Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
Relator: | NUNO PINTO OLIVEIRA | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL ACIDENTE DE VIAÇÃO EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE CULPA DO LESADO CULPA EXCLUSIVA PEÃO ATROPELAMENTO CULPA GRAVE VEÍCULO AUTOMÓVEL DIREÇÃO EFETIVA SEGURADORA | ||
Data do Acordão: | 04/04/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Sumário : | Em acidente exclusivamente imputável ao lesado, não respondem pelos danos nem o detentor do veículo automóvel nem, tão-pouco, a sua seguradora (cf. artigo 505.º do Código Civil). | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Recorrentes: AA e BB Recorrida: Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A. I. — RELATÓRIO 1. AA e BB intentaram a presente acção declarativa de condenação contra Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.. 2. Pediram a condenação da Ré ao pagamento da quantia total de 250 000,00 euros, “acrescida de juros de mora vencidos desde a citação e vincendos até efectivo e integral pagamento”, dos quais: I. — 50 000,00 euros a título de compensação por danos morais próprios dos Autores; II. — 150 000,00 euros a título de compensação pelo dano da morte do seu filho. 3. A Ré contestou, pugnando pela improcedência da acção. 4. O Tribunal de 1.º instância julgou a acção totalmente improcedente. 5. O dispositivo do acórdão recorrido é do seguinte teor: Por todo o exposto e com esses fundamentos, decide-se julgar a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolve-se a ré Fidelidade Companhia de Seguros, S.A. do pedido contra si formulado pelos autores AA e BB. A responsabilidade pelo pagamento das custas processuais fica a cargo dos Autores, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam. 6. Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação. 7. A Ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso. 8. O Tribunal da Relação julgou totalmente improcedente o recurso. 9. Inconformados, os Autores interpuseram recurso de revista. 10. Finalizaram a sua alegação com as seguintes conclusões: 1. O douto acórdão recorrido está em oposição com o douto acórdão fundamento, transitado em julgado, com anterioridade, quanto à questão fundamental de direito, expressamente tratada em ambos, 2. Em face da prova produzida, não é possível assacar a responsabilidade pela produção do acidente ao peão, 3. Não podemos, desde logo, entender que a velocidade imprimida à viatura era adequada (como não foi) às circunstâncias de tempo e de lugar em que ocorreu o sinistro, 4. Ficou por explicar como é que surge um “vulto”, junto à separatória das duas vias, e o condutor do OF não se apercebeu da sua presença, 5. Não resultou, sequer, provado que o peão estaria a atravessar a estrada… 6. Em face do local onde ocorreu o embate (e até a projeção do corpo da vítima), seguramente, que o veículo automóvel não circulava encostado (o mais encostado possível) à sua direita, atento o seu sentido de transito, 7. Os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (no que ao peão diz respeito) não se mostram preenchidos; 8. Mas, ressalvada melhor opinião, mostram-se preenchidos em relação ao condutor do OF; assim, facto voluntário do agente (circulação automóvel), ilícito (não adequação da velocidade às condições climatéricas e de visibilidade, não circulava encostado à direita e seguia desatento), a imputação do facto ao agente (era o condutor do veículo e tinha a sua direção efectiva), o dano (a morte do peão) e o nexo causal (entre a forma como realizava essa condução automóvel e a morte). 9. Pelo bem fundado do acórdão fundamento, os recorrentes permitem-se sugerir a esse Colendo Supremo Tribunal que acolha, para pacificar a aludida divergência, a posição, que, oportunamente, já assumiu sobre esta questão no douto acórdão fundamento 10. E, na aplicação da definitiva posição sobre o questionado ponto ao caso dos autos, decida esse Colendo Tribunal Supremo substituir o douto acórdão recorrido, por um outro, que, no essencial, atribua, na integra, em face da prova produzida e da factualidade provada, a responsabilidade pela produção do acidente de viação (atropelamento) ao condutor do veículo automóvel ou, se assim, não vier a ser entendido, V. Exa.s entenderem que ocorre uma concorrência de culpas, a responsabilidade deverá ser repartida na proporção de 90% para o condutor do veículo automóvel e de 10% para o peão. Assim se fará, cremos, equilibrada e sã JUSTIÇA 11. A Ré contra-alegou, pugnando pela inadmissibilidade e, subsidiariamente, pela improcedência do recurso. 