/08.7TBCBR.L1.S1[1]

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Nas Varas Mistas de Coimbra, AA e BB vieram propor acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra CC, SA e HUC – Hospitais da Universidade de Coimbra, pedindo a condenação dos R.R. a pagar-lhes, solidariamente, a quantia de 40.000,00 euros, acrescida de juros moratórios à taxa legal, contados desde o trânsito em julgado da sentença condenatória.

Para tanto alegaram, em síntese, o seguinte:

São, respectivamente, viúva e filha de DD, o qual faleceu a 1.5.2008, por acto de suicídio, tendo regado o seu corpo com gasolina e ateado fogo, imolando-se, o que fez na sequência da execução de uma decisão administrativa de despejo do seu restaurante denominado “A ...”, sito na ....

O corpo do falecido ficou com 90% de queimaduras, tendo sido primeiramente assistido no Hospital Garcia da Orta, em Almada e, dada a gravidade do seu estado, foi transferido, por helicóptero, para a Unidade de Queimados do Hospital da Universidade de Coimbra, onde veio a falecer na data mencionada.

Tal ocorrência foi amplamente noticiada por diversos órgãos de comunicação social entre os quais a 1.ª R. a qual, no “...” das 20.00 horas do dia 1.5.08, noticiou uma reportagem sobre a situação, exibindo, nesta, imagens captadas no interior do quarto do hospital de Coimbra onde DD se encontrava, em estado crítico e à beira da morte, visualizando-se este da cintura para cima, todo coberto de ligaduras e ligado a um ventilador que assegurava a continuação da sua respiração, em evidente sofrimento e dor, que a 1.ª R. explorou ilegitimamente, pois que nem a família directa, nem o próprio DD deram autorização para a difusão de imagens da sua pessoa, no referido estado de saúde, e, ainda assim, a R. CC voltou a emitir para o ar a mesma reportagem, no dia seguinte, 2.5.08, à hora de almoço. Por sua vez, o 2.º R. autorizou a gravação das imagens mencionadas, ou não o tendo feito, violou, de todo o modo, os deveres de vigilância que lhe incumbiam, devendo por isso ser igualmente responsabilizado pelos danos causados.

As Autoras ficaram profundamente chocadas ao ver o seu marido e pai na televisão, nas descritas circunstâncias de saúde e sofrimento, ficando igualmente abaladas pelo facto de tais imagens serem exibidas ao público em geral, tendo-‑lhes sido coarctado o direito à reserva da vida privada, em concreto, a viverem os últimos momentos de vida do marido e pai em recato, assim como, pelo facto do 2.º R. lhes ter vedado o acesso ao falecido e ao quarto onde estava hospitalizado, do mesmo passo que a 1.ª R. ali entrou, captou as imagens e as difundiu.

As Autoras sofreram ainda outros danos de natureza não patrimonial, porque a seguir à exibição da reportagem foram contactadas por inúmeras pessoas conhecidas do falecido ou da família, que haviam visto as imagens e pretendiam saber pormenores da ocorrência, obrigando as AA. a reviver o episódio do suicídio dramático do marido e pai inúmeras vezes – episódio que tentavam esquecer e ultrapassar – e perante pessoas que não faziam parte das suas relações mais próximas, foram acusadas de “frieza” e “oportunismo” pois as pessoas ficaram convictas que as AA haviam dado autorização para a captação e exibição das mencionadas imagens, consideradas por todos chocantes, com vista a obterem proventos económicos com elas, o que as deixou desoladas e envergonhadas. Além disso, passaram a ter pesadelos, guardando nas suas memórias, como a última imagem do falecido, aquela que foi exibida pela 1.ª R, na aludida reportagem.

Perante tal actuação das RR. as Autoras contactaram a CC, em meados de Maio de 2008, ao que esta respondeu que as imagens da mencionada reportagem não diziam respeito à pessoa do falecido, mas a imagens de arquivo de outra pessoa captadas noutras circunstâncias, declinando qualquer responsabilidade na ocorrência, e, apesar daquelas terem solicitado os suportes relativos às imagens de arquivo com vista a verificarem o alegado, a R. nada mais disse.

O R. HUC – Hospitais da Universidade de Coimbra deduziu contestação onde excepcionou a incompetência material do Tribunal, já que à data dos factos era pessoa colectiva pública, dotada de personalidade jurídica, de autonomia administrativa e financeira, pelo que, nos termos do art. 1.º, n.º 1 e 4.º, n.º 1, g), do ETAF são os Tribunais Administrativos os competentes para dirimir qualquer conflito entre o Hospital aqui R. e os particulares a quem presta cuidados de saúde ou seus familiares, concluindo pela sua absolvição da instância.

No mais, impugnou a matéria vertida na petição inicial, salientando que a 1.ª R. não lhe solicitou qualquer autorização, nem concedeu autorização para a captação das imagens exibidas na reportagem, ou quaisquer outras, mais esclarecendo que as mesmas não foram recolhidas nas suas instalações.

Conclui pela sua absolvição do pedido.

A R. CC deduziu contestação, onde excepcionou a incompetência territorial das Varas Mistas de Coimbra para conhecer da acção, tribunal onde foi inicialmente intentada a presente acção, mais impugnando a matéria vertida na p.i., alegando que nunca esteve no quarto de hospital onde foi internado DD e que as imagens que exibiu na reportagem eram imagens de arquivo da CC, recolhidas em 5.1.2002, na Unidade de Queimados do Hospital de Santa Maria, pelo que, não tendo reproduzido quaisquer imagens do falecido, não violou o direito à imagem, nos termos do art. 79.º do CC, não tendo que pedir qualquer autorização às AA, nem violou o direito à reserva da vida privada, pois os factos que noticiou decorreram num espaço público e eram relevantes do ponto de vista social, tendo sido relatados com verdade e moderação.

Conclui pela improcedência da acção.

As AA. deduziram réplica, pugnando pela improcedência das excepções invocadas.

Foi proferido despacho, transitado em julgado, que julgou materialmente incompetente o Tribunal para conhecer do pedido formulado contra o 2.º R. HUC, absolvendo este da instância e julgou territorialmente incompetente o Tribunal de Coimbra, passando os autos a correr seus termos no Tribunal de Oeiras.

Decorridos todos os trâmites legais, procedeu-se à realização do julgamento e foi proferida sentença que decidiu julgar a acção parcialmente procedente, e, consequentemente, condenou a Ré CC a pagar às Autoras AA e BB, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de 10.000,00 (dez mil) euros a cada, no montante global de 20.000,00 (vinte mil) euros, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, vencidos desde o trânsito em julgado da sentença.