12. A Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil admitiu o recurso de revista excepcional. 13. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do Código do Processo Civil), as questões a decidir, in casu, consistem em determinar: I. — se o acidente o acidente se deve exclusivamente ao comportamento de AA; em caso de resposta negativa à questão anterior, II. — se o se deveu exclusivamente ao comportamento de CC; em caso de resposta negativa à questão anterior, III. — em que proporção se deveu o acidente ao comportamento de AA e de CC. II. —FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS 14. O Tribunal de 1.º instância deu como provados os factos seguintes. 1) No dia 31 de Janeiro de 2019, pelas 19:50 horas, na Estrada Nacional 102, no quilómetro 53,650, CC conduzia o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula ..-OF-.., no sentido Vila .../Quinta ... – ..., tendo embatido em AA, nascido no dia ... de ... de 2001. (artigo 1.º da petição inicial e artigo 6.º da contestação) 2) O veículo mencionado em 1) encontra-se registado em nome de «L..., Unipessoais, Lda». (artigo 5.º da petição inicial) 3) A proprietária do veículo com a matrícula ..-OF-.. transferiu para a Ré a responsabilidade civil por danos emergentes da circulação do referido veículo, por meio de contrato de seguro titulado pela apólice n.º .......66. (artigo 6.º da petição inicial). 4) AA encontra-se registado como filho dos Autores. (artigo 2.º da petição inicial) 5) Era habitual AA caminhar sozinho, de dia e de noite, tendo sido sujeito a vários internamentos com suspeita de perturbação factícia, perturbação da personalidade histeriforme e abuso de substâncias. (artigos 19.º e 20.º da contestação) 6) No local do embate apenas é permitido circular a uma velocidade máxima de 70 quilómetros/hora. (artigo 11.º da petição inicial) 7) O local referido em 1) é composto por piso betuminoso com 6,90 metros de largura, existindo uma faixa de rodagem com duas vias de trânsito em sentidos opostos e separados por dupla linha contínua e linhas guia delimitadoras da faixa de rodagem. (artigo 12.º da petição inicial) 8) A faixa de rodagem é composta por uma berma com cerca de 1,50 metros de largura. (artigo 18.º da contestação) 9) Nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em 1), o piso encontrava-se molhado, devido ao estado de tempo chuvoso, e o local não tinha iluminação pública. (artigo 13.º da petição inicial e artigo 9.º da contestação) 10) Estava escuro e chovia intensamente. (artigo 9.º da contestação) 11) Antes de chegar ao local do sinistro, o condutor do veículo com a matrícula ..-OF-.. passou por uma ponte e uma curva com um entroncamento do seu lado esquerdo. (artigo 21.º da petição inicial) 12) Em sentido contrário ao veículo com a matrícula ..-OF-.., circulava um veículo automóvel conduzido por DD, sendo que, quando os veículos se cruzaram, surgiu um vulto à frente e do lado esquerdo do veículo ..-OF-.., tendo ocorrido, na hemifaixa destinada à circulação deste e a cerca de 0,60 metros do eixo da faixa de rodagem, o embate referido em 1). (artigos 11.º, 13.º, 16.º e 17.º da contestação). 13) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1), AA caminhava e trajava roupa escura e sem colete refletor. (artigo 10.º da contestação) 14) O embate ocorreu dentro da via de trânsito do condutor do veículo com a matrícula ..-OF-.. (artigo 17.º da petição inicial e artigo 17.º da contestação) 15) No momento do embate, o condutor do veículo com a matrícula ..-OF-.. circulava a cerca de 42, 48, quilómetros/hora. (artigo 24.º da petição inicial e artigo 7.º da contestação) 16) AA, na sequência do embate, foi projectado cerca de 17,63 metros, tendo o seu corpo ficado posicionado junto da linha guia da berma do lado esquerdo, atento o sentido de circulação do veículo (artigos 15.