Inconformada com tal sentença, a CC – …, S.A. interpôs recurso de apelação, sem êxito, já que a Relação de Lisboa confirmou a decisão da 1.ª instância.

Desta decisão veio a R. recorrer, como revista excepcional, para este STJ, tendo o recurso sido admitido.

A recorrente concluiu as suas alegações do seguinte modo:

A) A Recorrente não se conforma com o douto Acórdão recorrido e entende que as questões a apreciar em sede de recurso de revista excepcional merecem e necessitam de uma melhor aplicação do direito, o que se justifica não só pela sua relevância jurídica, mas também porque configuram interesses, direitos e deveres da mais elevada relevância social e comunitária.

B) O conflito de interesses em causa e que preside ao litígio entre as partes, a apreciação de dois direitos de igual dignidade constitucional, a liberdade de expressão e publicação e a reserva da vida privada, e a análise, ponderação e apreciação jurídica do caso merecem uma atenção e densificação que o douto Tribunal da Relação de Lisboa não fez no Acórdão sob Recurso.

C) Não analisou em concreto o exacto conteúdo, configuração e extensão desses direitos que constituem um dos núcleos centrais do direito de personalidade, nem justificou de forma clara, precisa e fundamentada a necessidade e a proporcionalidade da limitação do direito à liberdade de expressão da R..

D) Embora estas questões já tenham sido várias vezes abordadas pela jurisprudência desse Supremo Tribunal, na realidade, as especificidades do caso e da forma como se considerou violado o direito das AA., nunca foi abordado, analisado e decidido na jurisprudência.

E) É, por isso, necessária a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, de forma a que, numa questão com a relevância jurídica e social incontestável, sejam clarificados e densificados os conceitos e soluções jurídicas em causa e efectuada uma melhor aplicação do direito.

F) A existência desta relação tendencialmente conflituante entre estes dois direitos constitucionalmente garantidos tem sido objecto de variadas intervenções do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem na interpretação e aplicação do art 10º da Convenção, elaborando uma jurisprudência que deve ser considerada como critérios de orientação para a necessidade de dirimir o confronto de direitos daí decorrente, dada a força vinculativa desta convenção.

G) Tal como estabelece o artigo 10º da convenção, o exercício desta liberdade está sujeito a excepções que devem interpretar-se estritamente, devendo a sua necessidade ser estabelecida de forma convincente.

H) A condição do carácter «necessário numa sociedade democrática» impõe ao Tribunal averiguar se a ingerência litigiosa corresponde a uma «necessidade social imperiosa».

I) O TEDH tem salientado que “no exercício do seu poder de controlo, o Tribunal deve apreciar a ingerência à luz das circunstâncias do caso tomado no seu conjunto, incluindo o conteúdo das criticas que são censuradas ao requerente e o contexto em que as produziu, compete ao Tribunal determinar nomeadamente se a ingerência criticada era «proporcionada às finalidades legítimas prosseguidas» e se os motivos invocados pelas autoridades nacionais para justificar a ingerência se mostram «pertinentes e suficientes»”

J) E por isso a apreciação deste caso por este Supremo Tribunal Justiça é necessária, não só para melhor aplicar o direito, como para dirimir uma questão de eminente relevância social e que pode colocar-se em outros casos semelhantes. que podem ser evitados mediante uma melhor clarificação e análise do seu conteúdo e limites.

K) É que, o douto Acórdão recorrido faz uma errada interpretação e aplicação do disposto nos art.ºs 8.º, 16.º, 18.º, 25.º. 26.º, 37º e 38.º da Constituição da República Portuguesa, do art.º 19º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do art.º 19.º do Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos e o artº 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

L) Fazendo, também uma errada interpretação e aplicação do disposto nos art.ºs 70.º, 79.º, 80.º, 335.º, 483.º, 484.º, 487.º 494.º, 496.º, 491.º e 563.° do Código civil, e do artº 6.º e 9.º do Código Deontológico dos Jornalistas.

M) A errada aplicação do direito é potenciada pelas erradas conclusões da sentença de primeira instância, adoptadas acriticamente pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

N) O direito à reserva da intimidade da vida privada que «tutela a natural aspiração da pessoa ao resguardo da sua vida privada. (...) Pretende-se assim defender contra quaisquer violações a paz, o resguardo, a tranquilidade duma esfera íntima de vida: em suma, não se trata de tutela da honra, mas do direito de estar só, na tradução de expressiva fórmula inglesa (right to be alone)” (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito civil, 3ª edição, 1988. pag 209).

O) O direito de reserva à intimidade da vida privada desdobra-se em duas vertentes, sendo uma o direito de impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e a outra o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada de outrem.

P) Nenhuma dessas vertentes da tutela do direito à intimidade da vida privada – de protecção contra intromissão na esfera privada das AA. e de revelações a ela relativas estão em causa nestes autos.

Q) Como ensina Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, na obra O Direito Geral de Personalidade, pág. 340 “Ao nível da determinação da próprio ilicitude das ofensas a tal bem não haverá, desde logo, comportamentos antijurídicos quando se trate do relato de acontecimentos da vida gerais e comuns o qualquer pessoa (como o nascimento, o casamento, a morte, promoções e transferências se não forem revelados pormenores íntimos, quando as circunstâncias do ser e da vida privada sejam tornados pelos próprios interessados livremente acessíveis ou ainda quando o titular não guarde ele o mesmo segredo.(...)

R) Impõe-se concluir que, ao contrário do que entendeu a 1ª Instância e o Tribunal da Relação, as AA. não foram directamente atingidas na sua intimidade da vida privada.

S) Não podemos esquecer que a R agiu nos limites da Liberdade de imprensa em especial da liberdade de expressão e informação e que a jornalista responsável pelas reportagens em análise actuou apenas de acordo com as regras da sua profissão.

T) Entre os direitos consagrados nos art.º. 26º e 37º da CRP, não é possível estabelecer qualquer relação de hierarquia, pois, ambos revestem idêntica dignidade constitucional, a avaliar quer pela respectiva inserção sistemática, no capítulo da Lei Fundamental dedicado aos “Direitos, liberdades e garantias pessoais”, quer pela sua submissão ao regime especial de protecção conferido pelo artº 18º da CRP.

U) A nossa Constituição, no seu art.º 37.° rejeita por completo a submissão do exercício da liberdade de expressão e de informação a qualquer forma, apenas admitindo limites ao seu exercício, reconhecendo que as infracções cometidas no seu exercício ficam sujeitas aos princípios gerais de direito criminal e do ilícito de mera ordenação social.

V) Compete ao julgador ponderar os valores e interesses envolvidos, avaliando a eventual medida da restrição, em face da necessidade prática de aplicar os dois direitos em conflito, definindo qual o que deverá ceder no caso concreto de acordo com o princípio da proporcionalidade consagrado no art.º 18º, n.º 2 da CRP.

W) É o que dispõe o art.º 335º do CC, que concede ao intérprete um critério para a prática do conflito de direitos.

X) Importa, Portanto, saber conjugar, em concreto, em caso de conflito, estes dois direitos fundamentais: o direito/dever de informação e o direito à reserva da vida privada.

V) E será com base nas normas da sistemática civilística, designadamente arts. 70º, 80º, 453º, nº 1, 484º, 487º e 497º, nº 1, do CC, que deve ser avaliada a ilicitude e, eventualmente, a culpa como pressuposto da obrigação de indemnizar fundamentada na responsabilidade civil extracontratual.

Z) Ficou claramente demonstrado nos autos a factualidade que determinou a elaboração da notícia.

AA) Ficou demonstrado que o pai e marido das AA. se imolou pelo fogo em local público e em protesto contra uma decisão administrativa de despejo do seu restaurante, sito na ....

BB) Ficou também demonstrado que a R. não obteve qualquer imagem do pai e marido das AA e que as imagens exibidas durante breves segundos não correspondiam nem ao local, nem à pessoa do Sr. DD.

CC) Havendo um interesse público inegável da noticia elaborada, a sua difusão está justificada pelo direito à liberdade de expressão e informação.

DD) Com a publicação desta noticia não excedeu a recorrente os limites da moderação, razoabilidade e adequação, que impedem sobre os meios de comunicação social, e não lesaram a reserva da vida privada das recorridas.

EE) Com a publicação desta notícia, a recorrente agiu apenas movida pelo desígnio de informar os telespectadores de factos de manifesto interesse público e nunca com a intenção de ofender a recorrida ou lesar a intimidade das AA.

FF) Não foram ultrapassados os critérios materiais ou limites imanentes do direito/dever de informar e a liberdade de imprensa, não gerando a notícia qualquer forma de responsabilidade designadamente responsabilidade civil.

GG) Refere o douto Acórdão sob recurso que a ilicitude do comportamento da R. se pode encontrar ou estabelecer pela violação do disposto no art.º 6°, do Código Deontológico dos jornalistas, que impõem a identificação das fontes, que a R. teria violado ao não identificar as imagens em causa como sendo de arquivo.

HH) Ora, não é correcta esta afirmação, desde logo porque a norma em causa refere-se e aplica-se a fontes de informação e não a material de trabalho do jornalista como imagens ou fotografias.

II) A imagem de arquivo utilizada pela jornalista não constitui manifestamente uma fonte de informação e não o sendo, a jornalista que elaborou a reportagem e a R., não violaram o disposto no referido no art.º 6º, do Código Deontológico dos Jornalistas, e não cometeram nenhum facto antijurídico.

JJ) Acresce que, que a decisão sob recurso não faz a correcta interpretação dos artigos 70º e 80º do Código Civil, uma vez que, nas imagens utilizadas na reportagem. não está objectivamente em causa, uma situação de intimidade da vida privada de outrem.

KK) O Acórdão sob recurso não consegue identificar, em concreto, qual o direito subjectivo, privado, absoluto, inato e perpétuo que foi atingido pela actuação da R e que violou a sua reserva da vida privada.

LL) Os actos praticados pelo marido e pai das AA. decorreram num espaço público e as suas consequências e estado de saúde também foram públicas e notórias.

MM) A notícia dos autos não se dirigia certamente à família das AA, nem a perturbar o seu recato e luto, mas apenas tinha como função informar a generalidade do público do acto de desespero de um cidadão contra as medidas administrativas impostas pelo programa Polis, na ....

NN) O facto de as AA. terem optado por preencher o seu tempo de luto e de sofrimento pela morte do seu ente querido, visionando as notícias que diziam respeito ao acto de suicídio do seu pai e marido e as consequências dramáticas que lhe sobrevieram, não pode surgir como justificação para se condenar a R. por violação da reserva da vida privada das AA. porque lhes relembrou o sucedido e assim aumentou o seu sofrimento.

00) É que o sofrimento das AA. não sobreveio porque a R deu a notícia e a mesma violou as suas intimidades. Resulta directamente do próprio acto do Sr. DD que optou por tornar público e dramático o momento da sua morte em protesto contra uma ordem administrativa.

PP) Para além disso, a utilização das imagens publicadas na reportagem sob análise integram-se na previsão do n.º 2, do artigo 79º, do CC, motivo pelo qual não pode ter existido qualquer ilicitude, já que se encontram preenchidas, pelo menos, duas das situações previstas no número 2 do artigo 79º do Código Civil, para que a publicação das referidas imagens não carecesse de qualquer autorização. Estão enquadradas num local público, um hospital, e estão enquadradas por factos de interesse público.

QQ) Por isso, a sentença em recurso ao reconhecer uma protecção que não está legalmente prevista, viola expressamente os artigos 70º, 79º e 80º, todos do Código Civil.

RR) Encontrando-se a actuação da ora R. enquadrada no exercício de um direito – o direito de informar cujos limites, como vimos, não foram excedidos, não se pode preencher o pressuposto da ilicitude, conditio sine qua non da responsabilidade civil e consequente dever de indemnizar invocado pelas AA.

SS) Está também totalmente ausente o requisito da culpa na produção de qualquer prejuízo às AA., na medida em que a culpa deve ser apreciada segundo o critério de um bom pai de família, nos termos do disposto no artº 487.º n.º 2 do Código Civil.

TT) E nenhum facto dado como provado sustenta a decisão do douto Tribunal a quo, que entendeu que a R. agiu com culpa, na divulgação das reportagens e das imagens que a compõem.

UU) Ao ter decidido da existência de responsabi1idade civil extracontratual da R. sem que as AA. tivessem alegado os factos constitutivos da sua culpa, a decisão viola os artigos, 483º, 486º do Código Civil, bem como o princípio do Dispositivo.

VV) Ao condenar as Recorrentes sem que tenha sido feita alegação do dolo, a sentença de 1ª instância e o Acórdão sob recurso violaram o disposto nos artigos 79º, 80º, 483º e 487º, todos do Código Civil, bem como o Princípio do Dispositivo.

WW) Não sendo ilícita nem culposa a conduta da R. afastada fica a sua responsabilidade civil extracontratual, pois sem esses pressupostos inexiste obrigação de indemnizar.

XX) Mas ainda que se verificassem os requisitos da ilicitude e da culpa, o que se admite para mero efeito de raciocínio, sem conceder, ainda seria discutível o dever de indemnizar as AA a título de danos não patrimoniais.