º e 27.º da petição inicial). 17) No local do sinistro, melhor identificado em 1), compareceram os elementos da Guarda Nacional Republicana de ... e do Núcleo de Investigação Criminal de Acidentes de Viação (NICAV) de .... (artigo 4.º da petição inicial) 18) AA, na sequência do sinistro, foi transportado para o Hospital de ..., onde veio a falecer. (artigo 3.º da petição inicial) 19) Na sequência do óbito de AA, os Autores ficaram tristes, com uma dor e mágoa incalculável, tendo deixado de conseguir dormir. (artigos 33.º e 34.º da petição inicial) 20) Os Autores ainda não conseguiram fazer o luto do seu filho, pois contavam com o mesmo para os ajudar na velhice. (artigo 37.º da petição inicial) 21) A saudade do filho manifesta-se a cada dia que passa. (artigo 38.º da petição inicial) 15. Em contrapartida, o Tribunal de 1.ª instância deu como não provados os factos seguintes: a) AA pretendia apenas atravessar a faixa de rodagem. (artigo 7.º da petição inicial) b) O local tem boa visibilidade mesmo durante a noite. (artigo 10.º da petição inicial) c) (…) não parou o veículo no espaço visível à sua frente por forma a evitar o embate. (artigo 17.º da petição inicial) d) O condutor do veículo com a matrícula ..-OF-.. não efectuou qualquer travagem. (artigo 18.º da petição inicial) e) No dia e hora dos factos, AA encontrava-se a cerca de 24 metros de distância do veículo com a matrícula ..-OF-... (artigo 26.º da petição inicial) f) Aquando do embate o veículo estaria numa posição oblíqua em relação à linha longitudinal do eixo da via, ou seja, foi efectuado um desvio repentino à esquerda pelo condutor numa altura em que o peão estaria já próximo do eixo da faixa de rodagem. (artigo 28.º da petição inicial). 16. O Tribunal da Relação julgou improcedente a impugnação da matéria de facto deduzida pelos Autores. O DIREITO 17. O Tribunal de 1.ª instância e o Tribunal da Relação concordaram em que os factos dados como provados eram suficientes para que o acidente devesse ser imputado, em exclusivo, ao lesado e em que, devendo o acidente ser imputado, em exclusivo, ao lesado, devia excluir-se a responsabilidade da Ré (cf. artigo 505.º do Código Civil). 18. Os Autores, agora Recorrentes, alegam que o acidente se deveu exclusivamente ao comportamento de CC, como condutor do veículo com a matrícula ..-OF-.. e que, ainda que não se lhe devesse exclusivamente, sempre se lhe deveria maioritariamente (na proporção de 90% para 10%). 19. Entendem que dos factos dados como provados decorre que CC seguia desatento, desviado para a esquerda e a uma velocidade excessiva, porque desajustada às condições de tempo e de lugar do acidente — em especial, à reduzida visibilidade (conclusões n.ºs 3. 4, 5 e 8 do recurso de revista). 20. O problema está em que nada sugere que CC seguisse desatento, que seguisse desviado para a esquerda ou que seguisse a uma velocidade excessiva . 21. Consideradas as circunstâncias do tempo e do lugar do acidente, era razoável que o condutor de um automóvel circulasse a uma velocidade inferior à velocidade máxima permitida. 22. Ora CC seguia a uma velocidade entre os 40 e os 50 km/h., sensivelmente inferior à velocidade máxima permitida — 70 km / h. 1 —, logo a uma velocidade razoável. 23. Estando excluída a responsabilidade de CC pela prática de um facto ilícito, deve apreciar-se a responsabilidade da L..., Unipessoais, Lda, e / ou de CC pelos riscos dos veículos automóveis. 24. Os artigos 503.º e 505.º do Código Civil são do seguinte teor: Artigo 503.º – Acidentes causados por veículos 1. — Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação. […] Artigo 505.º – Exclusão da responsabilidade Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo. 25. Os Autores, agora Recorrentes, alegam que o acidente não se deveu ao comportamento de AA — em especial, por não se ter provado que o peão estivesse a atravessar a estrada (cf. conclusão n.º 5 do recurso de revista). 26. O problema está em que AA infringiu as disposições legais relativas à circulação de peões, em que infringiu as disposições legais relativas à circulação de peões com culpa grave e em que a infracção das disposições legais foi causa exclusiva do acidente. 