YY) A gravidade dos danos não patrimoniais não deve medir-se por padrões subjectivos. cabendo ao tribunal, em cada caso, se o dano, face à sua gravidade, merece ou não a tutela do direito e não cremos que se possa concluir que as AA. tenham sofrido danos da natureza não patrimonial que justifiquem a tutela do direito, tendo em consideração tudo o que foi aqui referido e os factos dados como provados.

ZZ) Por outro lado a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.”

AAA) Não pode também proceder a douta decisão de que os danos sofridos pelas AA. tiveram a mesma intensidade e merecem a mesma compensação indemnizatória, pois como é evidente cada uma das A. terá sofrido e sentido diversos tipos de danos, que deviam ter sido individualmente ponderados, analisados e diferentemente indemnizados.

BBB) É que, obviamente, o impacto e o alcance da lesão e dos danos serão, em concreto, diferentes para cada uma das A., importando apurar qual a sua particular importância e relevância na determinação do montante indemnizatório.

CCC) Caso assim se não entenda, sem conceder, deve o montante da indemnização fixado na sentença recorrida ser reduzido, atento o disposto no art 494º do Código Civil.

Não houve contra-alegações.

II. Fundamentação

De Facto

II.A. Foram dados como provados nas instâncias os seguintes factos:

Da matéria considerada assente no despacho saneador, sob as alíneas A) a K):

1º A Autora BB nasceu a …-…-19…, e é filha de DD;

2º A Autora AA casou com DD;

3º Este casamento veio a ser dissolvido por óbito de DD em …-…-20…;

4º A morte de DD deveu-se a um acto de suicídio, na sequência da execução de uma decisão administrativa de despejo do seu restaurante “A ...”, sito na ...;

5º DD regou o seu corpo com gasolina e, de seguida, acendendo um fósforo, imolou-se;

6º Com 90% do seu corpo queimado, foi primeiramente assistido no Hospital Garcia da Orta, em Almada, no dia 30-4-08, tendo sido transferido horas depois, por helicóptero, para a Unidade de Queimados dos Hospitais da Universidade de Coimbra, com prognóstico muito reservado;

7º Estes factos foram noticiados quer na imprensa, quer na televisão;

8º As autoras não deram qualquer autorização para a captação e difusão de imagens relativas a DD;

9º A R. CC no dia 1-5-08, cerca das 20.00 horas, no programa “...”, difundiu reportagem que continha a notícia da imolação de DD;

10º Nessa reportagem é realizada uma entrevista a um amigo de DD, tendo como cenário uma praia da ..., Almada, zona onde este vivia;

11º A reportagem de 1-5-08 foi repetida no dia seguinte, no “...”;

12º As imagens (da referida reportagem) mostravam o hall da entrada de um Hospital, sendo susceptíveis de induzir o telespectador no sentido de que se tratava do local onde o marido e pai das AA se encontrava internado (resposta ao art. 2º da b.i.);

13º Logo após a realização da entrevista ao amigo de DD, passava-se ao quarto de um Hospital, sendo as imagens susceptíveis de induzir o telespectador de que a pessoa que ali se encontrava, coberta de ligaduras, se tratava de DD (resposta ao art. 3º da b.i.);

14º Na mencionada reportagem, visualizava-se o tronco de um doente, todo coberto de ligaduras, incluindo a face à excepção dos olhos, com 90% do corpo queimado, e ligado a um ventilador, que assegurava a continuação da sua respiração (resposta ao art. 4º da b.i.);

15º As imagens transmitidas, que não possuíam a indicação de se tratarem de imagens de arquivo, em conjugação com o conteúdo da notícia, centrada na imolação de DD, criaram nas AA a percepção de que a imagem referida em 14º correspondia à pessoa de seu pai e marido (resposta ao art. 5º da b.i.);

16º As imagens captadas demonstravam o sofrimento do doente que estava a ser filmado; (resposta ao art. 6º da b.i.);

17º Nunca foi permitida a entrada da família de DD quer no Hospital Garcia da Orta, quer nos Hospitais da Universidade de Coimbra (resposta ao art. 7º da b.i.);

18º A visualização das imagens causou uma dor forte e intensa nas AA, além do mais por lhes ter sido vedado o acesso ao quarto de DD e se convencerem que tal acesso havia sido dado aos jornalistas (resposta ao art. 8º da b.i.);

19º Essas imagens ficaram-lhes para sempre na memória (resposta ao art. 10º);

20º Essas imagens causaram-lhes muitos pesadelos, em que as reviviam e voltavam a visualizar (resposta ao art. 11º da b.i.).

21º A R. CC divulgou as imagens, além de outros factores, para obter mais audiências (resposta ao art. 12º da b.i.);

22º A transmissão das imagens aumentou o sofrimento das Autoras (art. 13º da b.i.);

23º As Autoras nunca autorizariam a transmissão de imagens desta natureza (resposta ao art. 14º da b.i.);

24º Por estarem determinadas a ultrapassar o seu sofrimento (resposta ao art. 15º da b.i.);

25º Por força da reportagem efectuada pela R. CC, as Autoras viram-se forçadas a falar mais vezes na morte de DD (resposta ao art. 18º da b.i.);

26º Por serem abordadas por terceiros que haviam visionado a reportagem, questionando-as sobre o sucedido (resposta ao art. 19º da b.i.);

27º O que as transtornou, por terem de reviver uma situação que, com dificuldades extremas, se esforçavam por ultrapassar (resposta ao art. 20º da b.i.).

II.B. De Direito

II.B.1. – Nos termos dos artigos 684.º e 690.º do Código de Processo Civil a delimitação objectiva do recurso é feita pelas conclusões da alegação do recorrente, sendo certo que o recurso não se destina a obter, do tribunal “ad quem”, decisões sobre “questões novas”, salvo as de conhecimento oficioso e que não tenham sido já decididas.

Neste recurso estão em causa três questões:

a) Falta dos pressupostos para responsabilizar o Réu pelos danos não patrimoniais em causa;

b) Falta de justificação para a atribuição de indemnização pelos danos não patrimoniais invocados;

c) Redução do montante indemnizatório.

II.B.2 – Falta dos pressupostos para responsabilizar o Réu pelos danos não patrimoniais em causa

Na nossa ordem jurídica, o princípio basilar do regime da responsabilidade civil extracontratual decorrente da prática de actos ilícitos encontra-se plasmado no art. 483.º, n.º 1, do C.C.

Enuncia tal norma que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Como afirma MENESES LEITÃO (Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra, 5.ª ed., vol. I, p. 285), tal artigo vem estabelecer “uma cláusula de responsabilidade civil subjectiva, fazendo depender a constituição da obrigação de indemnização da existência de uma conduta do agente (facto voluntário), a qual represente a violação de um dever imposto pela ordem jurídica (ilicitude) sendo o agente censurável (culpa), a qual tenha provocado danos (dano), que sejam consequência dessa conduta (nexo de causalidade entre o facto e o dano).”

São, assim, pressupostos de que depende o direito de indemnização assente nesta modalidade da responsabilidade civil: o facto; a ilicitude; a culpa; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (neste sentido, ver ainda, entre outros, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 483; ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, vol. I, p. 526; e RUI DE ALARCÃO, Direito das Obrigações, 1983, Coimbra, p. 238).

O elemento básico da responsabilidade civil é o facto do agente – um facto voluntário.

Este facto consiste, por regra, num facto positivo, que importa a violação do dever de não ingerência na esfera de acção do titular do direito absoluto.

Mas, o facto pode traduzir-se também num facto negativo, numa omissão. Neste caso, a imputação ao agente exige a sua oneração com um dever especial de praticar o acto omitido. Dever esse que terá de resultar de contrato, da lei ou, resultar do facto de possuir coisas ou exercer actividades que se apresentam como potencialmente susceptíveis de causar dano a outrem, traduzindo-se o mesmo na obrigação de tomar providências adequadas a evitar a ocorrência de danos (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, Coimbra, vol. I, 4.ª ed., p. 488 e MENESES LEITÃO, obra e vol. citados, p. 287).

Fora do domínio da responsabilidade civil (por não haver voluntas) ficam os danos provocados por causa de força maior ou pela actuação irresistível de circunstâncias fortuitas (ANTUNES VARELA, Das Obrigações…, cit., vol. I, p. 529).

A ilicitude pode revestir duas formas essenciais: a) a violação de um direito de outrem (enquadram-se, aqui, tipicamente, os direitos absolutos); b) a violação da lei que protege interesses alheios.

Continuamos a seguir ANTUNES VARELA (Das Obrigações…, vol. I, pp. 552 e 553) que afirma:

“A violação do direito de outrem só é ilícita quando reprovada pela ordem jurídica. De um modo geral, pode dizer-se que a ilicitude é afastada quando se actua no regular exercício de um direito e no cumprimento de um dever jurídico. Há, ainda, causas especiais justificativas do facto: a acção directa, a legitima defesa, o estado de necessidade e o consentimento do lesado.”

A culpa exprime um juízo de censurabilidade da conduta pessoal do agente: este, em face das circunstâncias concretas do caso, devia e podia ter agido de outro modo.

A culpa pode revestir duas modalidades: o dolo e a negligência ou mera culpa.

Na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (art. 487.º, n.º 2 do CC).

O ónus da prova dos factos integrantes da culpa, no quadro da responsabilidade civil extracontratual, incumbe ao lesado, se não houver presunção legal de culpa (art. 487.º,n.º 1 do CC).

Para haver obrigação de indemnizar, é condição essencial que haja dano ou prejuízo a ressarcir.

Nem todos os danos sobrevindos ao facto ilícito são, porém, ressarcíveis, mas, apenas, os resultantes do facto ou causados por ele, à luz da teoria da causalidade adequada, consagrada no art.º 563.º do CC.

Feita esta breve digressão pelas ideias essenciais na matéria em discussão, passemos à sua concreta aplicação ao caso vertente, onde se suscitam dúvidas, insurgindo-se o recorrente contra o entendimento da 2.ª instância quanto à respectiva responsabilidade.

O ilícito:

A alegada violação dos direitos de personalidade ocorreu através da divulgação de uma reportagem na televisão, pelo que importa apreciar a questão do exercício das liberdades de expressão e de informação, consagrados constitucionalmente, dos seus limites e do seu conflito com outros direitos igualmente merecedores de tutela constitucional.

Nenhumas dúvidas existem quanto à dignidade constitucional do princípio fundamental da liberdade de expressão e do direito de informação (“liberdade de informar”, “de se informar” e “de ser informado”). Neste sentido, podem ser convocados os princípios plasmados no art. 19° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10-12-48 e no art. 100, n°1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 4-11-50, (integradas no direito interno “ex-vi” do art. 8.° da CRP) e com consagração constitucional – arts. 37.º, n.°s 1 e 2, e 38.°, n.°s 1 e 2 Título II – Direitos, Liberdades e Garantias –, da CRP.

Todos têm o direito de exprimir e de divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações, sendo certo que a todas as pessoas, singulares ou colectivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de rectificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos (art. 37.°).

Por isso, os direitos em colisão com a liberdade de expressão só podem prevalecer sobre esta na medida em que a própria Constituição os acolha e valorize.

Está constitucionalmente garantido o princípio da salvaguarda do bom nome e reputação individuais, o direito à imagem e à reserva da vida privada e familiar – art. 26.°, n.°1, da Constituição da República Portuguesa. Este é um dos vários preceitos que concretizam a ideia da protecção da pessoa humana, da sua personalidade e dignidade.

No mesmo sentido, prescreve o art.° 70.º do C. Civil que “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”, encontrando-se esta tutela geral de personalidade integrada por direitos como, por exemplo, o direito à vida, à integridade física, à liberdade, ao bom nome, à honra, à reserva da sua vida íntima e familiar, à saúde, à intimidade, à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, ao repouso e ao descanso.

Concretamente no que se refere ao direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, estipula o art.° 80.°, n.º 1, do Código Civil que “Todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem”, sendo que no n.º 2 desse normativo se estabelece que “a extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas.” Estes preceitos transpõem o comando constitucional de protecção da pessoa humana – nas suas dimensões física e moral – para o campo do direito civil. Assim, o Código Civil abrange na sua protecção todos aqueles “direitos subjectivos, privados, absolutos, gerais, extra-patrimoniais, inatos, perpétuos, intransmissíveis, relativamente indisponíveis, tendo por objecto os bens e as manifestações interiores da pessoa humana, visando tutelar a integridade e o desenvolvimento físico e moral dos indivíduos e obrigando todos os sujeitos de direito a absterem-se de praticar actos que ilicitamente ofendam ou ameacem ofender a personalidade alheia sem o que incorrerão em responsabilidade civil (…)

Coloca-se, desde já, a questão de saber como delimitar o exercício destes direitos cuja relevância assume dignidade constitucional. O princípio fundamental a respeitar nos casos de colisão de direitos está formulado no art.° 335.° do Código Civil e, embora este diploma não se sobreponha à Constituição, este preceito consagra um princípio que a doutrina tem acolhido como princípio geral de direito

Assim, havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes. Surge, assim, a ideia dos limites ao próprio exercício do direito, que, uma vez ultrapassados, conduzirá o agente para o campo da ilicitude.

Do que se trata no presente processo é de averiguar se foram ultrapassados tais limites por parte na Ré, durante o exercício do seu direito de informar, fazendo incorrer esta em responsabilidade civil.