27. Em primeiro lugar, AA infringiu as disposições legais relativas à circulação de peões — em especial, o artigo 99.º do Código da Estrada. 28. O artigos 99.º do Código da Estrada é do seguinte teor: 1 - Os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas. 2 - Os peões podem, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, nos seguintes casos: Quando efetuem o seu atravessamento; Na falta dos locais referidos no n.º 1 ou na impossibilidade de os utilizar; Quando transportem objetos que, pelas suas dimensões ou natureza, possam constituir perigo para o trânsito dos outros peões; Nas vias públicas em que esteja proibido o trânsito de veículos; Quando sigam em formação organizada sob a orientação de um monitor ou em cortejo. 3 - Nos casos previstos nas alíneas b), c) e e) do número anterior, os peões podem transitar pelas pistas a que se refere o artigo 78.º, desde que a intensidade do trânsito o permita e não prejudiquem a circulação dos veículos ou animais a que aquelas estão afetas. 28. Ora, em concreto, ainda que estivesse em local com piso betuminoso com 6,90 metros de largura 2 e com uma berma com cerca de 1,50 metros de largura 3, AA encontrava-se na faixa de rodagem — a 60 cm. do eixo da faixa de rodagem 4. 29. O facto de não se ter provado sequer que AA estivesse a atravessar a estrada 5 só confirma que não se dava nenhuma das hipóteses do n.º 2 do artigo 99.º do Código da Estrada. 30. Em segundo lugar, AA infringiu as disposições legais relativas à circulação de peões com culpa grave. 31. Os factos dados como provados são suficientes para que se conclua: I. — que as condições do tempo e do lugar eram especialmente perigosas — designadamente, a circunstância de estar de noite 6, de chover com intensidade 7 e de se estar em lugar sem iluminação pública 8 —, II. — que AA estava na estrada, expondo-se ao risco de um atropelamento 9; III. — que, atendendo às condições de tempo e de lugar especialmente perigosas,, o risco de um atropelamento era agravado pela circunstância de AA circular com roupa escura e sem qualquer colete reflector 10. 32. Embora as condições de tempo e de lugar exigissem um cuidado acrescido, superior ao normal, para a prevenção do acidente, AA caminhava com um cuidado inferior ao normal. 33. Em terceiro lugar, a infracção das disposições legais foi causa exclusiva do acidente. 34. Os factos dados como provados sob os n.ºs 12, 14 e 15 são suficientes para que se conclua que, se AA caminhasse com o cuidado exigível, na berma, não teria sido atingido pelo veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula ..-OF-... 35. Encontrando-se em causa um acidente exclusivamente imputável ao lesado, está excluída a responsabilidade da L..., Unipessoais, Lda ou de CC pelo risco dos veículos automóveis (cf. artigo 505.º do Código Civil). 36. Em termos em tudo semelhantes aos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Abril de 2021 — processo n.º 4883/17.7T8GMR.G1.S1 —, dir-se-á que, “[v]erificando-se um comportamento da vítima que, na conjugação da ilicitude decorrente da violação de regras estradais e da falta da diligência objectiva exigível na circulação automóvel, merecedor de juízo de censura a título de culpa, se revele a causa exclusiva do acidente/colisão e dos danos resultantes, por isso sendo-lhe unicamente imputável a produção do acidente, fica excluída a responsabilidade objectiva do condutor/veículo lesante, acolhida no art. 503.º, n.º 1, por aplicação do art. 505.º do CC”. III. — DECISÃO Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido. Custas pelos Recorrentes AA e BB, sem prejuízo do apoio judiciário que lhes tenha sido concedido. Lisboa, 4 de Abril de 2024 Nuno Manuel Pinto Oliveira Fátima Gomes Sousa Lameira ______ 1. Cf. facto dado como provado sob o n.º 6. 2. Cf. facto dado como provado sob o n.º 7. 3. Cf. facto dado como provado sob o n.º 8. 4. Cf. facto dado como provado sob o n.º 12. 5. Cf. facto dado como não provado sob a alínea a). 6. Cf. factos dados como provados sob os n.ºs 1 e 10. 7. Cf. factos dados como provados sob os n.ºs 9 e 10. 8. Cf. facto dado como provado sob o n.º 9. |