Vejamos os factos, destacando-se o seguinte:

Provou-se que “a R CC, no dia 1-5-08, cerca das 20.00 horas, no programa “... “, difundiu reportagem que continha a notícia da imolação de DD. Nessa reportagem é realizada uma entrevista a um amigo de DD, tendo como cenário uma praia da ..., Almada, zona onde este vivia. A reportagem de 1-5-08 foi repetida no dia seguinte, no “...“. As imagens (da referida reportagem) mostravam o hall da entrada de um Hospital, sendo susceptíveis de induzir o telespectador no sentido de que se tratava do local onde o marido e pai das AA se encontrava internado.

Logo após a realização da entrevista ao amigo de DD, passava-se ao quarto de um Hospital, sendo as imagens susceptíveis de induzir o telespectador de que a pessoa que ali se encontrava, coberta de ligaduras, se tratava de DD.

Na mencionada reportagem, visualizava-se o tronco de um doente, todo coberto de ligaduras, incluindo a face à excepção dos olhos, com 90% do corpo queimado, e ligado a um ventilador, que assegurava a continuação da sua respiração.

As imagens transmitidas, que não possuíam a indicação de se tratarem de imagens de arquivo, em conjugação com o conteúdo da notícia, centrada na imolação de DD, criaram nas AA a percepção de que a imagem do doente hospitalizado correspondia à pessoa de seu pai e marido.

As imagens captadas demonstravam o sofrimento do doente que estava a ser filmado.

A visualização das imagens causou uma dor forte e intensa nas AA, além do mais por lhes ter sido vedado o acesso ao quarto de DD e se convencerem que tal acesso havia sido dado aos jornalistas. Essas imagens ficaram-lhes para sempre na memória. Essas imagens causaram-lhes muitos pesadelos, em que as reviviam e voltavam a visualizar. A transmissão das imagens aumentou o sofrimento das Autoras.

Por força da reportagem efectuada pela R. CC, as Autoras viram-se forçadas a falar mais vezes na morte de DD, por serem abordadas por terceiros que haviam visionado a reportagem, questionando-as sobre o sucedido. O que as transtornou, por terem de reviver uma situação que, com dificuldades extremas, se esforçavam por ultrapassar.

No acórdão recorrido faz-se apelo ao decidido na sentença da 1.ª instância que defende: …“ a liberdade de expressão e de informação – liberdade de imprensa – constituem um elemento fundamental nas sociedades livres e democráticas, assumindo papel activo e preponderante na formação de uma opinião pública esclarecida, livre e informada, mas não menos verdade é o facto do respeito pelos direitos de personalidade constituírem o garante, um dos pilares, para uma sociedade justa, livre e democrática, que deixaria de o ser se acaso se legitimassem violações a tais direitos, sob o pretexto da defesa ou prevalência do direito à liberdade de informação.

É, porém, recorrente, na actualidade, o confronto entre os direitos de personalidade e o direito de liberdade de expressão, no específico segmento da liberdade de imprensa e de informação, entendendo-se que o sacrifício dos primeiros só deve admitir-se quando ocorra uma causa justificativa, e esta causa justificativa respeite o princípio da proporcionalidade, da necessidade e da adequação do meio”.

Analisando os factos provados, não se verifica, a nosso ver, uma clara infracção dos limites do legítimo exercício do direito de informar.

Frequentemente, os meios de comunicação social cedem a exageros que, longe de servirem os interesses dos cidadãos a serem convenientemente informados, apenas visam explorar sentimentos e, por vezes, tendências menos nobres dos espectadores.

No caso dos autos, impõe-se analisar se a reportagem em causa consubstancia a violação de normas legais, permitindo assim concluir pela ilicitude do facto.

Segundo as instâncias, “no respeito pelos direitos de personalidade, cabia à R. CC não exibir imagens de DD em estado de saúde crítico, internado num hospital, pois que não lhe foi dada autorização expressa nesse sentido, mas cabia-lhe igualmente, como é obvio, ao utilizar imagens de arquivo, onde exibia uma pessoa numa unidade de queimados em estado similar ao que descrevia encontrar-se DD, informar expressamente os telespectadores que as imagens exibidas não eram da vítima. Tal dever decorre, além do mais, do artigo 10.º do Cód. Deontológico do Jornalista, – Dever de relatar os factos com rigor e exactidão, e interpretá-los com honestidade, bem como a obrigação, antes da transmissão da notícia, de atender às condições de serenidade e liberdade das pessoas envolvidas.

Concordamos que a Ré não só podia, como devia, informar que a imagem de um doente hospitalizado que exibiu na aludida reportagem era uma imagem de arquivo, afastando a imediata convicção nos espectadores de que o visionado era o referido DD, o que omitiu.

Tal omissão deu azo a criar nas AA, em particular, a convicção de que estavam a visualizar o seu marido e pai num leito de hospital, em grande sofrimento.

Afigura-se-nos, no entanto, incontroverso que não ocorreu qualquer violação do artigo 6.º do Código Deontológico dos Jornalistas, nem a do artigo 9.º, apenas se podendo sustentar ter ocorrido uma infracção ao citado artigo 10.º, por o relato não ter sido rigoroso, permitindo interpretações erróneas.

Mas acontece que a norma violada não se destina a proteger qualquer direito pessoal dos espectadores.

Acresce que nem sequer se provou se, no momento em que foi transmitida pela 1.ª vez a notícia, a vítima já tinha ou não falecido, uma vez que apenas se sabe que essa morte ocorreu no próprio dia em que pela primeira vez se transmitiu a notícia e que essa primeira transmissão ocorreu pelas 20 horas.

É certo que as AA. invocam que as imagens lhes causaram e agravaram o sofrimento, mas também que parte desse sofrimento, como se deu por provado, derivou não directamente da notícia mas da sua convicção de que lhes havia sido coarctado o acesso à vítima e autorizado o mesmo à comunicação social.

Por outro lado, o sofrimento resultante de terem sido abordadas por diversas pessoas não pode ser imputada ao visionamento da imagem do hospitalizado, mas antes pelo insólito da imolação pelo fogo no nosso meio e pela publicitação da notícia, perfeitamente natural, uma vez que a vítima optou por uma atitude pública de protesto, dessa forma tão radical.

Aceita-se que, “na delimitação do direito à informação intervêm princípios éticos, constituindo dever de quem informa esforçar-se por contribuir para a formação da consciência cívica e para o desenvolvimento cultural sobretudo pela elevação do grau de convivialidade como factor de cidadania e não fomentar reacções primárias, sementes de violência ou sentimentos injustificados de indignação e de revolta, tratando assuntos com desrespeito pela consciência moral das gentes” e que “O princípio norteador da informação jornalística deve ser o de causar o menor mal possível, pelo que quando se ultrapassam os limites da necessidade, a conduta é ilegítima. Pode, pois, concluir-se que “o direito à informação comporta três limites essenciais: o valor socialmente relevante da notícia; a moderação da forma de a veicular e a verdade, medida esta pela objectividade, pela seriedade das fontes, pela isenção e pela imparcialidade do autor”.

O que não nos leva a aceitar as conclusões em que assenta o acórdão recorrido.

Em primeiro lugar, importa deixar claro que não consideramos existir violação do direito à imagem, nem à reserva da intimidade das AA.

Com efeito, não se demonstrou que tenham sido tomadas fotografias não autorizadas da vítima.

Em segundo lugar, também entendemos que não se configura uma violação da reserva da vida privada.

Como se diz no acórdão deste Tribunal de 08-05-2013, proferido no proc. 55/08.0TVLSB.L1.S1:

«O direito à reserva da intimidade da vida privada tem, em qualquer caso, na nossa Constituição a natureza de direito fundamental, com assento no capítulo dos “direitos, liberdades e garantias pessoais” – art. 26º-1 cit., sendo que o nº 2 do preceito inclui, entre os direitos pessoais, que “a lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias”, assim se manifestando “uma garantia concreta” do direito à reserva da vida privada e familiar abrangendo as informações abusivas, ou seja, as não autorizadas (cfr. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, I, 4º ed., 471-472).

A invocada ofensa não se integra no direito fundamental directamente protegido nos arts. 26º-1 CRP e 80º-1 C.C., relativo à vida privada íntima, mas na vida privada não íntima “adjacente à esfera pública”, isto é, à reserva da vida privada merecedora de tutela mesmo quando o visado exerce funções públicas ou notórias ou se movimenta em lugares públicos (CAPELO DE SOUSA, loc. cit., 1129).[2]

A reserva e o resguardo da vida privada encontram protecção no âmbito do direito geral de personalidade, reconhecido no art. 70.º do C. Civil.

Menos intensa que a protecção da intimidade da vida privada, ou da sua esfera íntima, como escreve aquele Ilustre Professor, a tutela da vida privada não íntima, “por via de regra, implica tão só o resguardo, admitindo em determinadas circunstâncias o conhecimento de determinadas manifestações privadas, sendo apenas ilícitos a divulgação ou o aproveitamento das mesmas”.

E, também aqui, a extensão da tutela da vida privada deve ser aferida por referência à natureza do caso e à condição das pessoas, conforme o critério acolhido pelo n.º 2 do art. 80º C. Civil.»

Continuando a desenvolver a posição de R. CAPELO DE SOUSA (O Direito Geral da Personalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, pp. 316 a 328), podemos dizer:

“Adentro da tutela da personalidade prevista no art.º 70.º do C. Civ. é juscivilisticamente protegido o bem da reserva (resguardo e sigilo) do ser particular e da vida privada de cada indivíduo que aliás também em ampla medida goza de garantia constitucional.

…para além da amplitude com que é consagrado no art.º 80.º, n.º 1 do C. Civ. um direito de guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem, aquele âmbito geral decorre directa e mais extensamente da natureza da personalidade moral do homem geralmente tutelada no art.º 70.º, n.º 1 do C.Civ. Na verdade, a reserva juscivilisticamente tutelada abrange não só o respeito da intimidade da vida privada, em particular a intimidade da vida pessoal, familiar, doméstica, sentimental, sexual e inclusivamente os respectivos acontecimentos e trajectórias mas ainda o respeito de outras camadas intermédias e periféricas da vida privada, como as reservas de domicílio e de lugares adjacentes, de correspondência e de outros meios de comunicação privada, dos dados pessoais informatizáveis, dos lazeres, dos rendimentos patrimoniais e dos demais elementos privados da actividade profissional e económica bem como também, last but not least, a própria reserva sobre a individualidade privada no seu ser para si mesmo, v.g. sobre o seu direito a estar só e sobre os caracteres de acesso privado do seu corpo, da sua saúde, da sua sensibilidade e da sua estrutura intelectiva e volitiva.

Todavia, esta amplidão de tutela (…) não é incompatível com a existência aí de diversos círculos concêntricos de reserva, dotados de maior ou menor eficácia jurídica, particularmente de garantias mais ou menos profundas.

(…)

Assim a reserva descobre-se em círculos de resguardo, nos quais se poderá tomar (em certas circunstâncias) conhecimento de determinadas manifestações das pessoas e mas em que são ilícitos a divulgação ou o aproveitamento dos mesmos, e em círculos de sigilo, nos quais são liminarmente ilícitos a intromissão e a tomada de conhecimento das respectivas manifestações.

…é menor a intensidade da tutela nos casos em que a vida privada é adjacente à esfera pública dos mesmos, designadamente quando o indivíduo se movimenta em lugares públicos, (…) mas em que a privacidade da sua vida impõe mesmo aí uma certa reserva. Depois, podem considerar-se zonas intermédias de resguardo já mais sensíveis e interditas à publicidade, os elementos privados da actividade profissional e económica. Mas é sobretudo na intimidade da vida familiar, doméstica, sentimental e sexual e no ser do homem para si mesmo que reside uma maior eficácia da reserva, originando um crivo muito mais apertado de eventuais causas de justificação de ilicitude nas ofensas a tais bens.”

De todo o exposto decorre que a notícia de um facto que a vítima tornou público e de interesse público, deixou fora do domínio da ilicitude a actuação da Ré.

Em terceiro lugar, no caso dos autos, ao transmitir as imagens já descritas de uma pessoa em grande plano completamente envolta em ligaduras, respirando apenas com a ajuda de um ventilador, evidenciando sofrimento, permitindo transmitir ao espectador a ideia de que se tratava da própria vítima, imprime no contexto da notícia, uma nota de especial dramatismo, desnecessário e, dessa forma, com infracção da moderação e objectividade a que a R, operadora de televisão, estava obrigada.

Mas tal facto não releva senão relativamente ao espectador em geral e ao seu direito de ser informado com verdade.

Quanto aos familiares, também espectadores, essa falta de objectividade torna-se ilícita, na medida em que propicia a convicção de estarem a presenciar o sofrimento da vítima.

Relativamente à vítima essa publicidade e esse dramatismo só pode ter-se como não desproporcionado relativamente à mensagem que a mesma quis deixar com o seu acto desesperado.

                                                            

Reconhece-se que todas as notícias que relatam um grave acidente, uma catástrofe natural, ou acto de desespero que deixa determinada pessoa em risco de vida cria nos seus familiares uma agravamento da ansiedade e do sofrimento.

Mas este facto não pode dar origem a uma indemnização, por não ser um acto ilícito.

Também não podemos concluir, portanto, como conclui a sentença recorrida que “a conduta da Ré ao exibir a mencionada reportagem nas condições referidas configura, um facto ilícito, voluntário e culposo, por violador do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada das Autoras – art. 80.º, n.° 1 do CC – tendo com a sua actuação coarctado o direito destas a viverem os últimos momentos de vida de seu marido e pai em recato, e na privacidade do lar e da família chegada, além de que foram igualmente violadas na sua intimidade ao verem-se constrangidas a prestar informações sobre as circunstancias dramáticas em que aquele faleceu, a inúmeras pessoas que não faziam parte da família e das suas relações mais próximas e de amizade”.

Nenhuma intimidade das autoras foi violada pelas notícias. Foi a vítima que optou por publicamente se imolar pelo fogo. Se é natural que as AA. gostassem de sofrer em silêncio e no sossego do lar a sua dor, não pode esse desejo ter-se por violado ilicitamente pela notícia.

O mesmo se diga relativamente ao facto de terem de prestar informações sobre as pessoas que as abordavam. É esse o comportamento normal das pessoas perante uma morte de alguém que conhecem, e, designadamente se a mesma se apresenta revestida de algum secretismo ou pormenor invulgar.

A culpa

O ré actuou com culpa, nos termos do art.º 487.º, n.º 1 do C.C, ao não transmitir, de forma inequívoca que as fotografias exibidas no noticiário eram fotografias de arquivo e não da vítima.

O nexo de causalidade

Importa ainda a verificação do nexo de causalidade entre o facto e o dano, bem como a existência de danos.

Face à redacção do art. 563.º do CC, pode-se considerar doutrina assente que, na obrigação de indemnizar não cabem todos os danos sobrevindos ao facto constitutivo de responsabilidade, exigindo-se entre o facto e o dano indemnizável um nexo mais apertado do que a simples coincidência ou sucessão cronológica (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 6.ª edição, Coimbra, 1989, pp. 849.15)

E, nesse âmbito, "o problema pode ser visto sob uma dupla perspectiva. Num aspecto positivo, quando se diz que o lesado, para obter a indemnização, tem de alegar e provar o nexo de causalidade entre o prejuízo e o facto a que a lei liga certa responsabilidade. Num aspecto negativo, para significar que o réu pode afastar a relação de causalidade que parecia envolvê-lo, provando-se a existência de uma causa estranha que lhe não é imputável" (Antunes Varela, ob. e loc. cit. p. 851).

Isto dito, acrescenta-se que o citado art. 563.º consagrou, quanto ao nexo de causalidade, a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa de Enneccerus-Lehman, nos termos da qual "a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias". (JORGE RIBEIRO DE FARIA, Direito das Obrigações, vol. I, Coimbra, 1987, p. 502. Cfr. Ac. STJ de 08.02.2000, no Proc. 19/00, da 1ª secção)

Esta doutrina, nomeadamente no que concerne à responsabilidade por facto ilícito culposo – contratual ou extracontratual – deve interpretar-se, porém, de forma mais ampla, com o sentido de que "o facto que actua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais" e de que a citada doutrina da causalidade adequada "não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o dano". (ALMEIDA COSTA, ob. cit., pp. 632 e 633; ver, quanto ao segmento da exclusividade, ANTUNES VARELA (obra e volume citados, p. 865).

Na verdade, se o agente produziu a causa donde resultou o dano, sem dúvida que a sua conduta é adequada ao resultado, mesmo que, concomitantemente com a sua conduta, haja a conduta de terceiros a concorrer para esse resultado ou, pelo menos, a não o evitar. Assim, "desde que o devedor ou o lesante praticou um facto ilícito, e este actuou como condição de certo dano, compreende-se a inversão do estado normal das coisas. Já se justifica que o prejuízo (embora devido a caso fortuito ou, em certos termos, à conduta de terceiro) recaia, em princípio, não sobre o titular do interesse atingido, mas sobre quem, agindo ilicitamente, criou a condição do dano". (ANTUNES VARELA, ob. e vol. cits, p. 864.)

Como se disse atrás nas considerações introdutórias, o autor da lesão é responsável por todos os factos ulteriores que eram de esperar segundo o curso normal ou típica das coisas, excepto aqueles, que tendo actuado como condição do dano, dada a sua natureza geral, se mostrem de todo em todo indiferentes para a sua verificação (do dano), “tendo-o provocado só por virtude de circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto” (ANTUNES VARELA (Das Obrigações…, cit., vol. I, pp. 890 e 891).

Não há, face à matéria provada, elementos para afastar a causalidade relativamente aos danos morais sofridos pelas AA. e pelos quais a Ré foi condenado.

Dos danos

Isto, porém, não significa que se deva considerar que o dano em questão (aumento do sofrimento das AA), deva ser indemnizado.

As AA sofreram, naturalmente, ao serem confrontadas com a insólita atitude do seu marido e pai e continuaram a sofrer, enquanto permaneceu em perigo de vida e, depois, pelo facto da sua morte.

O referido aumento tem uma dimensão reduzida, face ao grande sofrimento derivado da imolação e subsequente morte.

Nem todos os danos não patrimoniais devem ser indemnizados mas apenas aqueles que mereçam a tutela do direito. (art. 496.º, n.º 1, do CC).

Os danos desta natureza não são susceptíveis de verdadeira e própria indemnização (quer pela via da reconstituição natural quer por via da atribuição do equivalente em dinheiro), mas apenas de compensação (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Almedina, Coimbra, 9.ª edição, 1.º vol., p. 630).

A lei – artigos 562.º e 496.º CC – manda atender sempre a um critério de equidade, com base na ponderação dos factores previstos no art. 494.º – grau de culpabilidade do agente, situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso.

O juízo equitativo não pode deixar de ter em consideração o sistema económico – poder aquisitivo da moeda e características e condições gerais da economia – em que a compensação vai operar, sem esquecer que nos movemos em campo do maior relativismo e subjectividade.

Entendemos, face ao exíguo significado do aumento do dano relativamente ao causado pela atitude voluntária da vítima e suas consequências, não se justificar atribuir uma compensação pelo mesmo.

III. Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista, absolvendo a Ré.

Lisboa, 2 de Dezembro 2013

Paulo Sá (Relator)

Garcia Calejo

Helder Roque




_____________
[1]              N.º 623
Relator :   Paulo Sá
Adjuntos: Garcia Calejo e
   Hélder Roque
                                 
[2] “Conflitos entre a Liberdade de Imprensa e a Vida Privada”, in “AB UNO AD OMNES” 75 Anos da Coimbra Editora1920-1995.